SONETO RURAL
“... ipsi fontes, ipsa haec arbusta
vocabant.”*
(Virgílio,
Bucólicas, Égloga I, 39)
À precipitação do amanhecer
rural retiro à flauta o som mais puro
de quem, já acostumado com o escuro,
absorto fica vendo o sol nascer.
Caprino olho tecido em bem-querer,
preexistente nas coisas que procuro
pastoreando sonhos: amargo ver
desencontrado olhar longe do muro.
Recolho pastoral envelhecida
ao som da flauta (pastoral da vida)
armado de silêncio e panorama.
Ela se perde verde no horizonte,
como ovelha de luz ou como fonte
onde lavo meu sonho. E se derrama.
(1960)
*Até as próprias
fontes e o arvoredo te chamavam.
(Trad.
de Péricles Eugênio da Silva Ramos, 1982)
NÃO
AOS CAVALOS TRIUNFANTES
Aos
meninos de My-Lai
Não me tragam esses cavalos.
Não, não me deem nenhum deles.
Nem o de Alexandre Magno
que comeu os mitos do Oriente.
Nem o cavalo de César
que rasgou o chão da Gália
que foi à Espanha e voltou
para acabar com Pompeu.
Nem o intrépido corcel de Aníbal
na derrota de Cartago.
Nem o fero potro de Átila
de patas excomungadas.
Não, nem mesmo Babieca,
o doido cavalo do Cid.
Nenhum daqueles valentes
fortes cavalos cruzados
cobertos de ferrarias:
grandes cavalos blindados
heróis da Idade Média
salvação da Cristandade.
Nem o branco de Napoleão
empinado sobre os Alpes
suando revolução.
E outros cascos triunfantes
outras crinas memoráveis
cavalos como bandeiras
sejam árabes ou romanos
espanhóis ou americanos
não me deem esses cavalos!
Para mim de nada servem
as ferraduras de sangue
que chagaram geografias.
Esse peitoral de bronze
dizimador de cidades
arrasador de sementes.
O fogo de suas narinas
pulou séculos e mapas
transformou povos em cinza
e ainda queima os espaços.
Os relinchos são navalhas.
Não, já vos disse, não quero.
Para mim de nada servem,
são cavalos militares
ensinados para a guerra.
Desde criança que amo
cavalos pelas campinas
sentindo o cheiro do pelo
saltando pedras e cercas
(a disputa era com os ventos
ao espelho de águas claras).
Quero esses, e somente esses,
cavalos da natureza,
livres de arreios e pulsos –
ruços, alazães, castanhos,
negros, melados ou pampos.
(1968)
CADÁVER
DE MURALHAS
Pensaba yo que aquella que es llamada
Roma no era en nada diferente.
Virgílio
(Trad. Fray Luis de León) *
Fulminado na tarde de desordens,
aquele negro tenaz de nome Essex,
que no chão de New Orleans escreveu
(rubra letra grafada a aerossol)
a frase soletrada de seu sangue:
“A procura da liberdade é a morte,
Pela morte acharei a liberdade”.
Não sabia que gravara o já gravado:
epitáfios da Roma dos patrícios,
onde a vida era nada para muitos
e a morte, esperança como sempre.
Que diferença há desse duro aviso,
que fulgia no chão de New Orleans,
naquela escura tarde de desordens,
para o dístico na tumba de um escravo
daquela mesma Roma fulgurante
– “A vida para mim foi um suplício
Que não a morte que me trouxe a paz?”
E aqueloutro que o tempo borraria,
semelhante gemer daquele tempo:
“Já inexistia, já não mais existe,
E isto hoje o preocupa muito pouco?”
Que chispas são ou supliciantes facas
desse mesmo encoberto desespero,
de que também se fazem alegrias:
a vida fulminada por um gesto
deixa de ser um sonho noutro sonho,
respingando na mente de cada um.
Paguemos, Essex, nosso imposto a Roma,
Que daquela nada hoje é diferente.
(1978)
*
FÊNIX
A
James Amado
Este manto da tarde incendiado,
frágua onde o sol do olhar se põe refém
restaura o manuscrito de um julgado
que vem de Ovídio e de Virgílio vem.
Levanta voo o pássaro sagrado,
de aroma e ouro cingido, e se detém;
arrebatando auroras, como a um prado
virgem, as cores formam seu harém.
Alude a carnaval, entre palmeiras,
com que mantém madura sociedade,
em ninho de perfumes. As primeiras
horas da noite chegam, sugerindo
que o espetáculo da imortalidade
nasce da asa do pássaro se esvaindo.
(Salvador,
18 fev., 2001)
PAISAGEM COM CISNE
A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering
girl, her thighs caressed
By the dark webs (…)
How can those terrified
vague fingers push
The feathered glory from
her loosening thighs?
(Um
baque súbito: as grandes asas batendo ainda
Sobre
a jovem cambaleante, as coxas acariciadas
Pelos
pés negros (...)
De
que modo poderão os vagos dedos temerosos
Repelir,
de entre as coxas que já cedem,
Essa
glória emplumada?).
W.B.Yeats
(Leda e o cisne)
Quando
sua sombra idosa entrou no Hades
As
sombras dos heróis todas choraram.
(Alexei
Bueno, “Helena”, Lucernário).
A vida passa, e estou enamorado
Da jovem que trafega nos meus dias,
Capaz de despertar idolatrias
Em Páris ou Enéias – cisne ousado!
Pensei em convidá-la para orgias
Em lugares submersos no passado;
Mas sei que não aceita, que sombrias
Águas redemoinham seu cuidado.
Hoje louçã, no resplendor da idade,
Se, como Helena, vá por corredores,
Cercada de mesuras, quando velha,
E desapareça a brutalidade
Em que se afoga o rol de suas dores,
Levarei comigo a última centelha.
(Fazenda
Alvorada, 26 jun. 2007)
NOSTALGIA
DO LATIM
“Hás
de também estar triste,
se
queres me ver chorar”*.
Dizem-me que esse preceito
veio da pena de Horácio.
Virei páginas de livros,
ternas letras que me acalmam.
Será fogo de artifício
esse ditame de Horácio?
Mergulhei no bom latim,
fui a Rónai, a Saraiva;
entre estantes me perdi,
sem me bater com este Horácio.
Até Cortázar (disseram)
se preocupou com este fado.
Corre mentes, vara mundos
esta sentença de Horácio.
Renovo a taça de vinho,
imerso no que me falta.
Vou em frente, não desisto
sempre no rastro de Horácio.
“Si
vis me flere, dolendum
est
primum ipsi tibi”. Lá,
com a cabeça já me ardendo,
enfim esbarro em Horácio.
Lição por fim aprendida,
posso dizer a verdade:
muitas sendas se me abriu
esta máxima de Horácio.
Haverão de me ver triste,
quase perto de chorar.
Perguntem por que, lhes digo:
não é por culpa de Horácio.
(2014)
*Si
vis me flere, dolendum est primum ipsi tibi; tunc tua me infortunia laedent.
Horácio,
Ars Poetica, 102.
(Se
queres que eu chore, é preciso que sofras; só então é que os teus infortúnios
me tocarão).
AOS
QUE CONFIAM EM DEUSES AVAROS
Dieron
a outros glória interminable los dioses.
Jorge
Luis Borges
Le mal est sans espoir, aussi j'ai dú le taire.
Félix
Arvers
Busco em Borges a letra fatal que prenuncia
teu rol de aspirações e sonhos por toda a vida;
a memória de um tempo que se foi sem ser notado,
disfarces e meneios com que os dias afagavas,
dias em que os deuses foram com outros mais concordes.
Os rios secos e as sebes de teus antepassados
vigoraram em teu peito, ocultando luas frias,
iguais às do deserto que ficara para trás,
quando só buscavas um riacho de sonoras águas,
terras que te nutrissem de anelos e esperanças
e a voz calavas para barrar tormento e sombras.
Em apartamentos mínimos de silentes bairros,
elegeste então a palavra como espada e símbolo,
que te franqueassem palcos de adulação e glórias.
Vagavas na ilusória caça da imortalidade.
Livros muitos te cobriam de vagas citações,
embora te parecessem todas auras de encômios.
Num tempo em que as Parcas firmaram pacto com o
silêncio,
espalhas copiosos versos de escrita cadenciada,
nenhum deles bastante para atrair nuvens de loas,
mas servem para firmar imagem de lutador
capaz de te desviar das cinzas do esquecimento.
Almejas de antiga seara colher um feixe de áulicos,
que te permita abolir voraz prescrição dos fados,
subir num pedestal e te vingar de deuses pérfidos.
Sólido ator de roteiros traçados e cumpridos,
chegaste enfim à borda de um penhasco de afagos,
onde muitos desfilam por iluminados pódios,
sem que nada te sobeje nesse Olimpo de láureas,
e indagas por que é que para eles o sol nunca se põe,
com Hebe sempre vinho a lhes servir em fulgentes
taças.
A mente aturde e franze-te o cenho quesito infiel.
Sem que saibas porque assim agem os avaros deuses,
aprumas-te e, ajeitando o paletó de linho inglês
e a límpida camisa de listas e compridas mangas,
calculas as distâncias do caminho percorrido.
Misturando pedregulhos com brilhos de salão,
juntas árduo dia a outro dia, árdua noite a outra
noite
e esperas que te segredem os cabelos grisalhos.
Como no afamado soneto da secreta musa,
em cosmo de dúvidas, luas e noites sequazes,
esforças-te para entender e não compreenderás.
SSA/BA,
jan./2014, jan./2015
NINFAS
PELO BREJO CEGO
(Nunca
vestem farrapos. Botticelli
jamais as olharia, de entre os ramos.
Seduzem mãos de ofício menos raro:
purezas de Ingres, ciências de Courbet,
de Matisse, talvez de Modigliani;
o feminino abstrato de Delvaux?)
Desço de montes, sigo pelo vale.
Escuto um baque: rolam seixos, a água
na tarde morna em círculos se mexe.
Um bulício de folhas à distância
traz a brisa que roça meus ouvidos.
A tarde se disfarça em porcelana.
Serão ninfas que fogem pelo brejo
perseguidas por faunos e centauros?
De onde vieram esses seres lépidos,
tímidas fêmeas pelos arrebóis,
que, pouco diplomáticas, se esgueiram,
a fugir de injuriosas investidas?
Vou por atalhos, de olho atento a trilhas.
Fátuas, ligeiras e, de pés olímpicos,
passam por mim e pelas andorinhas.
Param, como se lírios lhes acenam.
Para elas se abre o sol; a água lhes beija
o colo e os pés de nuvem. Que perscrutam?
A brisa é a sua aliada predileta.
Saracuras, sanhaços e nambus
além se calam. Elas, ágeis, fogem
por sáfaros caminhos; ribanceiras
galgam e somem num coral de adeuses.
Fogem, porque fugir é de sua arte.
Sigo seus rastros pelo brejo cego.
Guiam-me, mesmo após as despedidas.
Porque tenho pés e olhos de andarilho,
persigo sendas altas de onde aviste-as,
na certeza de que para onde forem
meus sentidos nunca estarão sem pátria.
Os ramos cumprimentam, quando passam;
redes de cipó e musgo, a quem, atônito,
pergunto se são ninfas, o que são.
Junto-me ao vento e subo numa encosta.
Diviso um prado. Não mais vejo-as; foram-se.
Existem mesmo ninfas neste pântano?
(Musa inquietante que se foi com Zeus,
penso que Leda me deixou sozinho).
O vento segue vomitando ausências
sobre abismos de insônia, sobre mim.
Logo a tarde se cobre de carvão.
Zás! Beira d´água, alguém me segura a mão.
(SSA-BA,
dez./2014-jan./2015)
LAVRA
DE PATER FAMÍLIAS
Meliboeus: “Tu, Títyrus,
recubans sub tegmine fagi”.
Tityrus: “O Meliboee, deus nobis haec
otia fecit”.
(Virgílio, Bucólicas)
Sem ser Títiro, nem ser Melibeu,
nem recostado estar numa jaqueira,
como também não para doces ócios,
apuro a mente e escavo chão de auroras,
começando por dias que se foram.
A estrada se abre e ando pelos vales.
A casa de seis portas na ladeira
contempla campo e serra azul-turquesa.
A cor da terra consentiu o nome:
Barro Vermelho, salvação de brenhas.
“Já lá te espera o mundo”, ao pai disseram,
e árduo, de peito aberto aos ventos, foi;
faina e farnel, intrépido, montou,
para mulher e filhos sustentar.
(Salvador,
manhã de 5ª feira, 19/03/2015)
NÃO
HÁ PRAZO PARA SONHAR
Não ficou perturbado Nero quando ouviu
Do Oráculo de Delfos o
prenúncio:
“Teme o ano septuagésimo
terceiro.”
(K.
Kaváfis, “O prazo de Nero”)
Não ouvi de nenhum oráculo dos templos
que temesse o ano octogésimo terceiro,
como ouviu Nero, ainda muito jovem,
lá pelos sessenta e oito, ano de Cristo,
que temesse o ano septuagésimo terceiro.
Sei que não tenho pela frente dilatado
prazo nenhum para cuidar de riscos,
nem fatigado estou; bem mais eu tenho
a certeza de prazeres muitos adiante,
que os anos da vida se contam com o viver,
lúcido e limpo, com o que vale, por lugares
de convívio e afeto forrado de carinhos.
Comigo assim. Medito e sigo, passo a passo,
confiante, de mente alerta, embora músculos
fraquejem, sentindo ventos, pássaros ouvindo,
mar e serras mirando, como próprio de quem vive.
Guardem-me os dias e os céus, como a natureza.
É o que me basta: oitenta e três anos de idade.
(Salvador/BA,
manhã de 08.04.2015)
DEVANEIOS
OUTONAIS
Pensei-me à beira já do estígio rio,
Tantas mãos me seguram neste barco.
Farto de ontens, me acalmo e me alivio,
Quando miro ainda distante o vasto arco
Da noite que, apressada, me acompanha
Neste final de estrada sonolenta.
Busco um farol; resisto à angústia e à sanha
Inimiga da tarde que se ausenta,
Neste deserto de almas que me cerca,
Me avisa; uns poucos vejo de outros dias.
Em pé, me estanco, firme, junto à cerca,
Como se ouvisse canto e melodias:
Se
morna brisa bate em minha fronte,
Não
quero me segure a mão Caronte.
SSA,
tarde de 18/09/2015
Caronte, em grego
Kháron; segundo a mitologia, barqueiro encarregado de levar a alma dos
mortos através do Estige, o rio dos Infernos.
JAZZ
Que será que na noite
Ben Webster desafia?
Será o Adamastor?
Será a ventania?
Ou será o ciclope
Que Ulisses iludia?
Certo é que, impávido, ia,
Com sopro e valentia.
(SSA/BA,
1988/2016)
POEMA
DAS MINUDÊNCIAS
A Mário Vieira da Silva, in memoriam
Acordo. A Poesia vem e é como a vigília,
Numa história inversa, de um sonho que não dorme.
De todos os passados forma uma família
De sucessivos feitos, dentro de uma enorme
Galáxia, que o tempo sábio nunca enumera.
Cordilheira de sons ou planalto de luz,
No outono, no inverno, verão, na primavera,
Quando vida, senão morte, a todos seduz,
Por onde desfilam, séculos sem fim, lestos,
Netos de Homero e, também, filhos de Virgílio,
Dias, noites, sol, chuva, calmos ou molestos,
Em ameno sítio, ou partindo para o exílio,
É de
humanidade que trata, de existências,
Farta,
como areia do mar, em minudências.
(SSA/BA,
10.05.2016)
ENTRE MAR E FLORA
Dum nos fata sinunt, oculos satiemos amore*
Sexto
Propércio (c. 47-15 a.C.)
Procuro-te,
mas não sei por onde andas
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.
No teu encalço, a tarde toda turva,
Compraz-me te mirar, de curva em curva.
(SSA-BA,
manhã de 26/01/2017)
*Enquanto
os fados nos permitem, no amor saciemos nossos olhos.
NOTURNO
COM FLOR E NINFA
Morreu Narciso numa tarde aguda,
Quando a noite espreitava sonolentos
Bosques, e havia a música dos ventos,
Que lhes mordia a face agreste e muda.
Quisera um dia eu fosse teu Narciso,
E a mim mirasses como a água o mirava.
Dou-te meu coração, com arco e aljava,
Para que portas me abras no Paraíso.
Que meu olhar, mirando-te na alfombra,
Onde estirada estás, Eva primeira
(Sem traições de uma folha de parreira),
Faça-me feliz, como a um deus na sombra.
Jamais
serei Narciso, meu amor,
Pois
de te mesma é que ressumbra a flor.
(Salvador,
15.10.2017)
SONETO
ROMANO
A Valdomiro Santana
Quin
etiam, Polypheme, fera Galatea sub Aetna
Ad
tua rorantis carmina flexit equos.
Sexto Propércio
(Elegia III, 2) *
Não sou Orfeu, não sei deter os rios,
Nem toco flauta no portão do Inferno,
Para tirar do Amor grilhões sombrios
E postá-lo na margem em que aderno.
Não sou Camões; Calíope não me ensina
Os caminhos do mar. Vou para o bosque.
Sei que irão perguntar-me adiante quousque
Tandem há de durar a minha sina.
Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,
Guarde-os perto do campo de azaleia.
Se mais seguros, lá, mais bem guardados.
Oh, Propércio, avise aí a Polifemo,
E me deixe no Etna com Galateia
Montada em seus cavalos orvalhados.
(SSA/BA,
manhã de 14/10/2018)
*E mais ainda,
Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,
Aos
teus cantos desviou os cavalos orvalhados.
(Sexto
Propércio, Elegias, trad. Maria da
Glória
Novak,
1992).
SONETO
COM BACO NA VINDIMA
A Paulo Martins, poeta, escritor e amigo
Condenado a viver por entre grades,
Do alto em que me despenco, serra acima,
Os dias passam, e eu, sentado em cima
De uma pira, desvio tempestades.
Encontro Baco, perto da vindima.
Leio para ele versos de Propércio.
O deus lamenta quedas de comércio
E busca na Ásia de Cibele a estima.
Baco venera versos bem traçados.
Ele me fita, banzo, e pede rima,
Que não seja de pano sem bordados.
Vou para casa. Volto. Ele se anima.
Sabor
e sonhos nunca interditados,
Trago na mão dois sóis
engarrafados.
SSA/BA,
25/10/2018
POR
CAMINHOS BUCÓLICOS
Tudo começa quando Sileno ama.
Quando a noite do desconsolo baixa,
A solidão semelha-se a uma caixa,
Em cujo fogo o coração se inflama.
Pego um livro de páginas amargas
E vou direto ao poema que me chama
Ao íntimo fulgor – ele é todo chama
De um coração que não divide cargas.
Subo e desço serras, enfrento vagas.
Vou por caminhos; sinto que me resta
Alívio redentor de contas pagas.
“Tristezas não pagam dívidas”, dizes.
Por isso é que passeio por floresta
De amor, de canto e pássaros felizes.
(SSA-BA,
20.11.2017)
SONETO
DE UM SONHO EM ÊXTASE
O homem se alimenta é mesmo de ouro e aço!
Não sei por que Helena causa tanto ódio.
Eu marquei hora com ela no relógio
De sol, lá do jardim de meu palácio,
E fomos jantar na gruta com Enéias
E Dido; em tudo, uma festa de tochas,
Lá dentro, a banhar de ouro as duas moças,
Com vinho e frutas em bandejas persas.
Não sei o que diria o néscio Páris,
De Troia, dessa orgia só de luzes,
Numa sonhada gruta de Cartago.
Talvez se benzesse com duas cruzes
Cristãs, ao ver que, no
auge dos desejos,
A noite se findou com um
sol de beijos.
(SSA-BA,
manhã de 14/06/2020)
NA
CASA DE ASTÉRION
Tecer no azul do céu a cor
da morte
Ou no verde do mar, na
branca espuma,
E até não perceber quando se
arruma
A casa onde a brisa, última
consorte,
Descerra a porta para o
Minotauro.
Apenas ouço-lhe o ruidoso
trote,
Com o trágico de Borges holofote,
Igual à solidão em que me
instauro.
Ele vem devagar, de agudo
chifre,
Na tarde melancólica, de
sombra
Vasta, que me rodeia e que
me assombra,
Passo a passo, a exigir que
me decifre.
Não sou Teseu, dispenso-me do luto.
Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.
(Salvador,
manhã de 05/03/2022)
VIAJANDO PARA DELFOS
Febe o ama, quando tudo se inicia.
Ao aporte de uma tarde acanhada,
Seu coração se inflama e o delicia,
Se ela suspira e sente-se enfadada.
Alcança o sonho o coração em chaga.
Há fulgor nesta aurora que a conclama:
Onde está Elano – é por quem ela
chama,
Onde está o amado, sua voz indaga.
Sai por todas as curvas dos caminhos;
Sobe e desce planos, mas nada resta
Dos oráculos que foram seus ninhos.
“O amor é cego”, muito bem tu dizes.
Desengano de passos infelizes
Faz a ninfa perder-se na floresta.
(SSA-BA, 22/11/2017)
SONETO
DE UM SONHO EM ÊXTASE
O homem se alimenta é mesmo de ouro e aço!
Não sei por que Helena causa tanto ódio.
Eu marquei hora com ela no relógio
De sol, lá do jardim de meu palácio,
E fomos jantar na gruta com Enéias
E Dido; em tudo, uma festa de tochas,
Lá dentro, a banhar de ouro as duas moças,
Com vinho e frutas em bandejas persas.
Não sei o que diria o néscio Páris,
De Troia, dessa orgia só de luzes,
Numa sonhada gruta de Cartago.
Talvez se benzesse com duas cruzes
Cristãs, ao ver que, no
auge dos desejos,
A noite se findou com um
sol de beijos.
(FM,
manhã de 14/06/2020)
NOTURNO
COM FLOR E NINFA
Morreu Narciso numa tarde aguda,
Quando a noite espreitava sonolentos
Bosques, e havia a música dos ventos,
Que lhes mordia a face agreste e muda.
Quisera um dia eu fosse teu Narciso,
E a mim mirasses como a água o mirava.
Dou-te meu coração, com arco e aljava,
Para que portas me abras no Paraíso.
Que meu olhar, mirando-te na alfombra,
Onde estirada estás, Eva primeira
(Sem traições de uma folha de parreira),
Faça-me feliz, como a um deus na sombra.
Jamais
serei Narciso, meu amor,
Pois
de te mesma é que ressumbra a flor.
(Salvador, 15.10.2017)
As portas e as
janelas, tristemente,
Miravam serrania
e verdes pastos.
Assim como
derrete campos vastos,
O sol na tarde
insulta rosto ardente.
Sou um homem de
outrora. Estes meus braços,
Que atravessaram
matas, montes, rios,
Na aura
vertiginosa dos plantios,
Carregam a
memória de balaços,
Que hoje não
denuncia a mão deserta.
Cacau, um deus
que chega e arreia a mala,
Vindo de México
ou de Guatemala,
Amor ao ferro,
só, nenhum alerta.
E quando as intempéries regurgitam,
São os céus vingativos que vomitam.
(SSA/BA, 26/04/2017)
SONETO
DOS QUATRO ELEMENTOS
A
JC Teixeira Gomes, Joca, no dia de seus 80 anos de idade
Cansei-me de pensar no que era o dia,
Se ele entre dois crepúsculos se evade.
Cansei de me perder nessa agonia,
Fosse hora calma, fosse tempestade.
Juntei a vida inteira os elementos
E a cada um dispensei olhar de justo.
Se regem mundos, regem os momentos,
Não conseguem parar o sol injusto.
A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses
Que governam e nutrem a Humanidade,
Como me adverte o oráculo de Elêusis.
Não podemos mudar de itinerário.
Ao fim nos resta uma única verdade:
O nosso cabedal é o calendário.
(SSA-BA,
09.03.2016)
EPISÓDIO EM 96 D.C.
Domiciano,
oitavo depois de Augusto,
para
livrar-se de morte à traição,
usou
na alcova pedras como espelhos.
Arranjou-as
de frente, delatoras,
Compondo
noites bárbaras, o César.
Da
cama, pela aurora, à luz de tochas,
Inquieto
mirava a pedra espelhada
Que
lhe interditaria a hora expectante.
Domiciano
de noites indormidas,
Que
mal fizera aos homens seus patrícios?
Fechou-se,
de si mesmo fugitivo.
Estefânio
sagaz, envolta em gazes,
Levava
a adaga luzindo, outro espelho.
Pobre
César, lutara com os seus medos.
(2002)
TRADIÇÃO
E MODERNIDADE NUM SONETO
Taurino Araújo*
"Soneto Romano" é uma obra sofisticada
que mistura tradição clássica, modernidade e introspecção. Por meio de
referências ricas e imagens poéticas, o autor reflete sobre a condição do poeta
no mundo moderno, suas limitações e sua busca por beleza e transcendência. É
uma peça que evoca tanto o esplendor do passado quanto as incertezas do
presente, reafirmando a poesia como um espaço de diálogo atemporal.
O "Soneto Romano", de Florisvaldo
Mattos, é uma peça de grande riqueza literária, com múltiplas camadas de
significado e referências intertextuais. Aqui está uma análise detalhada:
1.
Estrutura e Forma
O poema é um soneto clássico, composto por dois
quartetos e dois tercetos, totalizando 14 versos. Ele segue a métrica
decassilábica e adota rimas organizadas, contribuindo para sua fluidez e
musicalidade. A escolha do formato clássico evoca uma tradição literária que
dialoga com autores e mitos antigos.
2.
Temática
O soneto reflete sobre a posição do poeta em
relação aos grandes nomes do passado: O eu lírico se compara a figuras
mitológicas (Orfeu) e literárias (Camões, Calíope, Propércio), reconhecendo a
sua distância em relação à grandiosidade desses modelos.
A busca pela criação poética:
Há uma tensão entre a impossibilidade de
alcançar os feitos desses grandes nomes e a aceitação de sua própria condição
enquanto poeta.
Referências mitológicas e clássicas:
O poema é repleto de alusões que conferem
densidade cultural e dialogam com tradições literárias universais.
3. Primeira Estrofe: Mitos e Limitações
"Não sou Orfeu, não sei deter os rios,
Nem toco flauta no portão do Inferno,
Para tirar do Amor grilhões sombrios
E postá-lo na margem em que aderno."
Alusão a Orfeu:
O eu lírico menciona o mítico músico grego, cuja
música era capaz de encantar a natureza e até negociar com os deuses do
submundo para recuperar sua amada Eurídice. Aqui, o poeta admite não possuir o
mesmo poder transformador.
Reconhecimento das limitações:
Ele não pode "deter os rios" ou
libertar o Amor de suas amarras. Essa confissão sublinha sua humanidade e
distância das figuras mitológicas.
Ambiente melancólico:
A imagem de "adernar na margem" sugere
fragilidade e uma sensação de precariedade.
4.
Segunda Estrofe: Tradição Literária e Sina Pessoal
"Não sou Camões; Calíope não me ensina
Os caminhos do mar. Vou para o bosque.
Sei que irão perguntar-me adiante quousque
Tandem há de durar a minha sina."
Comparação com Camões:
O poeta português, associado às epopeias
marítimas, é invocado como outro modelo inalcançável. O eu lírico não explora
os mares, mas prefere o "bosque," um espaço introspectivo e
simbólico.
Diálogo com a tradição clássica:
Calíope, musa da epopeia, é mencionada como
ausente. Essa ausência reforça a ideia de que o poeta segue um caminho menos
heroico, mais pessoal.
"Quousque tandem": A frase latina
("até quando?") remete a Cícero e carrega um tom de questionamento,
sugerindo cansaço ou incerteza diante de seu destino.
5.
Primeira Terceto: Ezra Pound e a Busca por Orientação
"Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,
Guarde-os perto do campo de azaleia.
Se mais seguros, lá, mais bem guardados."
Ezra Pound:
Um poeta moderno, conhecido por sua busca por
tradições literárias antigas e pela renovação da poesia, é evocado como uma
figura que pode oferecer orientação ao eu lírico.
Imagens de repouso e segurança:
O "barco e o remo" são símbolos de
travessia e criação poética, mas, aqui, o eu lírico sugere deixá-los guardados,
em uma espécie de pausa ou resguardo próximo ao "campo de azaleia."
Simbologia das azaleias:
Essas flores podem remeter à beleza efêmera e à
fragilidade, em contraste com os grandes feitos das figuras evocadas
anteriormente.
6.
Segundo Terceto: Propércio, Polifemo e Galateia
"Oh, Propércio, avise aí a Polifemo,
E me deixe no Etna com Galateia
Montada em seus cavalos orvalhados."
Propércio:
O poeta latino, mestre da elegia amorosa, é
chamado para interceder com Polifemo, o ciclope apaixonado pela ninfa Galateia.
Polifemo e Galateia:
A história de amor não correspondido entre o
ciclope e a ninfa sublinha o desejo do eu lírico por beleza e harmonia, mesmo
em meio ao caos (Etna, o vulcão).
Cavalos orvalhados:
Uma imagem onírica que mistura sensualidade e
delicadeza, mostrando que o poeta encontra refúgio em um plano imaginativo e
sublime.
7.
Leituras Interpretativas
Humildade do Poeta Moderno: O eu lírico
reconhece sua posição modesta diante dos grandes nomes do passado, mas, ao
mesmo tempo, reafirma sua individualidade e busca por significado na criação
poética.
Diálogo com a Tradição:
Florisvaldo Mattos constrói um soneto que é ao mesmo tempo uma homenagem e uma
desconstrução da grandiosidade clássica, oferecendo uma visão mais pessoal e
humanizada da criação artística.
Tensão entre Modernidade e Clássico:
A menção a Ezra Pound insere uma ponte entre a modernidade
e o mundo clássico, mostrando que o poeta contemporâneo busca inspiração em
ambas as esferas. Maravilhoso!
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