SINOPSE.
Ao comentar as ações dos integrantes da Academia dos Rebeldes, o escritor João
Carlos Teixeira Gomes lamentou que, à época (1979), ainda permanecessem no mais
completo esquecimento os mecanismos de divulgação de suas ideias e propósitos,
com as revistas que editaram em seu curto tempo de existência e atuação, Meridiano e O Momento, pelo limitado interesse sobre o papel que representaram
no esforço de disseminar e propagar na Bahia os avanços espalhados pelas
vanguardas nos inícios do século XX, nas letras e nas artes. No entanto, de lá
para cá, no campo universitário, o tema tem sido objeto de relativa atenção.
Sem as pretensões de esgotar o assunto, que os
próprios destinos do projeto interditam, esta abordagem centra seu intento na
versão baiana das tendências vanguardistas que renovaram as artes e a
literatura no Brasil, a partir do movimento deflagrado em São Paulo pela Semana
de Arte Moderna de 1922, a que os intitulados rebeldes procuravam dar
vestimenta própria na forma de expressar ideias, emoções e sensações que refugasse
tanto as receitas de origem europeia, quanto o que consideravam clara imitação
delas pelos paulistas. Eles próprios se diziam mais modernos que modernistas,
para com isso se distanciarem de outros movimentos que surgiram concomitantemente, na Bahia, se dizendo com os mesmos propósitos. Insurgiam-se contra tudo que lhes parecesse
caduco e escravo da rotina.
Como todos os movimentos renovadores da época, a
Academia dos Rebeldes se valeu do jornalismo para pregação e propagação de seu
ideário, seja publicando artigos e obras em jornais e revistas, seja editando
seus próprios meios impressos, como foram as duas revistas antes citadas, Meridiano (de um só número) e O Momento (que teve nove edições); mas
seria patente inocência pensar que somente elas fossem o meio de os rebeldes
projetarem a sua identidade inconformista. Por isso, não é possível encará-los,
afastando-os do contexto histórico-cultural, que presume a sua inserção nas
mudanças de uma cidade em ritmo de reforma urbanística, que afetam o trânsito das
pessoas, oferecem novas opções de lazer, diversificam o comércio e os serviços,
enfim abrem novas perspectivas em que se incluem as manifestações da cultura
popular, especialmente as de origem africana, que demandavam forte e
impostergável direito de inclusão. Na ótica de seus ardores juvenis, a cidade
em que viviam sonhava em ser metrópole, decidida em não prosseguir crescendo
“em ritmo de bonde”.
E é neste contexto que surgem novas formas de
fruição do espaço urbano, em que se incluem o trânsito por ruas, praças e
esquinas de inaudita multidão de pessoas, o atrativo das lojas de comércio,
movimentados escritórios de firmas e repartições públicas e, principalmente, os
cafés, cassinos e bordéis, a serem desfrutados, na ânsia de imitar o hedonismo
de centros urbanos desenvolvidos, de especial significação nesse trajeto lúdico
da inteligência, como estímulo à boemia, à tertúlia literária e à vontade de
afirmação sociocultural. Além disso, não pode ser descartada, como natural
ramificação da militância política, a participação efetiva dos rebeldes Jorge
Amado, Édison Carneiro e Oswaldo Dias da Costa, na luta em favor da liberdade
de exercício dos cultos religiosos de fundamento africano, alvo na época de
implacável repressão policial.
A tarefa redacional se completa com as biografias
sintéticas de catorze membros da Academia dos Rebeldes, entre os mais atuantes
dos vinte geralmente citados na lista de correligionários e colaboradores das
ações do grupo e das revistas editadas no curto tempo de sua presença na vida
intelectual da Bahia, cujo precioso legado alcançaria foros de permanência, em
futuros movimentos, fixando-se mais na vigência sociocultural de cada um desses atores,
dispensado o estritamente cronológico (Florisvaldo Mattos)
Salvador: Largo do Relógio, anos de 1930. Jorge Amado: "Deliciosa, tranquila... uma cidade muito agradável de se viver" |
ACADEMIA
DOS REBELDES
O
SALTO DA MODERNIDADE NA BAHIA DOS ANOS 1930
Florisvaldo
Mattos
Perseguia um pujante sonho de renovação, não só nas
letras e nas artes, mas também nos costumes e práticas políticas, o movimento
literário, que aparentemente irrompeu na Bahia em fins de 1928, para durar até
talvez 1933, com o irônico título de Academia dos Rebeldes, reagindo a um
estado da cultura que julgavam caduco. Em um espirituoso balanço sobre o que
significou esse processo, de que foi nome baiano de proa ainda apenas um
irrequieto adolescente, Jorge Amado, depois de se atribuir e aos companheiros o
propósito de “varrer com toda a literatura do passado”, aponta, como saldo
positivo, terem concorrido, “de forma decisiva, para afastar as letras baianas
da retórica, da oratória balofa, da literatice” e dar-lhe “conteúdo nacional e
social”.
Dizia isso em 1992, sessenta e quatro anos após um
grupo de jovens se reunir no já então afamado Café das Meninas, na esquina da
Rua do Tira Chapéu com a da Ajuda, e no ali próximo Bar Brunswick, no centro da
cidade, no intuito de difundir as ideias informadoras do movimento modernista,
para derruba da resistente muralha do conservadorismo que dominava a
sociedade baiana e sua cultura, desde inícios do século XX, isto é, para
combater intermitentemente, como se dirá depois, “as oligarquias do imutável”,
mas no mesmo ritmo de defasagem do bem mais amplo ímpeto que o inspirara,
surgido em São Paulo, quase sete anos antes, a Semana de Arte Moderna, em
relação às vanguardas europeias deflagradas há muito mais de um decênio.
Razões dão suporte ao lembrete desse retardo, desde
que, só para ficar na América do Sul, tais inquietações já vinham percorrendo
as mentes de jovens intelectuais alguns anos antes: caso do Chile, com o
manifesto de Vicente Huidobro (No serviam,
de 1914), para quem, já nesse tempo, “com toda a força de seus pulmões, um eco
tradutor e otimista, repetia nas distâncias: `Não te servirei´”, ressonância
que logo desembocaria em ideias mais ousadas, tais como as do também seu
posterior Creacionismo (1925), sintomas
de modernidade que haviam de se manifestar também na Argentina, com o Ultraísmo, nas inquietas voz e escrita
de Jorge Luis Borges (revista Nosotros,
Nº 15, dezembro de 1921), impelidas pelo
que absorvera de Rafael Cansinos Asens, com o seu Movimento Ultraísta, em
Sevilha (Espanha), que definia esse estado de espírito como “uma orientação
voltada para contínuas e reiteradas evoluções, um propósito de perene juventude
literária, uma antecipada aceitação de todo módulo e de toda ideia nova”, uma
vontade de “ir avançando com o tempo”; em síntese, uma ardorosa perseguição do
futuro.
Portanto, para vizinhos sul-americanos, o idealismo
das vanguardas já não era tão novidade assim. Se havia defasagem de
influências, em centros mais adiantados do país, como São Paulo, quanto mais numa
Bahia provinciana. Os jovens intelectuais baianos formavam uma confraria local a que se
agregavam outros oriundos de estados nordestinos, todos eles mordidos, conforme
Jorge Amado, pelo “micróbio da literatura”, e se intitulavam “modernos” como
algo mais que “modernistas”, numa alusão irônica à erupção que ocorrera em São
Paulo, a cujas ideias não desejavam estar acorrentados. Pretendiam, no seu
intento de adolescentes rebeldes, horizontes mais vastos.
Tendo como mentor inicial o poeta e jornalista
panfletário Pinheiro Viegas (1865-1937), segundo Cid Seixas, um “corrosivo
intelectual que também destilara seus feitos e seu fel entre os rapazes da
revista Samba”, grupo que emparelhava
com o de Arco e Flexa, também surgido
em 1928, os mesmos combativos propósitos, porém menos estridentes, o núcleo
central da Academia dos Rebeles se compunha ainda dos seguintes nomes: Jorge
Amado (1912-2001), Édison Carneiro (1912-1972), Dias da Costa (1906-1974), João
Cordeiro (1905-1938), Alves Ribeiro (1909-1978), Áydano do Couto Ferraz
(1914-1985), Sosígenes Costa (1901-1968), Clóvis Amorim (1912-1970), Da Costa
Andrade (1906-1974), Guilherme Dias Gomes (1912-1943, irmão do célebre
dramaturgo baiano, Alfredo Dias Gomes) e Walter da Silveira (1915-1970); a
esses se acrescentavam, como colaboradores e participantes, José Bastos
(1905-1937), Hosannah Oliveira (1902-1997), Octávio Moura (1909-1978) e José
Evangelista de Oliveira (1902-?).
O movimento se inseria no conjunto de preocupações e
aspirações marcantes de um período de pós-guerra e prenúncios de outro conflito
mundial, com os desdobramentos, na década de 1920, de toda a efervescência
cultural e atropelos provocados pelas vanguardas do início do século, mas que
se refletiria na Bahia com lentidão de passos maior ainda que a dos paulistas
de 1922. A liderança de Pinheiro Viegas, poeta mais conhecido pelo instinto
panfletário que por seus poemas de circulação restrita, impelia os jovens
rebeldes baianos para lucubrações intelectuais bem mais ousadas do que suportava
o ambiente urbano de então, a fluir, como já se disse, “em ritmo de bonde”,
Em verdade, a Bahia, como se chamava na época, era
uma cidade estática, imersa em orgulhosa e soberba atmosfera provinciana, onde
não havia lugar para endeusarem-se a máquina, a eletricidade e a velocidade,
não obstante a ingênua ousadia futurista de um poeta, o feirense Eurico Alves
(1909-1974), adepto do grupo da revista Samba,
cuja delirante imaginação divisava, em seus Poemas
Metálicos (1926-1932), uma cidade imersa na volúpia fumacenta de
locomotivas, pulsação mágica de fábricas e ardentes chaminés, lanchas e
transatlânticos nos portos, guindastes, automóveis, buzinas, apitos, sirenas,
guinchos, longas avenidas, ruas largas e arranha-céus, com céu cinzento sobre
massas enormes de cimento armado, reclamos, títulos e dísticos luminosos –
enfim, uma festa de nítido sonho futurista.
Todavia, já se observava então no ambiente urbano um
clima de forte aspiração por mudanças, principalmente no que dizia respeito ao
sistema de bondes, o transporte moderno há bem mais de uma década servindo aos
habitantes, mas na ocasião já em processo de acelerada reformulação, como
decorrência das reformas urbanas empreendidas pelos governos Seabra (1912-1916 e
1920-1924), perspectiva que impelia os jovens rebeldes para horizontes
vanguardistas, contra todas as forças do atraso, embora rejeitassem
arrebatamentos futuristas, que viam como delírio. No entanto, se pensavam
assim, por outro lado, encaravam a cidade do Salvador com olhos novos.
PERCURSOS URBANOS NO RITMO DOS CAFÉS
E havia motivos para tanto. A cidade da Bahia, que
em 1900 possuía, segundo registros, 85 mil habitantes, no tempo da Academia dos
Rebeldes ostentava cifra em torno de 250 mil. Jorge Amado dá essa informação,
em um de seus depoimentos, que parece indicar um avanço, desde que o censo de
1940 irá mostrar uma população de 290.433 habitantes, que mais que dobrará nos
próximos vinte anos, com os seus 655.735 viventes humanos de 1960. Aos olhos dos rebeldes,
a cidade dos anos 1930 avançava no sonho de se tornar metrópole, marchando para
se desfazer da carapaça que a engessava, desde que, coroando um processo
iniciado imediatamente antes, em 1929, iria concluir-se o processo de fusão das
linhas de bondes, quando a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia –
popularmente chamada Circular – obtém por contrato o direito de explorar o
serviço em todo o município, expandindo a cidade, criando e aproximando novos
bairros, conjugado ao monopólio da
distribuição de energia elétrica.
Cabe lembrar um episódio que marcou a época. Em
função de estar o monopólio do transporte por bondes e fornecimento de energia
elétrica em mãos de estrangeiros, logo em 1930 ocorre o famoso “quebra-bondes”,
inflado pela má manutenção dos serviços, mas na verdade uma consequência de
movimento desencadeado no sul do País, que resultou em 84 veículos destruídos,
práticas de saques e vandalismo, culminando com a depredação do edifício
recém-construído do jornal A Tarde,
acusado de conivência com os americanos que exploravam os dois serviços. O
episódio alcançou a gravidade de tragédia urbana, com a ocorrência de muitos
feridos e morte de um marinheiro no Largo do Teatro, hoje Praça Castro Alves.
Mas, apesar de tristes, esses traumas denotavam indícios de que a modernidade
urbana começava timidamente a se insinuar, com a expansão das atividades e
ocupação dos espaços, influenciando a própria mentalidade de extratos da
população que começava a adotar novos hábitos.
Vivia-se a consolidação de reformas urbanas que
expunham evidentes sinais de modernidade. Começava a se configurar um cenário
pelo qual antes a imprensa enfática e romanticamente clamara, dirigindo-se a
Seabra, então governador: que houvesse “no seio da velha cidade a alegria nova das
vias amplas, modernas, por onde possa circular livre e fecunda a vida feliz de
um povo forte”. Requeria-se, desse modo, que a cidade demarcasse seus espaços
para neles se assentarem novos padrões de comportamento.
Definitivamente, a cidade da Bahia estava deixando
de ser um burgo provinciano, vivenciava situações apenas imaginadas, que faziam
os rebeldes detectarem na paisagem
urbana uma nova atmosfera, um outro calor humano, evidenciado por um mais
intenso trânsito de pessoas, com novas posturas;
percebia-se um súbito fortalecimento do comércio exportador, estímulos
ao consumo e crescente demanda de serviços, pelo surgimento de lojas, escritórios, hotéis,
cafés, pastelarias, esquinas povoadas, pontos de encontro, cassinos e bordéis
(então apelidados de “castelos”), jornais dispostos a abrir-se ao debate; um
ambiente propício às fruições de um embrião de flâneur, com a burocracia cada vez mais cedendo espaço, apesar das
resistências. Começava para eles, os da Academia dos Rebeldes, a se configurar
o mundo moderno, em que Octavio Paz divisa “o homem, ou seu fantasma, errante
entre as coisas e os aparatos” urbanos. E assim, com este cenário, a cidade se
alçava a um outro patamar, em que as figuras do boêmio e do flâneur pareciam combinar-se.
Peregrinando pelos cafés, cassinos e bordéis, eram
eles personagens deste cenário, aproveitando todas as seduções que lhes acenava
esse novo momento. Inseridos na multidão, na rua ou através do vidro da janela
ou fresta de um café, escritório ou bordel, apreciavam o trânsito de bondes e
de pessoas, errático privilégio com que, na condição de habitantes, revelavam a
sua própria razão de ser, em estado de felicidade plena. Na rua, numa esquina,
talvez até mesmo da janela de um bonde, bastava-lhes o gozo de fitar pessoas
passivamente mirando outras, por minutos e até horas, sem lhes dirigir uma
palavra sequer. Em resumo, esta figura se sente melhor na rua do que em casa,
numa fruição lúdica perfeitamente assemelhada ao culto da boemia, atividade que
em geral se desenvolve com a aceleração da vida urbana.
Nesse contexto, é preciso também abrir uma janela
para a vida nos cafés, nos cassinos, nos dancings
e nos bordéis. Jorge Amado dá testemunho do que acontecia nesta cidade então
“muito agradável de se viver”. “Os castelos tinham uma grande importância.
Havia algumas putas francesas, que eram dadas à literatura. As nossas
prostitutas eram em geral ignorantes, meninas do campo em sua maioria. Nós é
que fazíamos a importância cultural dos castelos. Dávamos uma certa conotação
literária”, relata, em depoimento de 1981.
Há dois aspectos a merecer consideração, o papel dos
cafés na vida intelectual e a frequência de intelectuais nos cassinos e
bordéis. Como na reforma urbana, em ambos os casos se repetia o estado de ânimo
que se apossara do Rio de Janeiro no princípio do século, de fiel imitação do
espírito reformista da Paris do século XIX, sob o impulso da urbanização
revolucionária que lhe imprimira o Barão de Haussmann (Georges-Eugène,
1809-1891). Na Bahia, agora, também, por tabela, copiava-se o Rio das reformas
de Pereira Passos, tal como fora feito pioneiramente em Recife, de 1910 a 1914.
Praça Castro Alves, inícios anos 1930, subida da Rua Chile, vendo-se o Teatro Carlos Gomes e o Edifício A Tarde, à direita. |
Imitado de Paris e do
Rio de Janeiro, o culto dos cafés na Bahia literária dos anos 1920 e 1930
acendia os ânimos, açulava as emoções e arrebatava o espírito dos integrantes
da Academia dos Rebeldes, assim como o dos concorrentes engajados nas revistas Samba e Arco e Flexa. Na marcha do tempo, essas estripulias avançaram pelos
anos vindouros até fins dos anos 1950. Vistos com os olhos de hoje, trata-se de
um paraíso que se perdeu, solapado que foi pela cultura fast-food das lanchonetes e praças de alimentação de shopping centers e quejandos. Aludindo a esses ruidosos tempos, escrevi
certa feita: “Na cidade do Salvador, desde a década de 1920, até onde remonta
informação confiável, calcada em vivência e testemunho, os cafés representaram
locais não apenas de animação e desfrute, mas pontos de convergência da
intelectualidade jovem, ávida de afirmar sua vigência cultural e propagar
ideias de mudança nas letras e na artes” (A
Tarde Cultural, edição de 03/2/2001). Assim, por essa época, havia na
chamada Baixinha (traço de união urbano ligando a Ladeira do Tabuão à Baixa dos
Sapateiros) o Café Astúrias, o Café Moderno, o Café Derby e o Café Progresso;
no centro da cidade, destacavam-se o Café das Meninas (antes chamado Café
Chic), o Café e Bar Brunswick, o Café Fim do Século, o Café Bahia e o Café
Madrid.
Em artigo que publicou
no jornal A Tarde em 29 de junho de
1976, Jorge Amado recorda um dos trajetos habituais de seus companheiros da
Academia dos Rebeldes, logo nos seus começos. “Sob a bandeira de Pinheiro
Viegas, no Café das Meninas, a nossa rebeldia adolescente organizou-se para
melhor enfrentar os bons camaradas de Arco
& Flexa, comandados por Carlos Chiacchio, ou os simpáticos rapazes de Samba, Bráulio de Abreu, Clodoaldo
Milton, Elpídio Bastos e outras excelentes pessoas – malditos adversários,
implacáveis inimigos. Maravilhosos dias da juventude num mundo de paz, numa
cidade ainda provinciana e deslumbrante”.
Em seu livro A poesia era uma festa (1994), o
escritor Nonato Marques, protagonista desse período, descreve: “Neles (nos
cafés) eram comentados assuntos políticos, o noticiário dos jornais, os
escândalos surgidos, as conquistas amorosas, a vida alheia, enfim tudo o que
forma o universo da nossa vida cotidiana, inclusive as atividades literárias,
estas com grande ênfase dada à formação de grupos que tiveram nos cafés seus
pontos de referência”. Tanto pelo que assinala Marques, quanto pelo que informa
o poeta Flávio de Paula, em seu Apóstolos
do Sonho (1952), esses espaços de convivência diurna e noturna abrigavam
rapazes ocupados em discutir assuntos diversos, ler textos de prosa, declamar
poesias, em cenário somente apropriado à convivência masculina, pelos ditames
do machismo que então imperava. Sem maiores exigências de conforto, ao
aconchego somente dos laços de amizade, o ambiente simples dos cafés
representava para os jovens intelectuais, para quem os tinha, uma espécie de
segundo lar e, por isso, toleravam até mesmo a rusticidade das instalações. O
longevo poeta Bráulio de Abreu (1903-2007), participante do grupo de Samba, em depoimento (1999),
referindo-se a saudoso convívio com Pinheiro Viegas, recorda um de seus
picantes epigramas, em que satiriza os desconfortos de um dos mais frequentados
desses românticos lugares: “...Além de
tudo, / esse Café Progresso / deixa o freguês possesso / com esse acento agudo”.
Essas peraltices hedonistas dos rebeldes eram
completadas com incursões, não só noturnas, mas também diurnas, por endereços
onde havia mulheres disponíveis para convivência boêmia e transações amorosas.
Pertencente ao grupo de Arco & Flexa,
concorrente da Academia dos Rebeldes, o poeta Carvalho Filho (1908-1994) afirma
que, além da esfera dos conceitos literários, era na vida boêmia que mais se
acentuavam as diferenças entre os dois grupos. “Ao contrário de nós, os
rebeldes frequentavam bordéis populares, eram grandes farristas, chamavam a
atenção. Mas se reuniam também no Café das Meninas, onde conheci Jorge Amado
ainda rapazola, muito antes de ele ser famoso”, diz ele, em conversa com o
crítico literário Valdomiro Santana.
Por mais de uma
ocasião, em depoimentos ou em suas memórias, Jorge Amado se refere a esse
trânsito lúdico e diuturno em ambientes por eles tratados sob a designação
geral de castelos, como sinônimo de
bordéis ou cassinos. “Quando tínhamos dinheiro, eu e Dias da Costa nos
mudávamos para os castelos, ficávamos morando uma semana. Ocupavam uma área
enorme, a Misericórdia, Ladeira de São Francisco, Maciel, arredores da Sé,
Tabuão” – confessa, recordando muitas de suas peripécias juvenis à época, mas
experiência por ele bem antes vivida. Há um relato seu de travessura ocorrida
em Ilhéus, em 1925, quando tinha apenas treze anos. Conta que visitou com um
primo o bordel de Antônia Machadão (“em Gabriela
mudei-lhe o prenome para Maria”, assinala, revelador), segundo ele “conhecida e
estimada por todos na cidade, apesar do comércio que explorava com proveito”,
desde que dona do bordel “mais renomado da zona cacaueira”, mas de lá logo
expulso por ela, por declarado respeito a sua mãe, dona Eulália, de quem era
amiga.
Vista aérea de Salvador, em 1933, com as suas duas Cidades - a Baixa e a Alta |
É justamente sobre a
população feminina da Ilhéus desta época que ele nos oferece outra informação
preciosa. “Além de nacionais vindas da Bahia, de Aracaju, do Rio, nele (no
bordel) existiam uma francesa e uma polaca; profissionais civilizadas, as
gringas faziam de um tudo”. Observa-se aí uma singularidade: a presença de
mulheres estrangeiras no comércio da prostituição, nas décadas de 1920 e 1930,
como nas duas seguintes, sob a designação geral de polacas. Tratava-se de imigrantes que não eram só mulheres de
nacionalidade polonesa, mas que poderiam ser também francesas, romenas e
sul-americanas, argentinas principalmente. Ainda nos anos 1950, embora já bastante
esmaecido, persistia esse fenômeno migratório. Descobri que a palavra polaca usada para designá-las funcionava
apenas como uma metonímia. Em dois livros, Boêmios,
um apanhado sobre a movimentação da vida artística e mundana na Paris dos anos
20 e 30, e no seu romance Nu Deitado,
o escritor Dan Franck oferece as pistas que explicam esses sucessos. Para a
época dos rebeldes, a razão está na migração forçada de jovens mulheres como
uma das desastrosas consequências que a primeira Grande Guerra (1914-1918)
infligira aos países do leste europeu, entre os quais se destacava a Polônia,
gerando forte aumento nos níveis de empobrecimento da população e provocando
intenso movimento de migração.
Segundo se deduz das
narrativas de Franck, máfias instaladas em capitais europeias, com destaque
para Paris, empenhavam-se na importação de mulheres infelizes, que seriam
liberadas pelos pais a troco de remuneração que os aliviasse da miséria que de
repente lhes batera à porta. Com isso, confiantes no destino que as aguardava,
pelas bondades que lhes eram prometidas, os pais concordavam em liberar as
filhas, geralmente jovens e atraentes, e elas concordavam ante as privações que
as engolfavam e partiam com a mente grávida de sonhos e esperanças. Paris então
funcionava, não só como primeiro destino de recepção, mas como entreposto para
exportação dessa singular mão-de-obra para outras capitais, entre as quais
Buenos Aires, na América do Sul, que, por sua vez, operava também como
entreposto sul-americano para outras capitais, como o Rio de Janeiro, e daí
para cidades brasileiras, como Salvador, e até Ilhéus, na época privilegiada
pelo boom exportador do cacau. Nesses
destinos, sempre sob a designação exótica de
polacas, elas atuavam muitas vezes como dançarinas de cabarés, integrando
grupos sob o rótulo profissional de bailarinas, por se apresentarem em ballets, ou mesmo simplesmente como
prostitutas, tendo por trás, além de intermediários, quase sempre uma súcia de
gigolôs.
Abra-se um novo
parêntese, agora para a cidade de Ilhéus, residência do Jorge Amado
adolescente, a partir de 1924. Por essa época, com a exportação de cacau
passando a se fazer diretamente, evitando-se com isso o transtorno e os custos
de o ser por Salvador, com a presença de estrangeiros no comércio exportador e
consequente intercâmbio cultural com a Europa, descortina-se feérico horizonte
em áreas de diversão aos abonados pelo sucesso da cultura do cacau. Segundo
relatos, surgiram então cabarés, clubes noturnos e cassinos, suscitados por
súbita mudança de gostos e amor ao luxo. É na segunda metade dos anos 20 que
surgirá o cabaré Bataclan (Avenida Dois de Julho, Centro), doravante endereço
preferencial da vida noturna para os abastados locais ou vindos de outras
cidades e vilas. Nele funcionavam um cassino e um salão para apresentação de
companhias de dança vindas do sul do país, até do exterior, e de cantores e
cantoras, com orquestra. Havia as dançarinas e as que o eufemismo provinciano
designava como “damas de companhia”, sempre bem vestidas e penteadas à
disposição de endinheirados fregueses.
Referência na fruição
de prazeres múltiplos, era um espaço em geral de frequência da boemia, mas
também de coronéis do cacau, marinheiros, jagunços (acompanhando os chefes), profissionais
liberais, gente de comércio, especialmente exportadores de cacau, em sua
maioria originários da Europa, ocupando postos de destaque em firmas por esse
tempo instaladas e em plena atividade. Tudo isso tem um fundamento: o impulso
empreendedor dos coronéis do cacau, em sua maioria remanescentes ou
descendentes dos desbravadores, cujo afinco vinha dos anos 1890, entrando pelas
duas décadas seguintes do novo século, que levou a um vertiginoso sucesso do
cacau como opção agrícola, consolidando economicamente a lavoura cacaueira, a
ponto de se transformarem povoados em vilas e vilas em cidades, para o que
muito contribuiu a construção e operação da estrada de ferro, a State of Bahia
South Western Railway Company, a partir de 1907 (depois Estrada de Ferro de
Ilhéus a Conquista, E.F.I.C. que dura até 1965, quando foi extinta pelo governo
ditatorial). Esse boom justificou que
Ilhéus ostentasse, por um bom tempo, o rótulo de capital do cacau. O apogeu do
Bataclan, também um sofisticado bordel, segundo relatos, durou de 1926 a 1938. A
proibição nacional dos jogos de azar, atingindo em cheio o funcionamento dos cassinos, em 1946, por decreto-lei do empossado presidente Eurico Gaspar Dutra, levou
o já decadente Bataclan à extinção, no desenho perdulário que o
tornara famoso, como uma das referências na ficção e memórias de Jorge Amado.
A VOZ REBELDE PELA
ESCRITA IMPRESSA
O salto baiano para o
Modernismo ou para a Modernidade, como mais gostavam os rebeldes da Bahia de
rotular seus propósitos, seguiu a tradição de todo tempo e lugar de adoção das
ideias novas, que no princípio do século 20 irromperam mundo afora, a da
criação de revistas como meio de difusão das múltiplas inquietações
intelectuais, até mesmo políticas. Para ficar na América do Sul e no Brasil,
foi o caso das revistas Prisma e Nosotros, dos intitulados ultraístas
argentinos, e de Klaxon, dos
modernistas de São Paulo. Assim, os modernos baianos cuidaram em 1929 da
criação de revistas, primeiramente, com Meridiano,
que durou um só número, e depois com O
Momento, cujos nove números circularam entre julho de 1931 e julho de 1932. Apresentavam o mesmo que os outros dois grupos concorrentes em ideias e propósitos da
época: a revista Samba, onde atuavam
os poetas Bráulio de Abreu, Godofredo Filho, Carvalho Filho e Eurico Alves, e Arco & Flexa, esta editada sob a
direção de Carlos Chiacchio (1884-1947), um médico mineiro, que, como crítico e
animador de movimentos literários, lutava pela renovação das letras e artes
brasileiras, militando com intensidade desde 1928, quando começou a assinar
cultuados rodapés de crítica sob o título de “Homens e Obras”, no jornal A Tarde, que durariam até 1946, embora fosse um intelectual de
índole conservadora.
Meridiano
surgiu em setembro de 1929, mas seu único número trazia o bastante para mostrar
a que vinham os rebeldes baianos. “Meridiano não passou do primeiro número.
Nós, os Rebeldes, éramos pobres como Jó, exercíamos nossa prosa e nossa poesia
em qualquer gazeta que nos desse guarida”, comentará Jorge Amado, muitos anos
depois, em tom que se distancia do artigo-manifesto, com o título de
“Itinerário”, estampado na primeira página, no qual o grupo já se declarava
disposto a iniciar “o combate a tudo o que retarda a marcha do progresso, em
todas as manifestações do espírito humano”, classificando a sua atuação como
“obra de regeneração moral e intelectual”, com “espírito moderno”, “dinamismo”
- enfim, “Século vinte”. Além de condenar “o sentimentalismo atrofiador de
energias”, o texto pregava a substituição pela ciência das “velhas superstições
religiosas, que constituem o ponto de apoio da ignorância”; condenava “os
convencionalismos idiotas que impedem o surto de todas as ideias novas” e se
propunha “pensar e agir por conta própria”; contra os “ismos” importados do
estrangeiro, desejava “escrever fora do jugo de estéticas desorientadas e incoerentes”,
praticando ”literatura instrutiva, sadia, edificante” e uma “poesia simples,
natural, sem artifícios”. E num parágrafo advertia possíveis incautos: “Condena
a tagarelice dos filósofos, a bisbilhotice dos gramáticos, a literatice dos
diletantes, o verbalismo dos retóricos e as frioleiras dos ´poetas do amor e da
saudade´”. Neste único número, apareceram como destaques Da Costa Andrade, Sosígenes
Costa, Alves Ribeiro, José Bastos, Otávio Moura, Jorge Amado e Pinheiro Viegas.
Com o subtítulo de
“Mensário Ilustrado Informativo”, O
Momento apareceu em edição colorida e com fotos. Como surgia após a
deflagração da Revolução de 30, além das preocupações literárias e estéticas, a
nova revista também se enveredava pela política, mas acabou por se fixar,
segundo o pesquisador Gil Francisco Santos, como “a mais expressiva das
revistas surgidas na Bahia, inspiradas no movimento modernista”. Tendo o poeta
Alves Ribeiro como redator-chefe, aos colaboradores de Meridiano, nas edições de O
Momento, se acrescentaram Édison Carneiro, Dias da Costa, João Cordeiro,
Guilherme Dias Gomes e Clóvis Amorim, entre os mais assíduos do grupo, mas com
a novidade de autores do Sul do país, tais como Augusto Frederico Schmidt,
Octávio de Faria e Menotti Del Picchia. De entrada, com um laivo de soberba
juvenil, a revista avisava que não aceitaria colaboração de quem não fosse
convidado, o que implicava estar o colaborador em consonância com suas ideias,
e completava, entre jocosa e desafiadora: “O Momento, como todo órgão ou
realejo que se preze, não se quer confundir com as gaitas de fole do jornalismo
salta-moitas”, “porque aqui não impera o costume baianíssimo do elogio mútuo”.
E apimentava, como justificativa: “Fazemos esta declaração a tempo, a fim de
evitar aborrecimentos com certos poetas e literatos que andam às portas
mendigando publicidade às suas bobagens, rimadas ou não. Toda e qualquer
colaboração será solicitada pela direção desta revista, obedecendo ao critério
da seleção de valores”.
Lá Jorge Amado publicou
o seu primeiro conto, “Sentimentalismo”.
Quando passou a ser dirigida por Dias da Costa, a nova revista insere-se
num contexto que a torna, segundo o próprio Amado, “de inflamado conteúdo
antifascista e evidente influência do Partido Comunista, no âmbito da luta
contra o integralismo”, mas o jornalista e crítico João Carlos Teixeira Gomes,
encarando-a na perspectiva de órgão de comunicação, considera que, embora não
fosse apenas dedicada às letras, a revista se desempenhara com brilhantismo
nesse campo. Escrevendo em 1979, lamenta que O Momento, representando no seu tempo “uma etapa singular na
evolução do jornalismo baiano”, tenha caído em completo esquecimento,
“desconhecida praticamente por historiadores e críticos”.
“Não apenas sua
linguagem, mas também sua diagramação se revelava ágil e dinâmica, dentro dos
padrões da época. Combatendo com desassombro – indiscutivelmente temerários, em
tempos tão provincianos – aspectos negativos da vida e da sociedade baianas,
não se furtou a encarar temas nacionais como os rumos políticos do País depois
da Revolução de 30, a reforma do ensino, a reforma ortográfica, o feminismo (em
relação ao qual adotou posição nitidamente conservadora) e tantos outros que
lhe deram feição afirmativa, sobretudo no que se refere à análise do clima
local”, destaca, assinalando em seguida que a revista “possuía seções e colunas
pioneiras dedicadas a cinema, recensão de livros, indicador médico permanente,
notas de arte, amplo e variado registro social, crítica de concertos e
recitais, entre outras, além de ser apologista do progresso contra o
passadismo”. Com nítido orgulho
futurista, a capa do primeiro número ostentava uma altaneira foto do
recém-inaugurado Elevador Lacerda, sublinhando tratar-se da “mais arrojada
construção que possuímos”.
Imagem do dirigível Zeppellin, sobrevoando Salvador, em 1931 |
Há outra faceta da erupção da Academia dos Rebeldes que adquiriu inquestionável relevância: a
participação de alguns de seus membros, à frente Jorge Amado, Édison Carneiro e
Oswaldo Dias da Costa, na luta pela afirmação da cultura de origem africana e
em favor da liberdade de culto religioso, como as práticas do candomblé, alvo
de perseguição e implacável repressão policial. Em um de seus depoimentos,
Jorge Amado descreve este cenário, situando inclusive suas contradições, tais
como a patrocinada pela Igreja Católica, que estimulava as proibições ao
candomblé, quando muitos de seus praticantes tinham visível influência na
administração dos templos, através de confrarias que zelavam e até cuidavam das
despesas de algumas igrejas, como a do Bonfim, a de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos, no Pelourinho, e a da Barroquinha. “O candomblé era considerado uma
barbaria, um horror”. (...) “A polícia invadia os terreiros, quebrava, prendia,
espancava. Era terrível. Os pais-de-santo não podiam fazer nada”, sublinha Amado,
abrindo logo a seguir uma janela para o comportamento dos políticos nesse
campo, sempre interessados no apoio do segmento africano da população, mas
agindo diversamente no que dizia respeito às práticas do candomblé.
“Alguns políticos
influentes tinham uma certa ligação com o candomblé, mas escondiam essa
ligação. O Juracy Magalhães (na época
interventor do Estado, por força da Revolução de 30, nota do redator), por
exemplo, era ligado ao pai-de-santo Jubiabá. O apoio dos políticos não era
efetivo – davam dinheiro, ajudavam, mas na hora do pau comer, eles tiravam o
corpo fora”.
A esta luta em defesa
do candomblé, empreendida desde os inícios da Academia dos Rebeldes, se
associavam outras figuras importantes da época, como Arthur Ramos, mas também
jovens intelectuais que militavam em movimentos paralelos, como o futuro
antropólogo Thales de Azevedo e o poeta Hélio Simões.
LEGADO DOS REBELDES ÀS LETRAS E ÀS ARTES
Em um parcimonioso inventário do desempenho dos
rebeldes – aqueles, segundo Cid Seixas, “bem humorados mosqueteiros, que
combateram o bom combate dos fins dos anos vinte aos princípios dos anos
trinta”, em 1992, Jorge Amado apresenta o que o ensaísta considera apenas uma
“avaliação sentimental”:
“Único vivo do grupo que compôs a Academia, no
exercício da saudade, faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por
cada um de nós. A Obra Poética e
Iararana, de Sosígenes
Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Édison
Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente,
crítico literário, o grande Édison; os Sonetos do malquerer e Os Sonetos do bem-querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que
traçou nossos caminhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos;
os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Chão
de Massapê; o romance
de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título
para Corja; as
coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz, a de sonetos de Da Costa
Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema — some-se com meus
livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo.”
Nas palavras de Amado, embora não tenham varrido a
literatura dos movimentos do passado – “não enterramos no esquecimento os
autores que eram os alvos prediletos de nossa virulência (...), em geral todos
os que precederam o modernismo” -, os rebeldes concorreram, “de forma decisiva,
para afastar as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice,
para dar-lhe conteúdo nacional e social, na reescrita da língua falada pelos
brasileiros”. “Fomos além do xingamento e da molecagem, sentíamos-nos
brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade, com ele construímos,
jovens e libérrimos nas ruas pobres da Bahia”, sublinha o autor de Navegação de Cabotagem.
Abstraindo-se o movimento de Ala das Letras e das
Artes (ALA), que vigorou a partir de 1936, sob o comando intelectual de Carlos
Chiacchio e, por isso mesmo, uma continuidade da pauta de ideias pregadas e
defendidas pelo grupo de Arco & Flexa, e persistiu no receituário de sua teoria do “Tradicionismo Dinâmico”, que defendia um
modernismo respeitador da tradição e duraria até o final da Segunda Grande
Guerra (1945), visto à distância de hoje, percebe-se que o legado da Academia
dos Rebeldes se projetará sutilmente nos dois movimentos baianos que se
seguiram ao fim do conflito mundial: o de Caderno da Bahia, que se inicia por
volta de 1947, e o da chamada Geração Mapa, como sequência deste, a partir de
1956/57.
Ladeira da Palma e Casarões, 1956. óleo sobre tela de Lygia Sampaio, artista plástica do grupo de Caderno da Bahia |
NA ESTRADA DA LIBERTAÇÃO
O movimento de Caderno da Bahia surgiu com uma novidade, a presença
forte das artes plásticas, embora fosse nele predominante o cultivo das letras. Vale
lembrar que, estranhamente, em nenhum dos movimentos anteriores (Samba, Arco
& Flexa e Academia dos Rebeldes) havia participação clara das linguagens
plásticas. A mais razoável explicação
para tanto deve-se à predominância da arte acadêmica, presente em instituições
de prestígio, como a Escola de Belas Artes, e representada por artistas do
porte e prestígio de Presciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho. As
novas ideias germinaram fora desse circuito tradicionalista, a partir dos
artistas plásticos Mário Cravo Jr. e Carlos Bastos, na volta de viagens e
cursos realizados nos Estados Unidos, na França e no Rio de Janeiro, onde
tomaram conhecimento da revolução estética que alcançara as artes em geral. Além desses, o grupo se constituiu
de outros artistas plásticos, entre os quais Jenner Augusto, Rubem Valentim,
Lígia Sampaio e Mota e Silva, mantendo-se à distância o tapeceiro Genaro de
Carvalho, embora da mesma geração e desígnio; dos ficcionistas Vasconcelos
Maia, José Pedreira e Nelson de Araújo;
dos poetas Wilson Rocha, Cláudio Tuiuti Tavares, Camilo de Jesus Lima e Jair
Gramacho e dos jornalistas Heron de Alencar e Darwin Brandão, e intelectuais de segmentos outros como Luís Henrique Dias Tavares, Adalmir da Cunha Miranda, Machado Neto
e Pedro Moacir Maia, mas o movimento consagrado com o epíteto de Caderno da
Bahia só adquire visibilidade a partir de 1948, com a primeira exposição baiana
de arte moderna em que figuram artistas da geração. Abriu-se também para a
fotografia e o cinema, para adquirir corpo com a publicação da revista que lhe
daria nome, cujo primeiro número é deste mesmo ano, conseguindo somar seis
números, até encerrar-se em setembro de 1951. A ela assim se refere o escritor
Vasconcelos Maia:
“O Caderno da
Bahia começou sem muitas pretensões, mas, como se a nossa geração estivesse
aguardando um veículo com que antes não contava, as adesões se precipitaram.
Suas atividades ganharam fôlego. E logo relativo prestígio o cercou, não só
aqui, como nos outros estados, onde se processava luta mais ou menos igual: a
da afirmação dos talentos jovens na província eminentemente dominada pelo gosto
acadêmico”.
É justamente no editorial inserido na edição de 17
de abril de 1950 que se percebem ressonâncias de ideias cultivadas pela
Academia dos Rebeldes, agora hospedadas na atmosfera libertária do pós-guerra e
das fortes aspirações de paz e igualdade social que se alastravam. O pensamento
de esquerda responsável pela opção comunista de influentes rebeldes, açulado
pela propaganda internacional de princípios marxistas difundidos a partir do
sucesso da Revolução de 1917 e consequente instalação do comunismo na Rússia, a postura
de rejeição a todas as formas de idealismo político, que desaguasse em regimes
ditatoriais, e o claro propósito de abraçar tudo o que representasse
fortalecimento do humanismo, eram visivelmente os esteios ideológicos em que
repousava a disposição dos que editavam Caderno
da Bahia.
O texto aponta como destino preferencial do grupo a
“ampla e larga estrada da libertação, na qual marcha uma nova humanidade, na
busca de um mundo de tranquilidade e de trabalho, de paz e de amor entre os
povos”, reconhecendo este como seu roteiro, “a serviço da paz e da defesa e
enriquecimento da cultura”, em contraposição ao outro, “o caminho sangrento e
tortuoso do desespero, no qual as formas sociais historicamente decadentes, e
mesmo superadas, tentam conservar seus privilégios de exploração e de
injustiça”. Vasconcelos Maia diria, alguns decênios depois, que Caderno da Bahia era “um boletim
literário e artístico, mas, como a situação política exigia, também político”.
Ao definir as características do movimento, como a consciência do que buscavam,
Maia alude ao essencial que lhe deu suporte: “Tínhamos tido e aprendido as
lições da Semana de Arte Moderna de 22 e do movimento aqui liderado por
Pinheiro Viegas”. Não havia por que negar, pois lá estava Walter da Silveira,
da linha de frente da Academia dos Rebeldes, que se incorporara ao grupo de
Caderno da Bahia. Era a projeção do que, entre os rebeldes, se constituiu em
ponto de coesão para a atividade criadora. “A militância serviu de régua e
compasso aos escritores que levantaram um projeto de modernidade – visceral e
epidermicamente – afinado com a realidade de seu povo”, infere com percuciência
o ensaísta Cid Seixas.
De hábitos presumivelmente herdados dos rebeldes,
podem-se alinhar alguns, tais como um semelhante desejo de maior fruição da
cidade, no dizer de Maia, “ideal para se viver - tranquila e pacata, sem
assaltos” onde “pouca gente tinha automóvel e a grande maioria das pessoas
andava de bonde”. Em timbre que repetia Jorge Amado, acentuava: “Os grandes
vales, que foram utilizados como avenidas e se incorporaram ao processo de urbanização,
eram hortas e pomares. O clima era agradabilíssimo, ameno”. O grupo vivenciou
melhorias no setor de transportes urbanos, com as mudanças que se operaram no
serviço de bondes elétricos, a partir da aquisição de unidades mais modernas –
agora todos iguais e abertos, amarelos, com os números pretos, com capacidade
cada para 50 passageiros, surgindo logo a seguir os bondes fechados de 46
passageiros sentados, que o povo apelidou de “Sossega Leão”, em alusão ao samba
de sucesso do compositor baiano Assis Valente, “Camisa Listrada”.
A boemia também tinha seu lugar. Além de alguns
espaços sobreviventes, como o Café das Meninas, os componentes de Caderno da
Bahia se reuniam preferencialmente na Pastelaria Triunfo, misto de bar e
mercearia, na Praça Municipal, mas, para dar um toque especial de fruição
hedonista, criaram seu próprio espaço, o Bar Anjo Azul, um ambiente decorado em
tons barrocos, que se tornaria um ícone local de sedução e sofisticação boêmias. O ambiente recriava a atmosfera de doutrinas em moda na época, como o
surrealismo e o existencialismo, refletindo-se na postura dos frequentadores. O
interior imitava um bistrô parisiense, onde a música de preferência era o Jazz,
na voz langorosa de Billie Holiday. Bebia-se pernod ou xixi-de-anjo,
este uma especialidade da casa, à base de aguardente, de fórmula secreta,
guardada a sete chaves.
Tal como os rebeldes, a frequência aos bordéis e
cassinos figurava naturalmente na agenda do grupo. Relembra Vasconcelos Maia:
“Íamos muito em grupo aos cabarés. Não tanto ao Tabaris, porque não tínhamos
grana. Íamos mais aos rumbas, aos boleros. Apesar de moços, éramos muito
conhecidos, Quando chegávamos nesses dancings,
dominávamos o ambiente. Os donos e as dançarinas nos tratavam otimamente, era
formidável. Jenner Augusto se arvorava a cantor, Mário Cravo a mágico, nosso
amigo Jairo Saback fazia um número de música, ficávamos donos dos salões”.
Grupo da Geração Mapa, cerca de 1960: João Ubaldo, Glauber Rocha, Sante Scaldaferri e Paulo Gil; ao centro, Calá |
2.
AMPLIAÇÃO DO RAIO CULTURAL
O movimento que se seguiu, o da chamada Geração
Mapa, tinha igualmente como proposta básica romper com a inércia cultural, a
renitência conservadora, que ainda alimentava o preconceito contra a arte
moderna; mas a realidade era inteiramente outra. Já se haviam esmaecido os
fortes reflexos do pós-segunda guerra mundial, embora tivesse irrompido a guerra
da Coreia, mas de curta duração e menor repercussão no noticiário, e popocassem
outras insufladas pelo capitalismo na luta pela hegemonia internacional. O
mundo se pautava agora pela Guerra Fria, no confronto de Estados Unidos e União
Soviética. A partir de 1952, como instrumento de divulgação cultural, Caderno da Bahia seria substituída pela
revista Ângulos, criada por Adalmir
da Cunha Miranda e outros acadêmicos de Direito, sob a direção do Centro
Acadêmico Ruy Barbosa, que advogava a mesma postura de luta contra o
conservadorismo teimoso e o conformismo intelectual, encerrando esta sua fase
em 1961, após 17 edições.
O grupo de Mapa
começou a aparecer nas páginas de Ângulos,
antes da criação de sua própria revista, que iria dar rótulo à geração,
circulando em três edições, nos anos de 1957 e 1958, para o que contou com
substancial apoio de Zittelmann de Oliva, então um dos sócios da empresa Artes
Gráficas, situada na Rua do Saldanha (Centro), para ser depois superintendente
do recém-lançado Jornal da Bahia. Era
a forma de se afirmarem talentos do nível de Glauber Rocha (praticamente o
líder do grupo, apesar de ser o mais jovem), Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil
Soares, Calasans Neto, Fred de Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes,
Fernando Rocha, Carlos Anysio Melhor, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Hélio
Oliveira e outros, entre os quais este redator. A eles se agregariam, algum
tempo depois, a poeta Myriam Fraga e os então contistas João Ubaldo Ribeiro,
Sônia Coutinho, David Salles e Noênio Spínola, e o artista plástico José Maria
Rodrigues.
No grupo Mapa se integravam várias linguagens
artísticas. Além de literatura (ficção e poesia), lá estavam criadores das
áreas de artes plásticas, teatro, cinema e jornalismo, utilizando como meios de
difusão, além da revista Ângulos,
primeiramente, a página literária do Jornal
da Bahia, então editada por Luís Henrique Dias Tavares, um dos nomes de
Caderno da Bahia, e, depois, o suplemento dominical do jornal Diário de Notícias, da cadeia dos
Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, que se celebrizaria sob
a sigla SDN, criado a editado pelo jornalista Inácio de Alencar, tendo como
coadjuvantes Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, este redator e, às vezes, Sylvio
Lamenha, então colunista social. Concomitantemente, com a revista Mapa, o grupo atuava em várias frentes.
Criou seu próprio selo editorial, as Edições Macunaíma, que publicou os
primeiros livros do grupo; fundou uma
empresa cinematográfica, a Iemanjá Filmes, e, a partir da aproximação com
Walter da Silveira, através do Ciclo de Cinema da Bahia, tendo à frente Glauber
Rocha, iniciou o processo que desaguaria na realização de filmes
paradigmáticos, como Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro,
ambos de Glauber, que antes realizara o longa Barravento e o curta O Pátio;
o documentário Memória do Cangaço, de
Paulo Gil Soares, que escreveu também uma peça de teatro, Evangelho de Couro, versando sobre a tragédia de Canudos, levada
pela pioneira Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Organizou ainda
exposições de Calasans Neto e Sante Scaldaferri, em galerias de arte de
Salvador, além de lançamentos de álbuns de gravuras.
A geração Mapa vivenciou, e a ele se incorporou, o
rico momento de reforma da Universidade da Bahia, empreendido pelo reitor
Edgard Santos, com a criação das escolas de arte (Música, Dança e Teatro), além
da reestruturação de Belas Artes; de institutos culturais, entre os quais se
destacava o Centro de Cultura Afro-Oriental (CEAO), além dos de ciências
exatas. Integrou-se na criação e funcionamento do Museu de Arte Moderna,
instituído pela arquiteta Lina Bo Bardi, e numa programação teatral avançada,
sob o comando de Martim Gonçalves, então diretor da Escola de Teatro.
Quanto à fruição hedonista, os integrantes do grupo
seguiram, com variações, o roteiro das duas gerações anteriores (Academia dos
Rebeldes e Caderno da Bahia): bares, restaurantes, bordeis, cassinos, dancings,
inaugurais boates, mas, para encontros, tinham suas preferências: a Sorveteria
Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda, e os restaurantes Cacique, na Praça
Castro Alves, e Porto do Moreira, então na Rua do Cabeça. Até hoje perguntam
por que a preferência do grupo, de fins de tarde à meia-noite, cotidianamente,
pela Sorveteria Cubana, que não servia bebida alcoólica, mas somente sorvetes,
milk-shakes e bolinhos. Simples: a inocência também leva ao paraíso.
É neste justo contexto boêmio que se insere hilária
cena noturna, tendo Glauber Rocha como protagonista. Em fins de outubro de
1958, pouco mais de um mês após o lançamento do Jornal da Bahia (21 de setembro), embora fosse débil a remuneração,
os de Mapa que integravam a primeira
equipe de sua Redação resolveram comemorar o primeiro salário no cassino
Tabaris Night Club, onde tradicionalmente se apresentavam balés, sendo na
ocasião um com atraentes loiras e morenas dançarinas, de nacionalidade
argentina, trajando maiôs recobertos de lantejoulas e estrelando um repertório
musical de boleros, mambos, rumbas, congas e tangos, ao som de afinada
orquestra, composta em sua maioria de músicos da banda da Polícia Militar.
Como parte da atração, instruídas para agradar a
clientela, era comum as dançarinas virem às mesas, para conversar, beber,
flertar e até dançar com frequentadores. Nesta noite, para alguns a primeira, o
grupo se fazia acompanhar alegremente de bailarinas, quando, já perto da
meia-noite, Glauber Rocha, que não bebia por ser protestante, acomete em
protestos contra o que lhe parecia ali um espetáculo de devassidão e, logo, de
punho cerrado, sobe na mesa e se põe em pé, a bradar lá de cima:
“Isto é um absurdo! Tirem-me daqui essas mulheres
de Babilônia!!” E qual um profeta bíblico em transe repetia, enérgico: “Tirem
logo daqui essas mulheres de Babilônia!”.
Pararam todos, aturdidos. Amigos e mulheres em
volta rogam-lhe que desça da mesa. Silêncio. É quando ele, entre sério e
dissimulado, desce da mesa sorridente, como se nada tivesse acontecido. Foi uma
gargalhada só. Glauber, 19 anos de idade.
BIOGRAFIAS
SINTÉTICAS DE REBELDES
Nota liminar
Agrupam-se sob o título de biografias sintéticas
catorze membros da Academia dos Rebeldes, seguindo-se para tanto um critério de
seleção entre os mais citados por pesquisadores e comentaristas, como assíduos
colaboradores das revistas do grupo, Meridiano
e O Momento, que circularam entre
1929 e 1932, participantes das ações socioculturais e desfrutes boêmios do
grupo, quanto como os que, entre eles, cumulativamente ou não, alcançaram
proeminência no campo da literatura ou atividades outras, como o jornalismo, a
política e os estudos científicos, obtendo reconhecimento regional, nacional ou
mesmo internacional.
Algum curioso leitor poderá observar que, em se
tratando de biografias, dispostas pela ordem do ano de nascimento dos
biografados, faltam maiores indicativos cronológicos às narrativas. Sem dúvida.
Explica-se. No presente caso, o fulcro do interesse por cada um dos nomes da
lista centrou-se na expressão e significado do seu desempenho para os fins
colimados no projeto intelectual e político que unia os jovens rebeldes,
optando-se por uma exposição sucinta da respectivas trajetórias.
PINHEIRO VIEGAS
(1865-1937)
Talvez por sua fama de jornalista panfletário conquistada desde o Rio de
Janeiro, onde viveu, mais bem reconhecido como agitador cultural, intelectual
corrosivo e desagregador, que como mestre e líder de um movimento literário,
João Amado Pinheiro Viegas nasceu em Salvador e, segundo o pesquisador Gil Francisco
Santos, morreu num dia de novembro, “abandonado pelos poucos amigos que tinha”,
em Itacaranha, subúrbio da capital, sem receber qualquer homenagem póstuma,
sequer registro obituário na imprensa, mas talvez como um alívio para “a
mediocridade empavonada e vitoriosa, a quem jamais poupou com a sua sátira”.
Jorge Amado, que se dizia surpreso por ter ele nome igual ao de seu pai,
João Amado, o define como patrono da Academia dos Rebeldes, poeta
baudelairiano, “panfletário temido, epigramista virulento, o oposto do
convencional e do conservador, personagem de romance espanhol, espadachim”. Mas
não foi somente essa marca do mentor a se fixar em sua mente. Pinheiro Viegas
era mais. “Um homem avançado para os padrões da época”, recorda, que “havia
participado da campanha civilista, ao lado de Rui Barbosa, e trabalhado vários
anos no Rio”. Nômade, pouco se sabe que seja descrição objetiva desse
nomadismo; apenas que percorreu o Brasil, “de norte a sul”, como poeta e
jornalista, e que no Rio, ainda segundo Gil Francisco Santos, fez boemia como
integrante da turma de Lima Barreto.
Viegas cumpriu os cursos primário e secundário no então Ginásio da
Bahia, bacharelando-se em Letras; ingressou no Curso de Direito, abandonando-o,
para se dedicar ao jornalismo; trabalhou em O
Imparcial, mas o deixou, quando o jornal foi vendido aos integralistas,
força política na época, assumindo o seu comando dois ao tempo chamados
“galinhas-verdes”, em alusão às cores da militância ideológica, Mário Simões,
diretor de redação, e Mário Monteiro, diretor financeiro. É dessa ocasião um
famoso epigrama de Viegas, composto para registrar tal assunção.
Mário Simões bis Monteiro
Remontaram O Imparcial.
São quatro mãos no dinheiro,
São quatro pés no jornal.
Em Salvador, onde verdadeiramente se tornaria conhecido e influente,
antes de fundar a Academia dos Rebeldes, frequentou o grupo de Samba, cujos membros se mostravam
engajados no combate ao conservadorismo, mas sem que estivessem efetivamente
identificados com a corrente renovadora do modernismo. Apesar de publicações
dispersas, seja como poesia, crônica ou panfleto, Pinheiro Viegas deixou apenas
um livro de poemas, Brasil Prosa e Verso
(Salvador: Gráfica Popular, 1931), mas com autoria sob pseudônimo de Sophos
Arnaud.
Abaixo, um de seus sonetos.
MEDALHÃO GREGO
Pinheiro Viegas
Escuto Debussy. A noite. O luar. O oceano,
Recordo-o. Onde isso foi? Eu não o sei. Perdi-o.
Era o efebo irreal - grego mármore humano
Olhei-o. Olhou-me. Riu. É um demônio. Eu rio.
Belo mármore jônio impassível - engano!
Os olhos verdes maus, a grenha negra, vi-o.
As suas níveas mãos, nervosas, tinham frio
Nas teclas de marfim e de ébano do piano.
Recordo-o. Onde isso foi? Eu não o sei. Perdi-o.
Era o efebo irreal - grego mármore humano
Olhei-o. Olhou-me. Riu. É um demônio. Eu rio.
Belo mármore jônio impassível - engano!
Os olhos verdes maus, a grenha negra, vi-o.
As suas níveas mãos, nervosas, tinham frio
Nas teclas de marfim e de ébano do piano.
A boca - flor de sangue - em claros risos francos
Mostra-me, alegre, os seus trinta e dois dentes brancos.
O amor - interjeição - duas silabas métricas.
Mostra-me, alegre, os seus trinta e dois dentes brancos.
O amor - interjeição - duas silabas métricas.
Uma por uma eu vi todas as suas baldas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.
Pinheiro Viegas por Jorge Amado
“As sagradas tribos indígenas dos retardados modernistas baianos têm cultos estranhos. Cultivam o analfabetismo e o elogio mútuo. Fulano é um gênio e sicrano é o Ruy Barbosa da Rua dos Carvões... O jornalista baiano é reconhecível à primeira vista. Bebe cachaça fiado e fala mal de Freud, sem nunca o ter lido. A melhor carta de recomendação para os que tem banca de crítica é meia dúzia de garrafas de cerveja... Os estudos antes de direito e de medicina que não deram para jogador de futebol dedicaram-se à literatura”.
“Não sabem os literatos baianos que existe Pirandello e que Tristão de Athaíde faz um grande movimento de renovação no Brasil... Salvam-se alguns nomes. Alves Ribeiro é um escritor completo em todo o sentido da palavra. Dias da Costa, grande dissipador de talento, será capaz, quando assim quiser, de realizar uma grande obra. Sosígenes Costa, Eugênio Jesus, Arthur de Salles, Costa Andrade e Carvalho Filho, na poesia. São nomes que precisam ser realçados. Clovis Amorim poderá ser o grande romancista da Bahia e Edison Carneiro é um esplêndido conteur. Sobre todos estes, mestre e amigo, aparece a figura admirável de Pinheiro Viegas”.
“Baiano, Viegas, viveu por muito tempo do jornalismo, no Rio. Todos os medíocres odeiam-no porque o temem. O único vicio que ele não perdoa no homem é a burrice. E seus inimigos, são todos muito pouco inteligentes. Ninguém melhor do que ele sabe ser amigo. Aliás, fez disso a divisa de sua vida: “Saber ser amigo é saber ser inimigo”. Capaz de grandes gestos, e grandes, prefere dizer nas mesas dos bares coisas que aborreçam o burguês que está sentado na mesa vizinha. Cultiva as frases de espírito e diz paradoxos. Tem o prazer aristocrático de escandalizar”.
“É um terrível panfletário, mas nem por isso deixa de ser um excelente poeta. Seus versos são bizarríssimos...Gosta mais, no entretanto, de fazer epigramas com as figuras mais em evidência da aldeia... É preciso conhecer Pinheiro Viegas de perto, para que se veja que ele não é o terrível papão, tão temido e odiado pelos antropófagos baianos, mas que é somente um grande talento insatisfeito. Em verdade, foi ele que chefiou na Bahia a campanha pró inteligência. Coisa de que ninguém se lembrava na Boa Terra”.
“Profundamente natural, odeia a retórica mestiça dos mulatos baianos e crítica a brasilidade dos meninos ultra modernistas. Dizem-no demolidor e ele responde que demolir a obra má é o mais admirável meio de construir. Dono de uma grande cultura geral, grande conversador, seu espírito eternamente formado à francesa, encanta. Se lhe perguntarem quais os seus defeitos, enumerará todas as virtudes comuns à maioria dos homens. Tem a paixão dos livros velhos e afirma que hoje só é humorismo. Poderia ter feito uma grande obra. Preferiu fazer uma grande vida. Conseguiu. É admirado por todos que tem talento e odiado por todos que não o tem”. (Nelson Cadena)
(Crônica de Jorge Amado, editada para ajustar a este espaço, publicada na revista ETC. em 1930, o escritor então com 18 anos de idade) (Nelson Cadena).
Abaixo, imagem de Pinheiro Viegas, por Brochado.
(Publicado no jornal Correio)
SOSÍGENES COSTA
(1901-1968)
Foi preciso que transcorressem nove anos de sua morte e quase vinte da
edição única em vida de seu livro Obra
Poética (Rio de Janeiro: Leitura, 1959), para que se viesse situar esse
grande poeta grapiúna, conforme feliz observação de Jorge Amado, “no lugar que
lhe compete na lírica brasileira”, o que desemboca, como frisa, no
reconhecimento da crítica e história literárias. E, por fim, tudo se daria num
galope, quase frenético. Pelas mãos do paulista José Paulo Paes, em 1977, a
editora Cultrix publica seu Pavão, Parlenda, Paraíso, com
penetrante análise crítica e pequena antologia do poeta nascido em Belmonte;
logo em seguida, pela mesma editora, em 1978, Paes reedita a Obra
Poética ampliada, completando-se a faina de sua inserção, com a edição
de Iararana (São Paulo: Cultrix, 1979), a epopeia cabocla do cacau,
em que, submetendo consagrada forma “aos
signos dessacralizadores da paródia”, segundo Cid Seixas, o poeta “vai além dos
inventos pioneiros de Mário de Andrade, em Macunaíma, ou de
Cassiano Ricardo, em Martim Cererê”, justamente pela sua “rebeldia
diferencial”.
O belmontino-ilheense Sosígenes Costa |
Essa longa imersão na indiferença da crítica e praticamente hoje nas
geleiras do esquecimento em muito se deveu e se deve ao temperamento
enormemente retraído do belmontino, que viveu em Ilhéus, para onde se mudou em
1926. Lá vai de ocupar a função de telegrafista dos Correios e, depois, a de
secretário da Associação Comercial de Ilhéus, quase sem ser percebido, até
mudar-se para o Rio de Janeiro, aposentado, em 1954. Com a fama de “arredio, pedante
e asceta”, fazia supor houvesse “erguido ao seu redor um muro de discrição e
silêncio”, segundo observa Hélio Pólvora, para concluir: “Além de proteger-se
contra contaminações maldosas da ambiência, tinha necessidade de solidão para
criar”.
Até nas relações cordiais e contatos literários mostrava-se reservado.
Foi em tal condição que eu, obscuro e tímido adolescente de curso secundário,
em Ilhéus, tropeçando em versos mal despidos de devaneios românticos, então
salpicados de bruxuleios parnasianos, o conheci, advertido que fora de que não
poderia deixar de conhecer um verdadeiro poeta. E assim, me punha semanalmente
na sala que ocupava em um prédio de arquitetura com arremedos neoclássicos na
Praça Eustáquio Bastos, a ouvi-lo, circunspecto, falar de poesia moderna; ele,
já então com cinquenta anos de idade, sério, sempre de terno e gravata, mas, de
voz mansa e pausada, paciente e compreensivo. Nessas ocasiões, a mim parecia
estar diante de um sacerdote, cujas preleções mereciam ser ouvidas e na mente guardadas.
Atento e cortês, de quando em vez, numa pausa, eu o via abaixar-se e
tirar de uma gaveta da escrivaninha maços de papel amarelecido, em manuscrito
ou envelhecida datilografia, e lia belos sonetos, a totalidade ainda inédita em
livro; ou então, levantava-se e se dirigia à biblioteca de onde trazia livros
de arte, para mim inteiramente desconhecidos. Embevecido, com o que dele ouvia
ou que ele me dava para ler, saí desses encontros e lições, na certeza de que
tomara ali um rumo literário, o da total e convicta adesão à estética do
modernismo.
Talvez por ter preferido viver em Ilhéus, a militância literária de
Sosígenes Costa limitou, garante Jorge Amado, a sua participação na Academia
dos Rebeldes aos dois últimos anos da década de 20 e ao início da década de 30,
mas, pela sua qualidade de poeta, era
dele que se valiam os outros amigos rebeldes, nas emulações da época, para
enfrentar a constelação de nomes que fulguravam nos outros dois grupos
concorrentes (Samba e Arco & Flexa), como Godofredo Filho,
Carvalho Filho e Hélio Simões, opondo-lhes “sua poesia original, suntuosa,
bela, capitosa, como vinho generoso”, que, por mais incrível que possa
parecer, está hoje praticamente esquecida.
§§§
"Um dos melhores poetas do norte do país é Sosígenes Costa. Solteirão,
esquisito. (,,,) Está no mundo com um ar de pernalta pensante. Funcionário dos
Telégrafos e escriturário de uma associação comercial, desforra-se dos seus
magríssimos ordenados em esbanjamentos poéticos de pedrarias e sedas, como
raros dos seus confrades se permitem. Na imaginação desse asceta há sempre um
pecaminoso rumor de saias proibidas. (...) Vinga-se do seu isolamento e da sua
imobilidade em visões como as não tiveram Sardanapalo e Sindbad o Marítimo.
Recorda sempre os belos dias que passou em Belmonte e fala dessa cidadezinha do
interior da Bahia como se falasse do Oriente, acendendo todas as gambiarras,
fazendo faiscar todas as ourivesarias, compondo todas as decorações florais.
(...) Modernista, ainda crê na rima rica e um excesso de luz que lhe torna
certas passagens obscuras, numa espécie de névoa de ouro. Esse filho da roça
pensa nas Vênus de Paris e alude constantemente a pavões e castelos. (...)
Ainda meio simbolista, diz-se ele ‘pajem da Musa e príncipe da Morte’, mas é um
panteísta bem vivo ao inebriar-se na gama de amarelos do sol dos trópicos. Sua
amada tem ‘trinta anéis de pérolas ovais’, mas o seu noturno de Ilhéus a
‘descrição’, é algo de bem contemporâneo".
(Agripino Grieco (1888-1973), trecho, em transcrição de Gil Francisco Santos).
CREPÚSCULO DE MIRRA
Sosígenes Costa
A tarde fecha a cintilante umbela.
Vêm os aromas como uma grinalda
ornar a sombra arroxeada e bela
e ungir os nossos sonhos de esmeralda.
Nuvens de mirra e oriental canela
formam na sombra a singular grinalda.
E a tarde fecha a cintilante umbela
e o vento as asas do dragão desfralda.
A própria lua vem lançando aroma.
Nasce vermelha como a flor de um cardo
e sobre a mirra dos vergéis assoma.
E a noite chega no seu grifo pardo,
cheirando a incenso como o rei de Roma
e como Herodes rescendendo a nardo.
(1937)
DUAS FESTAS
NO MAR
Sosígenes Costa
Sosígenes Costa
Uma sereia encontrou
um livro de Freud no mar.
Ficou sabendo de coisas
que o rei do mar nem sonhava.
Quando a sereia leu Freud
sobre uma estrela do mar,
tirou o pano de prata
que usava para esconder
a sua cauda de peixe.
E o mar então deu uma festa.
E no outro dia a sereia
achou um livro de Marx
dentro de um búzio do mar.
Quando a sereia leu Marx
ficou sabendo de coisas
que o rei do mar nem sonhava
nem a rainha do mar.
Tirou então a coroa
que usava para dizer
que não era igual aos peixinhos.
Quebrou na pedra a coroa.
E houve outra festa no mar.
(1934)
AQUELE FILHO DE HERODES
Aquele filho de Herodes
é um tetrarca infeliz.
Tibério está todo inchado
lá no jardim da Capréa
e aquele filho de Herodes
que impera na Galiléa
e em seus vergéis aromais
tem que mandar a Tibério
toda semana orquidéa
e lhe fazer madrigais.
Tem que escrever a Tibério
aqueles cartões postais
que a noiva oferece ao noivo
no dia dos esponsais.
Aquele filho de Herodes
que vive bebendo anis,
comendo figos de Rhodes,
compondo romanas odes,
rodeado de colibris,
aquele filho de Herodes
passando a mão nos bigodes
e ornado de flor de lis,
aquele filho de Herodes
é um tetrarca infeliz.
(1935)
(Sosígenes Costa. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Leitura, p. 155, 1959).
Em tempo: seguiu-se a ortografia e o vernáculo da edição).
Itabuna e o seu plácido Rio Cachoeira, dois ícones da poesia de José Bastos |
JOSÉ BASTOS
(1905-1937)
Quando em fins dos anos 1940, numa pacata Itabuna, inocentes alunos da
primeira turma do Ginásio da Divina Providência, intrigados, perguntavam quem
era aquele que dava nome à Praça José Bastos, ali pertinho, ouviam dos mais
velhos tratar-se de um poeta que, morto cerca de dez anos antes, cantara em
seus versos a cidade e o seu Rio Cachoeira.
Depois de interromper o aprendizado das primeiras letras na cidade onde
nascera, José Bastos torna-se precocemente arrimo de família, com a morte do
pai, em 1918, vendo-se obrigado a empregar-se em uma livraria, onde a curiosidade
e o contato com os livros lhe despertam o interesse pela literatura,
principalmente pela poesia parnasiana.
Publica seu primeiro soneto, “Náiade exilada”, em 1924, no jornal O
Intransigente, propriedade de um coronel do cacau, seguindo para Salvador, onde
conclui o curso secundário. Retorna a Itabuna em 1927 e ingressa no jornalismo,
começando a trabalhar no jornal A Época, então propriedade de
Gileno Amado, advogado e já fazendeiro e prestigioso chefe político local; lá,
publica a maior parte de sua poesia.
Já integrante do movimento desencadeado pela Academia dos Rebeldes,
figurando mesmo entre os colaboradores do único número da revista Meridiano e
depois de O Momento, em 1930, José Bastos publica em Salvador seu
único livro Horas Líricas, (depois reeditado,
por ocasião do cinquentenário de Itabuna: Tipografia D´Agenciadora, 1960).
“Com esse livro em mãos o poeta foi para o Rio de Janeiro, onde
pretendia inserir-se na vida cultural da antiga capital do país, não
conseguindo seu intento. Melancólico e doente, vítima da tuberculose, ateia
fogo em toda a sua produção ainda inédita em verso e prosa, da qual apenas do
título se tem notícia: Terra Verde”. Dessa forma, o estudioso de
literatura e poeta Gustavo Felicíssimo registra esse triste momento da biografia
de José Bastos, cuja poesia, para ele, “não é outra senão o reflexo de um
rigoroso senso estético, quanto a linguagem e estrutura, não variando muito
quanto à forma (o soneto), fruto de uma escola parnasiana, da qual Olavo Bilac
foi, no Brasil, seu artífice mais talentoso”, e sem dúvida, seu espelho.
Versejou com decência e equilíbrio temas da natureza, como também
mitológicos e morreu parnasiano, como sempre fora. “É perceptível que o
atendimento rigoroso e brutal ao cânone do seu tempo tornou a poesia de José
Bastos um tanto engessada, porém é claro que suas virtudes como poeta superam,
em muito, qualquer crítica destrutível que sobre sua obra seja lançada”
(Gustavo Felicíssimo, Itabuna: jornal Agora, 2010).
ITABUNA
José Bastos
Minha terra natal! Que te abrasas e inundas
De tanto sol! Assim, entre agrestes verdores
Do Cachoeira escutando os bravios rumores
Como a iara gentil dessas águas profundas!
Quantas poesias tens nas árvores jucundas
Que te cercam além! Nas casas multicores,
Que se alteiam brilhando, entre ramos e flores,
E enchem de encanto e vida estas plagas fecundas!
Ah! Como eu sou feliz e me sinto orgulhoso
De um dia ter nascido em teu seio faustoso,
Sob o esplendor de um céu de beleza tão rara!
De me haver embalado à cantiga e ao gemido
Do Cachoeira, que rola a água profunda e clara,
Escumando aos teus pés como um jaguar ferido!...
JOÃO CORDEIRO
(1905-1938)
Autor de um único livro, o romance Corja
(Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934), cujo título original deveria ser Boca Suja, inopinadamente mudado por não
agradar ao editor, João de Castro Cordeiro foi um dos fundadores da Academia
dos Rebeldes e tão assíduo colaborador de suas duas revistas, Meridiano e O Momento, que Jorge Amado chegou ao ponto de considerá-lo seu presidente
honorário, pelo fato de, sendo ele o único do grupo a ter emprego público
remunerado, socorrer os sempre carentes bolsos dos amigos com empréstimos para
suas esbórnias.
Nascido em Salvador, oriundo de família estável de classe média, morreu
com meros 33 anos de idade, sem que haja registro formal de causa que explique
morte tão precoce. Logo que lançado, Corja
obteve críticas positivas, tais como a do rigoroso Agripino Grieco, que
destacou o realismo da narrativa centrada num cenário popular de ruas e becos
baianos, noitadas boêmias e cenas de botequins, que o autor, segundo ele, soube
deter “em instantâneos vivazes, colhendo no voo notas típicas de algumas vidas
prosaicas ou inquietas”, com toques de sátira à presença de figuras da política
e do clero.
A história gira em torno da vida airada e boêmia do personagem Policarpo
Praxedes, por meio do qual João Cordeiro oferecia, segundo Edison Carneiro,
outro de seus críticos, “a visão exata, e por isso mesmo cruel, da humanidade
que se definha nas salgadeiras, nos trapiches, nos armazéns das docas, para
pagar com seu suor as amantes, as bebedeiras e os palácios capitalistas”.
Autor da apresentação do romance, Jorge Amado relata que, muitos anos
depois, quando presidente do Instituto Nacional do Livro, Herberto Salles
cogitou reeditar Corja, inclusive
devolvendo-lhe o título original preferido por Cordeiro, Boca Suja, mas rejeitado pelo editor; porém, defrontou-se com um
obstáculo que tem sido a infelicidade de muitos espólios literários e
artísticos. Segundo Amado, “os herdeiros, vagos herdeiros, a viúva morrera e
não houvera filhos, se assanharam, acreditando que a edição significaria
incalculável soma de dinheiro, fortuna em direitos autorais; impossível tratar
com eles, a boa ideia de Herberto não se concretizou”. Em face disso, não se
conhece nova edição da obra.
§§§
“João Cordeiro me
faz recordar a fase mais interessante da minha vida. Nós éramos uns garotos e
fazíamos, sob as ordens de Pinheiro Viegas, a parte de pasquim da literatura
baiana. Tínhamos uma Academia dos Rebeldes, que amávamos, apesar de todo o
ridículo que a cobria. Tentamos fazer o saneamento intelectual da boa terra”.
(Jorge Amado, em transcrição de Gil Francisco Santos).
ALVES RIBEIRO
(1909-1970)
Espírito forjado em terras de sertão profundo, no então município de
Camisão, hoje Ipirá, filho de agricultor, depois modesto pecuarista, caçula da
família, José Alves Ribeiro aprendeu a ler sem frequentar escola, sendo, desde
criança, um esforçado ajudante do pai no serviço de plantio e colheita de
cereais, mas aproveitou bem uma viagem a Salvador, ao ser deixado com um tio,
cuja casa possuía uma biblioteca, que lhe despertou o interesse por literatura,
permitindo-lhe o contato com livros de que nunca ouvira falar. Concluiu os
cursos secundário e ginasial e candidatou-se ao vestibular, ingressando na
Faculdade Livre de Direito em 1931.
Diplomado, exerceu várias atividades, além da advocacia: professor de
Criminologia na Faculdade de Filosofia, por fim ingressando na Justiça do
Trabalho, onde faria carreira de competente juiz da 5ª Região, cuja presidência
ocupou por mais de uma vez. A atividade literária se inicia com a publicação de
primeiros versos, crônicas e ensaios em jornais e revistas, inclusive em Samba - Mensário Moderno de Letras, Artes e
Pensamento, em 1928, revista editada pelo grupo chamado Poetas da Baixinha,
primeiro registro impresso do modernismo na Bahia, mas neste mesmo ano adere ao
grupo de jovens da Academia dos Rebeldes, onde por seu ativismo se torna um dos
nomes mais destacados, ao ponto de Jorge Amado, em artigo de 1976 no jornal A Tarde,
referindo-se ao primeiro e único número da revista Meridiano, revelar ser de exclusiva autoria de Alves Ribeiro,
embora não assinado, o editorial que “traçou os rumos de uma literatura de
sentido universal porque plantada na realidade da vida brasileira”, no qual,
enfatizava, “o ensaísta adolescente opunha aos modismos europeus que dirigiam
os movimentos ditos modernistas (...) uma literatura de problemas, temas, forma
e segmento brasileiro”, de onde resultava “sua expressão universal”.
Não obstante, aconteceria com Alves Ribeiro um fenômeno presente em
muitas literaturas, a do artista literário (poeta, ficcionista ou ensaísta)
que, atuante em tempos de juventude, de repente silencia, passando à condição
de escritor secreto. Após os fecundos anos da Academia dos Rebeldes, só se
disporia a publicar livros quase cinquenta anos depois, assim mesmo dois
pequeníssimos volumes, Sonetos de
Bendizer (Salvador: Gráfica da UFBA, 1975) e Sonetos de Maldizer (Salvador, idem, 1976), restando um inédito, A Cinza do Tédio, jamais publicado.
Alves Ribeiro morreu em 27 de janeiro de 1978, mas não teve a sorte apregoada
pelo inglês John Milton de não deixarem as gerações humanas que o sucederam que
esses mínimos livros (com 20 sonetos, o primeiro, e apenas dez, o segundo)
caíssem no esquecimento.
TORTURAS DO CÉREBRO
Alves Ribeiro
Vai alta a noite. Velo. Erra o silêncio em torno.
Encerrado em meu quarto, à luz trêmula e baça
Da lâmpada, medito. Em derredor esvoaça
Feio inseto. Asfixia o ar à feição de um forno.
Tenho a cabeça zonza. E por mais tente e faça
Não consigo dormir. Paira em tudo um transtorno...
Vejo paredes, no chão, no teto sem adorno
Vejo, como a acenar-me, o espectro da desgraça.
Pego e abro um livro, em vão. Não posso ler. É o tédio.
E debalde procuro encontrar um remédio
À dor atroz... O meu anseio não se acalma.
E continuo assim (pena que não se exprime)
A desejar a luz que o cérebro me anime
E sentindo pesar-me a noite dentro d'alma.
DA COSTA ANDRADE
(1906-1974)
Um dos nomes que tiveram o privilégio de figurar no primeiro e único
número da revista Meridiano (setembro
de 1929), José Severiano da Costa Andrade foi um piauiense que viera para a
Bahia no intuito de estudar e se formar. Foi mais político que homem de Letras,
tanto assim que, logo se diplomou em Direito, regressa a Simplício Mendes, no
Piauí, sua terra natal, para ser promotor público em Floriano (PI); ocupa
cargos na administração pública, ingressa na política, elegendo-se
consecutivamente por três legislaturas deputado estadual e, logo, para prefeito
da mesma Simplício Mendes, em 1936, quando se casa, para ser pai de dez filhos.
O pesquisador Gil Francisco Santos completa o perfil de Da Costa
Andrade.
“O político: deputado estadual (1955-1959), foi
líder da bancada da União Democrática Nacional (UDN), e, atuante deputado que
era, apresentou vários projetos nas áreas sociais, sempre beneficiando o
trabalhador rural e em especial os "palheiros". Na área educacional,
criou novas escolas, além da criação de vários municípios. Fundou, em 1958, o
Partido Republicano – Seção do Piauí. Com a fundação de Brasília, foi nomeado
chefe do escritório da Novacap (designação da nova capital do Brasil quando da
sua inauguração, em 1960), em Recife, transferindo-se posteriormente com a
família para a capital federal, para chefiar o gabinete do ministro da Educação
e Cultura, Clóvis Salgado. Da Costa Andrade foi um dos principais líderes da
sua geração, considerado intelectual de alto nível e poeta de elevada estatura,
ao ponto de impressionar desde os primeiros contatos o amigo Jorge Amado, que
nele se inspirou, para talhar personagens de seus romances. Da Costa Andrade é
o Ricardo Braz, de O País do Carnaval,
editado em 1931, que marcaria a estreia literária de Jorge Amado.”
Destaca-se na área sociocultural como fundador de duas entidades no
Piauí: o Cenáculo de Letras, que publicava o periódico A Revista, e a Associação Piauiense de Imprensa.
Como poeta, embora tenha vencido concurso promovido pela revista O Século, em 1927, com um soneto,
publicou apenas um livro, Rosal da Vida
(Salvador, 1929), posteriormente inserido em publicação organizada e prefaciada
por Jorge Amado, Rosal da Vida e Outros
Poemas (Teresina: coedição de órgãos públicos, 1996, vinte dois anos após
sua morte em Brasília.
OSWALDO DIAS DA
COSTA (1907-1979)
As dificuldades com que no curso de Humanidades do Colégio da Bahia se
defrontava, no estudo da Matemática e cálculos de álgebra, podem ter sido o
motivo do ingresso de Dias da Costa na Academia dos Rebeldes, em 1929, mas
jamais com propósitos essencialmente literários; tinha outros interesses. Ao
referir-se a ele, muitos anos depois, chamando-o de “o meu compadre Oswaldo, em
tantas circunstâncias meu irmão”, Jorge Amado conta que começou a frequentar o
Bar Brunswick, ponto de encontro dos Rebeldes, oferecendo-se como coletor de
anúncios em cidades do Recôncavo, onde alardeava ter influências, para o
primeiro e único número da revista Meridiano.
Jovem e desempregado, baixo, mas elegante e simpático, confiava na boa
acolhida de seus préstimos. Lembra Jorge Amado que, em um fim de tarde,
tendo-se sentado à mesa do bar, “entrou direto na conversa maligna”, cheio de
sotaques. Ao final, logo que ele se foi, ameaçando voltar no dia seguinte,
perguntaram a Pinheiro Viegas, que já o conhecia de outras peripécias, qual a
sua opinião sobre Dias da Costa, após o que ele expusera, ao que responde o
ácido epigramista: “Para literato, ótimo; para agenciador de anúncios, nulo”.
Embora sem os prometidos anúncios, a revista circulou com virulento
artigo de Dias da Costa contra o parnasianismo que fazia a festa dos poetas de
então, tornando-se ele um dos mais destacados, ativos e eficientes membros da
confraria, até depois nas atividades de pregação de ideias e combate ao
ambiente conservador, ao ponto de Jorge Amado, já de muito vivendo no Rio de
Janeiro, em 1936, convidá-lo para o substituir no posto que ocupava na Livraria
José Olympio, editora. Daí em diante, morando no Rio, passa a exercer
atividades de jornalismo, como redator de agências telegráficas, jornais e
revistas.
Como literato, escreveu dois romances , Canção do Beco (São
Paulo: Rumo, 1939) e Mirante dos Aflitos (São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1960, com apresentação de Jorge Amado) e Estórias do
Mirante dos Aflitos, uma publicação post-mortem (São Paulo: GRD/Instituto
Nacional do Livro, 1980), ao que se supõe no tempo em que Herberto Salles
esteve à frente do INL.
Fora disso, escreveu em colaboração com Jorge Amado e Edison Carneiro o
romance intitulado Lenita, que, lançado em 1931 por um editor
do Rio, resultaria em completo fiasco e logo renegado pelos três autores.
Peripécia adolescente que Jorge assim recorda jocosamente em Navegação
de Cabotagem (1992): “Livrinho com todos os cacoetes da época,
Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura abominação. Um único
subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi necessário que se juntassem
três”. Lembra também o “tempo antigo boêmio debochado” de Academia dos
Rebeldes, em que ambos, ele e Dias da Costa, costumavam passar uma semana
inteira hospedados em bordéis com prostitutas, que consideravam suas
“namoradas, xodós, como se dizia”.
Ilhéus (BA): a Avenida Soares Lopes, nos anos 1930, à beira-mar, quando já se iniciara o "boom" da economia do cacau |
OCTÁVIO MOURA (1909-1978)
Um dos redatores do
único número da revista O Meridiano,
mas também com relações de amizade firmes com alguns dos mais destacados
membros da Academia dos Rebeldes, como Jorge Amado, Sosígenes Costa, José
Bastos e o mentor de todos, Pinheiro Viegas, Octávio Moura Dias de Almeida
deixaria Salvador, na mesma ocasião, para se instalar em Ilhéus, onde assumirá
o cargo de redator-chefe do recém-fundado Diário
da Tarde, no qual, graças à sua visão aberta para a modernidade,
revolucionará o estilo de jornalismo então praticado na efervescente região
sul, de caráter agressivo fomentado por acirradas disputas políticas e
patrimoniais entre coronéis do cacau.
Tinha 18 anos,
quando assumiu o cargo, acompanhado de quatro gráficos que, com ele vieram de
Salvador em um navio da “Bahiana”, três deles compositores e um impressor. E
lá, em acanhado prédio da Rua Marquês de Paranaguá, curvado sobre a
escrivaninha, redigindo, lendo e apurando textos, ou indo e vindo no contato
com as oficinas, para levar textos que ele próprio redigia, fossem notícias,
sueltos ou editoriais, e oferecer orientações aos gráficos, Octávio Moura
exerceu suas funções por 45 anos ininterruptos, só se afastando das
responsabilidades do cargo e do jornal quando a saúde não mais o permitiu.
Reconhecido como
jornalista nato, no tempo em que esteve à frente do Diário da Tarde, procurou imprimir à atividade do jornalismo um
caráter de serviço pelo aperfeiçoamento da sociedade, mesmo ante as limitações
que costumavam injuriar a vida dos habitantes de cidades do interior, embora o
comércio exportador do cacau incutisse nos ilheenses aspirações e tinturas
cosmopolitas, e de incremento à cultura, apoiando as criações de prosa e poesia
e, assim, contribuindo para tornar Ilhéus o mais expressivo polo cultural da
Bahia depois de Salvador.
Muito disso se
deveu à mente arejada e ao dinamismo de Octávio Moura, conforme atesta em
depoimento ao Jornal da Manhã (1978)
Rubens Esteves Silva, que o viu chegar a Ilhéus numa manhã de janeiro de 1928 e
seria testemunha de como “o novo diretor comandou a folha com brilho invulgar
por muitos anos, até quando surgiram indícios da doença e com ela começou a
desaparecer aquela vivacidade e ânimo, tão apreciados pelos ilheenses”.
Além de jornalista,
foi membro da Academia de Letras de Ilhéus, juntamente com outros dois de seus
amigos Rebeldes, Jorge Amado e Sosígenes Costa; ministrou aulas na Escola
Técnica de Comércio de Ilhéus e prestigia com seu nome o troféu que o Clube de
Diretores Lojistas (CDL) confere anualmente à Imprensa ilheense.
GUILHERME DIAS GOMES
(1912-1943)
Este é outro dos Rebeldes não nascidos na Bahia, desde que veio à luz em
Natal, no Rio Grande do Norte, de pai baiano, engenheiro construtor de
estradas, que chegou a trabalhar na tristemente famosa ferrovia Madeira-Mamoré,
morto em 1925 em Salvador, onde Guilherme completou seus estudos em Salvador e
viria a se formar em Medicina em 1935, tornando-se em seguida médico do
Exército, pelo que teve de fixar residência no Rio de Janeiro, onde viria a
falecer ainda jovem, em 8 de outubro de 1943, de impaludismo, no Hospital
Central do Exército.
Surpreendentemente, para a época, era um poliglota. Rebelde como ele,
amigo e companheiro de tertúlias, segundo o pesquisador Gil Francisco Santos,
em depoimento, Édison Carneiro, garante ter sido “um dos poucos brasileiros
que, na época, sabiam alemão na Bahia” e que, além disso, “sabia francês,
inglês, espanhol, italiano e até se aventurou a estudar japonês e árabe”,
acrescentando terem ambos até iniciado “um curso de nagô com Martiniano do
Bonfim”.
Literariamente, dele pouco se sabe, além de colaborador da revista O Momento, entre 1931 e 1932. Após
intenso trabalho de pesquisa, Gil Francisco Santos revelou faceta praticamente
desconhecida de Guilherme Dias Gomes, a de ter publicado poemas de sua autoria,
entre 1931 e 1933, nas revistas O Momento
e Etc,, e no jornal O Estado da Bahia. Não obstante, seu
nome ficou como autor de um romance, até hoje misteriosamente inédito,
intitulado Mercado Modelo, para cuja
publicação não foram bastante, ao que se supõe, o enorme prestígio, a fama e o
possível empenho do teatrólogo Dias Gomes (1922-1999), seu irmão mais moço.
Em 1935, o amigo de confraria Edison Carneiro assim exprime o realismo
da obra: “O romance de Guilherme Dias Gomes, Mercado Modelo, fica limitado pelos muros da cidade. Explora a vida
dos humildes, dos desprotegidos da sorte, tanto dos proletários, como a negra
Brasilina, neta de escravos, quanto também do pequeno burguês que, em virtude
das altas e baixas do capitalismo, como Belizário Portela se proletarizou. E se
sucedem, através do romance, as cenas de ternuras e de revolta, e a multidão
dos tipos criados pelos antagonismos das classes sociais, - a cafetina, o
coronel, a prostituta, o traidor do socialismo, o ladrão, o propagandista, o
rebelde. São cenas pegadas ao vivo, com a marca registrada dos fatos diários.
E, dominando tudo, está o Mercado Modelo, casarão infecto onde a gente mais
heteróclita do mundo se acotovela na luta pela vida, vendendo, xingando, suando
e alimentando o mesmo ódio sagrado pela classe exploradora”.
Em 1991, o suplemento A Tarde
Cultural, do jornal A Tarde, de
Salvador, publicou trechos desse inédito romance, por iniciativa do historiador
Waldir Freitas de Oliveira, que obtivera uma cópia da obra fornecida pelo irmão
do autor, Dias Gomes, de que abaixo se oferece uma mostra, juntamente com um
poema.
AVIÃO
Guilherme Dias Gomes
Guilherme Dias Gomes
O avião parece
Uma abelha rútila de aço
Aflita por pegar o sol,
Que é uma rosa de fogo
Transplantada no espaço.
Zumbe, trepida, na ânsia de alcançar
A corola de luz para sugar.
Avião!
Pareces bem o coração da gente
Lutando para beijar o sol
eternamente!
Inutilmente.
(Salvador. O Momento. Ano I, nº 5, 15. nov. 1931).
Uma abelha rútila de aço
Aflita por pegar o sol,
Que é uma rosa de fogo
Transplantada no espaço.
Zumbe, trepida, na ânsia de alcançar
A corola de luz para sugar.
Avião!
Pareces bem o coração da gente
Lutando para beijar o sol
eternamente!
Inutilmente.
(Salvador. O Momento. Ano I, nº 5, 15. nov. 1931).
Trechos do romance
inédito de Guilherme Dias Gomes, Mercado
Modelo
“Mercado. Rampa do
peixe. Gente que se abalroa, grita, ajusta preços. Cheiro de maresia, suor,
frutos sazonados, estrume, catinga e camarão fresco. O bojo dos saveiros
carregados de melancias. Grandes chatas carregadas de moringues, uma lancha
repleta de abacaxis. Uma floresta de mastros e de cordas, com bandeirolas
alegres tremulando ao vento. A pequena distância, um “yacht”, todo branco e
azul, imóvel sobre o espelho líquido da enseada. Junto ao cais o sargaço e a
salsugem de sempre, de mistura com cascas de laranja, tamancos velhos, peixes
mortos, rebotalho das redes lançado ao mar pelos pescadores. E na rampa o limo
verde e escorregadio tornando o acesso difícil. Os peixeiros, junto ao cais,
repartem o pescado, cortando-o com o machado em grandes cepos de madeira, num
espadanar de espinhas e escamas prateadas. Ulm grupo de marinheiros alemães
procura em vão compreender o preço de umas laranjas. Na beira do cais, um
caminhão carregando. Os tijolos vinham no bojo de um dos saveiros, jogados um
por um.”
§§§
“A vida no mercado
nascia com a alvorada. Já antemanhã, antes do lusco-fusco, padeiros passavam,
tiritando de frio, na faina da entrega. Guardas-noturnos se recolhiam
cabeceando de sono. Motorneiros da Linha Circular iam para a primeira viagem. E
o homem do pão, com o saco às costas e a toalha à cabeça, o português com o
tabuleiro repleto de hortaliças, o pescador bronzeado com a rede ao ombro, a
negra do mingau que se recolhia da venda noturna, eram vultos imprecisos
mergulhados ainda na treva. Mas, pouco a
pouco, essa se diluía em crepúsculo. O galo amiudava o canto. Um sino batia
soturno, na Cidade Alta. Outro, cristalino, respondia ao longe. E as igrejas
despertavam, numa orgia espantosa de sonos. Guizalhantes, uns, outros
tristonhos. Uns gostosos, repicados, cantantes, como vindos de grandes cigarras
aboletadas nas torres. Outros cavos, como um ressoar de passos de catacumbas
antigas.”
Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, de onde Clóvis Lima trazia a mesada para os bródios dos "rebeldes" |
CLÓVIS AMORIM (1912-1970)
Oriundo do Recôncavo baiano, de onde trazia as marcas dos canaviais, a
inclinação para a boa convivência e o gosto pela boemia, poeta satírico e
pincipalmente romancista, Clóvis Gonçalves Amorim foi um dos companheiros mais
animados e queridos da Academia dos Rebeldes. Espírito brincalhão e cultor da
boa conversa, era sempre aguardado com alegria e festa, quando de seus
regressos da cidade de Santo Amaro da Purificação, onde nasceu, por um detalhe
mais que hilário, tanto que veio a merecer registro satírico em versos de Jorge
Amado: era quando trazia a mesada de 90 mil réis, fornecida pelo pai alambiqueiro,
com os quais custeava os acepipes e as rodadas de bebida no Bar Brunswick,
obrigatório ponto de encontro do grupo.
O pesquisador Gil Francisco Santos assim descreve o personagem: “Com
quase dois metros de altura, Clóvis Amorim chegou à Salvador para cursar o
ginásio, mas não conseguiu viver na capital baiana, pois a única coisa que o
interessava era o jogo do bicho. Vivia das lembranças dos vícios do Recôncavo
baiano: apreciador e apostador nas brigas de galo, se desmanchando nos sambas,
cocos e chulas da Bahia”. Clóvis Amorim foi um ativo colaborador da revista O Momento e publicou dois
romances, Alambique e Chão de Massapê, sendo que o
primeiro em 1934 (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio), acolhido pela
crítica, seria definido como obra enquadrada na estética do novo romance
nordestino.
Em artigo no jornal A Bahia,
no mesmo ano, o etnólogo Edison Carneiro,
rebelde como ele, comentando o romance, dizia tratar-se de um
“acontecimento estranho, surpreendente, na literatura nacional” e explicitava o
porquê: “Não há nele, a luta do homem por modelar a natureza à sua vontade.
Pelo contrário, há uma verdadeira apatia nos personagens desse drama – o da
cachaça, - até hoje desconhecido do Brasil. O verde dos canaviais, as máquinas
de fabricação da boa-pra-tudo, a moleza da vida humana nessas regiões que o
Progresso esqueceu, formam como que a única realidade viva que se agita no
livro”.
O segundo romance só sairia, muitos anos depois, em conjunto com a
reedição do primeiro por iniciativa do editor Gumercindo da Rocha Dórea, em
convênio de sua editora com o Ministério da Educação e Cultura (São Paulo:
GRD/MEC, 1980).
Quando faleceu em Salvador, em 18 de agosto de 1970, coube ao poeta e
seu amigo Godofredo Filho pronunciar a oração fúnebre, perante, os que
compareceram ao velório de seu corpo na câmara ardente da capela do cemitério
do Campo Santo, na qual afirmava: “Estou certo de que, quando se escrever,
amanhã, a verdadeira história literária da Bahia, a figura de Clóvis Amorim
como poeta satírico avultará, tal seu físico se agigantava em vida, sobre a
planície cinzenta em que pululam tantos pigmeus de nossas letras”.
Abaixo, o poemeto de recorte burlesco com que Jorge
Amado celebra em edição de O Momento a
presença de Clóvis Amorim entre os companheiros Rebeldes:
Mingau à meia-noite,
quando Clóvis Amorim
chegava, alto e destruidor,
de Santo Amaro,
com 90$000 no bolso
e a sua alegria boa.
Foram Clóvis Amorim
e Souza Aguiar
os grandes corações
que trouxeram um pouco de ternura,
de lirismo,
à aridez de nossas vidas literárias
horrivelmente literárias.
ÉDISON CARNEIRO (1912-1972)
Depois de
Jorge Amado, dentre todos que constituíam a grei da Academia dos Rebeldes,
Édison de Sousa Carneiro foi o nome seguramente a alcançar maior amplitude de
reconhecimento nacional, talvez por ser quem melhor traduziu a resposta do
substrato negro-mestiço identificado com formas de representação cultural
popular, que se amoldavam ao pensamento estético propagado já como
desdobramento da Semana de Arte Moderna, a partir de São Paulo.
Ainda aos
dezesseis anos de idade, cedo começou a atuar em jornais e revistas locais,
assinando artigos e crônicas, até chegar ao posto de redator-chefe de O Estado da Bahia. De origem modesta,
pertencia a uma família que não podia lhe oferecer qualquer regalia. Com toques
chistosos, Jorge Amado descreve esta condição do amigo Rebelde (1992): “O mais
pobre de todos nós seria Édison Carneiro, membro de família numerosa. O pai,
professor Souza Carneiro, catedrático da Escola Politécnica, mal ganhava para
as despesas inadiáveis da prole, consta que jamais pagou o aluguel da casa dos
Barris – nós a intitulamos de Brasil, por imensa e suja – com sótão e jardim
onde vivia com a mulher e os filhos: todos vestidos com as batas de professores
da Politécnica, arrebanhadas pelo catedrático”. Entre os irmãos, estava Nelson
Carneiro, futuro advogado e grande tribuno, deputado estadual e federal e
senador, autor da Lei do Divórcio, que chegaria a presidente do Senado.
Édison Carneiro, "rebelde" e um dos maiores nomes da etnologia no Brasil |
Por efeito da descendência, cedo também Édison Carneiro não só se identificou, como se empolgou com os múltiplos aspectos sociais e místicos dos cultos populares de origem africana, tornando-se um de seus maiores estudiosos e talvez o seu maior e mais dedicado defensor. Diplomado em Direito, em 1935, mudou-se em 1939 para o Rio de Janeiro, onde já chegou com a fama de competente etnólogo. Em Salvador, ainda como Rebelde, com Jorge Amado e Dias da Costa, lançou e liderou campanha em defesa da liberdade de culto do candomblé, alvo de perseguição policial, com prisões, torturas e espancamentos.
“A polícia
invadia os terreiros, quebrava, prendia, espancava. Era terrível. Os
pais-de-santo não podiam fazer nada. Alguns políticos influentes tinham uma
certa ligação com o candomblé, mas escondiam essa ligação. (...) O apoio dos
políticos não era efetivo – davam dinheiro, ajudavam, mas na hora do pau comer,
eles tiravam o corpo fora”, relata Amado, que creditava ao amigo a sua
aproximação, interesse e respeito pelo culto do candomblé. Assegura que, ao
aderir à luta nesses tempos amargos para os seguidores desses rituais
assentados em sentimentos de humanismo plural, não iam aos terreiros “para
arrancar informações e, sim, no sentido fraternal de conhecer, de participar, e
sempre respeitando muito o lado sigiloso, secreto”.
Nessa linha
participativa, Édison Carneiro funda em 1937 a União das Seitas
Afro-Brasileiras, no fundo uma federação das casas de candomblé, fruto de seu
trabalho como estudioso da cultura negra. Além de atuar em jornais e revistas
da Bahia e do Rio de Janeiro, exerceu funções de redator de publicações do MEC
(Ministério da Educação e Cultura) e de diretor da Campanha de Defesa do
Folclore. Morreu em 3 de dezembro de 1972, como funcionário da Confederação
Nacional da Indústria.
Literariamente,
além de sua participação no fiasco editorial do romance juvenil Lenita, escrito juntamente com Jorge
Amado e Dias da Costa e publicado em 1929, dele se conhece, assim mesmo por
descoberta que se deve ao esforço do pesquisador baiano Gilfrancisco Santos, um
conjunto de trinta poemas de construção irreverente próxima da primeira fornada
modernista, publicados sob a forma de folhetim em jornais, em 1928, sob o
título de Musa Capenga. No restante,
é autor de vasta e consagrada obra etnográfica e folclórica, cuja publicação se
inicia com Religiões Negras. Notas de
Etnografia (Rio: Civilização Brasileira, 1936), seguindo-se outras 19,
entre as quais: Negros Bantus (Rio:
Civilização Brasileira, 1937); Castro
Alves – Ensaio e Compreensão (Rio: Livraria José Olympio, 1937); O Negro no Brasil (Rio: Civilização
Brasileira, 1940); Quilombo de Palmares
(São Paulo: Brasiliense, 1947); Candomblés
da Bahia (Salvador: Museu do Estado, 1948); Antologia do Negro Brasileiro, 1950; A Insurreição Praieira (Rio: Conquista, 1961); Ladinos e Crioulos (Estudo sobre o Negro no Brasil) – Rio:
Civilização Brasileira, 1964 (Apresentação de Manuel Diégues Júnior).
§§§
Foi assim que a cidade da Bahia de Todos os Santos encontrou o seu
grande poeta e o seu grande sociólogo. A imaginação o levou aos meios
africanos, ao mistério das macumbas, à beleza dos candomblés. O desespero da
época fez com que ele produzisse ensaios em vez de poemas. Agora sai seu
primeiro livro: Religiões Negras. Apesar
de primeiro livro, não é livro de estreante. Aos 24 anos, Édison Carneiro,
mesmo sem livro, já era um grande nome.
(Jorge Amado)
§§§
EXTRATO DE POEMA DE ÉDISON CARNEIRO
Ah, negra faceira!
Que tolice, minha negra,
[...]
que você tenha
espichado
seu cabelo.
Para que
essa beleza
artificial [?].
Que tolice, minha negra,
[...]
que você tenha
espichado
seu cabelo.
Para que
essa beleza
artificial [?].
Vou ao Pau Miúdo
e trago,
para botar na sua porta
uma coisa feita,
dessas que fazem
morrer de amor,
preparada,
minha beleza,
pelas mãos
do grande mago
Jubiabá.
e trago,
para botar na sua porta
uma coisa feita,
dessas que fazem
morrer de amor,
preparada,
minha beleza,
pelas mãos
do grande mago
Jubiabá.
JORGE
AMADO (1912-2001)
Escritor brasileiro mais conhecido no exterior,
traduzido em dezenas de idiomas, e um dos mais lidos do País, com mais de duas
dezenas de livros publicados, Jorge Amado de Faria nasceu na Fazenda Auricidia,
em Ferradas, então distrito de Itabuna, que dois anos antes se emancipara de
Ilhéus, cidade onde por cerca de dois anos residiria, em solar construído pelo
pai, João Amado de Faria, hoje sede da fundação cultural do município. Aos dez
anos vai para Salvador estudar no Colégio Antônio Vieira, onde completa o curso
secundário. Inaugura sua vocação literária, publicando três poemas na revista A Luva.
Em 1928, aos 16 anos, funda com outros de quase
mesma idade a Academia dos Rebeldes, misto de exercício de boemia e aspirações
literárias sob influência da onda modernista, que poucos anos antes eclodira em
São Paulo, tendo como mentor o jornalista panfletário Pinheiro Viegas. Escreve
para a revista de único número Meridiano,
órgão de propagação das ideias do movimento; em 1931, muda-se para o Rio de
Janeiro, levando debaixo do braço os originais do seu primeiro romance, O País do Carnaval, com uma carta de
Pinheiro Viegas recomendando-o ao já então influente crítico literário Agripino
Grieco, e ingressa na Faculdade Nacional de Direito. Mas antes, ainda em
Salvador, praticara estripulia literária, de que depois se arrependeria: o
romance Lenita, escrito a seis mãos,
juntamente com dois de seus amigos rebeldes, cujo fiasco editorial ele próprio
narraria, em tom de pilhéria.
“Dias da Costa, Édison Carneiro e eu, em 1929,
escrevemos em colaboração um romance sob o título de El-Rey, publicado em folhetim em O Jornal, órgão da Aliança Liberal
na Bahia. Um editor do Rio, A. Coelho Branco Filho – jamais esquecerei, pois
foi o primeiro a colocar meu nome na capa de um livro, o primeiro a me ficar
devendo direitos autorais -, lançou-o em volume em 1930, capa medonhosa, com o
título de Lenita. Livrinho com todos
os cacoetes da época, Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura abominação. Um único subliterato não poderia tê-lo feito
tão ruim, foi necessário que se juntassem três”. (1992)
Por essa época, além de publicar o primeiro romance,
aos dezenove anos, ingressa no Partido Comunista Brasileiro e mete-se com
Édison Carneiro e outros em campanha pela defesa da liberdade religiosa,
visando livrar de proibições e perseguições os cultos de origem africana, como
o candomblé, postura que lhe consome anos de dedicação e luta. O segundo
romance, bibliograficamente reconhecido,
Cacau, sairia em 1933, ano em que se casa com a poeta Matilde Garcia Rosa.
Segundo a crônica, o envolvimento político leva-o à prisão e ao exílio, tendo
inclusive exemplares de sua obra, como o romance Capitães da Areia, queimados em praça pública pela ditadura Vargas.
Preso várias vezes, a terceira ocorrida em 1942,
recebeu beneplácito discricionário de cumprir a pena confinado em Salvador,
onde trabalha no jornal O Imparcial,
então propriedade do coronel Franklin Lins de Albuquerque, senhor do Vale do
São Francisco e pai de seu amigo e futuro escritor Wilson Lins. Em 1945,
casa-se com Zélia Gattai e é eleito deputado federal por São Paulo, para compor
uma histórica Assembleia Constituinte, em que figuravam altos representantes da
inteligência e da cultura brasileira (entre outros, Afonso Arinos, Armando
Fontes, Gilberto Freyre, Gustavo Capanema, João e Otávio Mangabeira, Luiz
Carlos Prestes, Luiz Viana Filho, Nestor Duarte, Plínio Salgado, Prado Kelly,
Tarsilo Vieira de Melo), responsável
pela alta configuração democrática da Constituição federal de 1946, ao amparo
da qual apresenta projeto de lei em favor da liberdade de culto religioso no
país, mas logo depois tem o seu mandato cassado (1947), após ser o PCB lançado
na ilegalidade. Segue então para a Europa, passando a residir em Paris e Praga,
onde escreve O Mundo da Paz. Pelo
conjunto da obra, em 1951, recebe o Prêmio Internacional Stálin, regressando ao
Brasil em 1956. Elege-se, em 1961, para a Academia Brasileira de Letras e, dois
anos depois, muda-se para Salvador, residindo em bucólica mansão construída nos
Altos do Rio Vermelho.
Escreveu para diversos jornais e periódicos do
Brasil, entre os quais O Jornal, O Estado
da Bahia, O Imparcial, Boletim de Ariel, Dom Casmurro, Diretrizes, A Tarde,
Última Hora, Para Todos, Última Hora, Folha da Manhã. A vasta e prolífera
escritura de Jorge Amado, quase toda marcada pela crítica social e pelas
mazelas e injustiças que oprimem o ser humano mundo afora, pode ser,
aleatoriamente, distribuída por três vertentes: a telúrica, cujo cenário são a
região do cacau, o Recôncavo e o sertão; a urbana, que tem como referência
principal a cidade do Salvador, e a de conteúdo estritamente político.
Jorge Amado, no Largo do Pelourinho, em Salvador |
No primeiro bloco, podem-se alinhar O País do Carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Terras do Sem-Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1945), Seara Vermelha (1946), Gabriela, cravo e canela (1958), Tieta do Agreste (1977), Tocaia Grande (1984). Do segundo, seriam: Jubiabá (1935), Mar Morto (1935), Capitães da Areia (1937), Bahia de Todos os Santos (1945), Os velhos marinheiros, que inclui a novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1961), Os pastores da noite (1964), Dona Flor e seus dois maridos (1966), Tenda dos Milagres, (1969), O sumiço da santa (1988), Tereza Batista cansada de guerra (1972), Farda, fardão, camisola de dormir (1979), A descoberta da América pelos turcos (1992). Enfim, integrariam o último grupo: ABC de Castro Alves (1941), O cavaleiro da esperança (1942), Amor de Castro Alves (1947), O Mundo da Paz (1951, Subterrâneos da Liberdade (I. Os Ásperos Tempos; II. Agonia da Noite; III. A Luz do Túnel, 1954); Navegação de Cabotagem (1992). E como curiosidade, um de poesia: A Estrada do Mar, 1938.
Jorge Amado morreu em Salvador, em 6 de agosto de
2001, a quatro dias de completar 89 anos. A ligação ainda juvenil com a
religião dos orixás, fê-lo obá do candomblé Axé Opô Afonjá e, talvez por isso,
como anota Alberto da Costa e Silva, “uma das últimas homenagens no seu velório
tenha sido prestada por um grupo de mães de santo, que, vestidas inteiramente
de branco, lhe encomendaram o corpo”.
Além de ser um autor de imensa popularidade, com uma
obra fiel aos princípios do humanismo e quase toda associada à crítica social e
à denúncia das injustiças, Jorge Amado foi também um extraordinário criador de
figuras femininas em seus romances, mas, só em 2013, surge o alvissareiro
anúncio de que lhe seriam abertas as portas dos estudos universitários, antes
sempre a ele misteriosamente fechadas, a começar por São Paulo.
CANTAR DE AMIGO DE GABRIELA
Jorge Amado
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
Palácio real lhe dei
um trono de pedrarias
sapato bordado a ouro
esmeraldas e rubis
ametistas para os dedos
vestidos de diamantes
escravas para servi-la
um lugar no meu dossel
e a chamarei de Rainha.
um trono de pedrarias
sapato bordado a ouro
esmeraldas e rubis
ametistas para os dedos
vestidos de diamantes
escravas para servi-la
um lugar no meu dossel
e a chamarei de Rainha.
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
de minha alegre menina?
Só desejava uma campina
colher as flores do mato.
Só desejava um espelho
de vidro, pra se mirar.
Só desejava do sol
calor, para bem viver.
Só desejava o luar
de prata, pra repousar.
Só desejava o amor
dos homens, pra bem amar.
colher as flores do mato.
Só desejava um espelho
de vidro, pra se mirar.
Só desejava do sol
calor, para bem viver.
Só desejava o luar
de prata, pra repousar.
Só desejava o amor
dos homens, pra bem amar.
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
de minha alegre menina?
No baile real levei
A tua alegre menina
vestida de realeza
com princesas conversou
com doutores praticou
dançou a dança estrangeira
bebeu o vinho mais caro
mordeu uma fruta da Europa
entrou nos braços do Rei
Rainha mais verdadeira.
A tua alegre menina
vestida de realeza
com princesas conversou
com doutores praticou
dançou a dança estrangeira
bebeu o vinho mais caro
mordeu uma fruta da Europa
entrou nos braços do Rei
Rainha mais verdadeira.
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
de minha alegre menina?
Manda-a de volta ao fogão
a seu quintal de goiabas
a seu dançar marinheiro
a seu vestido de chita
a suas verdes chinelas
a seu inocente pensar
a seu riso verdadeiro
a sua infância perdida
a seus suspiros no leito
a sua ânsia de amar.
Por que a queres mudar?
a seu quintal de goiabas
a seu dançar marinheiro
a seu vestido de chita
a suas verdes chinelas
a seu inocente pensar
a seu riso verdadeiro
a sua infância perdida
a seus suspiros no leito
a sua ânsia de amar.
Por que a queres mudar?
AYDANO DO COUTO
FERRAZ (1914-1985)
Graças à sua vocação para o jornalismo, que exerceu por toda a vida,
Aydano Pereira do Couto Ferraz foi um dos mais ativos membros da Academia dos
Rebeldes, deixando como marcas de sua presença no modernismo do movimento
coletâneas de ficção e poesia sobre o mar. Diplomado em Direito (1937),
permaneceu em Salvador até 1939, quando se transferiu para o Rio de Janeiro e
lá fixou residência. Exerceu funções de editor em O Jornal e de coordenador de Redação no Correio da Manhã.
Tanto na Bahia como no Rio, com Jorge Amado e Edison Carneiro
empenhou-se na luta em defesa da liberdade religiosa, atuando firmemente contra
perseguições às práticas do candomblé. Na esfera pública, ocupou cargos de
técnico em educação e de comunicação social, editando revistas do Ministério da
Educação e Cultura. Como político, foi por muitos anos ativo dirigente do
Partido Comunista Brasileiro.
Escritor e poeta, ainda em Salvador, publicou Apicuns (Novelas Praieiras), em 1932, e Cânticos do Mar, em 1935, que receberam boa acolhida por parte da
crítica. Como nutria visão utópica e humanista da vida e da sociedade, o mar, o
amor, a esperança e a liberdade foram os temas prediletos de sua literatura.
Comentando o primeiro livro, o crítico Carlos Chiacchio reconheceu nele “um
pintor de marinhas”, e ainda mais se revela um apaixonado pelo mar no segundo,
ao ponto de com os seus versos desejá-lo “serenamente
enquadrado no horizonte, / limpo de velas, de mastros e de ruídos das dragas do
porto./ - Um mar soberano, sem a vassalagem das ondas”.
Publicou mais três livros: Pequena
História da Caricatura no Brasil, 1942; Os
Poemas Perdidos e seu Reencontro (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira/INL, 1984); A Luta do Símbolo (Belo
Horizonte, 1985.
“Aydano Pereira do Couto Ferraz
se realizou amplamente como jornalista, foi diretor de jornal e revistas, mas
sobretudo poeta. Teve em vida duas grandes vocações: a poesia e a política. E
assim ficou a vida inteira fiel à sua vocação inicial, à sua primeira vocação”
(Gilfrancisco Santos, 2010). Isto é, foi sobretudo um poeta, mas um criador
cuja obra não foi capaz de empolgar as gerações humanas que o sucederam.
WALTER RAULINO DA
SILVEIRA (1915-1970)
Último a ingressar nas hostes da Academia dos Rebeldes, mais disposta a
acolher nomes inclinados ao exercício da literatura e do jornalismo, sem
qualquer interesse por outras linguagens, até mesmo as artes plásticas e a
música, o que pode ser debitado à predominância do conservadorismo nesses
campos, baiano de Salvador, Walter Raulino da Silveira viria a projetar-se no
cenário cultural como “homem de cinema”, tal a sua precoce identidade com a
Sétima Arte, em nível até de pioneirismo regional, e advogado, com larga fama
de defensor de operários e favelados, por seu vínculo com o Partido Comunista
Brasileiro, de 1945 a 1957.
Diplomado em 1935, a opção política levou-o a abandonar o cargo de juiz
de Direito para abraçar a carreira de advogado trabalhista, chegando a atuar
como causídico de 26 sindicatos operários. Na esfera política, exerceu mandato
de deputado na Assembleia Legislativa da Bahia de 1955 a 1959.
Grande fomentador cultural, desde a juventude, tornou-se figura
exponencial do desenvolvimento do cinema no estado, a partir da fundação do
Clube de Cinema da Bahia, em 1950, quando também atuou como colaborador de Caderno da Bahia, revista representativa
do movimento artístico e literário que surgira em 1948, revelando nomes como
Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Rubem Valentim, nas artes plásticas,
Vasconcelos Maia, na ficção literária, e Wilson Rocha e Jair Gramacho, na
poesia. Walter da Silveira publicou seu primeiro texto sobre cinema no jornal
da Associação Universitária da Bahia, sob o título de “O Novo Sentido da Arte
de Chaplin”, enfocando o gênio do cinema de cuja obra e imagem pública se
tornaria respeitado estudioso e admirador confesso, ao ponto de, já
desenganado, antes de morrer, fazer de Jorge Amado, seu grande amigo, portador
de uma carta a Charles Chaplin, junto com um exemplar de livro seu sobre o
célebre criador de Carlitos, missão fielmente cumprida.
“Antes de falecer, Walter recebeu duas cartas, remetidas ambas da
residência do mestre maior do humanismo em nosso século: uma do escritório,
despacho formal da secretária, acusa a chegada do volume e agradece. A outra,
carta pessoal de Charles Chaplin: sensibilizado fala do livro, mensagem de
estima e afeto, calorosa”, registra Amado, em seu Navegação de
Cabotagem, 1992.
O estímulo ao debate cultural em torno da Sétima Arte permitiu-lhe
alavancar várias iniciativas, entre as quais a criação de curso de cinema
ministrado no âmbito da Universidade Federal da Bahia e a realização do Ciclo
Baiano de Cinema, referência para tornar Salvador em polo de vanguarda criativa
e matriz de nascimento do Cinema Novo, movimento artístico que irá empolgar o
país. Mentor desse afã cultural, Walter da Silveira contribuiu para a formação
de uma geração de cineastas na Bahia – Glauber Rocha, Roberto Pires, Paulo Gil
Soares, Orlando Senna, Guido Araújo, José Umberto, Olney São Paulo, Luiz
Paulino, Tuna Espinheira, entre outros.
Mestre da crítica cinematográfica, publicou artigos sobre cinema e
estética em jornais e revistas de Salvador e do Sul do país, além de participar
do júri de festivais de cinema, nacionais e internacionais. A sua bibliografia
reúne as seguintes obras: Fronteiras do
Cinema (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966; Imagem e Roteiro de Charles Chaplin (Salvador: Mensageiro da Fé,
1970; História do Cinema Vista da
Província (Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978); O Eterno e o Efêmero (Salvador:
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FONTES
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O AUTOR
Florisvaldo
Mattos é poeta e jornalista; professor aposentado da Universidade Federal da
Bahia. Exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe de A Tarde, chefe de Redação do Diário de Notícias, ambos de Salvador, e de
chefe da Sucursal do Jornal do Brasil, na Bahia.
Editou o suplemento A Tarde Cultural,
premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Membro da
Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a Cadeira nº 31 desde 1995, foi
presidente da Fundação Cultural do Estado (1987-89). Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996;
Mares Anoitecidos, 2000;
Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001;
Poesia Reunida e Inéditos, 2011;
Sonetos elementais – Uma
antologia, 2012 (todos de poesia). De ensaios: Estação de Prosa & Diversos, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 1998
e Travessia de oásis - A
sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, (2004). Participou de
antologias poéticas baianas, nacionais e estrangeiras (Portugal, Espanha,
França e Alemanha).
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