sábado, 1 de fevereiro de 2025

Florisvaldo Mattos: Poemas de fundamento greco-romano

    Vincent Van Gogh, O Semeador, Arles, 1888


SONETO RURAL

                  ... ipsi fontes, ipsa haec arbusta vocabant.”*

                                   (Virgílio, Bucólicas, Égloga I, 39)


À precipitação do amanhecer

rural retiro à flauta o som mais puro

de quem, já acostumado com o escuro,

absorto fica vendo o sol nascer.

 

Caprino olho tecido em bem-querer,

preexistente nas coisas que procuro

pastoreando sonhos: amargo ver

desencontrado olhar longe do muro.

 

Recolho pastoral envelhecida

ao som da flauta (pastoral da vida)

armado de silêncio e panorama.

 

Ela se perde verde no horizonte,

como ovelha de luz ou como fonte

onde lavo meu sonho. E se derrama.

 

(1960)

*Até as próprias fontes e o arvoredo te chamavam.

              (Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos, 1982)

 

NÃO AOS CAVALOS TRIUNFANTES

 

                                                           Aos meninos de My-Lai

 

Não me tragam esses cavalos.

Não, não me deem nenhum deles.

 

Nem o de Alexandre Magno

que comeu os mitos do Oriente.

Nem o cavalo de César

que rasgou o chão da Gália

que foi à Espanha e voltou

para acabar com Pompeu.

 

Nem o intrépido corcel de Aníbal

na derrota de Cartago.

Nem o fero potro de Átila

de patas excomungadas.

Não, nem mesmo Babieca,

o doido cavalo do Cid.

 

Nenhum daqueles valentes

fortes cavalos cruzados

cobertos de ferrarias:

grandes cavalos blindados

heróis da Idade Média

salvação da Cristandade.

Nem o branco de Napoleão

empinado sobre os Alpes

suando revolução.

 

E outros cascos triunfantes

outras crinas memoráveis

cavalos como bandeiras

sejam árabes ou romanos

espanhóis ou americanos

não me deem esses cavalos!

 

Para mim de nada servem

as ferraduras de sangue

que chagaram geografias.

Esse peitoral de bronze

dizimador de cidades

arrasador de sementes.

 

O fogo de suas narinas

pulou séculos e mapas

transformou povos em cinza

e ainda queima os espaços.

Os relinchos são navalhas.

 

Não, já vos disse, não quero.

Para mim de nada servem,

são cavalos militares

ensinados para a guerra.

 

Desde criança que amo

cavalos pelas campinas

sentindo o cheiro do pelo

saltando pedras e cercas

(a disputa era com os ventos

ao espelho de águas claras).

 

Quero esses, e somente esses,

cavalos da natureza,

livres de arreios e pulsos –

ruços, alazães, castanhos,

negros, melados ou pampos.

 

(1968)

 

CADÁVER DE MURALHAS

           

Pensaba yo que aquella que es llamada

Roma no era en nada diferente.

                        Virgílio (Trad. Fray Luis de León) *

 

Fulminado na tarde de desordens,

aquele negro tenaz de nome Essex,

que no chão de New Orleans escreveu

(rubra letra grafada a aerossol)

a frase soletrada de seu sangue:

“A procura da liberdade é a morte,

Pela morte acharei a liberdade”.

Não sabia que gravara o já gravado:

epitáfios da Roma dos patrícios,

onde a vida era nada para muitos

e a morte, esperança como sempre.

Que diferença há desse duro aviso,

que fulgia no chão de New Orleans,

naquela escura tarde de desordens,

para o dístico na tumba de um escravo

daquela mesma Roma fulgurante

– “A vida para mim foi um suplício

Que não a morte que me trouxe a paz?”

E aqueloutro que o tempo borraria,

semelhante gemer daquele tempo:

“Já inexistia, já não mais existe,

E isto hoje o preocupa muito pouco?”

 

Que chispas são ou supliciantes facas

desse mesmo encoberto desespero,

de que também se fazem alegrias:

a vida fulminada por um gesto

deixa de ser um sonho noutro sonho,

respingando na mente de cada um.

Paguemos, Essex, nosso imposto a Roma,

Que daquela nada hoje é diferente.

 

(1978)

*

FÊNIX

                              A James Amado

 

Este manto da tarde incendiado,

frágua onde o sol do olhar se põe refém

restaura o manuscrito de um julgado

que vem de Ovídio e de Virgílio vem.

 

Levanta voo o pássaro sagrado,

de aroma e ouro cingido, e se detém;

arrebatando auroras, como a um prado

virgem, as cores formam seu harém.

 

Alude a carnaval, entre palmeiras,

com que mantém madura sociedade,

em ninho de perfumes. As primeiras

 

horas da noite chegam, sugerindo

que o espetáculo da imortalidade

nasce da asa do pássaro se esvaindo.

 

(Salvador, 18 fev., 2001)

 

PAISAGEM COM CISNE

 

                              A sudden blow: the great wings beating still

                        Above the staggering girl, her thighs caressed

                        By the dark webs (…)

                        How can those terrified vague fingers push

                        The feathered glory from her loosening thighs?

                        (Um baque súbito: as grandes asas batendo ainda

                        Sobre a jovem cambaleante, as coxas acariciadas

Pelos pés negros (...)

De que modo poderão os vagos dedos temerosos

Repelir, de entre as coxas que já cedem,

Essa glória emplumada?).

                                                           W.B.Yeats (Leda e o cisne)

 

Quando sua sombra idosa entrou no Hades

As sombras dos heróis todas choraram.

                                                           (Alexei Bueno, “Helena”, Lucernário).

 

A vida passa, e estou enamorado

Da jovem que trafega nos meus dias,

Capaz de despertar idolatrias

Em Páris ou Enéias – cisne ousado!

 

Pensei em convidá-la para orgias

Em lugares submersos no passado;

Mas sei que não aceita, que sombrias

Águas redemoinham seu cuidado.

 

Hoje louçã, no resplendor da idade,

Se, como Helena, vá por corredores,

Cercada de mesuras, quando velha,

 

E desapareça a brutalidade

Em que se afoga o rol de suas dores,

Levarei comigo a última centelha.

 

(Fazenda Alvorada, 26 jun. 2007)

 

NOSTALGIA DO LATIM

“Hás de também estar triste,

se queres me ver chorar”*.

Dizem-me que esse preceito

veio da pena de Horácio.

 

Virei páginas de livros,

ternas letras que me acalmam.

Será fogo de artifício

esse ditame de Horácio?

 

Mergulhei no bom latim,

fui a Rónai, a Saraiva;

entre estantes me perdi,

sem me bater com este Horácio.

 

Até Cortázar (disseram)

se preocupou com este fado.

Corre mentes, vara mundos

esta sentença de Horácio.

 

Renovo a taça de vinho,

imerso no que me falta.

Vou em frente, não desisto

sempre no rastro de Horácio.

 

“Si vis me flere, dolendum

est primum ipsi tibi”. Lá,

com a cabeça já me ardendo,

enfim esbarro em Horácio.

 

Lição por fim aprendida,

posso dizer a verdade:

muitas sendas se me abriu

esta máxima de Horácio.

 

Haverão de me ver triste,

quase perto de chorar.

Perguntem por que, lhes digo:

não é por culpa de Horácio.

 

(2014)

 

*Si vis me flere, dolendum est primum ipsi tibi; tunc tua me infortunia laedent.

                                                                                   Horácio, Ars Poetica, 102.

(Se queres que eu chore, é preciso que sofras; só então é que os teus infortúnios me tocarão).

 

AOS QUE CONFIAM EM DEUSES AVAROS

 


Dieron a outros glória interminable los dioses.      

                                               Jorge Luis Borges

 

            Le mal est sans espoir, aussi j'ai dú le taire.

                                                           Félix Arvers

 

Busco em Borges a letra fatal que prenuncia

teu rol de aspirações e sonhos por toda a vida;

a memória de um tempo que se foi sem ser notado,

disfarces e meneios com que os dias afagavas,

dias em que os deuses foram com outros mais concordes.

Os rios secos e as sebes de teus antepassados

vigoraram em teu peito, ocultando luas frias,

iguais às do deserto que ficara para trás,

quando só buscavas um riacho de sonoras águas,

terras que te nutrissem de anelos e esperanças

e a voz calavas para barrar tormento e sombras.

Em apartamentos mínimos de silentes bairros,

elegeste então a palavra como espada e símbolo,

que te franqueassem palcos de adulação e glórias.

Vagavas na ilusória caça da imortalidade.

Livros muitos te cobriam de vagas citações,

embora te parecessem todas auras de encômios.

Num tempo em que as Parcas firmaram pacto com o silêncio,

espalhas copiosos versos de escrita cadenciada,

nenhum deles bastante para atrair nuvens de loas,

mas servem para firmar imagem de lutador

capaz de te desviar das cinzas do esquecimento.

Almejas de antiga seara colher um feixe de áulicos,

que te permita abolir voraz prescrição dos fados,

subir num pedestal e te vingar de deuses pérfidos.

Sólido ator de roteiros traçados e cumpridos,

chegaste enfim à borda de um penhasco de afagos,

onde muitos desfilam por iluminados pódios,

sem que nada te sobeje nesse Olimpo de láureas,

e indagas por que é que para eles o sol nunca se põe,

com Hebe sempre vinho a lhes servir em fulgentes taças.

A mente aturde e franze-te o cenho quesito infiel.

Sem que saibas porque assim agem os avaros deuses,

aprumas-te e, ajeitando o paletó de linho inglês

e a límpida camisa de listas e compridas mangas,

calculas as distâncias do caminho percorrido.

Misturando pedregulhos com brilhos de salão,

juntas árduo dia a outro dia, árdua noite a outra noite

e esperas que te segredem os cabelos grisalhos.

Como no afamado soneto da secreta musa,

em cosmo de dúvidas, luas e noites sequazes,

esforças-te para entender e não compreenderás.

 

SSA/BA, jan./2014, jan./2015

 

NINFAS PELO BREJO CEGO

 

(Nunca vestem farrapos. Botticelli

jamais as olharia, de entre os ramos.

Seduzem mãos de ofício menos raro:     

purezas de Ingres, ciências de Courbet,

de Matisse, talvez de Modigliani;

o feminino abstrato de Delvaux?)

 

Desço de montes, sigo pelo vale.

Escuto um baque: rolam seixos, a água

na tarde morna em círculos se mexe.

Um bulício de folhas à distância

traz a brisa que roça meus ouvidos.

A tarde se disfarça em porcelana.

 

Serão ninfas que fogem pelo brejo

perseguidas por faunos e centauros?

De onde vieram esses seres lépidos, 

tímidas fêmeas pelos arrebóis, 

que, pouco diplomáticas, se esgueiram,

a fugir de injuriosas investidas?

 

Vou por atalhos, de olho atento a trilhas.

Fátuas, ligeiras e, de pés olímpicos,

passam por mim e pelas andorinhas.

Param, como se lírios lhes acenam.

Para elas se abre o sol; a água lhes beija

o colo e os pés de nuvem. Que perscrutam?

 

A brisa é a sua aliada predileta.

Saracuras, sanhaços e nambus 

além se calam. Elas, ágeis, fogem

por sáfaros caminhos; ribanceiras 

galgam e somem num coral de adeuses.

Fogem, porque fugir é de sua arte.

 

Sigo seus rastros pelo brejo cego.

Guiam-me, mesmo após as despedidas.

Porque tenho pés e olhos de andarilho,

persigo sendas altas de onde aviste-as,

na certeza de que para onde forem 

meus sentidos nunca estarão sem pátria.

 

Os ramos cumprimentam, quando passam;

redes de cipó e musgo, a quem, atônito,

pergunto se são ninfas, o que são.

Junto-me ao vento e subo numa encosta.

Diviso um prado. Não mais vejo-as; foram-se.

Existem mesmo ninfas neste pântano?

 

(Musa inquietante que se foi com Zeus, 

penso que Leda me deixou sozinho). 

O vento segue vomitando ausências 

sobre abismos de insônia, sobre mim.

Logo a tarde se cobre de carvão.

Zás! Beira d´água, alguém me segura a mão.

 

(SSA-BA, dez./2014-jan./2015)

 

 

LAVRA DE PATER FAMÍLIAS

 

​​​                              Meliboeus: “Tu, Títyrus, recubans sub tegmine fagi”.

Tityrus: “O Meliboee, deus nobis haec otia fecit”.

​​​​​​​                                                                       (Virgílio, Bucólicas)

 

Sem ser Títiro, nem ser Melibeu, 

nem recostado estar numa jaqueira,

como também não para doces ócios,

apuro a mente e escavo chão de auroras,

começando por dias que se foram.

A estrada se abre e ando pelos vales.

A casa de seis portas na ladeira

contempla campo e serra azul-turquesa.

A cor da terra consentiu o nome: 

Barro Vermelho, salvação de brenhas.

“Já lá te espera o mundo”, ao pai disseram, 

e árduo, de peito aberto aos ventos, foi;

faina e farnel, intrépido, montou,

para mulher e filhos sustentar.

 

(Salvador, manhã de 5ª feira, 19/03/2015)

 

NÃO HÁ PRAZO PARA SONHAR

 

                        Não ficou perturbado Nero quando ouviu

                        Do Oráculo de Delfos o prenúncio:             

                        “Teme o ano septuagésimo terceiro.”

                                               (K. Kaváfis, “O prazo de Nero”)

 

Não ouvi de nenhum oráculo dos templos

que temesse o ano octogésimo terceiro,

como ouviu Nero, ainda muito jovem,

lá pelos sessenta e oito, ano de Cristo,

que temesse o ano septuagésimo terceiro.

Sei que não tenho pela frente dilatado

prazo nenhum para cuidar de riscos,

nem fatigado estou; bem mais eu tenho

a certeza de prazeres muitos adiante,

que os anos da vida se contam com o viver,

lúcido e limpo, com o que vale, por lugares

de convívio e afeto forrado de carinhos.

 

Comigo assim. Medito e sigo, passo a passo,

confiante, de mente alerta, embora músculos

fraquejem, sentindo ventos, pássaros ouvindo,

mar e serras mirando, como próprio de quem vive.

Guardem-me os dias e os céus, como a natureza.

É o que me basta: oitenta e três anos de idade.

 

(Salvador/BA, manhã de 08.04.2015)

 

DEVANEIOS OUTONAIS

 

Pensei-me à beira já do estígio rio,

Tantas mãos me seguram neste barco.

Farto de ontens, me acalmo e me alivio,

Quando miro ainda distante o vasto arco

Da noite que, apressada, me acompanha

Neste final de estrada sonolenta.

Busco um farol; resisto à angústia e à sanha

Inimiga da tarde que se ausenta,

Neste deserto de almas que me cerca,

Me avisa; uns poucos vejo de outros dias.

Em pé, me estanco, firme, junto à cerca,

Como se ouvisse canto e melodias:

            Se morna brisa bate em minha fronte,

            Não quero me segure a mão Caronte.

 

SSA, tarde de 18/09/2015

Caronte, em grego Kháron; segundo a mitologia, barqueiro encarregado de levar a alma dos mortos através do Estige, o rio dos Infernos.

 

JAZZ

 

Que será que na noite

Ben Webster desafia?

Será o Adamastor?

Será a ventania?

Ou será o ciclope

Que Ulisses iludia?

 

Certo é que, impávido, ia,

Com sopro e valentia.

 

(SSA/BA, 1988/2016)

 

POEMA DAS MINUDÊNCIAS

                        A Mário Vieira da Silva, in memoriam

 

Acordo. A Poesia vem e é como a vigília,

Numa história inversa, de um sonho que não dorme.

De todos os passados forma uma família

De sucessivos feitos, dentro de uma enorme

Galáxia, que o tempo sábio nunca enumera.

Cordilheira de sons ou planalto de luz,

No outono, no inverno, verão, na primavera,

Quando vida, senão morte, a todos seduz,

Por onde desfilam, séculos sem fim, lestos,

Netos de Homero e, também, filhos de Virgílio,

Dias, noites, sol, chuva, calmos ou molestos,

Em ameno sítio, ou partindo para o exílio,

            É de humanidade que trata, de existências,

            Farta, como areia do mar, em minudências.

 

(SSA/BA, 10.05.2016)

 

ENTRE MAR E FLORA

                          Dum nos fata sinunt, oculos satiemos amore*

                                               Sexto Propércio (c. 47-15 a.C.)

 

Procuro-te, mas não sei por onde andas
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.
No teu encalço, a tarde toda turva,
Compraz-me te mirar, de curva em curva.

 

(SSA-BA, manhã de 26/01/2017)

*Enquanto os fados nos permitem, no amor saciemos nossos olhos.

 

NOTURNO COM FLOR E NINFA

 

Morreu Narciso numa tarde aguda,

Quando a noite espreitava sonolentos

Bosques, e havia a música dos ventos,

Que lhes mordia a face agreste e muda.

Quisera um dia eu fosse teu Narciso,

E a mim mirasses como a água o mirava.

Dou-te meu coração, com arco e aljava,

Para que portas me abras no Paraíso.

Que meu olhar, mirando-te na alfombra,

Onde estirada estás, Eva primeira

(Sem traições de uma folha de parreira),

Faça-me feliz, como a um deus na sombra.

            Jamais serei Narciso, meu amor,

            Pois de te mesma é que ressumbra a flor.

 

(Salvador, 15.10.2017)

 

 

SONETO ROMANO

 

                            A Valdomiro Santana

 

Quin etiam, Polypheme, fera Galatea sub Aetna

Ad tua rorantis carmina flexit equos.

                         Sexto Propércio (Elegia III, 2) *

 

Não sou Orfeu, não sei deter os rios,

Nem toco flauta no portão do Inferno,

Para tirar do Amor grilhões sombrios

E postá-lo na margem em que aderno.

 

Não sou Camões; Calíope não me ensina

Os caminhos do mar. Vou para o bosque.

Sei que irão perguntar-me adiante quousque

Tandem há de durar a minha sina.

 

Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,

Guarde-os perto do campo de azaleia.

Se mais seguros, lá, mais bem guardados.

 

Oh, Propércio, avise aí a Polifemo,

E me deixe no Etna com Galateia

Montada em seus cavalos orvalhados.

 

(SSA/BA, manhã de 14/10/2018)

 

 

*E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,

Aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados.

 

(Sexto Propércio, Elegias, trad. Maria da Glória

Novak, 1992).

                       

SONETO COM BACO NA VINDIMA

 

                        A Paulo Martins, poeta, escritor e amigo

 

Condenado a viver por entre grades,

Do alto em que me despenco, serra acima,

Os dias passam, e eu, sentado em cima

De uma pira, desvio tempestades.

Encontro Baco, perto da vindima.

Leio para ele versos de Propércio.

O deus lamenta quedas de comércio

E busca na Ásia de Cibele a estima.

Baco venera versos bem traçados.

Ele me fita, banzo, e pede rima,

Que não seja de pano sem bordados.

Vou para casa. Volto. Ele se anima.

            Sabor e sonhos nunca interditados,

Trago na mão dois sóis engarrafados.

           

SSA/BA, 25/10/2018

 

POR CAMINHOS BUCÓLICOS

 

Tudo começa quando Sileno ama.

Quando a noite do desconsolo baixa,

A solidão semelha-se a uma caixa,

Em cujo fogo o coração se inflama.

 

Pego um livro de páginas amargas

E vou direto ao poema que me chama

Ao íntimo fulgor – ele é todo chama

De um coração que não divide cargas.

 

Subo e desço serras, enfrento vagas.

Vou por caminhos; sinto que me resta

Alívio redentor de contas pagas.

 

“Tristezas não pagam dívidas”, dizes.

Por isso é que passeio por floresta

De amor, de canto e pássaros felizes.

 

(SSA-BA, 20.11.2017)

 

SONETO DE UM SONHO EM ÊXTASE

 

O homem se alimenta é mesmo de ouro e aço!

Não sei por que Helena causa tanto ódio.

Eu marquei hora com ela no relógio

De sol, lá do jardim de meu palácio,

E fomos jantar na gruta com Enéias

E Dido; em tudo, uma festa de tochas,

Lá dentro, a banhar de ouro as duas moças,

Com vinho e frutas em bandejas persas.

Não sei o que diria o néscio Páris,

De Troia, dessa orgia só de luzes,

Numa sonhada gruta de Cartago.

Talvez se benzesse com duas cruzes

Cristãs, ao ver que, no auge dos desejos,   

A noite se findou com um sol de beijos.

 

(SSA-BA, manhã de 14/06/2020)

 

 

NA CASA DE ASTÉRION

 

Tecer no azul do céu a cor da morte

Ou no verde do mar, na branca espuma,

E até não perceber quando se arruma

A casa onde a brisa, última consorte,

Descerra a porta para o Minotauro.

Apenas ouço-lhe o ruidoso trote,

Com o trágico de Borges holofote,

Igual à solidão em que me instauro.

Ele vem devagar, de agudo chifre,

Na tarde melancólica, de sombra

Vasta, que me rodeia e que me assombra,

Passo a passo, a exigir que me decifre.

 

            Não sou Teseu, dispenso-me do luto.

            Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.

 

(Salvador, manhã de 05/03/2022)

 

VIAJANDO PARA DELFOS

 

Febe o ama, quando tudo se inicia.

Ao aporte de uma tarde acanhada,

Seu coração se inflama e o delicia,

Se ela suspira e sente-se enfadada.  

 

Alcança o sonho o coração em chaga.

Há fulgor nesta aurora que a conclama:

Onde está Elano – é por quem ela chama,

Onde está o amado, sua voz indaga. 

 

Sai por todas as curvas dos caminhos;

Sobe e desce planos, mas nada resta

Dos oráculos que foram seus ninhos.

 

“O amor é cego”, muito bem tu dizes.

Desengano de passos infelizes

Faz a ninfa perder-se na floresta.

 

(SSA-BA, 22/11/2017)

 

SONETO DE UM SONHO EM ÊXTASE

 

O homem se alimenta é mesmo de ouro e aço!

Não sei por que Helena causa tanto ódio.

Eu marquei hora com ela no relógio

De sol, lá do jardim de meu palácio,

E fomos jantar na gruta com Enéias

E Dido; em tudo, uma festa de tochas,

Lá dentro, a banhar de ouro as duas moças,

Com vinho e frutas em bandejas persas.

Não sei o que diria o néscio Páris,

De Troia, dessa orgia só de luzes,

Numa sonhada gruta de Cartago.

Talvez se benzesse com duas cruzes

Cristãs, ao ver que, no auge dos desejos,   

A noite se findou com um sol de beijos.

 

(FM, manhã de 14/06/2020)

 

NOTURNO COM FLOR E NINFA

 

Morreu Narciso numa tarde aguda,

Quando a noite espreitava sonolentos

Bosques, e havia a música dos ventos,

Que lhes mordia a face agreste e muda.

Quisera um dia eu fosse teu Narciso,

E a mim mirasses como a água o mirava.

Dou-te meu coração, com arco e aljava,

Para que portas me abras no Paraíso.

Que meu olhar, mirando-te na alfombra,

Onde estirada estás, Eva primeira

(Sem traições de uma folha de parreira),

Faça-me feliz, como a um deus na sombra.

            Jamais serei Narciso, meu amor,

            Pois de te mesma é que ressumbra a flor.

 

(Salvador, 15.10.2017)

 

LAVOURA FATAL COM GÓRGONAS

 

As portas e as janelas, tristemente,

Miravam serrania e verdes pastos.

Assim como derrete campos vastos,

O sol na tarde insulta rosto ardente.

Sou um homem de outrora. Estes meus braços,

Que atravessaram matas, montes, rios,

Na aura vertiginosa dos plantios,

Carregam a memória de balaços,

Que hoje não denuncia a mão deserta.

Cacau, um deus que chega e arreia a mala,

Vindo de México ou de Guatemala,

Amor ao ferro, só, nenhum alerta.

            E quando as intempéries regurgitam,

            São os céus vingativos que vomitam.

 

(SSA/BA, 26/04/2017)

 

 

SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS

                        A JC Teixeira Gomes, Joca, no dia de seus 80 anos de idade

 

Cansei-me de pensar no que era o dia,

Se ele entre dois crepúsculos se evade.

Cansei de me perder nessa agonia,

Fosse hora calma, fosse tempestade.

 

Juntei a vida inteira os elementos

E a cada um dispensei olhar de justo.

Se regem mundos, regem os momentos,

Não conseguem parar o sol injusto.

 

A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses

Que governam e nutrem a Humanidade,

Como me adverte o oráculo de Elêusis.

 

Não podemos mudar de itinerário.

Ao fim nos resta uma única verdade:

O nosso cabedal é o calendário.

 

(SSA-BA, 09.03.2016)

 

EPISÓDIO EM 96 D.C.

 

Domiciano, oitavo depois de Augusto,

para livrar-se de morte à traição,

usou na alcova pedras como espelhos.

 

Arranjou-as de frente, delatoras,

Compondo noites bárbaras, o César.

Da cama, pela aurora, à luz de tochas,

Inquieto mirava a pedra espelhada

Que lhe interditaria a hora expectante.

Domiciano de noites indormidas,

Que mal fizera aos homens seus patrícios?

Fechou-se, de si mesmo fugitivo.

 

Estefânio sagaz, envolta em gazes,

Levava a adaga luzindo, outro espelho.

Pobre César, lutara com os seus medos.

(2002)

Pablo Picasso, Leitura, 1932 



TRADIÇÃO E MODERNIDADE NUM SONETO


Taurino Araújo*


"Soneto Romano" é uma obra sofisticada que mistura tradição clássica, modernidade e introspecção. Por meio de referências ricas e imagens poéticas, o autor reflete sobre a condição do poeta no mundo moderno, suas limitações e sua busca por beleza e transcendência. É uma peça que evoca tanto o esplendor do passado quanto as incertezas do presente, reafirmando a poesia como um espaço de diálogo atemporal.
O "Soneto Romano", de Florisvaldo Mattos, é uma peça de grande riqueza literária, com múltiplas camadas de significado e referências intertextuais. Aqui está uma análise detalhada:


1. Estrutura e Forma


O poema é um soneto clássico, composto por dois quartetos e dois tercetos, totalizando 14 versos. Ele segue a métrica decassilábica e adota rimas organizadas, contribuindo para sua fluidez e musicalidade. A escolha do formato clássico evoca uma tradição literária que dialoga com autores e mitos antigos.



2. Temática


O soneto reflete sobre a posição do poeta em relação aos grandes nomes do passado: O eu lírico se compara a figuras mitológicas (Orfeu) e literárias (Camões, Calíope, Propércio), reconhecendo a sua distância em relação à grandiosidade desses modelos.
A busca pela criação poética:
Há uma tensão entre a impossibilidade de alcançar os feitos desses grandes nomes e a aceitação de sua própria condição enquanto poeta.
Referências mitológicas e clássicas:
O poema é repleto de alusões que conferem densidade cultural e dialogam com tradições literárias universais.

3. Primeira Estrofe: Mitos e Limitações


"Não sou Orfeu, não sei deter os rios,
Nem toco flauta no portão do Inferno,
Para tirar do Amor grilhões sombrios
E postá-lo na margem em que aderno."

Alusão a Orfeu:
O eu lírico menciona o mítico músico grego, cuja música era capaz de encantar a natureza e até negociar com os deuses do submundo para recuperar sua amada Eurídice. Aqui, o poeta admite não possuir o mesmo poder transformador.
Reconhecimento das limitações:
Ele não pode "deter os rios" ou libertar o Amor de suas amarras. Essa confissão sublinha sua humanidade e distância das figuras mitológicas.
Ambiente melancólico:
A imagem de "adernar na margem" sugere fragilidade e uma sensação de precariedade.


4. Segunda Estrofe: Tradição Literária e Sina Pessoal


"Não sou Camões; Calíope não me ensina
Os caminhos do mar. Vou para o bosque.
Sei que irão perguntar-me adiante quousque
Tandem há de durar a minha sina."

Comparação com Camões:
O poeta português, associado às epopeias marítimas, é invocado como outro modelo inalcançável. O eu lírico não explora os mares, mas prefere o "bosque," um espaço introspectivo e simbólico.
Diálogo com a tradição clássica:
Calíope, musa da epopeia, é mencionada como ausente. Essa ausência reforça a ideia de que o poeta segue um caminho menos heroico, mais pessoal.
"Quousque tandem": A frase latina ("até quando?") remete a Cícero e carrega um tom de questionamento, sugerindo cansaço ou incerteza diante de seu destino.



5. Primeira Terceto: Ezra Pound e a Busca por Orientação



"Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,
Guarde-os perto do campo de azaleia.
Se mais seguros, lá, mais bem guardados."

Ezra Pound:
Um poeta moderno, conhecido por sua busca por tradições literárias antigas e pela renovação da poesia, é evocado como uma figura que pode oferecer orientação ao eu lírico.
Imagens de repouso e segurança:
O "barco e o remo" são símbolos de travessia e criação poética, mas, aqui, o eu lírico sugere deixá-los guardados, em uma espécie de pausa ou resguardo próximo ao "campo de azaleia."
Simbologia das azaleias:
Essas flores podem remeter à beleza efêmera e à fragilidade, em contraste com os grandes feitos das figuras evocadas anteriormente.



6. Segundo Terceto: Propércio, Polifemo e Galateia



"Oh, Propércio, avise aí a Polifemo,
E me deixe no Etna com Galateia
Montada em seus cavalos orvalhados."

Propércio:
O poeta latino, mestre da elegia amorosa, é chamado para interceder com Polifemo, o ciclope apaixonado pela ninfa Galateia.
Polifemo e Galateia:
A história de amor não correspondido entre o ciclope e a ninfa sublinha o desejo do eu lírico por beleza e harmonia, mesmo em meio ao caos (Etna, o vulcão).
Cavalos orvalhados:
Uma imagem onírica que mistura sensualidade e delicadeza, mostrando que o poeta encontra refúgio em um plano imaginativo e sublime.



7. Leituras Interpretativas


Humildade do Poeta Moderno: O eu lírico reconhece sua posição modesta diante dos grandes nomes do passado, mas, ao mesmo tempo, reafirma sua individualidade e busca por significado na criação poética.

Diálogo com a Tradição:
Florisvaldo Mattos constrói um soneto que é ao mesmo tempo uma homenagem e uma desconstrução da grandiosidade clássica, oferecendo uma visão mais pessoal e humanizada da criação artística.


Tensão entre Modernidade e Clássico:
A menção a Ezra Pound insere uma ponte entre a modernidade e o mundo clássico, mostrando que o poeta contemporâneo busca inspiração em ambas as esferas. Maravilhoso! 

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