Por Florisvaldo Mattos
Seja por impulso afetivo e geracional, seja por juízo crítico quanto à obra do artista, a personalidade de Sante Scaldaferri sempre suscitou definições. Atado por laços de cotidiana e sincera amizade, Paulo Gil Soares viu no moço quieto, franco, prestativo e sorridente um "coração aberto a todas as dores do mundo que não deviam ser suas". Com olhar ativo e perscrutante de cineasta ainda por estrear, Glauber Rocha percebeu na linguagem de sua pintura uma "cor Bahia", que a um só tempo concentrava atmosfera, luz e "pathos bahianos", a denotar um fundamento de raízes distante do figurativismo decorativo de fácil transposição, síntese que, à época, de tão precisa e inventiva, para o crítico Clarival do Prado Valladares, dispensava explicações.
Em mais de uma apreciação, Wilson Rocha viu na aparência fantástica e na visão dramática do mundo biomórfico de Sante uma prova de "honradez pictórica"; uma visão poderosa de artista maior "que acompanha a aventura do homem no mundo e observa os absurdos da existência humana", cuja deformação se impunha pela dura verdade do conteúdo, expressa por "uma dramaticidade de acentos irônicos e brutais".
Para Ferreira Gullar, pela "atitude irreverente e corajosa", Sante era "o boca do inferno da pintura baiana", fiel a uma arte de desmistificação que punha "a nu todas as hipocrisias e pretensões, tanto sociais, quanto artísticas", enquanto José Roberto Teixeira Leite reconheceu na "dura realidade" geográfica que seus quadros espelhavam "o severo cotidiano de muitos milhões de brasileiros". Além de atestar "um modo próprio de organizar o universo visual", a um mesmo tempo carregado de significações, Gullar encara os personagens de Scaldaferri, como "saídos de uma iconografia que a cultura urbana submete e marginaliza"; contrariamente ao belo, refinado e transcendente, apontam para baixo, para o popular, que, na obra do artista, "se identifica com a feiúra e a rudeza das figuras e das cenas".
Já numa clave que o desvia dos acenos da circunstância, Walmir Ayala não titubeia em descrevê-lo como "um pintor próximo da massa, do sofrimento indefeso dos desfavorecidos", refletindo o universo cultural de um povo, mas, consciente das suas contradições, "onde a pobreza canta e dança nas ruas", realizando "uma pintura que contesta a diluição provocada pelo consumo turístico".
Eu próprio, ao deparar-me com seus vaqueiros e cangaceiros de fundas e vastas olheiras, seus rebanhos de bois e beatos - signos que chamaria de cor-Nordeste, projetando intensos verdes, vermelho, ocre e sépia -, recriados e tratados com humanidade sobre tela ou madeira, tomei-os em lavra poética como "cintilação campestre" de um universo patriarcal, que aprisionava o tempo e colhia "a rosa alvaçã", na "pelagem do incontemplado".
Foi justamente esta predominante fixação na figura humana, já agora construída com elementos de deformação, decomposição e desarticulação, segundo Teixeira Leite, "com evidentes intenções expressivas", que irá representar um salto na arte de Sante Scaldaferri. Embora confesse, por mais de uma vez, em depoimentos e entrevistas à imprensa, ter evitado vincular-se a escolas ou correntes pictóricas, não resta dúvida de que o impulso e a espontaneidade com que desde jovem abraçou a arte moderna, livrando-se das peias do receituário acadêmico, levaram-no a descobrir a fecunda trilha da cultura popular.
Em mais de uma apreciação, Wilson Rocha viu na aparência fantástica e na visão dramática do mundo biomórfico de Sante uma prova de "honradez pictórica"; uma visão poderosa de artista maior "que acompanha a aventura do homem no mundo e observa os absurdos da existência humana", cuja deformação se impunha pela dura verdade do conteúdo, expressa por "uma dramaticidade de acentos irônicos e brutais".
Para Ferreira Gullar, pela "atitude irreverente e corajosa", Sante era "o boca do inferno da pintura baiana", fiel a uma arte de desmistificação que punha "a nu todas as hipocrisias e pretensões, tanto sociais, quanto artísticas", enquanto José Roberto Teixeira Leite reconheceu na "dura realidade" geográfica que seus quadros espelhavam "o severo cotidiano de muitos milhões de brasileiros". Além de atestar "um modo próprio de organizar o universo visual", a um mesmo tempo carregado de significações, Gullar encara os personagens de Scaldaferri, como "saídos de uma iconografia que a cultura urbana submete e marginaliza"; contrariamente ao belo, refinado e transcendente, apontam para baixo, para o popular, que, na obra do artista, "se identifica com a feiúra e a rudeza das figuras e das cenas".
Já numa clave que o desvia dos acenos da circunstância, Walmir Ayala não titubeia em descrevê-lo como "um pintor próximo da massa, do sofrimento indefeso dos desfavorecidos", refletindo o universo cultural de um povo, mas, consciente das suas contradições, "onde a pobreza canta e dança nas ruas", realizando "uma pintura que contesta a diluição provocada pelo consumo turístico".
Eu próprio, ao deparar-me com seus vaqueiros e cangaceiros de fundas e vastas olheiras, seus rebanhos de bois e beatos - signos que chamaria de cor-Nordeste, projetando intensos verdes, vermelho, ocre e sépia -, recriados e tratados com humanidade sobre tela ou madeira, tomei-os em lavra poética como "cintilação campestre" de um universo patriarcal, que aprisionava o tempo e colhia "a rosa alvaçã", na "pelagem do incontemplado".
Foi justamente esta predominante fixação na figura humana, já agora construída com elementos de deformação, decomposição e desarticulação, segundo Teixeira Leite, "com evidentes intenções expressivas", que irá representar um salto na arte de Sante Scaldaferri. Embora confesse, por mais de uma vez, em depoimentos e entrevistas à imprensa, ter evitado vincular-se a escolas ou correntes pictóricas, não resta dúvida de que o impulso e a espontaneidade com que desde jovem abraçou a arte moderna, livrando-se das peias do receituário acadêmico, levaram-no a descobrir a fecunda trilha da cultura popular.
Sante Scaldaferri ante sua pintura A Flagelação do Beato |
Aferra-se com seriedade e responsabilidade à essência de signos populares e, daí, a uma nova atitude artística em relação à figura - principalmente a figura humana -, que abre seu espírito à estética do expressionismo, tantas são as identidades com as suas propostas e intenção revolucionária de olhar o mundo "por trás da aparência das cores" - um de seus ditames. Assim, opta por um vocabulário plástico de deliberada simplificação, formas reduzidas ao essencial, corpos distorcidos, até se confrontar com certa obsessão pelo grotesco, o satírico e o caricatural, sem com isso estar traindo – muito pelo contrário - aquela representação do pathos baiano que Glauber Rocha de início nele identificou.
Quanto a isto anota Teixeira Leite: "Essa tendência a pintar o ser humano como é por dentro não permite dúvidas: Sante é um expressionista, e sua arte, como toda arte expressionista, resvala para a sátira e para a farsa, para a caricatura e a imprecação". E, pela perspectiva do não convencional e do grotesco, não se recusa a suscitar um parentesco com o alemão Hieronymus Bosch (1450-1516), a que se poderia acrescentar o Goya dos Caprichos (1799), a série de 82 gravuras que retrata um universo de pesadelos e ataques ferozes aos costumes, isto é, à hipocrisia da circunstância. O crítico descreve-o como um "pessimista incorrigível" descrente da nobreza do homem, encarando-o "como um animal depravado e imperfeito", cujo exterior grotesco apenas reflete o seu interior deformado pelas paixões, os vícios e a ânsia de prazer e poder. Assim, o artista vê o ser humano no seu trânsito social.
Nesse aspecto, há clara similitude entre o baiano e personagens de proa do expressionismo alemão, a exemplo de Franz Marc, na sua opção conceitual por uma pintura animalista, sob o argumento de que a impureza dos homens que o rodeavam não lhe despertava os verdadeiros sentimentos, pois, enquanto via só feiúra nas pessoas, os animais lhe pareciam mais belos e mais puros, como diz numa carta à mulher (1915), enviada do teatro da Primeira Guerra Mundial (1914-18), na qual veio a morrer.
Embora suponha que nenhum deles "importou vanguardas estrangeiras", nem se submeteu a modismos internacionais, não há como negar que é também pelo visor expressionista que o poeta e crítico de arte Theon Spanudis mira Scaldaferri, ao unir sua arte, pela originalidade e autenticidade temáticas, à de dois outros baianos, Rubem Valentim e Raimundo de Oliveira. No primeiro, o misticismo e o simbolismo religioso de fundo afro-brasileiro; no segundo, o catolicismo popular bíblico, focado na ingenuidade. "Sante se interessa pelo povo nordestino, seus dramas, paixões e vitalidade", sublinha Spanudis, agarrando-o pela geografia. Com variações de temas – no caso de Valentim, o construtivismo simbólico das crenças de origem afro -, arrisco-me a dizer que os três são tributários daquele despojamento rude e elementar de cores fortes e saturadas, aplicadas com pincel grosso, para sugerir ou definir figuras num espaço repleto de vibração interior, marca do expressionismo - lógico que mais acentuado no caso de Scaldaferri, cujo parentesco artístico na Bahia, a meu ver, o alinha com Mário Cravo e, no Brasil, com Iberê Camargo.
Eis Aqui Meu Amor, óleo de Sante Scaldaferri |
Sem ser um especialista, mas insistindo na tecla da codificação pictórica do expressionismo, que, pela violenta deformação da figura, o elemento fisiológico, o corporal e a obsessão pelo corpo humano - e, porque não dizer, por um ainda persistente vínculo com a cultura européia -, o aproxima da arte de Munch, Kirchner, Egon Schiele, Heckel, Ensor e, mais recentemente, Francis Bacon, sou tentado a ver em Sante, principalmente no que vem construindo desde a segunda metade dos anos 80, que culmina nestas obras expostas pela Galeria Paulo Darzé, a buscar inter-relação de sua arte com a representativa dos movimentos de pós-vanguarda ou transvanguarda, que vicejaram, persistem e se desdobram na Alemanha, Itália, Estados Unidos e outros países.
Não tenho dúvidas de que é nesta saga estética de ousadias figurativas que se encaixa confortavelmente Sante Scaldaferri. A refinada afetação (roçando o excessivo e o vulgar), o gosto por efeitos espaciais desconcertantes, a intensidade emocional derivada das formas distorcidas, as desproporções, a maestria no manejo das técnicas da pintura, as excitantes e eróticas alusões, a tendência à exuberância e ao monumental, a marca de desespero e manifesto horror, a secreta irracionalidade - enfim, toda uma arqueologia visual da transvanguarda, que, segundo a crítica, evoca o maneirismo de Pontormo, Parmigianino, Bronzino e El Greco, sendas do barroco, e, cogito – porque não? -, do romantismo libertário, de Goya, e visionário, de William Blake. Pela tendência à narração insubmissa e satírica, pejada de ironia, a habilidade e variação no uso das técnicas da pintura, recorrendo entre outras até à
quase pré-histórica encáustica, de suportes e materiais (madeira, borracha, pano, plástico), além da vitalidade e independência do vigoroso desenho -, com a propositada malícia que levou Umberto Eco a vislumbrar em quadros seus "uma sombra pop"-, vejo em Sante um artista mais identificado com a rebeldia estética de alemães, como Georg Baselitz, Anselm Kiefer, Jörg Immendorff. A. R. Penck, Sigmar Polke, Walter Dahn; os italianos Sandro Chia, Francesco Clemente, Enzo Cucchi, Mimmo Paladino; os americanos Julian Schnabel, David Salle, Cindy Sherman e, em certo sentido, por indícios mais recentes, com a rudeza de desenho e grafismo de Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, e outros mais, todos legítimos representantes do que desde os anos 80 se passou a chamar de transvanguarda, pelos laços com as vanguardas de inícios do século passado e suplantação de seus processos e desdobramentos.
Como eles, sem se recusar até mesmo ao apelo à caricatura (afinidade possível com o traço satírico de George Grosz), em essência, Scaldaferri pinta visões, as suas, de um mundo torto, execrável, no seu secreto ou exposto horror. Gostaria de reformá-lo; não podendo, escarmenta-o, denuncia, ironiza, satiriza. Como? Pela distorção, pela vigorosa e contundente expressão do grotesco, contra o totalitarismo subliminar da sociedade em que vive, a sua desigualdade, a miséria explícita e invencível. Muitos se recusariam a pôr um quadro dele na parede da sala-de-estar, não por alegada feiúra, mas por outras obsessões, uma delas a hipocrisia.
Conheci Sante por volta de 1956 (não sou forte em datas), pela mão de Glauber Rocha, no instante mesmo em que um punhado de jovens de mente lúcida e febril começava a agitar o meio cultural baiano (entre os quais, além dele e GR, Paulo Gil, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto, Fred Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Ângelo Roberto), a partir das sessões de poesia dramatizada, levadas no auditório do então Colégio da Bahia (depois Central), sob o mítico e lúdico nome de Jogralescas, no movimento que depois se rotularia vagamente de geração Mapa, seguindo um hábito do tempo. Acostumei-me, a partir daí, a conviver com este monumento de fraternidade, que já ostentava o sorriso largo, o bigode mexicano, a barba à época acastanhada e a luminosa e irrefreável calvície. Acostumei-me também a admirar um artista cuja obra se afirma, em suas várias fases, na busca de horizontes mais amplos, de essência perdurável, em conteúdo e forma, rumo à universalidade que lhe apontam suas inquietações interiores, sua visão de mundo e suas emoções.
Acompanhei essa árdua prova de fidelidade a um sacerdócio, de incontestável amor à arte. Por isso, mesmo ante uma crítica mais purista, higiênica e depilada, atuante no Rio e São Paulo, que, no dizer de Frederico Morais, exerce uma ditadura no país, torcendo o nariz a exemplos de sinceridade e imaginação como este, de Sante Scaldaferri, ele segue impávido seu caminho, sua devoção. E, ante tais mostras de covardia e intencional descaso, a cada exposição, catálogo ou livro de arte que publica, ao sair de cada um desses eventos, esse grande artista baiano ostenta no rosto e no riso uma expressão de radiante e sonora felicidade, que é uma lição de bravura, para a arte e para os artistas, e de vida, para todos os que o conhecem, cuja obra não se desmerece ante nenhum grande pintor brasileiro.
Conheci Sante por volta de 1956 (não sou forte em datas), pela mão de Glauber Rocha, no instante mesmo em que um punhado de jovens de mente lúcida e febril começava a agitar o meio cultural baiano (entre os quais, além dele e GR, Paulo Gil, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto, Fred Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Ângelo Roberto), a partir das sessões de poesia dramatizada, levadas no auditório do então Colégio da Bahia (depois Central), sob o mítico e lúdico nome de Jogralescas, no movimento que depois se rotularia vagamente de geração Mapa, seguindo um hábito do tempo. Acostumei-me, a partir daí, a conviver com este monumento de fraternidade, que já ostentava o sorriso largo, o bigode mexicano, a barba à época acastanhada e a luminosa e irrefreável calvície. Acostumei-me também a admirar um artista cuja obra se afirma, em suas várias fases, na busca de horizontes mais amplos, de essência perdurável, em conteúdo e forma, rumo à universalidade que lhe apontam suas inquietações interiores, sua visão de mundo e suas emoções.
Acompanhei essa árdua prova de fidelidade a um sacerdócio, de incontestável amor à arte. Por isso, mesmo ante uma crítica mais purista, higiênica e depilada, atuante no Rio e São Paulo, que, no dizer de Frederico Morais, exerce uma ditadura no país, torcendo o nariz a exemplos de sinceridade e imaginação como este, de Sante Scaldaferri, ele segue impávido seu caminho, sua devoção. E, ante tais mostras de covardia e intencional descaso, a cada exposição, catálogo ou livro de arte que publica, ao sair de cada um desses eventos, esse grande artista baiano ostenta no rosto e no riso uma expressão de radiante e sonora felicidade, que é uma lição de bravura, para a arte e para os artistas, e de vida, para todos os que o conhecem, cuja obra não se desmerece ante nenhum grande pintor brasileiro.
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