sábado, 13 de maio de 2017

NÃO CONSIGO EXPULSAR OS HOLANDESES

Por Florisvaldo Mattos
(Postado no Facebook em 10.05.2017)

Transcorreram ontem, 9 de maio, 393 anos que soldados e mercenários da esquadra holandesa desembarcaram de madrugada na praia do hoje Porto da Barra para ocupar a então Cidade da Bahia e dominar tanto ela como o seu Recôncavo e litoral, durante um ano e dois meses, até serem expulsos em julho de 1625. 
Esqueci-me da data, logo eu que em 2000 publiquei um livro de poemas ("Mares anoitecidos", Rio, Imago Editora), tomando como tema a tessitura heroica desse malogro, que os colonizadores portugueses registraram como glória, embora a façanha da expulsão dos chamados invasores se deveu a um nobre espanhol, Dom Fradique de Toledo Osório, que agia sob as ordens de Felipe IV, rei da Espanha, à época ainda mantendo Portugal sob seu domínio.
Publico abaixo um dos enunciados constantes desse livro, narrando justamente o momento da morte do general Johann Van Dort, então governador e comandante geral, surpreendido em Água de Meninos pelas forças que vinham combatendo os depois chamados invasores. A singularidade desses versos reside na montagem de seis sonetos monoestróficos, sem rima, com o general holandês narrando a própria morte, em que adoto a mesma técnica usada pelo argentino Jorge Luis Borges, em seu "Poema conjetural", do livro "El otro, el mismo" (1964), que por sua vez a copiou do inglês Robert Browning, em suas "Dramatis Personae", segundo revelou o uruguaio Emir Rodriguez Monegal. 
Embora atrasado em relação à data, segue abaixo o poema, que é também uma conjetura, registrando o momento em que Van Dort sucumbe sob uma tempestade de espadas, lanças e balas de mosquete, com epígrafe tirada do poema de Borges; aqui ilustrado com uma pintura que marca a chegada dos holandeses às então chamadas Índias Ocidentais.

ESTRADA DE MONTE SERRAT

“Pisan mis pies la sombra de las lanzas
que me buscan.”
(Jorge Luis Borges)

Atacado em Água de Meninos, o general flamengo Johann Van Dort, governador e comandante geral, vendo sumir o sol numa tempestade de espadas, lanças e balas de mosquete, antes de morrer, cogita de sua sorte:

I
Mal me distingue e afaga a luz primeira
da manhã, quando me ponho de surpresa
a ver a fortaleza São Felipe.
Por caminhos de pedra e matos íngremes,
de regresso, afastando-me da escolta,
armada de escopetas e pistolas,
qual penetrasse estreito labirinto,
o troar de um tropel demais severo
de portugueses, de índios e de pretos,
de mui ervadas flechas de repente
sobre nós derrubasse temeroso
céu de balas, espadas e azagaias,
em chuva celerada, trespassando
tanto quanto cavalos e trombetas.
II
Zune o tempo de horror, o instante último
do bom negócio e jogo de cobiça,
que me impeliu a essas obscuras águas,
a combater nas fontes de riqueza
as potestades do ibero inimigo,
e até a Serra Leoa fui perseguir
barcos negreiros, ou farto butim
de especiarias por todos cobiçado.
Mergulho na razão de tais destrezas,
que me põem a pelejar contra desertos,
rudimentares formas de viver;
cogito do ouro louco que essas lanças,
essas balas, essas espadas guardam
e vêm agora emoldurar-me a hora última.
III
Cristãos-novos, sabei que nós flamengos,
de tanto traficar sonhos translúcidos,
costumamos lavrar os horizontes
com a mesma mão que sagra nossas preces.
Cristãos-novos, sabei que costumamos,
bem mais que organizar tropas e frotas,
bem mais que perseguir Marte e Netuno,
prezar a natureza por primeiro;
em terra ao mar subtraída, bem mais que a ouro,
cultivamos tulipas e jacintos,
bem mais doamos ao chão apetecido:
campo iriado de luas pastoris.
Gente sublimamos e ao mundo rotas
abrimos de galhardas esperanças.
IV
Ignoro essas paragens. Eu, de bruços,
antes que à noite funda me arremessem,
me volto para o céu indecifrável,
miro a armada de nuvens aportando,
com mensagens que omitem meu destino;
eu que me alimentei de sal batavo,
de celtas e germanos tenho o sangue,
a fala de seus sons contaminada;
eu, Johann Van Dort, general flamengo,
conhecedor de códigos e cânones,
provados na gerência de um exército,
sob um céu fibroso como de sombras,
quedo, decifro gumes que me aguardam.
V
Cruzei os oceanos com minha sombra
a vagar suspeitosa de meus dias
por campos e montanhas, por estradas,
no encalço de um Aquiles incansável,
que se ofusca no espelho da distância.
O dia avança, enquanto some a fina
malha de luz que tece meu destino
na areia fúlgida onde impera a fúria
do ferro que me alaga o suor de sangue.
E fujo para dentro de mim mesmo
em busca de razões vertiginosas,
que expliquem meu passado e meu presente:
apenas vejo um porto, uma cidade
e um rosto moço a olhar o mar defronte.
VI
Armas, gentes de cenho atormentado,
que não fabricam máquinas nem aram
o pensamento além de manuscritos,
cortinas abrem só para o passado,
mais que a da prata e do ouro mercantil,
idade só do ferro experimentam,
fecham-me o caminho, o peito afundam
com a desmedida sombra de seus passos.
Por última vez fito o claro céu,
agora imerso em vaga bruma, na hora
em que recebo a última cutilada.
Está escrito nos livros: todo brioso
marinheiro tem sua enganosa ilha
e todo lutador, suas Termópilas.

(Florisvaldo Mattos, "Mares anoitecidos", 2000).


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