Nascido em Uruçuca, antiga Água Preta,
Florisvaldo Mattos morou na adolescência em Itabuna. Há muitos anos tem
presença destacada nos meios culturais de Salvador. O livro “Poesia Reunida e
Inéditos”, publicado recentemente pela Escrituras Editora, traz toda a
poesia de um dos poetas mais importantes
da poesia contemporânea brasileira. Alcança um período de produção poética
desde 1952 até os dias atuais. O conjunto dessa obra poética expressiva, agora
reunida, traz os seguintes livros: “Noticiário da Aurora”, “Reverdor”,
“Agrotempo”, “Fábula Civil”, “A Caligrafia do Soluço”, “Mares Anoitecidos”,
“Imagens da Terra”, “Sosigeniadas”, “Solidões Inteiras” e “Decifrador de
Cristais”.
De “Noticiário da Aurora” observa-se
logo que o lírico já aderia ao artesão nas emoções primeiras, sem que um
estivesse afastado do outro. Com os instrumentos do sonho, linguagem cativante
e vigor nas imagens, o discurso iniciante prenunciava uma poesia assumida em
níveis elevados. Desse noticiário do coração no seu inicio e manhã que verte
imagens claras avultam visões belas gravadas na memória, reminiscências do real
adentrando na chuva, em cuja fala percebe-se a infância, que arde como brasa. Poeta de grande expressão plástica,
riqueza imagística inconfundível, de construções formais que impressionam
vivamente, em cuja escrita comparecem processos metafóricos, cromáticos,
rítmicos, hábeis sintagmas, tudo isso no discurso resultante de exemplar
carpintaria, em Florisvaldo Mattos o lírico ausente do tom confessional vulgar e o poeta dotado de profundo humanismo
caminham lado a lado. O lírico e o poeta social escorrem no verso sonoro de
rico conteúdo uma dialética suscitada pela reinvenção do discurso no texto
consciente. Nos poemas “Jacutinga” e
“Barro Vermelho, Um Lugar”, o poeta plasma na dor verdes horizontes de uma
paisagem que escapa: “E o mato esconde
aos olhos do menino/ No cenário de sonho
da descida/ Agudo fio do aço campesino/ Que pela vida foi cortando a vida.” O humanismo dessa poesia
singular cifra-se em várias tonalidades: a histórica, dos poemas enfeixados em
“Reverdor”, com ressonância rural, em
que o poeta constrói esplêndidos monólogos e se refere “a varões portugueses que vieram ter poderes e honrarias – entre eles
Garcia D´Ávila, conquistador primeiro”, com suas lutas pelo assentamento do
feudo tropical onde “reinou e reina”,
bem como em “Mares Anoitecidos”, em que pende no canto veemente para o lado dos vencidos; a do tempo agrário
na fala tecida “com lágrimas e suor
subterrâneo de músculos e ferramentas”, onde se fez a semeadura do homem
dos cacauais, dos cascos pisando chão de ternura; a social, sem ser
panfletária, em que enuncia o tema do homem alugado na cidade grande, ceifado
na igualdade e liberdade, quando mais vale a união como verdade; a das
vastidões abaladas com o transdiscurso acusando sentimentos fortes contra
genocídios cometidos no século XX e, finalmente, a de acento
afetivo-intelectual, em que despontam emotiva hispanidade, referências a
amigos, experiências intelectuais e artísticas admirações eletivas.
Síntese perfeita do elegíaco e o épico
no espaço da região cacaueira baiana,
o poema longo intitulado
“Ferroviaura” toca muito a minha sensibilidade. A memória galopa pelos rastros
do sonho deixados por uma ferrovia que se perdeu no tempo, a velha E.F.I.C., sucessora da State of Bahia
South Railway Company. Leia este trecho do poema de intenso fulgor lírico, entrecortado por
aguda emoção na zona do onírico:
O
trem// verde e vermelho como a vida/ mas pode-se agregar/ ocre e amarelo/ se é de homens e coisas/
que se fala/ O trem// ânsias de infância
/arrimo de velhice/ O trem// transido
soluço/ bandeira de sorrisos/ O trem//
flauta de vidro/ vertebrado canto/ O
trem// centopeia de nuvem/ potro de esmeralda/ O trem// O trem de Água Preta/ Dardo de som
lançado/ no infinito/ rajada de luz /atravessando o paraíso/ me aduba o coração/ o sonho acorda/ o trem de Ilhéus do fundo de
seu sono.
Nascido em
Itabuna/BA, Cyro de Mattos é escritor, autor de vários livros de poesia,
ficção, ensaio e memórias, escreveu este artigo e o publicou em “A Tarde”,
jornal de Salvador, edição de 25/1/2012, página 2, espaço da editoria de
Opinião.
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