Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), pensador e escritor nascido em Itabuna (BA) |
Florisvaldo Mattos
Solidária e acolhedora, em gesto de humanismo pleno, a Academia de Letras da Bahia presta, em sessão especial, sentida e merecida homenagem ao saudoso escritor, cientista político, professor e pensador baiano Carlos Nelson Coutinho. Por me faltarem fundamentos de teor filosófico e confiáveis habilidades verbais, transfiro a outros mais competentes a felicidade de discorrer sobre alguém unanimemente enaltecido como um brilhante e raro intelectual, reservando-me apenas a uma evocação afetiva, como seu amigo e, por um bom tempo, seu cunhado.
Em verdade, nesses rabiscos, optei por lembrar o jovem de elevada estatura, tez clara, cabelos ruivos encaracolados, olhos castanhos claros, rosto pacato e voz pausada, nos prelúdios de sua caminhada para se tornar um iluminado e fecundo operário das ideias. Embora não confie em datas, creio que o conheci por volta de 1960, ele ainda um estudante que se preparava para o vestibular de Filosofia na então Universidade da Bahia, mas já assumindo posturas de analista crítico-contestador de aspectos da realidade com que seu espírito juvenil perspicaz então se deparava, em nada coincidentes com a quietude civilizada de seu ambiente familiar, um oásis de calma e sensatez governado por dois símbolos: o pai, Nathan Coutinho, homem sereno e reservado, em cuja pacata imagem se mesclava a figura de um político pertencente a um partido de matriz conservadora com a de um poeta forjado na tradição parnasiano-simbolista, elogiado como tradutor primoroso de Baudelaire, e sua diligente mãe, Elza Coutinho, modelo de beleza, elegância e senso prático; enfim, um manso lugar que em nada lhe travava as primeiras elucubrações intelectuais.
Durante certo tempo, formamos um grupo de convivência em ambiente cordial de franca camaradagem, além de mim, composto por Fernando da Rocha Peres, Roberto Gabriel Dias, Urânia, depois Urânia Tourinho Peres, Isnaia, depois Isnaia Santana Dias, Sônia, irmã dele, depois Sônia Coutinho de Mattos, e Amélia, depois Amélia Rosa Maia Coutinho, alvos todos das lufadas gentis de um vento casamenteiro. Os anos se sucediam como um alvorecer, coroando um período para nós promissor de vertiginoso pós-guerra, no bojo da Guerra Fria travada entre as duas principais potências, que por aqui, na Cidade do Salvador de então, se traduzia em arroubos de confiança e crédulo fervor, inebriante atmosfera a que o jovem, que na intimidade do convívio todos carinhosamente chamávamos pelo diminutivo Carlito, alegremente se associava.
Por outro lado, também vivíamos uma quase romântica euforia suscitada pelo que haviam sido os chamados Anos JK, os dinâmicos cinco anos do governo Juscelino Kubitschek, que ele, presidente, prometia convicto valerem 50, operando mudanças sensíveis na ordem econômica e social – e por que não também cultural? –, em todo o país. E desenhava-se um cenário baiano de futuro imediato promissor, se não de epifanias. As razões se deviam a fatores diversos tais como: o impulso advindo da produção e refino de petróleo, exigindo intervenções modernizadoras nas estruturas urbanas, especialmente metropolitanas, que repercutiam no crescimento da população e na demanda de mão de obra ativa; as aspirações que levavam a um emergente processo industrial e à reconfiguração das atividades de comércio; a plena vigência do regime democrático com os eleitos Juracy Magalhães, para governar o estado, e Heitor Dias, prefeito com planos de melhorar a vida dos seus munícipes; as ações da Geração Mapa a pleno vapor com projetos inovadores em literatura, teatro, artes plásticas, cinema e até jornalismo, tanto quanto a presença das novas escolas de arte e institutos da Universidade da Bahia sob o Reitorado de Edgar Santos; até mesmo o surgimento do “Jornal da Bahia”, uma novidade no ainda acanhado estágio da imprensa local.
Nesta esperançosa atmosfera de mudanças, o novo cenário só favorecia as ciências, as artes, o pensamento e a criação. A tal estado de ânimo se ajustariam perfeitamente os versos iniciais de um poema de Yeats (“Velejando para Bizâncio”), “terra aquela que não serve para anciãos/ Os moços a abraçar-se, aves a cantar/ Nas árvores”... É este o panorama com que se defronta o espírito do jovem Carlito, logo ao se diplomar em filosofia, trazendo consigo os fluidos do amadurecimento cultural que a vida universitária costuma agregar, benéfico a um projeto intelectual desde cedo nutrido e destinado a cumprir-se com sucesso mais adiante.
Convivi por alguns anos com este jovem sereno que muito estudava e a muito aspirava, abraçado a ideias e princípios que priorizava, alimentando o desejo de vê-los concretizados. Jornalista de antenas voltadas para a atualidade, acompanhei de perto esse fecundo trajeto, seja como um interlocutor de temas sócio-políticos em debate, seja como poeta, envolvido com literatura e escrita, inclusive como testemunha de seu visível interesse pela obra de grandes romancistas, em que se revelavam conflitos flagrantes em sociedades impulsionadas pela revolução burguesa. Falava de autores, romances, ações e personagens com naturalidade, numa perspectiva de realismo crítico de inspiração marxista, que era o cosmos de idéias por onde navegava o seu gênio.
Se era o século 19, não poderiam faltar nomes e obras de três grandes do romance: de Stendhal, as peripécias e audácias de Julien Sorel, em O vermelho e o negro, ou do Fabrício del Dongo, de A Cartuxa de Parma; de Balzac, as aspirações e artimanhas do Lucien de Rubempré, de Ilusões perdidas, numa Paris que se complicava empurrada pela revolução industrial; em Flaubert, eram os rombos que as angústias e conflitos de Emma Bovary assestavam no muro da moral burguesa. Interesse semelhante se manifestava, quando os romancistas eram Tolstói, com seus Guerra e Paz e Anna Karenina, para logo chegar ao perturbado Raskholnikof no Crime e Castigo, de Dostoiévski, ou ao Nicolai Gogol de O Inspetor Geral e Almas mortas.
No mesmo diapasão, se o foco era o século 20, não podiam faltar o Thomas Mann, de Os Buddenbruks e A Montanha Mágica, como ainda O Leopardo, do italiano Giuseppe de Lampedusa. Em sendo o assunto teatro, fatalmente surgiam peças de Georg Buchner, como A morte de Danton, ou A ópera dos três tostões e Mãe Coragem, de Brecht, nas conversas. Recordo o ar folgazão com que ele, para priorizar a eficácia da narrativa literária, se referia a uma frase de Stendhal, em O vermelho e o negro, ao advertir que “política no romance é como um tiro no meio de um concerto”. Recordo também o tom hilário de suas alusões a uma célebre cena de O Leopardo, quando o Príncipe de Salina aconselha ao filho a se alistar nos exércitos revolucionários, para que as coisas continuassem como estavam.
Nessas tertúlias cordiais, eu, pouco enfronhado com filosofia e outras ciências humanas, conseguia perceber autores e obras cuja leitura varava suas tardes, noites e até madrugadas. Tinham presença obrigatória, além dos gregos Platão Aristóteles e Epicuro, os sofistas e os estoicos, Rousseau e Diderot, mas principalmente Kant, Hegel, Marx e Engels e, por fim, entre muitos outros, o italiano Antonio Gramsci, de cujas teses ele se tornaria o maior conhecedor e propagador na América Latina, sem esquecer os nomes da Escola de Frankfurt, sendo que foi pelas mãos dele e de Amélia, sua mulher, que vim a descobrir e ler o famoso ensaio de Walter Benjamin, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, um ícone da crítica cultural dos anos 1960 e 1970. Neste ponto, por esse rápido e incompleto esboço, me vejo com a comichão de usar um vocábulo, correndo o risco de parecer um juiz apressado, senão trôpego: penso em sabedoria como a palavra que mais define o destino do gênio de Carlos Nelson Coutinho, por sua atividade e pela obra de pensador consciente e lúcido que legou a seus leitores e admiradores. Ele era um sábio.
Cerca de cinqüenta anos depois, quase nada me ficou de suas preferências quanto ao que não se tratasse de filosofia e ficção literária. Lembro apenas que, em relação à poesia, embora não menosprezasse o estro simbolista, costumava recitar com entonação peculiar, às vezes até jocosa, sonetos do pai. Recordo também sua propensão em eleger obras de poetas cuja imaginação criadora mais se inclinasse para as questões sociais, sem que abominasse o lirismo. Talvez por isso, ou por circunstâncias outras, a sua admiração pelo modernismo, posso dizer que me senti um felizardo, pois a poesia que eu ousava engendrar na época, com versos que pareciam insinuar utopias campestres, cantando campos, labutas rurais e heróis rústicos, sóis benfazejos e águas redentoras movendo rumos, deslizava por remansos na caudal de sua generosa preferência. Sentia-me lisonjeado ao vê-lo ler ou recitar em voz alta versos ou estrofes de poemas que mais adiante comporiam Reverdor, meu primeiro livro, editado em 1965.
Tracei antes, a propósito desses anos de convivência com este sereno e pacato rapaz, um retrato da Bahia em plena azáfama desenvolvimentista para livrar-se de sua incômoda carapaça provinciana. Pois bem, vivia-se esse clima saudável em várias frentes, quando de repente, para invocar um verso paradigmático do nicaraguense Rubén Darío – “Un gran vuelo de cuervos mancha el azul celeste”(traduzindo, “Um grande vôo de corvos mancha o céu azul”), isto mesmo, de repente, um imenso manto de sombra cobriu um éden de esperanças, o golpe militar de 1964, com seu imediato arrastão de suspeitas e violências contra todos os que aspiravam e lutavam por um Brasil melhor. Nesta avalanche de cangas discricionárias, sofrendo coações e constrangimentos inquisitoriais, mais por consciência, palavras e pensamento em defesa das liberdades públicas do que por má conduta ou delito tipificado, nosso filósofo, arauto das idéias socialistas, viu-se obrigado a transferir-se para o Rio de Janeiro, creio que em começos de 1965.
Não me tomem por presunçoso, mas estamos diante de um caso que somente os fados explicam. Como aconteceu e aconteceria a outros que viveram semelhantes vexames na ocasião, forçados a deixar a sua terra para viver em outras plagas, com outras gentes, penso em outra palavra que se encaixa perfeitamente na biografia deste nosso pensador: longe de um ser condenado a fatalidades da vida provinciana, como outros, Carlos Nelson era um cosmopolita, sempre o foi desde o cotidiano dos bancos escolares. Cosmopolita, esta palavra que hoje mais reflete gozos e prazeres da modernidade, sugerindo viagens, turismo e comodidades urbanas, na verdade sempre despertou a curiosidade de etimólogos, desde que, dizem, há mais de dois mil anos, foi inventada pelos estoicos, na antiga Grécia, incomodados com o fato de as pessoas trazerem no nome, como identidade pátria, um rastro de sua origem geográfica. Isto mesmo, na Grécia, a pátria era a cidade onde alguém nascia. Daí os Thales de Mileto, Zenão de Eleia, Heráclito de Éfeso, Apolônio de Rodas e até Aristóteles de Esmirna, cognomes que povoaram livros.
Assim, a meu ver, não foram os esbirros da ditadura que forçaram Carlos Nelson Coutinho a mudar-se, a ir-se embora daqui, pois sua vocação era a de um cosmopolita, um cidadão do mundo, do cosmos, para insistir na convicção dos estoicos. Desde jovem, jamais ele poderia ser identificado como Carlito da Bahia, rótulo mais apropriado a designar sambistas, capoeiristas ou poetas de cordel. A ele dediquei um poema, escrito no calor de horas açoitadas pelo guante ditatorial nos anos 1970, e que consta de meu livro Fábula civil, de 1975, mas publicado antes, em 1968, num caderno semanal de cultura da Tribuna da Bahia, coordenado por Bisa Junqueira Ayres, saudoso ícone intelectual da afirmação feminina entre nós, que leio agora para vocês, com íntimo orgulho, em memória do nosso ilustre homenageado.
CAFÉ MATINAL
Agora podemos saber o que é pior:
a mente desconexa, a fome a navalhadas.
Mesmo que nos reste a ferida dos signos,
roto lábio sobre espigas de fel,
nada nos salvará, nada será pior.
A luz está no caos celebrando vontades
durando nos espaços matutinos.
No exato momento, ao deus
que nos valeu somos gratos – e mudos
nem mesmo reparamos que se fende
o universo da ilusão.
À lição de modéstia que renova
o passado dos gestos preferimos
o som metálico das vozes – ou apenas
nos rendemos ao peso do silêncio.
II
De meu querer me liberto. Agora vejo:
a verdade resiste a meu próprio consumo.
E sendo credo e coisa, permaneço
longe de mim e perto da verdade,
canto civil engendrado nas perfídias
do tempo, inscrito no muro do sono.
Agora vejo claramente: a luz
rompe o surdo planalto de bandeiras,
favorecida pelo inédito de
tudo. Desce e inaugura para sempre
o instante anônimo da verdade –
o súbito clarão das coisas simples.
A luz está no caos. Acorde e veja.
(Fábula civil, Salvador: Edições Macunaíma, 1975)
*Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista, autor de livros de poesia e ensaios, professor aposentado da FACOM-UFBA, membro da Academia de Letras da Bahia. Depoimento prestado em 17 de outubro de 2012, em sessão especial da Academia de Letras da Bahia, em memória do penador, escritor, cientista político e professor Carlos Nelson Coutinho, falecido no Rio de Janeiro em 06 de setembro anterior.
Como tudo que escreve com tamanha profundidade, lembro sempre desse brilhante verso:. "A luz está no caos, acorde e veja"
ResponderExcluirMuito obrigado, amigo, ainda mais com esta especial atenção e sensibilidade de reproduzir o último verso do poema dedicado ao saudoso Carlos Nelson Coutinho. Um abraço.
ExcluirMuito obrigado, amigo, ainda mais com esta especial atenção e sensibilidade de reproduzir o último verso do poema dedicado ao saudoso Carlos Nelson Coutinho. Um abraço.
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