Esquadra holandesa já na Bahia de Todos os Santos, em 1624
Florisvaldo Mattos
Em tempos de globalização, ciberespaço, redes interconectadas e mensagens on-line, facetas do que se vem, há décadas, ambiguamente chamando de pós-modernidade, pode parecer insensatez alguém se decidir a escrever um longo poema inspirado em fato histórico ocorrido há quase quatrocentos anos, como foi a presença dos holandeses na Bahia, entre maio de 1624 e julho de 1625, e sobre ele proferir palestra, mesmo sem estar a obra inteiramente concluída. Mas aconteceu algo que pareceu me justificar: a cordial maquinação de dois confrades da Academia de Letras da Bahia, o historiador Waldir Freitas de Oliveira e o poeta Fernando da Rocha Peres, que me induziram a redigir essas temerárias linhas, mesmo arriscando-me a ser, no mínimo, classificado de presunçoso.
Dividido em duas partes – Dias de 1624 e Dias de 1625 –, o que já se encontra em grande parte escrito compreende uma série de poemas sob o título geral de Mares anoitecidos, com um subtítulo de visível inflexão barroca – Conjeturas em torno de transações e desditas do Sig. Flaminco, em Baía de sal e sol, com forma deútero –, que pretendem refazer, misturando os gêneros épico e lírico, a trajetória daquela longínqua aventura, já por demais conhecida, na forma em que está obrigatoriamente narrada nos compêndios de história pátria, mas não se trata de poesia histórica, uma vez que (presume-se) exercícios nesse campo, vedado a poetas, parecem mais apropriados ao trabalho de prosadores, que lidam com pesquisa e documentos históricos, ficcionistas ou dramatúrgicos.
Melhor me parece defini-lo como um ensaio em versos, que intenta captar, de maneira pessoal, o universo dramático em que se moveu o destino de milhares de indivíduos, tão europeus quanto os que, precedendo-os em pouco mais de um século, subjugaram os primitivos habitantes do lugar, estabelecendo-se na terra, para explorar suas potencialidades territoriais e suas riquezas e exercer total dominação econômica, política e administrativa, enfim, trafegar pela humanidade daqueles povos de diversa nacionalidade, que, tomados de determinação, sonhos e ambição de poder e fortuna, aqui vieram ter, atravessando o oceano de um hemisfério a outro, com navios e armas, dispostos a suplantar heroicamente inúmeras vicissitudes: chegam de madrugada, travam lutas, conquistam a terra, estabelecem domínio, impõem normas, mas, acossados por guerrilhas, nunca realmente vencem, até serem finalmente derrotados e expulsos por forças de maior calibre, levando cada um consigo apenas um passaporte espanhol, nada
mais.
Já que a ideia central é a de um malogro, melhor direi que se trata de um poema sobre a infelicidade, ou talvez um hino à fraternidade dos seres humanos, que toma o partido da descrição de emoções e vivências do lado e pela voz de quem se inseriu num jogo de contradições, que mistura razão e sentimentos, motivações, desejos e atividades individuais e coletivas, envolvendo ações e personagens, desde o êxito inicial até o total e inapelável fracasso.
No século XVII, já não havia espaço para o final feliz das epopeias do passado. A Companhia das Índias Ocidentais era uma empresa comercial, um braço da burguesia europeia nascente, não uma confraria de heróis míticos vitoriosos, como os da Antiguidade Clássica e Idade Média (Ulisses, Eneias, os cavaleiros cruzados), passando tudo isto a ser alusão, invocação ou evocação. O tempo, então e doravante, é o da aniquilação do herói. Gradativamente, desaparecem a utopia e a fé; instala-se o império do malogro: será a hora do cavaleiro-de-triste-figura, de perfil e destinos diversos. O tempo então era o de buscar, como dizem os relatos, “o tesouro rico, porém mal seguro” (intento que, ainda, continua e que se contém numa quadra em verso, também lembrada e atribuída a Brás Garcia Mascarenhas, no poema épico “Viriato trágico”, que assim reza:
A idade de ouro então lembrava,
E a da prata, que florescia,
Já com intercadências vacilava
Porque perto a do ferro transluzia.
Cabe a pergunta sobre quando e por que me interessei pelo tema e a forma como resolvi abordá-lo. Ocorre, sem nada a ver com literatura, que certo dia, me caiu nas mãos, por gentileza de um empresário italiano do ramo de hotelaria e alimentação, para minha surpresa nada menos do que um descendente distante de Giovanni Vicenzo de Sanfelice, o célebre conde de Bagnuolo e marquês de Torrecusa, integrante da armada vitoriosa chefiada por D. Fradique de Toledo Osório, e um dos luminares das batalhas contra os holandeses, na Bahia, e depois, em Pernambuco. Doava-me Alfredo Boccaglini de Sanfelice, 49 anos, então residente em Salvador, um recorte amarfanhado e amarelado de jornal napolitano dos anos de 1890, que recordava o episódio flamengo, com redação e olhos italianos, recebido por sua mãe, Luisa Sanfelice, das mãos de uma prima octogenária, Luisa Virginia Imperiali dei Marchesi di Serracapriola, também descendente de Bagnuolo, mas àquela altura já morta, que, por não estar familiarizada com tais fatos históricos, não soube precisar em que jornal de Nápoles saíra a para mim ali alvissareiro informe.
Esse recorte, que trazia apenas enigmática assinatura de A. Com., cuja tradução publiquei no caderno A Tarde Cultural, em edição destinada a rememorar a entrada dos holandeses na Baía de Todos os Santos (9 de maio de 1624), graças à gentileza da professora italiana Silvia La Regina, então ensinando na UFBA, abriu-me caminho a outras leituras. A primeira delas iria ser um escrito relativo à presença dos flamengos na Bahia, constante da Enciclopédia Larousse que acabei por descobrir ser de autoria do historiador Pedro Calmon, com um elegante resumo dos fatos, aqui e ali pontuado de ironia, mas o impulso maior me viria basicamente de duas outras publicações, estes por si mesmos célebres: a Relação da conquista e perda da Cidade do Salvador pelos holandeses em 1624-1625, de autoria do alemão Johann Gregor Aldenburgk, que integrava a armada holandesa, publicado na Alemanha em 1627, mas no Brasil somente em 1961, sob patrocínio conjunto do Conselho Nacional de Pesquisas e Universidade Federal da Bahia, em tradução do pernambucano Alfredo de Carvalho, e A invasão holandesa da Bahia, do padre Antônio Vieira, na edição de 1955 da Livraria Progresso Editora, que reproduz com ortografia atualizada a chamada “Carta Ânua de 1624-1625”, de cuja redação fora incumbido por seus superiores o jesuíta ainda jovem.
E, para ser justo, confesso, mais me servi, por seu grande realismo e sinceridade, das informações contidas no impressionante livro de Aldenburgk, do que das de Vieira, a meu ver condicionadas pelos interesses políticos e eclesiásticos da dominação colonial e, por isso, consabidamente parciais. Claro que li outros textos, mas esses eram os que mais me pareciam bastantes ao sonho que me animava.
Os poemas de Mares anoitecidos referem-se ao infeliz trânsito dos flamengos na Bahia, mas não se fixam na essência histórica dos fatos, já que estes, é fácil supor, mais se me abriam a projeções de imaginação criativa do que a áridas descrições. Por isso, as ações de personagens neles avizinham-se da invenção, embora se agrupem numa ordem temporal que se inicia com o incidente dramático da chegada das tropas (tidas ainda hoje como invasoras), prosseguem com a conquista do lugar, a fuga da população, a reação e os combates, o saque e a divisão do butim (inclusive com os mercenários delas integrantes), a guerrilha, as incursões flamengas pela Baía de Todos os Santos e litoral, a paisagem, o mar e seus mistérios, a dominação e os ofícios, os idílios, sofrimentos, desilusões, humilhações e tristezas, a reconquista, a derrota final, a expulsão das tropas, as despedidas e o regresso dos vencidos, as punições e condenações – enfim, todo o arsenal de situações e emoções que permeiam o acontecer em geral, desde os começo do existir humano.
Embora se trate de uma narração difusa, quatro protagonistas históricos dessas ações se destacam em poemas específicos. Um monólogo dramático conjetura o instante mesmo da morte, numa emboscada, do general Johann van Dort, que era comandante das tropas e governador constituído pelo conselho de guerra holandês, narrada pela própria vítima, em junho de 1624, no qual intento resumir a vida inteira do flamengo, sob a forma de revelação teatralizada; outro poema suscita as circunstâncias da morte, em outubro do mesmo ano, do bispo Dom Marcos Teixeira, um paradigma da resistência e da guerrilha; um outro delineia a figura do gentil-homem e cavaleiro triunfante do espanhol Dom Fradique de Toledo Osório, chefe das tropas redentoras e o grande vencedor final, cujo feito seria depois desprezado; finalmente, de forma alusiva, referencial, o solitário almirante Jacob Willekens, comandante-geral da esquadra holandesa, que passou todo o tempo da ocupação dentro de seu navio. A maior parte da narrativa poética dessa malograda e infeliz aventura se expressa pela voz oculta de um seu suposto protagonista.
Armada holandesa, ante o porto da Bahia, por João Albernaz
Há motivos para especial destaque dos três primeiros personagens. Desde os bancos escolares que frequentei, na adolescência, impressionava-me o modo como os historiadores teatralizavam aspectos desse fato histórico. Um deles, creio que Vicente Tapajós, em livro para o curso ginasial, narrando o momento crucial da execução do general Van Dort, cercado e atacado em Água de Meninos por hordas guerrilheiras, punha na boca de um dos algozes, que o trespassara com a espada, a inflamada frase: “Morra, infame!”. Intrigada, a mente juvenil então se perguntava como teria sido possível, senão por visível part-pris narrativo, surpreender em tal momento palavras tão nítidas de celebração, a transpirar ódio, embora beirassem a contrafação e a caricatura.
Aldenburgk corrige esse viés do oficialismo narrativo, sancionando ânimo de vencedores. Por outro lado, devo ao padre Antônio Vieira (Lisboa, 1608-Salvador, 1697), ao dedicar a Dom Fradique apenas seis páginas das 74 de sua narrativa encomendada, o impulso para retratar o comportamento cavalheiresco do espanhol, baseado nas lições que oferecera de direito internacional, ao se compungir da sorte dos vencidos, após a vitória, segundo palavras do próprio Aldenburgk. A meu ver, menosprezando o verdadeiro herói do triunfo, Vieira jogava com os interesses políticos, que submetiam a Colônia do Brasil, desde que Portugal, a sua pátria, a que os
jesuítas deviam vassalagem e privilégios, era então domínio da Coroa espanhola sob Felipe IV. Dei a esse poema o título de “Reversa Troia”, por na essência resumir o sentido geral de minha composição, na qual os que cercaram e conquistaram a cidade acabaram vencidos e expulsos, ao contrário do desenlace trágico narrado por Homero, na Ilíada, em que os gregos sitiaram, conquistaram e liquidaram ou escravizaram os troianos, como em muitos episódios que a história conserva. Com base ainda em Aldenburgk, cogitei que o elevado gesto do espanhol se avizinhava dos sentimentos de piedade e compaixão que Aristóteles, na Poética, define como pontos centrais de configuração da tragédia, em sua forma clássica. Comovia-se Don Fradique com o triste destino dos vencidos.
A narrativa sectária de Vieira, em contrapartida, iria me fornecer o ingrediente de realismo necessário para o retrato heroico que traço do bispo Dom Marcos Teixeira, uma vez que lá, das vestes rústicas à aparência desgrenhada de um chefe devastado pelo cansaço e as doenças, em ações de guerra por campos, rios e florestas, acompanhado de um séquito de clérigos guerreiros, prefigurava a imagem de um personagem trágico, o Senhor Bom Jesus Conselheiro, o beato dos conflagrados sertões baianos, quase três séculos depois. Já o comandante Willekens era um personagem misterioso e insólito que, enquanto permaneceu a esquadra por mais de um ano no porto de Salvador, jamais deixou o seu navio para vir à terra.
Embora jamais tenha nutrido a pretensão de cultivar uma estética, capaz de oferecer base convincente ao que escrevo, nem poderia tê-la, por motivos fáceis de presumir, de que o maior é a flagrante limitação de meus conhecimentos filosóficos, embora alguns pensadores não me sejam de todo estranhos, creio que devo dizer sobre a forma de alguns poemas.
Sou partidário da ideia de que a criação poética advém da confluência entre dois procedimentos, duas operações que ocorrem em separado: uma controlada pelo subconsciente, que em geral precede a execução do poema, a que costumamos chamar de inspiração, de manifesto fundamento romântico, a porta por onde o sonho e a imaginação transitam, e outra que pertence à esfera da inteligência, que, empenhada no manejo de recursos formais, de caráter simbólico, arregimenta signos e ordena a expressão da linguagem, para a execução e até a modificação do objeto, o poema. À primeira operação presidem as musas, como está nos clássicos; a segunda se processa e se conclui pela contínua presença da insatisfação, que domina a mente e o ânimo de cada autor. Tudo isso ajustado para alcançar a emoção, presente na necessidade de o poeta ser sincero para consigo mesmo e para com o seu possível leitor, ou ouvinte.
Considero-me um tributário das ideias do Modernismo, a corrente estética que mais influência exerceu sobre a arte do século XX, envolvendo as suas mais diversas linguagens, mas valho-me dos recursos que estão ao alcance de minha formação intelectual, como seja o respeito à tradição literária e cultural, e, por isso, não me peja reconhecer e agradecer a influência de muitos mestres do passado. Assim, embora prefira o verso livre ou branco, um dos pilares da poética modernista, como se sabe, sinto-me com frequência atraído pela recorrência a formas clássicas, talvez por gosto pessoal ou carência, que não descarta a estrofe, o verso medido e até a rima, ao ponto de algumas vezes me valer da forma do soneto, embora numa diversa ordem de pensamento, construção e expressão, isto é, sem devota submissão a convenções. Procuro formas que eu possa exercitar com naturalidade e não me provoquem tortura íntima ou mental.
Nos poemas de Mares anoitecidos, tenho trabalhado com formas variadas, em versos que tomam corpo em função do próprio ritmo linguístico e, assim, não deverá causar surpresa ao leitor a presença de decassílabos, endecassílabos, alexandrinos, com ou se hemistíquio, heptassílabos e outros, versos longos ritmados ou curtos, entremeados ou em sequência, brancos ou rimados, que frequentam antigos manuais de versificação, numa aura evocativa de ritmos jâmbicos e híbridos. Em certos casos, o andamento pode até parecer prosaico, pois cada vez mais estou convencido, com perdão dos prosadores, de que a prosa não é mais do que uma degradação da poesia, despojada que se mostra do que as palavras guardam e ressoam de sua origem mágica. Não me arrependo, nem acho que tais opções técnicas me desonrem, desde que se trata da eleição de um processo criativo e construtivo, que, a meu ver, mais propicia que complica o entendimento do enunciado. Não me incomodo se, por preconceito ou através de crítica teórica, alguém venha me tachar de discursivo, de me enfileirar entre os que possam ser rotulados de neoconservadores. Não é uma defesa, mas uma manifestação de consciência e conformidade.
Quanto ao conjunto em si, estabelecendo relação direta com o possível leitor, achei por bem redigir um poema a título de prólogo, lavrado em versos alexandrinos brancos, em que procuro justificar a razão e razões de minha iniciativa, que no fundo se desenovela como um só poema, fatiado em vários outros, num retorno às formas e à ambiência pânica de meu primeiro livro, Reverdor, de 1965, mas distante de certas soluções formais, então em voga, que contribuíam para refrear em muito a expressão poética.
Foram especificamente os cinco monólogos de Garcia D´Ávila, com que se inicia Reverdor, que me inspiraram o monólogo dramático da morte do general Johann Van Dort, mas, agora, ao retomar a entonação épica que o tema favorecia, a reflexão e a experiência literária me indicavam que chegara o momento de dizer emocionalmente bem mais. Não nutrindo satisfações, nem expectativas de museus, e advertido de que nosso idioma, como todos aliás, configura uma tradição entranhada no sangue e na memória do povo brasileiro, nos poemas de Mares anoitecidos, optei por ser simples, fluente e claro, ao usar palavras e frases legíveis, mais facilmente acessíveis ao entendimento do leitor médio.
Confesso que o envolvimento com a temática e a determinação em construir um poema que se estendesse em camadas superpostas me levaram de volta à leitura de poetas de adormecida predileção, a maioria espanhóis e latino-americanos. E lá fui eu, pensando em atos de conquista, cavaleiros, armaduras, elmos, lanças, cavalos e escudos, barcos e águas ignotas, gentes e terras incultas, mitologias, grandezas e incertezas, revirar páginas e versos de Francisco de Quevedo, Antonio Machado e Miguel Hernandez; de Rubén Darío, Cesar Vallejo, Santos Chocano, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges e do luso Camões e, porque não, de dois ardorosos baianos, Gregório de Mattos e Jair Gramacho, e mesmo o velho Itaparica, em publicação de cujo resgate se incumbiu briosamente o poeta Fernando da Rocha Peres, quando diretor do Centro de Estudos Baianos, da UFBA, que me ofertou um exemplar, e até um pouco do bucolismo do portentoso Virgílio, nas suas Églogas.
Tudo isso me vinha à mente, para que não me tornassem estranhos a atmosfera, o ambiente e o tempo humano, o memorável universo enfartado de coragem, aventuras e ímpetos de um século, em que viveram, além de Miguel de Cervantes, Francisco de Quevedo e Luis de Góngora, luminares outros, como Calderón de La Barca, Lope de Veja, Diego Velásquez, El Greco e o holandês Rembrandt, por isso de ouro chamado, e em que ocorreram aquelas remotas e obscuras façanhas, agora poeticamente revivida, sem medo de que neste processo criativo se surpreendam exemplos de intertextualidade, mas sentindo-me como as tivesse vivido e testemunhado, com a mesma intensidade e garra com que, em tempos de juventude, deblaterava com ideias em defesa de verdades que cedo se tornariam conformada ilusão, restando apenas a memória do fervor. E posso afirmar que saio dessa afanosa experiência como se tivesse me apossado daquele “contínuo de emoção captada em tranquilidade” (emotion collected in tranquility), o estado próprio da poesia, encastoado na célebre definição do inglês William Wordsworth (1770-1850). E, neste itinerário de sonho e aventura, o verso é a minha lança, e a fantasia, na velha ideia de força criadora proclamada por Hegel, o meu escudo.
Aelbert Cuyp (1620-1691) imagem de Rio com Cavaleiros
ADENDO NECESSÁRIO
A origem dessa redação notoriamente revista reside em palestra pronunciada durante seminário, que o Conselho Estadual de Cultura, de que era presidente o professor e historiador Waldir Freitas Oliveira, promoveu entre 20 de julho e 24 de novembro de 1999, sob o título de “Brasil 500 anos – Encontros na Bahia”, dividido em quatro sessões, na primeira das quais, realizada no auditório do Museu de Arte Moderna, coube-me falar sobre tema de minha livre escolha, situado no século XVII. Foi o próprio organizador que me anunciou, informando que eu pronunciaria conferência sob o título de “Flamengos na Bahia: razão e razões de um poema”, anunciando a próxima publicação de um poema épico por mim escrito “sobre a invasão da Bahia pelos holandeses em 1624”. Em publicação da carioca Imago Editora, Mares anoitecidos seria lançado no segundo semestre de 2000.
Como nessa palestra, só agora 21 anos depois incluída neste livro, referi-me a de suas estadas na Bahia do século XVII, sinto-me estimulado a transcrever o monólogo que tenta reproduzir o momento do suplício que ceifou a vida do general Johann van Dort, por ele próprio, heroica e dramaticamente narrado; mas antes, por sua evidente singularidade, creio ser conveniente revelar a circunstância que me levou a adotar tal técnica narrativa.
Entre minhas remotas leituras, um dia bati-me com uma das tessituras épicas de Jorge Luis Borges, “Poema conjetural” (El otro, el mismo, 1964), em que o argentino reconstrói o monólogo de um de seus antepassados no momento mesmo em que está sendo degolado por uma horda de guerrilheiros contra os quais lutava.
Segundo o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal (Jorge Luis Borges. Ficcionario – Una antología de sus textos. México: Fondo de Cultura Económica, 1985), nesse poema, Borges estava utilizando um recurso poético que tornara famoso o poeta inglês Robert Browning (1812-1889), adotado em seu livro Dramatis Personae, publicado em 1864 (Borges escreveu o dele justos 100 anos depois).
Decidi espontaneamente seguir este mesmo insólito modelo poético, optando por reverenciar um tema heroico, em elocução dramática, que, como diz Monegal, “reduz a vida inteira de um homem a um momento extraordinário e revelador”. Assim como Borges, mas em escala criativa de imensa inferioridade, considerei que essa técnica se ajustava perfeitamente ao que transitava em minha imaginação e a adotei na redação do poema, em que uso, como epígrafe, elocução do poema do argentino. A essa altura, vejo-me instigado a transcrever adiante, além desse, outro poema que suscita também instante dramático desse indelével malogro, mas de sopro idílico, refletindo o momento do adeus de uma das jovens mulheres que viveram prévias ilusões desses infaustos dias e nelas confiaram, despedindo-se, na véspera mesma da expulsão, de um dos guerreiros batavos, com quem travara, por meses, em cauteloso silêncio, relações de amor, encanto e devoção.
*Artigo redigido, a partir de palestra pronunciada, em fins de 1999, sob o título de “Flamengos na Bahia: razão e razões de um poema”, no âmbito de um seminário que tinha como referência 500 anos de Brasil – Encontros na Bahia. (Vários). Salvador-BA: Secretaria de Cultura e Turismo, nov. 2000.
Frances Wanderley Landim
(24/05/2024)
E também Johan Van Dort que fracassou na Bahia, ao contrário de Pernambuco lugar aonde os holandeses permaneceram por uns 25 anos. Esta conquista holandesa me é muito simpática pois na comitiva de Mauricio de Nassau veio e nunca mais retornou a Holanda Gasper Van Der Lei meu antepassado que deu nome a família Wanderley que, em homenagem a Mauricio de Nassau deu esse nome aos seus descendentes.
Meu avô se chamava Joaquim Maurício Wanderley e seus filhos eram Carlos Mauricio, Joaquim Mauricio e por aí vão os Maurícios de minha família. Carlos Maurício era meu irmão, seu filho é Joaquim Maurício e por aí vão. Na família Wanderley Mauricio de Nassau, é homenageado em todas as gerações.
Quando Carolina fazia pós-graduação na Holanda eu fui lá por 3 vezes. Gasper Van Der Lei nunca mais viu a Holanda. Casou-se com uma portuguesa viveu em Pernambuco cultivando cana de açúcar até o fim de sua vida. Teve muitos filhos chamados Mauricio.
Florisvaldo Mattos: Que maravilha, grande Frances! Parabéns a ilustre família Wanderley. Que enorme contribuição, esta sua, permita-me usar no registro dos 400 anos dos holandeses na Bahia.
O domínio holandês da Bahia fez-se total por todo ano de 1624Abaixo excertos e poemas inteiros,
para o porão
também quem vier
de arma na mão
levante ferros
dê saudação
façamos relato
ao grão capitão
de glória se encha
o seu morrião
ô sig. flamminco
meu capitão
nos dê mais quartau
nos dê mais falcão
vamos erguer
maior gabião
madeira de lei
em força de guerra
de louro durão
como um sansão
venha nos ver
no mato cortando
seu mandrião
o nosso que é
bom capitão:
brancos negros
selvagens índios
todos levados
para o porão
todos privados
de luz de céu
e de paisagem
privados de chão
que é o que mata
no coração
que nos importa
seu cantochão?
“Valei-nos, Senhora
da Conceição!”
Em norma de assédio
livramos penhasco
seguindo o caminho
levado entre rochas:
subir rastejando
alçando trepando
livremos espadas
e os sabres nus
o que nos espera
de lado do cimo
fortificado
Sem gesto amigável
a rogos de paz
preparamos descarga
para cima do monte
de fogo mui vivo
assalto constante
baluarte alvejado
até de manhã
com artilharia
de carga pesada
a poder de falcão
apontar de mosquete
de sabre na mão
arrasar cidadela
ao rugir o canhão
nos corpos de guarda
abandonados
logo fincamos
o marco de Orange
em mais sobranceiro
aparato de alfanje
Mas que é que vem lá no espelho grande,
É a cor da laranja, é a alma tricolor?
Teremos granada, mais arcabuz, quartau,
teremos charruas, batelões, chalupas,
facão de abordagem, que mais precisamos
com todos acabar como o gato ao rato.
Miragem bem maior que a nossa espera
É peça que nos prega o calendário.
Novas de boca em boca, escritas veras,
lavradas nos papéis do almirantado
e seguidas adiante qual se foram
bradadas convicções de cetro e paço.
É doida a debandada;
noite alta, ou mais, eles,
fresta e porta houvesse,
como de medo cegos
levando
de seu quanto puderam
atrás quanto sentiram
deixando
ainda mais ligeiros voz
e lágrimas como armas
únicas
mais cresce o pavor
em quem mais teme
tanto
que dava pena vê-los
adentrando pela aurora
tantos
pelos matos e ribeiras
em coice de incêndios
teia
de sobressalto e grito,
incrédulos de si como
de todos,
de tudo como perdidos.
SESTA E ALFAIAS
Que belo convento de arrabalde!
A mesa está posta, senhor capitão.
Em baixelas de prata vêm servir-lhe
deliciosos vinhos doces confeitos
de finas mãos e prazenteiro gosto;
que a noite lhe dê um bom descanso,
um justo sentir de glória alcançada.
Guarnecidas as portas com certeza
lhe garantimos, meu bom capitão;
orne-se o seu sonho de fantasias,
muito do que traz no peito sentido,
tudo ouvimos, respeitamos, saudamos,
nessas águas e terras conquistadas,
palavras que são troféus no amanhã.
O Nordeste produtivo do século XVII, pintura de Franz Post
SOB SIGNO LARANJA
I
Sentinelas despertas arrebanham vozes.
As poucas armas calam. Que nos pedem?
Clemência? A fé mais que compreende entende.
Viemos para gloriar as águas desse império
de possessão, comércio, outras verdades;
nossos palácios, vestes, nossos códigos,
luzirão em moeda sonante de evangelhos.
Ninguém dirá que nossas naus terão
outras, além do mar e cataclismos,
hostilidades, sem nada em nosso encalço
a cobrir-nos de cinza, fúria a injuriar-nos,
nem ciclopes à frente que temer.
II
O português que vem nos insultar
lhes devolvemos sem as mãos; no couro,
lanhos, árduo corpo, sangue a escorrer.
Outro que de lá vier brandindo armas
lhe pregamos a mão no mastro grande
para que na fuga a lasque, ou ali morra.
O salto da verga pode ser outro castigo;
se nos ferem algum de nossos chefes,
a cordas passará debaixo do navio,
com peso atado ao peito, na boca azeite,
ou amarrado ao poste, estrangulado.
É a lei de bordo, a lei do mar, a nossa lei.
ESTRADA DE MONTE SERRAT
TRIUNFO AZUL
O senhor general está dormindo?
– Não, foi passear no Paraíso.
O senhor general está sonhando?
– Não, foi venerar São Servando.
Ô, Sig. Flamminco, que foi fazer
O general além dos muros?
– Plantar jasmim, colher antúrios.
Filhos do mar, por que chorais?
– Porque perdemos nosso siso.
Por que gritais, por que morreis?
O senhor general está sorrindo?
O Senhor general não mais
Resiste. Pousou sobre a gávea.
É ave, solta no azul profundo.
LÂMINAS E BATALHAS
Do morro da forca, o sol no ocidente,
a armada espanhola já rompe na barra,
a urdir meia lua, a fazer abordagem,
a despachar galeões e também caravelas.
Esperávamos os nossos, chegaram os deles
ao mar que era vosso, senhor capitão.
A terra resiste, fazendo serão;
nas vascas da noite o ar assobia.
A bala que passa, rasgando couraça,
metralha pesada, rodelas e lanças,
zunidos que fazem a morte luzir:
céu em brasa, mar rubro terra adentro.
Capitão, me dê os meus óculos
que eu quero enxergar a barra.
Por ali nem passa um cão desgarrado;
me dê a luneta, capitão, quero ver.
“Homem, saia; saia de cima do bastião.
Pense em algo, batavo, para os distrair”.
“Mas são 30.000, e nós nem 1.000”.
“Pegue escopeta, pegue mosquete.
Vá, faça fogo, de forte ou de gabião
para tudo acabar em boa monção”.
“Disfarça que a noite cá nos ajuda.
Corre que o dia ainda vem longe”.
Lá se foi o pé, lá se foi a cabeça,
a luneta no chão, costelas na rua.
Me dê os meus óculos, senhor capitão,
que lá vem alguém de bandeira na mão.
O senhor Van Dort já foi sepultado.
Ouço o tambor; quem feriu derrubou
com sua alabarda um varão cavaleiro
da melhor estirpe, um senhor general.
E não se permita que hordas selvagens
lhe maculem a fronte sereníssima.
A frota reunida está no alto mar.
Se desinteirou, tem que inteirar;
o que se quebrou se vai consertar;
faz torre de pedra, faz forte no mar.
Canto os mares e o sonho, o sofrimento canto Dos que, ébrios de ambição e aceso desvario, Degustaram um dia o mosto da aventura. |
ESTUÁRIO
(Excertos)
(ALDENBURGK)
ÁGUA-VIVA
Na ilha vã tudo é vastidão: areia
nula de vivalma, de árvores baixas,
pouco mais elevadas do que um homem,
passos ali de antigas vozes; idas,
apenas relembradas no incitar,
no parolar de vento e água, relatos
de espuma caligráfica que o dia
flagra: ágil mão em redes, forte braço
em remos. Mais que sejam rotas velas,
de mistura com sanha, à descoberta
de seres que, tocados por soldados,
logo aturdimento, ira e grito soam,
pelo estupor de pele envenenada;
olhos, se roçados, para sempre cegos.
ASAS
Em pleno ar sobre o mar, ato de pássaro
vomitar a presa, rente à flor da espuma,
rápido qual olhar, vizinho do pensar;
outro de acossar, no logro apanhá-la,
o alvo acrobata, qual tesoura a cauda,
toma-a, ao reflexo da faiscante lâmina;
mas o ato do volante atleta não
cessa ali no gesto. Ao desdobre da água,
multiplica-se. E, onde há um peixe e um pássaro,
passa-se a vários, líquidos, no espelho
(peixes e pássaros), rugoso linho,
onde a manhã se faz terso infinito,
quando a água, afeita a dobras, teatros lavra
com pedra, vento, nuvem, ramos, casas.
PEIXE
O peixe, ali fisgado como um’alma
que viesse de paraíso adormecido,
vem com listras também de cores pardas;
a anzol, rede ou arpão parece imune.
Percorro a face clara do mar. Subo,
desço com o barco lesto sobre as ondas,
e instalo a perdição que é minha e dele.
Súbito, contra a espuma finco o remo
e aguardo a solidão de sua perda,
para o fatal lampejo que a água lança:
é ele, puro, que ascende e fura o espelho,
a ele ignoto e também fatal desígnio.
Vejo o sangue escorrendo lentamente,
pela guelra, e o olhar de ouro que me fita.
ILHA
Sobre as sebes de Itaparica, sobre
as águas e margens do grande rio,
o céu de cores irrecuperáveis.
Ao longo da restinga, um animal
transita o corpo limpo na savana,
aves marcham pacíficas na tarde,
alongada em coral e ventos calmos;
navega o sol no céu das aquarelas,
com cores de Post, quase de Rembrandt,
que dialogam com o mar de Amsterdã,
inda a sonhar com viagens e com musas,
a cuidar de tulipas e jacintos,
lá onde passeiam almas. Adeus conchas
de um mar de adeuses sempre sucessivo!
QUADRANTE
Perdemos os víveres
salvamos as naus
sobrou provação
Vento sopra forte
prepara monção
em todo o quadrante
Levantem os ferros
soldados se cubram
de bom cordovão
Deem tragos de rum
preparos com mel
deem fumo e conservas
De bom e do melhor
das terras flamengas
também das Antilhas
A carga salvou-se
Ô Sig. Flamminco
quero ir para a Holanda
Conhecer as gentes
Correr todo o mar
Que está nos seus olhos.
Mar de cinza escuro e sal vestido. vasto céu de azul a balaiadas do Norte venho ao bambaê das ondas. (FM) |
PÔR-DE-SOL EM TOMBADILHO
I
Daqui vislumbro fúlgidos oitões,
torres altas: imperturbáveis, ígneas;
a subir e a descer entre volutas,
a morder iriado maciço em rocha,
cinzentos panos outros de muralhas,
a avançar sobre o golfo flamejante,
a luz que sonha com navegações.
É demais para mim de mares turvos
habitante a gemer entre sargaços,
viajar por inclementes latitudes,
álgidas atmosferas de luz baça,
gnomo trânsfuga de remotos lares,
embeber-me de sonho em céu fosfóreo.
É demais para mim, marujo frio.
II
Que me sucederia, se eu tivesse
seguido para o norte em outra esquadra,
lavrasse outras batalhas com outras gentes,
doado me tivesse Dover o arco-íris?
Que me sucederia, se eu tivesse
rejeitado os acenos de águas rudes?
Se em Texel eu armasse a minha tenda,
de ventos temerosos resguardado,
não levasse comigo a ideia atroz
de perscrutar obscuros horizontes,
se lúcido estancasse afoitas velas
em estuário mais próximo de mim?
Que me sucederia, se o timão
eu dobrasse a outra parte, se fugisse?
Meu coração agora te pertence
lua que vaga sobre esses rochedos,
eles mesmos reflexos de longínquos
muros, agora esfinges a espreitar
distâncias, a arrimar arquitetura
nostálgica de cercos, a exumar
brasão latino ou artifício mouro.
Meu coração agora vos pertence,
graves rochedos, arsenal de fúrias,
que são artes do tempo, vosso algoz:
em quieta hora da tarde ou noite morna,
decreto imemorial que a espuma lavra,
a ruína e morte, e a solidão, alude
o som da água que ruge a vossos pés.
A Ronda Noturna, de Rembrandt, uma joia do barroco holandês |
RONDA DIURNA
Há inutilidade de armas, há
cavilações de um deus dissimulado,
submerso em sons de búzio provisório.
Eu padeço de exílio, antes me vá
gretando a carapaça do pecado,
por já muito vivido e sido, chore-o
meu resíduo pastor, se dores há.
Conservo experiências malogradas,
ante o furor de ventos insurretos.
Olhos ficaram mudos e os semblantes
transudam medo ao longo das estradas;
o conluio de sonhos prediletos
apenas resta o lacre dos instantes
vencidos, estratégias malogradas.
Poente aceso. Que grande herói guerreiro
partiu para chegar e não chegou?
instantes acumulo, são idades
inscritas sobre a pedra do primeiro
chão vingado. O tribunal baixou
sentenças espectrais, severidades
de oceano, mais idade, mais guerreiro.
Marujo velejando ao meio-dia,
com sol ou chuva, ajusto meus velames,
a boa mastreação. Ante perigos,
viro a bombordo, leme e cordoaria
resistem, cumpro regras e ditames,
vedando quanto sobra aos inimigos,
enquanto a dor navega o vasto dia.
REVERSA TROIA
A Fernando da Rocha Peres (gentil-homem saído de um quadro de El Greco)
Il General della armata Espaniol ó del campo, Dom Frederico de Toledo, de estatura um galhardo príncipe e herói, acompanhado dos coronéis (...), várias centenas de nobres de capacetes coroados (...) postaram-se na praça velha, fizeram içar com grande solenidade a bandeira espanhola... arriar a dos Estados Gerais, enquanto seus tambores rufavam alegremente, e toda a sua artilharia de terra e de mar salvava à vitória...”
(J.G. Aldenburgk, 1627)
Flâmulas e bandeiras nas janelas
e a multidão de rostos retornados,
que o fel das amarguras espalhara
por praias e florestas, junto a charcos,
na fúria que ditou o instante bruto
em que a noite cortara estrada ao dia.
A praça engalanada lavra o séquito
do general da armada, o grão de campo,
companheiro de todos comandante,
espanhóis, portugueses, italianos,
fulgindo em salva e agudos de trombetas,
em luzente couraça, com lindezas
de ouro e pedras cravejada; pendões
idem de bordadura, e o brasão d’armas
de Espanha, a púrpura e os cordões de seda,
o tecido de todos os cavaleiros,
pelo estandarte rubro que tremula,
fiado por mãos que serviram reis,
com a Virgem e o Menino publicados,
tudo mui numeroso como altivo,
salvaram galeões de canhoneio.
À força de conselho, os do lugar,
assumindo alta voz, logo se acercam;
a Dom Fradique de Toledo Osório,
o titular da glória castelhana,
as humanas vontades propuseram
trucidamento e forca em lusas mãos,
em cobro à afronta e a tudo que perderam.
Acenderam-se os olhos do galhardo
Príncipe; o cenho fecha-se, como a ouvir
o alarido de mares clamorosos,
que soldados e naus atravessaram,
areias e montanhas que ainda nítidos
guardam rastros de César e Pompeu.
Os olhos trilham de antes e depois
revérberos caminhos: os da poeira
que os cavalos de Aquiles levantavam,
na dura Troia, em luta contra Heitor,
os turcos em Lepanto, os andaluzes,
contra o mouro tenaz quanto ardiloso,
empunhando recurvas cimitarras,
os de Cortés vencendo a Montezuma,
esparramando pompas e amarguras,
na severa conquista americana;
ou de Holanda mesmo os já trilhados,
com as vitórias e todas as insígnias,
já mui bem afamado por mui anos
de chefia de tropas e de armadas.
Lábio crispado, teso pela ofensa,
para o orador e para as armas todas,
repassando as escrituras do direito,
a lei das gentes, ali, como se em Roma
estivesse no Fórum, no Senado,
em Cortes de Madri ou Salamanca,
e o que estava também nos sacros livros,
a ressumar de fronte prodigiosa,
o general falou: “Queimar os barcos,
dizeis, e com eles dentro, os de lá e cá,
pois foram muitos, mesmo que de vós,
que em terra e mar conosco pelejaram,
não é celebração que dignifique
o instante que medeia imensidades,
as duas, a do oceano, que rompemos
com graves riscos, dor e sofrimentos,
e a outra tão grande quanto mais completa,
que é a glória de salvar esta cidade,
e aos seus lhes dar futuro e liberdade.
Repudio a proposta por indigna.
Fere as leis da guerra e a alma dos povos,
sepultando o direito dos vencidos
e o que ensinou Francisco de Vitória,
o império do jus inter omnes gentes.
De onde provém a vossa insanidade?
Dos mares e das terras conquistadas
a ocidente e ao oriente que deixou
em vossa mente o instante redentor?
Ou lhes de alvitre as armas devolvemos,
para que os enfrenteis em campo aberto,
admirando não o fizésseis antes,
quando fora a cidade destroçada,
a praça abandonada, a gente em fuga.
Ouço um grito maior que invade o mar,
vence campos de lama e ganha os céus;
aspiro ao parecer da inteira glória
e que a alma do infinito em nós penetre
com o vigor de quem arrostou procelas,
a mover para cá homens e barcos,
e faça aqui vibrar um tempo novo
em corações de ansiada humanidade
Agora e sempre eles são prisioneiros
da nobre e Real Casa de Castela,
com a dela reforçada segurança,
até o ajuste por que sejam daqui
expulsos para nunca mais voltar".
Todos calaram, todos. A manhã
translúcida em cristais se dissolvia
no ar; soaram pedras, o bronze ressoou,
trombetas e tambores também soaram.
Nas mãos de cavaleiros e cruzados,
os dourados pendões com ardor vibraram,
ante o discurso da sobranceria,
que relia o saber de tantos povos,
o próprio mesmo do ibérico trajeto,
águas de um rio claro e caudaloso,
capaz de aluir os ferros da vingança
e de aplacar em rudes corações
o imo propenso a celebrar espadas,
abastecer pelouro e cadafalso.
Restaura-se o desfile vencedor.
Sob um céu nu de quase casimira,
todo o esplendor de festa inauguralia,
enquanto o general segue brandindo
a clara vocação de um dia ser
bronze ou pedra, talvez esquecimento.
Dom Fradique de Toledo Osório, o vencedor dos holandeses
A LUZ QUE ENTRA NA MASMORRA
Quero estar muito próximo
do profundo do ser humano.
Por isso choro, canto, rio, grito.
Sinto seu reflexo, sua interface,
na pedra dura, imperturbável,
na madeira que range sob meus pés,
na água que corre sem retorno possível,
na areia que acena com desertos.
O profundo humano é o pavimento,
em que piso, o chão em que desfilam
os ginetes triunfantes, os clarins
que submetem a marcha dos vencidos,
com sinos eminentes a dobrar;
a madeira em que me deito,
a mesa de escassas iguarias,
rodeada de bocas e olhos ávidos;
a água que aplaca a minha sede,
dá som aos prados, aos porrões de barro,
frescor; bichos em mansa confraria,
a areia que multiplica os ausentes,
em que soem desfazer-se ao vento
templos, muros, paços, fortalezas,
retém na pedra o destino dos homens,
outorgando ao espírito um halo febril
de pássaro, troféu de canto e ramos.
ADEUS DA MOÇA LUSA
Diz-nos: com que sonhavas, marinheiro,
ao buscar essas praias, esses cantos,
tão sonhados por muitos, por primeiro
tocados, e anelados de outros tantos?
Que tesouro seria o derradeiro
para ti, se, mais que prata e ouro, prantos
inundam os porões de teu veleiro,
que tomar e possuir são teus encantos?
Certamente ririas, com teus dentes
de um cristalino próximo da aurora;
mas quando a noite invadir os teus poentes,
descobrirás com os olhos muito abertos;
teus pés calcaram almas; na dura hora
da manhã, tua mão arou desertos.
ADEUS DA NEGRA MINA
ODORES, Ó DORES
(...) no mês de julho, procederam os espanhóis à punição de seus delinquentes. Os portugueses que haviam estado conosco na cidade foram enforcados, vestidos de hábitos brancos de frades, no campo verde(...) O capitão Francisco e os seus oficiais foram enforcados(...) e, depois de mortos, esquartejados, sendo os despojos expostos nas ruas, pregados em postes.
(Aldenburgk)
Fastígio de sinistra geometria,
ainda estão lá os patíbulos severos,
fadados a povoar os ares fétidos
como o odor que supura de sentenças
tão comuns aos exércitos que vencem
e perpetuam tenebrosos códigos.
Há vento e frio. Há medo. Corpos pendem,
vários, em brancos hábitos de frade,
para que se compraza um deus distante
da sorte que os levou à perdição.
Não é o mesmo que ao capitão Francisco
e ao pelotão de pretos valorosos
reserva o mesmo deus no seu julgado:
logo após pronunciar-se o cadafalso,
no pretório repleto de olhos ávidos,
seguem-se os ritos de esquartejamento,
os pedaços saudando os ares pálidos,
estrepados em postes o bastante
como exemplo tão vivo quanto bárbaro,
que se agrupará ao tempo sucessivo
e aos homens restará como relíquia
de formas primitivas de viver.
Tremor de peito e lua: deserta praça,
onde solene impera o cadafalso –
e sua sombra. Sentinelas dormem,
recolhidos também os vencedores,
armas ensarilhadas, chão lavado.
Cães esquecem o balouçar dos corpos
e vigiam a irresistível dádiva
que deriva dos postes punitivos.
Na luz vaga da noite, sobre pedras,
onde reflexos de recente chuva
lampejam, a vasta sombra do templo
alcovita a outra unânime da morte.
Carpinteiros da náusea em cada canto,
redatores de acórdãos para corvos,
se postam nas esquinas, provedores
árduos de matadouros e carniças,
nas primícias das tardes e das noites,
afeitos ao perfume dos morgados,
enquanto o odor trafega pela aurora
e invade casas, palacetes, adros,
as preces da manhã molhada em sangue
da face retalhada do Evangelho.
1625, o Fogo e a Tinta: a batalha
de Salvador nos relatos de guerra
Carlos Ziller Camenietzki
Gianriccardo Grassia Pastore
Conforme debatido há tempos, e também verificado diretamente em inúmeras experiências coletivas, todo conflito vive sua versão res gesta e sua versão rerum gestarum.1 Uma discussão, um debate, um conflito, batalha ou guerra sempre se realiza em dois momentos. O primeiro é aquele em que os contendores agem presentemente uns contra os outros, se enfrentam materialmente com falas, escritos ou armas. O segundo é aquele em que, terminadas as hostilidades, dirimidas, superadas, eliminadas ou sufocadas as diferenças, discute-se sobre o ocorrido. Nem sempre os agentes em liça são os mesmos nestes dois momentos e nem sempre o que está em jogo é da mesma natureza.
Um feito bélico de grande retumbância, por exemplo, costuma dar lugar a feitos literários de sucesso. Assim foi com a perda e a retomada da Bahia em 1624 e 1625. A cidade de Salvador era parte integrante das estratégias de grandes beligerantes na
Guerra dos Trinta Anos – basicamente, para efeitos do que interessa neste trabalho, os Países Baixos e a Espanha – e, como não poderia deixar de ser, sua ocupação e retomada foi acompanhada de numerosas publicações relatando e interpretando o acontecido desde a chegada à Europa das primeiras notícias relativas ao sucesso batavo até quase 1630. Tratava-se, por um lado, não apenas de tomar a cidade, apropriando-se das riquezas locais, mas também de anunciar a proeza e a consequente quebra do domínio exclusivo da Monarquia Católica no Atlântico Sul. A expulsão dos holandeses, por outro lado, também foi ocasião para Castela alardear sua superioridade bélica e mostrar a inutilidade da rebeldia das Províncias Unidas.2
O problema que nos ocupa no presente está ligado a esta última parte da guerra, à disputa pelo acontecido que se seguiu logo após a dissipação do fumo dos canhões em 30 de abril de 1625. Essa segunda batalha, o objeto deste trabalho, não envolveu as forças católicas contra os heréticos de Holanda; isso fora resolvido no terreno dos fatos, em Salvador. O conflito de que se trata neste texto opôs combatentes que estavam do mesmo lado do campo quente da guerra e foi travado na península, no coração mesmo dos domínios de Castela: ele opôs portugueses a castelhanos. Suas armas foram relações, crônicas, poemas e o teatro.
O tema já foi matéria de um estudo recente de Fernando Cristóvão que bem soube
identificar as linhas mestras desta tensão.3 Contudo, o trabalho é por demais resumido e concentra o melhor de suas energias nos arquétipos narrativos, sem muita preocupação com o sentido das controvérsias na situação histórica dada. Por outro lado, um trabalho mais antigo de Stuart Schwartz busca fazer uma análise mais abrangente do acontecido, analisando o feito de Salvador como expressão das tensões entre diversos grupos sociais e a coroa.4
O assunto ganha importância, uma vez que as forças da Monarquia eram originárias,
todas elas, de domínios de Felipe IV; eram tropas de Castela, de Nápoles, de Portugal. Os autores das relações e das crônicas eram todos súditos, ou vassalos, do mesmo monarca, contudo, foi acirrada a disputa pela vitória já obtida, ou seja, a disputa pelo papel de cada qual no grande feito. É certo que, tomada isoladamente, essa questão teria importância limitada; seria uma passagem curiosa acerca das tensões entre aliados numa guerra antiga, porém, diversos daqueles que, nos anos 20 do século XVII, se uniram para expulsar o holandês de Salvador, nos anos 40 irão se levantar contra a Monarquia,
acelerando sua decadência na política européia.5 Talvez, coincidentemente, no
momento das rebeliões, apenas o reino mais diretamente comprometido com a
retomada da Bahia – Portugal – conseguiu assegurar sua independência, com isso,
o problema desta guerra de tintas ganha uma projeção para muito além da
curiosidade.
Afinal, haveria já em 1625 um mal-estar significativo entre portugueses com relação ao domínio castelhano? Qual sua extensão real? Qual seu significado? Seria possível detectá-lo entre relatos e crônicas de uma batalha vencida pela Monarquia Católica, na qual alguns destes mesmos portugueses tomaram parte? A própria apresentação destas questões já envolve problemas relevantes acerca da política lusitana da primeira metade do século XVII. As tentativas de solução, por outro lado, envolvem bem mais que uma constatação direta em fontes documentais.
Em 1625, a Europa vivia as primeiras décadas da Época Barroca e não seria esperável encontrar abundantes manifestações claras e distintas de descontentamento entre religiosos, letrados e fidalgos portugueses com relação a seu Rei.6 Os alinhamentos políticos evidentemente existiram, as tensões entre grupos em disputa pelo poder certamente foram agudas, mas nem sempre as dissensões se manifestavam abertamente; seus modos de expressão usavam e abusavam da dissimulação, do duplo sentido, das
metáforas e das elipses. O apelo a este gênero de recurso foi abundante na diplomacia e na política do período, encontrando inclusive quem lhe desse expressão literária e filosófica: Torquato Acetto, por exemplo, escrevendo em Nápoles sob o domínio espanhol, publicou o livro Della Dissimulazione Onesta, onde defende a dissimulação contra o poder tirânico como forma de sobrevivência
na arena política.7
Levando em consideração essa característica, um exame da documentação de época
disponível, principalmente o material impresso (relações da batalha, crônicas, teatro), pode revelar um estado de ânimo entre portugueses e castelhanos que o regozijo da vitória costuma abafar ou que o desprezo pelo assunto costuma esconder. Sem pretender encontrar respostas unívocas às questões postas mais acima, trata-se aqui de identificar manifestações, ainda que dissimuladas, do mal-estar português (ou de alguns portugueses) diante dos castelhanos (mas também destes com relação àqueles) e de buscar alternativas para a sua interpretação.
***
Em 1623, no dia de São Tomé, o padre Bartolomeu Guerreiro, jesuíta, proferiu um sermão exaltado na Capela Real em Lisboa. O habilidoso inaciano associava o santo padroeiro da Índia às proezas lusitanas do século anterior e protestava veementemente pelo estado de abandono em que se encontravam as conquistas do reino. Guerreiro se serviu habilmente dos poderosos recursos da oratória fazendo o santo falar por sua boca aos seus próprios ouvintes. Disse S. Tomé à corte de Lisboa:
E que viva eu hoje vendo senhoras de todos estes meus mares as bandeiras de
Mauricio de Nassau herege, apostata maldito, & filho do outro, em lugar das
Chagas do Redemptor, & das armas dos netos del Rey D. Manoel, meu senhor,
que tanto me honrou com ellas.8
Para o jesuíta, o problema não se limitava ao assédio herético às conquistas da “verdadeira religião”. A decadência em que caíram estes domínios do Oriente devia-se à cobiça dos Vice-Reis, dos capitães e dos comerciantes mais preocupados em colher riquezas que em protegê-los. O tema abordado por Guerreiro que mais interessa no presente é o descaso da Monarquia com os domínios de Portugal e os excessos dos ministros na tributação.9 O abandono do reino é expresso no tema recorrente da ausência da Corte Real de Lisboa. Diz o padre, apelando a S. Tomé:
“Não vos posso negar a dívida ...rezam de sentimento, & dor de nam achardes em Lisboa aquelles passados Reys que vos fizeram poderoso, a vós, & vos ricos a elles”10.
O sermão carrega um inegável sentido de protesto. Entre relatos variados dos desacertos dos ministros castelhanos, Guerreiro lembrou ainda a “doçura” de D. João II para com seus vassalos e o quanto disso o monarca se valeu em seus conflitos com Castela. O protesto oratório deste religioso não foi feito isolado num reino melancólico e entristecido pelas agruras de um presente menos luzido que o passado. De fato, como assinalou João Francisco Marques em seus estudos sobre a parenética portuguesa do século XVII, o púlpito fora importantíssimo meio de protesto e de “agitação política” contra a degradação de Portugal sob o domínio filipino, e particularmente contra o “abandono” das conquistas ultramarinas nas décadas de 1620-40.11 E, neste espaço privilegiado e protegido, jesuítas, dominicanos e diversos outros religiosos exerceram sua liberdade de crítica. Marques lembra que Gregório Taveira pregara em termos muito assemelhados a Guerreiro no mesmo ano de 1623. Também Antônio de Oliveira ressaltou o papel do púlpito na oposição política portuguesa durante o domínio castelhano.12
Estes protestos oratórios exprimiam vivos descontentamentos com reais perdas portuguesas no Oriente. Em 1622 – Macau havia sido assediada pelos holandeses, da Companhia do Oriente e Ormutz caíra nas mãos dos ingleses e de seus aliados persas. Como sabemos, o predomínio português naquela região do mundo vai sendo obrigado a ceder espaço físico e comércio a seus concorrentes ocidentais até meados do século XVII. No começo da década de 1620, os lusos tinham mais a chorar além do desaparecimento de seu rei. 13
Segundo atesta um importante memorialista, a notícia da perda de Salvador chegou a Lisboa em julho de 1624 e causou grande impacto. Rapidamente, o governo de Portugal organizou coleta de fundos, recrutamento e armamento de uma frota para a retomada da cidade. Ao que diz o cronista, o esforço do reino contou com sólida colaboração dos três estados. A câmara de Lisboa forneceu quase a metade do arrecadado; o Duque de Bragança, quase um décimo; o arcebispo de Braga, cerca de cinco por cento. No que diz respeito ao engajamento, o memorialista registra do seguinte modo o empenho dos portugueses:
Aos 22 doutubro da dita era se mandou botar pregão que todo omiziado de qualquer calidade que fosse que quisesse ir narmada se viesse asentar: vierão muitos, mas acodio tanta gente que se tornou a mandar que os homiziados se fossem embora para donde andavão.14
A armada portuguesa saiu de Lisboa em 22 de novembro carregando diversos dos mais graduados fidalgos de espada e de vela. O plano da viagem previa uma espera em Cabo Verde até a chegada da armada de Castela, trazendo o comandante-mór da operação, D. Fadrique de Toledo Osório.15 Entre os clérigos embarcados estavam o padre Bartolomeu Guerreiro e o padre António de Sousa, ambos da Companhia de Jesus. Este segundo jesuíta, conforme nos assegura João Francisco Marques, foi o autor da tragicomédia encenada no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, diante de D. Felipe III e da Corte, quando de sua visita à capital lusa em 1619.16
O cronista também conta que as primeiras novas da batalha de Salvador chegaram a Portugal em 23 de junho de 1625 e as informações da retomada da cidade vieram duas semanas após, em 6 de julho. Nos meses que se seguiram, a península comemorou o feito bélico com as formas de expressão de contentamento mais vigorosas daquele tempo: festas, procissões, luminárias, missas etc. Junto com as primeiras notícias também vieram as relações de guerra, as cartas oficiais e, depois, os homens que participaram dos combates. No segundo semestre de 1625, parte desse material foi impresso e vendido pelas ruas de Lisboa, Madri, Sevilha, Cádiz. A Corte festejou intensamente, afinal, não se tratava apenas da retomada de um porto importante para a economia do Império. Conforme já foi dito, a restauração da Bahia reafirmava o enorme poderio da Monarquia, num momento em que as forças católicas retomavam terreno perdido aos protestantes nos primeiros tempos da Guerra dos Trinta Anos. Além destas comemorações, Madri, a capital, contou ainda com duas peças de teatro: uma, do renomado Lope de Vega, castelhano, e outra de João António Correia, português.17
Contudo, o feito e o desfeito não interessavam apenas aos peninsulares. Também entre os inimigos da Monarquia Católica a proeza foi relatada e divulgada em textos impressos, particularmente nos Países Baixos, por razões óbvias. Talvez a relação mais conhecida entre nós seja aquela de Johann Gregor Aldenburgk soldado engajado nas tropas que ocuparam Salvador), traduzida ao português havia uns quarenta anos18. Embora trate de um feito de guerra, esta relação busca aproximar o sucesso dos relatos de viajantes ao Novo Mundo de finais do século XV e do início do XVII, descrevendo peixes, frutos, tubérculos e ressaltando a antropofagia dos índios e sua ação selvagem nos combates. O texto é muito detalhado e se revelou bastante útil na exposição do problema que interessa ao presente trabalho.
Entre essas relações publicadas nos Países Baixos, e com interesse adicional
por se tratar de relato dirigido ao público da Inglaterra, em 1626
apareceu em Roterdam a Plaine and True Relation, de autor inglês que
teria feito parte das tropas a serviço dos holandeses,19 texto curioso que
denuncia os erros dos oficiais e critica seu comportamento durante a ocupação
(bebiam e desfrutavam das prostitutas de Salvador). Nesta publicação, o
problema das tensões que opunham portugueses e castelhanos aparece logo no início
com a expressiva passagem: “The people that are the naturall inhabitants thereof
are the Brasillians, they which are now the chiefest are the Portugals. The Spanish
King clames soveraigne, though by some denyed, and by the rest unwillingly
acceped of”.20 De certa forma, a relação reproduzia um modo de ver comum à
diplomacia das monarquias rivais à Espanha havia muito.21
***
As relações do grande feito, publicadas na península, são numerosas. Encontram-se relatos brevíssimos, escritos por soldados, composições mais detalhadas e até mesmo volumes relativamente longos sobre a empreitada. Entre estes últimos, conta-se o conhecido livro do padre Bartolomeu Guerreiro, de quem já se tratou mais acima: Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal.22 Ainda no prólogo, quando o livro vem sendo apresentado e justificado, o jesuíta afirma querer contar o que “na verdade passou na Bahia pela coroa de Portugal”, pois foram “sucessos muito dignos de memória”.23
Essa preocupação em estabelecer a verdade é expressiva de um modo um tanto convencional de apresentar as motivações que animam os cronistas de praticamente todas as épocas, contudo, há que se levar em conta as circunstâncias em que ela se expressa. Dado o forte engajamento de Guerreiro na crítica ao abandono do Ultramar, assinalada mais acima, e lembrada também sua proximidade à casa de Bragança,24 não se pode deixar de considerar que talvez a preocupação com a verdade dissimule um conflito ou uma condenação efetiva a outras relações em circulação no período, afinal, não faz muito sentido pensar em estabelecer a verdade sem que a falsidade esteja de algum modo presente.
Conforme Stuart Schwartz intuiu, o próprio uso do termo “vassalo” é significativo.25 Na realidade, essa palavra não se sobrepunha a “súdito” – que viria a substituí-la no uso corrente. “Vassalo” remete o leitor a uma faixa estreita dos “súditos”, a nobreza, e ainda carrega um apelo com um ligeiro tom arcaico, ao menos aos olhos do presente. É certo que essa tonalidade não teria, em 1625, o mesmo impacto que possui atualmente, mas sem dúvida ela remete o leitor à nobreza, mais que a qualquer outro segmento da sociedade. E foi disso mesmo que Guerreiro tratou na sua Jornada; lá estão indicados os esforços de inúmeras casas nobres, nomeados diversos fidalgos de alta titulação, muito mais do que qualquer outro agrupamento social. A participação de gente das cidades –
mercadores, financistas, corporações – ou de religiosos regulares é reduzida na
narrativa, embora as contribuições financeiras do Conselho de Lisboa tenham
sido destacadas e o nome de alguns grandes comerciantes também. Guerreiro
parece querer mostrar que os três estados envidaram esforços para a empreitada,
embora a jornada efetiva fosse realizada pelos fidalgos, afinal, a guerra
sempre foi assunto próprio desse grupo.
Chama a atenção nesse texto o fato de se tratar apenas de uma crônica das forças portuguesas enviadas à Bahia para recuperar Salvador, coisa identificada até mesmo pelo título da publicação, mas a expedição, no conjunto de sua organização, buscou refletir o que de mais sólido possuía a Monarquia Católica naquele momento: tropas de Portugal, de Nápoles e da “Espanha” sob o comando de um dos mais renomados chefes militares
da época, D. Fadrique de Toledo Osório. Uma substantiva carga simbólica pesava sobre esse arranjo, quase que uma alegoria dos domínios da Monarquia. Pode-se dizer que simplesmente não houve nenhuma expedição portuguesa à Bahia, apesar de ainda encontrarmos esse tipo de referência em manuais relativamente recentes.26 O padre Guerreiro tinha clara essa evidência e, ao escrever apenas sobre os portugueses,
justificou-se do seguinte modo:
De sorte que tudo o que nesta relação se vir disposto em distinção, e capítulos, he tirado com muy exacto, e rigoroso cuidado, e juízo, de verdadeiros, e autênticos papeis das secretarias reais da Coroa de Portugal. Que foi a causa porque esta relação se não estendeo ao que da Coroa de Castella entrou na empreza; que ainda que foy muyto no gasto de tão grande armada, no numero de capitães, e soldados de varias naçoens, e Reynos de sua Magestade, que nella forão: no valor, e prudência do general, faltarãome as particulares noticias, e relaçoens, sem que não pode haver historia verdadeira”.27
Fixar a verdade de modo claro não foi preocupação exclusiva deste jesuíta. Também o cronista de D. Felipe, Tomás Tamayo de Vargas, na sua história (Restauracion dela Ciudad Del Salvador, I Baia de Todos Sanctos), encomendada pelo próprio rei, reclama o estabelecimento da verdade. Anteposto a seu texto, Tamayo apresenta uma dedicatória em que explica sua obra. O cronista não deixa de aproveitar o fato de haver composto sua história por força de encomenda real, reforçando sua versão dos fatos pelo acesso a documentos dos conselhos de Estado e da Guerra: que en el sagrado de las secretarias de aquellos consejos en las coronas de Castilla i Portugal solo estan patentes, a quien escribe por orden de su Rei, i cuia fè no puede padecer nota de sospecha, aun com los mismos emulos de sus glorias.28
Tendo publicado seu relato mais de três anos depois dos acontecimentos, Tamayo buscou explorar o que sobre o grande feito se havia escrito anteriormente. Ele afirma ter se baseado em três relações mais detalhadas, entre elas, a do padre Guerreiro, sem perder a ocasião de comentar que o texto do jesuíta “solamente trata de lo que a Portugal se debio en esta empressa, com algumas particularidades dignas de su diligencia”.29
As particularidades dignas da diligência do jesuíta português provavelmente são os elementos da Jornada dos Vassalos, e ainda de outros relatos contemporâneos, que se contrapõem às narrativas castelhanas, em geral, e àquela sua maior síntese – o livro de Tamayo de Vargas. A crítica dissimulada ao escrito de Guerreiro vem à tona no fechamento da dedicatória:
... no admite la historia à las singularidades qui aqui se dilatan, confiessolo; pero esta es mas relacion historial de un sucesso particular, que historia perfecta, en cuio decoro no caben tales menudencias; aqui son forçosas. Ninguna he dexado por negligencia, o malicia. En todas han estado lexos de mi animo el odio i la afficion, siendo solo mi cuidado la verdad de las acciones de cada uno, sin distinccion de naciones. [...] esta vencedora nacion [Castela] solamente jacta por suias las que conservan en las
memorias de los doctos que las aciertan, i de los nobles que las califican; lo demas es passatienpo de gente ociosa que se dissimula porque no se puede remediar.30
Parece não ser excessivo identificar nesta passagem uma condenação ao escrito do jesuíta português, seguida de uma séria reprimenda pela incapacidade de Guerreiro em fazer evoluir favoravelmente sua própria situação. Ele dissimularia o que não tem condições de consertar. Na realidade, fixar a verdade também é preocupação de diversos outros escritos mais ou menos tardios sobre a perda e a retomada de Salvador.
Aquele que é talvez o mais famoso dos autores desses escritos, o padre Antônio
Vieira, deixou seu testemunho na carta ânua da Companhia de Jesus, enviada a
Roma em 1626 e correspondendo aos dois anos anteriores. Vieira, então jovem e
promissor jesuíta, participara dos acontecimentos primeiro como vítima da
invasão herege e depois como observador privilegiado. O religioso e a maior
parte dos seus pares estiveram na aldeia do Rio Vermelho, de onde se organizara
a resistência dos moradores do Brasil.31 Este jesuíta escrevera para “dizer
também a certeza do que se passou na realidade, para que a verdade tenha lugar
e se não creiam algumas falsidades que do caso se contem”.32
Também para quem esteve em Salvador durante os acontecimentos de 1624-25, declarar a verdade é algo que só faz sentido para se opor a uma inverdade, uma falsidade, uma mentira que, por alguma razão, incomoda. Aquilo que estava incomodando Antônio Vieira, Bartolomeu Guerreiro e Tamayo de Vargas certamente não eram as mesmas coisas. Aliás, conforme espera-se ver confirmado nas páginas que seguem, o incômodo de um seria, antes de tudo, o escrito do outro, a “verdade” defendida pelo outro.
Essas “verdades”, que tanto incomodaram os mais importantes autores das crônicas, encontram-se principalmente nas descrições de momentos particulares do acontecido. Um exame detido de uma amostra suficientemente grande dos textos evidencia que desde as motivações dos invasores até a retirada da armada da cidade já recuperada, o desacordo quanto a alguns temas é bastante grande. Diante da pouca utilidade e da inconveniência de uma exposição exaustiva desses contrastes, será mais adequado restringir a análise a temas de maior poder de síntese, como o são a perda da cidade e a avaliação da ausência de resistência ao ataque holandês; a reunião e a viagem da armada até a Bahia; e finalmente a rendição dos invasores e a entrada na cidade das forças
católicas. Ao examinar as diversas exposições desses elementos das narrativas, tem papel decisivo o tratamento dado aos circunstantes: portugueses da armada, portugueses da Bahia (ou luso-brasileiros), castelhanos, índios e negros e cristãos-novos.
***
Pelo que contam todas as relações da guerra, a tomada de Salvador pelos holandeses foi operação fácil: a cidade foi ocupada pelos invasores sem maiores resistências. Porém, se há sólida concordância quanto a isto, existe grande diversidade quanto a outros elementos, francamente secundários, que evidenciam condenações maiores ou menores ao governo do Brasil, exercido sempre por gente portuguesa, conforme um item importante das cortes de Tomar.33 Por exemplo, é comum entre os autores apontar a
covardia dos portugueses da Bahia, que teriam entregue a cidade sem combate,
desamparando aquilo que tinham a responsabilidade de defender, abandonando pertences e riquezas, fugindo aceleradamente tão logo a iminência do assalto ficaram patente.
Mas se a referência à imprevidência e incompetência do governador Diogo de Mendonça Furtado é assinalada pelo padre Guerreiro, por exemplo, lembrando também do medo que tomou conta dos moradores de Salvador, entre autores castelhanos o problema da tomada da cidade ganha outras proporções. Para estes, os temas passam muito além da incapacidade, eles são covardia e traição. A ideia de que moradores da Bahia acolheriam a invasão com bons olhos foi argumento aventado pouco antes da investida, num escrito de propaganda da Companhia Holandesa, o livreto de Jan Andries Moerbeeck, Motivos porque a Companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar ao Rei de Espanha a terra do Brasil.34 Este texto foi lido na Península e referido por diversos cronistas da batalha de Salvador, tanto por escritores de Castela quanto por portugueses, embora os jesuítas Vieira e Guerreiro não o mencionem. Eugenio de Narbona y Zuñinga, por exemplo, refere-se explicitamente a um concerto de gente da cidade com os invasores:
... al amanecer entrò el enemigo sin resistencia, avisado, y llamado (según se dixo) de uno de los vecinos, que se acomodaron con la fortuna del vencedor; entraron en fin, y no hallando en la ciudad sino algunos negros, y portugueses, hebreos de nación, apostatas del Evangelio, que esperaban el suceso, y havian parte en el trato, con otros que de su nación fugitivos esperaban en Olanda...35
Quando se trata de traição, evoca-se com frequência aqueles a quem o cristianismo já personificou, em diversos momentos, à própria traição: judeus, hebreus e cristãos-novos. A referência a esse grupo dentre os moradores de Salvador é bastante valorizada por escritores de Castela, embora não tanto entre os portugueses, sobretudo pelos cronistas da Companhia de Jesus. O padre Guerreiro, sugerindo que uma hipotética traição de portugueses do Brasil não era necessária para facilitar a invasão, assinala que havia entre os inimigos ao menos dois holandeses que já estiveram presos no Brasil anos antes: um que fora aprisionado no Rio e fugiu da cadeia e o outro, “estando preso e condenado à morte, se sobresteve na execução por ordem de Sua Magestade, em tempo do governador D. Luís de Sousa”36.
Ou seja, havia quem conhecesse bem o lugar nas naus de Holanda. Porém, a valorização
do papel dos cristãos-novos pelos cronistas de Espanha e seu desprezo por parte dos escritores portugueses fica melhor exemplificada pela comparação entre as duas conhecidas peças de teatro compostas sobre o feito. Felix Lope de Vega, na sua comédia El Brasil Restituido, atribui imenso papel à suposta entrega de informações e colaboração dos cristãos-novos de Salvador com os holandeses. A peça tem início com um diálogo entre D. Guiomar, cristã-nova, e D. Diego, fidalgo português. A passagem é curiosa, pois Diego está abandonando sua amante grávida (sem o saber) por conta de sua origem. A trama se desenvolve com referências explícitas à colaboração dos pais de Guiomar e seus próximos com os invasores. Esse personagem acaba por se casar com Leonardo, militar holandês intermediário na traição, que não sabia do estado de sua “noiva”, e termina entregue a Machado, o gracioso37. Por outro lado, João António Correia, natural de Lisboa, na sua comédia La Perdida y Restauracion de la Bahia de Todos los Santos, sequer fala de cristãos-novos. Isso nem mesmo teve a honra de uma rápida menção.
Por outro lado, se existe um referente comum no que toca ao interesse holandês na ocupação de Salvador – tomar postos comerciais –, o peso desse argumento apresenta-se um tanto esmaecido no cronista de D. Felipe. De fato, Tamayo de Vargas é homem que vê os acontecimentos a partir da corte de Madri: ele não poderia deixar de iniciar sua história considerando o andamento dos conflitos entre os Estados europeus. Por este tempo, as forças católicas se encontravam em forte retomada territorial diante da aliança
protestante no Leste do Velho Mundo. O registro da iniciativa da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais vem fortemente associado à evolução da guerra na Europa, contudo, os demais autores de relações da batalha de Salvador costumam circunscrever a ação holandesa aos marcos do interesse comercial, boa parte deles usando como referência o folheto de Moerbeeck.
A discrepância entre as narrativas castelhanas e textos de portugueses também é significativa no que toca ao segundo problema assinalado mais acima: a partida das armadas em socorro à Bahia. Bartolomeu Guerreiro, o jesuíta português, indica que Felipe IV teria enviado comunicados aos governadores de Portugal pedindo para ultimar os preparativos da expedição até final de agosto de 1624; o monarca teria ainda avisado que a armada sairia de Lisboa. Mais tarde, em 27 de outubro, ele teria mandado a armada portuguesa reunir-se às demais em Cádiz. Por fim teria ordenado que a esquadra lusa
deveria aguardar em Cabo Verde pela chegada dos navios de Castela. Todas as relações que tocaram no assunto são concordes em assegurar que os portugueses levantaram âncora de Lisboa em finais de novembro de 1624 e que os castelhanos, de Cádiz, em 14 de janeiro de 1625. Nenhuma das crônicas examinadas deixa de assinalar que os vassalos portugueses aguardaram por mais de quarenta dias a chegada da Almirante e dos demais componentes da expedição.
Manuel de Faria e Sousa, humanista e historiador do reino de Portugal, trata do
problema no seu livro publicado em 1628, Epítome de las Historias Portuguesas. É importante reter que o autor esteve entre os entusiastas da União Ibérica, defendendo neste seu tratado o domínio filipino e os valores da nobreza lusitana mais tradicional, sempre responsabilizando o envolvimento comercial dos fidalgos pela decadência em que o reino caíra desde D. Manuel, o Venturoso38. Faria e Sousa expõe o episódio da partida e reunião das armadas do seguinte modo:
A um mismo tiempo se empezaron a aprestar, mas com desigual diligencia se aprestaron; la portuguesa aguardo um mês em el puerto de Lisboa por la Castellana, y saliendo em noviembre sin ella, aguardola em la islã de Santiago (principal de lãs de Cabo Verde) hasta el mês de febrero, em que se vieron juntas: tardança considerable, y que se hizo provechosa al enemigo: no fue sin causa la desigualdad porque el um apresto se hizo com amor, y com hazienda de vassallos, y el outro com hazienda Del Rey, y com tibieza de ministros.39
Para alguns escritores castelhanos, o retardo da armada real compensou-se numa mal dissimulada crítica à navegação da frota que partira de Lisboa. Juan de Valencia y Guzmán, por exemplo, trata do seguinte modo o naufrágio de uma embarcação portuguesa:
uma dellas [embarcações] se le perdio el galeon la conçepcion em que hiba embarcado el maestro de campo Antônio Muñiz Bareto ahogaronse çiento y quarenta hombres (...) salbose la Artilleria y perdiose todo ho demas en que abia muchas cosas de balor...40
Reunidas as armadas, tomou-se o rumo do Brasil. A viagem, que nunca era tranquila naqueles tempos, também se transformou em cenário de conflito entre as narrativas. D. Tamayo de Vargas não deixa de assinalar a pouca destreza dos portugueses na navegação em alto mar: repetem-se as ponderações de que a armada reunida avançava com galhardia “aunque los baxeles de Portugal parecian menos veleros por darse siempre atras”, ou de que o comando castelhano procurava “no perder la Armada de Portugal, que seguia con difficuldad la de Castilla”. Associado a isso, não faltam considerações sobre a fidelidade lusitana, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento do comando e da superioridade castelhana. Valencia y Guzmán descreve do seguinte modo a reunião em Cabo-Verde da armada do Brasil, depois de registrar o desacerto da frota portuguesa:
... el regocijo y contento que huvo generalmente fue superior y estraordinario fue nuestra armada siguiendo su capitana general y entrando con el orden y concierto que se acostumbra abatieron la capitania y almiranta de Portugal sus estandartes en conocimiento de imferiores...41
Curiosamente, na maior parte das crônicas, os feitos dos luso-brasileiros entre a invasão e a chegada dos socorros quando são apresentados o são antes como vilezas do que como atos de guerra, ou de bravura. Uma proeza sem dúvida significativa, a morte do comandante inimigo, coisa que sempre foi considerada importante nas batalhas, é apresentada como feito desfavorável, porquase todos os escritores, expressivo mais da indignidade que das virtudes dos combatentes. A queda de Van Dort, o general holandês, por exemplo, é referida como evento sanguinário, injustificado e quase bárbaro por Narbona y Zuñiga:
... con gran presteza el Portugues le puso el pie sobre el pecho haviendole herido de una cuchillada y aunque el coronel le pediò que no le matasse diciendo que era el General no quiso perdonarle la vida, matole al fin y quitole la espada, y cortole un dedo en que se trahia una sortija para que fuesen testigos de la victoria, y los demas soldados triumpharon della, aunque sangrientamente, porque demas de despoxalle le cortaron partes de su cuerpo, cosa que los Holandeses tuvieron por denuestro afrentoso, y se quexaron dello con razon...42
Vieira, que descreve os acontecimentos a partir do Rio Vermelho, e que não cansa de dar relevo à ação de seus pares e dos indígenas que com eles combatiam, trata da mVieira, que descreve os acontecimentos a partir do Rio Vermelho, e que não cansa de dar relevo à ação de seus pares e dos indígenas que com eles combatiam, trata da morte de Van Dort em termos muito diferentes, afinal, nas condições em que se encontravam os portugueses da Bahia, não havia muito lugar para rituais de guerra e para privilégios de comandantes.
Diz este jesuíta:
Repartidos os capitães e soldados pela dita ordem, o primeiro encontro,
em que deram a conhecer sua apostada determinação ao inimigo, foi que, vindo do porto de S. Filipe, vizinho a Nossa Senhora do Monserrate, o seu coronel ou governador, homem intrépido e afamado em uma e outra guerra, naval e campal, assim em Flandres como nas armadas, acompanhado de cem soldados de guarda, rebentaram os nossos de uma emboscada contra eles, e um remeteu com o governador, que vinha a cavalo, e o derrubou. Tanto que este caiu, caiu com ele o ânimo aos pés dos soldados que o acompanhavam, como bem se viu no efeito, porque, faltando-lhe às mãos para resistirem, só nos pés lhe sobejou para fugirem.43
O comandante geral das forças portuguesas, D. Manuel de Menezes, em sua relação
que não foi publicada, também se refere à morte do chefe inimigo. Para o comandante das forças portuguesas, o episódio ganhou o seguinte teor:
Sayo a 15 de junho o coronel João Doart a cavallo acompanhado de alguns soldados tocando trombetinha diante; acudio este capitão [Francisco de Padilha] com a gente de sua bandeira, e do primeiro arcabusaço matou o cavallo do coronel, e arremetendo sem escutar rasões, ou promesas lhe cortou a cabeça, e invistindo a companhia os poz em fugida, e lhes foy no alcance hum gran pedaço.44
Na verdade, o juízo sobre o fato dos luso-brasileiros terem matado o comandante holandês é bom indicador dos valores dos envolvidos e do problema que se busca caracterizar desde o início deste texto. Guzmán, Tamayo, Menezes demonstraram, em graus diversos, espanto com a brutalidade do acontecimento, afinal tratava-se de um fidalgo e comandante das forças inimigas e não seria digno de sua condição matá-lo daquela maneira. Além disso, a forma com que os luso-brasileiros agiram colaborou com a Vieira, que descreve os acontecimentos a partir do Rio Vermelho, e que não cansa de dar relevo à ação de seus pares e dos indígenas que com eles combatiam, trata da morte de Van Dort em termos muito diferentes, afinal, nas condições em que se encontravam os portugueses da Bahia, não havia muito lugar para rituais de guerra e para privilégios de comandantes.
Na verdade, o juízo sobre o fato dos luso-brasileiros terem matado o comandante holandês é bom indicador dos valores dos envolvidos e do problema que se busca caracterizar desde o início deste texto. Guzmán, Tamayo, Menezes demonstraram, em graus diversos, espanto com a brutalidade do acontecimento, afinal tratava-se de um fidalgo e comandante das forças inimigas e não seria digno de sua condição matá-lo daquela maneira.
Além disso, a forma com que os luso-brasileiros agiram colaborou com a ideia de vileza atribuída a eles desde a exposição da perda da cidade para as forças inimigas. Por outro lado, seria perfeitamente esperável que Vieira expusesse o feito de outro modo, desalojado que foi do Colégio da Bahia, empurrado para a aldeia do Rio Vermelho e testemunha do estado em que ficaram os soteropolitanos e os do Brasil durante a invasão holandesa. Este jesuíta também dá destaque ao empenho dos luso-brasileiros de Pernambuco e do Rio de Janeiro em enviar reforços e comandantes militares para organizar e fortalecer a resistência, que acabou por se mostrar bastante eficaz.
Mas o fato de os invasores terem perdido seu comandante foi assinalado de modo
muito diferente pelos que estavam ocupando a cidade. O anônimo autor da Plaine
and True Relation, citada acima, trata da morte de Van Dort como algo que
teve impacto decisivo no rumo dos acontecimentos. Ele identificara no
desregramento dos oficiais a grande causa da perda, e a morte do comandante das
operações não poderia ser tomada como fato menor, no que respeita a evolução da combatividade dos holandeses. Ele expôs o episódio nos seguintes termos:
The same morning the Colonell with some twelve horsemen went out of the Towne, with some twenty negars and a squadron of men, the Colonell riding before some twenty yeards in a narrow path, and woods on both sides, the portugals lying in ambush got about Colonell, a negar shot him in the brest, and the portugals puld him of his horse, who kild him and cut of his head and other parts, the most of the horsemen & souldiers retired to the towne, yet an english-man brought in his head, upon which there was a great alarme, but but nothing wort the writing.45
Aldenburgk fala em diversas passagens do medo que atingiu os ocupantes da cidade tão logo ficou claro que as expectativas alimentadas por Moerbeeck não correspondiam aos fatos. Para este autor, a associação entre os portugueses da Bahia e os índios era coisa constante que influenciou decisivamente no desgaste das forças ocupantes. O general Van Dort, por exemplo, foi “surpreendido pelos índios selvagens, portugueses e pretos, e ferido, bem como seu cavalo, de muitas flechas ervadas”46, antes de ter sua cabeça cortada barbaramente.
Para este militar, os invasores estavam literalmente cercados, sofrendo com a falta de víveres, impossibilitados de tratar com os sitiantes e temerosos de suas pouco galantes formas de combate. Justificando com a barbaridade dos inimigos seus atos de guerra bem pouco aristocráticos, Aldenburgk sintetiza esta situação na seguinte passagem:
Uma vez que não se podia esperar clemência dos portugueses, brasilienses, ou negros, pegamos do resto considerável de prisioneiros que possuíamos, levamo-los para fora da cidade, colocamo-los amarrados uns aos outros, próximo à porta do capitão Isenach (S. Bento), junto ao convento, e ali os arcabuzamos.47
Aliás, a “indignidade” dos combatentes da terra, daqueles luso-brasileiros que resistiram a partir do Rio Vermelho, também é ressaltada em outro momento importante dos acontecimentos. Rendidos os holandeses, ocupada a cidade pelas forças católicas, reportam diversos cronistas que os portugueses desejavam reunir os prisioneiros em suas embarcações e incendiá-las. A ideia não foi acolhida por D. Fadrique, mas a sua presença nas narrativas castelhanas e nas crônicas dos invasores ressalta aos olhos dos leitores o barbarismo português, já apresentado na proximidade entre os lusos e os indígenas.
***
As tensões indicadas até o momento entre as variadas interpretações do feito de
Salvador ganham contornos bem mais nítidos quando as crônicas e relações
referem-se aos momentos finais da empreitada. Para os cronistas de Castela, os
rituais dos vencedores coroam as sugestões indicadas ao longo dos textos: os
louros da vitória caberiam aos castelhanos vencedores. Os escritores de Portugal acusaram o golpe e, em seus textos, demonstraram claro descontentamento com relação ao rumo impresso aos acontecimentos, pelos castelhanos da armada e pelos escritores de Castela.
O cronista-mor, D. Tamayo de Vargas, refere-se à entrada católica na cidade com
muita naturalidade, como se o fato de entrarem primeiro apenas soldados castelhanos fosse algo associado às funções exercidas por eles. Entraram aqueles que poderiam assegurar a segurança do lugar e controlar os bens da fazenda real associados à retomada de Salvador.48 Se houve algum saque, e D. Tamayo o reconhece, foi apenas o resultado de uma perda de controle passageira e logo punida exemplarmente:
Algunos offiales i soldados de los reales, a quien la codicia avia sacado de sus puestos, tomando occasion de los grandes aguazeros que sobrevenian, se aprovecharon de las casas que desamparaban los que se retiraban, tan sin orden, que aunque el maestro de campo general corria la ciudad para su remedio, quedo poca gente con las banderas, cebandose los mas en el saco de algunas casas, en particular en las que entendieron que havia mercancias... remedios e con la venida presta del general, que mando que pena de la vida todos los soldados se retirassen a sus bandieras...49
Embora a condição de cronista de D. Felipe colocasse D. Tamayo em posição de autoridade sobre a matéria, a expectativa entre os soldados de saquear a cidade se apresentava desde o desembarque na Bahia. Conforme um depoimento de soldado português, publicado apenas uma semana após a chegada em Lisboa das notícias da retomada de Salvador, os homens da armada sabiam que os holandeses não haviam despachado as riquezas obtidas na invasão; e isso os excitava: “& assi dizem que tem aqui tudo, do que não folgarão pouco os soldados pera dia do saco”50. Mesmo que fosse intenção do comando militar castelhano evitar os excessos da tropa sobre os bens locais, os relatos coincidem sobre o fato de cidade ter sido efetivamente saqueada. Mas os cronistas de Castela parecem evitar chamar a atenção sobre isso, e os de Portugal parecem andar na direção oposta.
O padre Guerreiro, narrando a entrada das forças católicas em Salvador, demonstra um profundo mal-estar com o fato de a cidade ter sido ocupada em primeiro lugar exclusivamente por fidalgos de Castela, sem a participação de oficiais portugueses,51afinal, a precedência neste gênero de coisa, para essa gente, não era algo do que se podia abrir mão com facilidade. Os motivos de queixa não se encontram apenas neste tema; aos olhos de Guerreiro, o problema se estende aos afazeres dos soldados católicos na cidade luso-brasileira devolvida pelos invasores às forças de D. Felipe, rei de Portugal:
Não fique por dizer neste lugar, pois he tanto seu quem no trabalho, & perigo do cerco da Bahya, & nos mais perigos tiverão os portugueses a vanguarda, & a retaguarda, & guarda das portas na entrada da cidade. E se esta confiança dos capitães da coroa de Castela, foy fundada em desejo de proveito, rezão era que se alcançasse este, a quem tanto alcançou o trabalho. Mas o certo foi que a milícia portuguesa, se não deu por achada de outros interesses, mais que a serviço de sua Majestade, honra e reputação da Coroa de Portugal.52
Tendo recuperado a cidade aos domínios do rei, os heróis do feito não deixaram de tratar Salvador como posto de saque, como sítio inimigo. A queixa de Guerreiro, neste particular, não prezou o fato de se tratar da “cabeça” dos domínios da coroa de Portugal no Novo Mundo. Nem mesmo chamou a atenção do jesuíta as evidências de que os soldados saquearam os pertences dos luso-brasileiros que já haviam sido pegos pelos heréticos”.
O problema que lhe interessava se restringia exclusivamente à tensão peninsular: “os despojos que vieram a dois portugueses, foi a um, um quadro de Nossa Senhora, a outro uma sela holandesa, em contraste com abundantes despojos atribuídos aos espanhóis”53. O quadro da Virgem certamente não fora trazido de Amsterdam, terra de calvinistas... D. Manuel de Menezes, preocupado que estava com o rebaixamento dos fidalgos portugueses, apresenta a retomada da cidade com conotações bastante próprias. Também para ele, o saque (ou o re-saque) da cidade não representava em si mesmo nenhum problema; a questão estava no lugar reservado aos portugueses na aventura, “se assertava hum soldado portuguez tomar hum ferro velho, ou outra coisa vil logo lhe era arrebatada, e as vezes com soberba”54. D. Manuel sintetiza suas queixas quanto ao lugar dos soldados lusitanos no simbolismo da bandeira alçada na cidade depois de arriado o estandarte holandês:
Quinta feira primeiro de maio as dez da manhã tirada a bandeira de Maurício se plantou em seu lugar sobre a see a das armas reais de S. M. com castellos e leões. Matéria de notáveis descontentamentos entre os portuguezes, chamando aquillo, se foi enavertencia, odio nos castelhanos a nação portugueza que em tudo se mostrava, e nunca em tão pública aparência.55 Ainda que D. Fadrique, comandante geral das operações, tivesse remediado o mal-estar português ao levantar outra bandeira, ao lado da real de Castela, D. Manuel não se satisfez. Disse ele em sua crônica, com um indisfarçável descontentamento:
A queixa das armas acudia em parte D. Fadrique mandando pintar huma bandeira ordinaria as armas de Portugal no lugar acostumado, e não havia satisfazer aos mal contentes; porque passado o primeiro ímpeto sendo admetidas algumas companhias italianas e portuguezas tomando toda a queixa a sua conta, como soem acontecer nos iguais de fortuna inferior, diziam que bem viam qual era a intenção de enriquecer a huns, impedir o proveito aos outros pois já naquele dia não avia cousa de sustancia, ou se alguma measse, tão escondida, que os da vanguardia na pilhage curiosos no revolver o não achariam.56
Antônio Vieira, parecendo não reconhecer os problemas indicados por seu confrade ou mesmo aqueles explicitados pelo comandante da armada de Portugal, apresenta do seguinte modo a entrada das forças católicas em Salvador:
“Determinadas as coisas nesta forma, dia de S. Filipe e Sant´Iago, que foi o primeiro de maio de 1625, entraram os nossos a tomar posse da cidade, e, abatida a bandeira holandesa, se arvorou a de Portugal e Castela”.57
Manuel de Faria e Sousa, o historiador do reino de Portugal, referiu-se ao saque da cidade em termos mais alarmados que os cronistas anteriores. Para ele: “hallose dentro um despojo grande, sobre el qual huvo soldados españoles que parecieron olandeses: la ciudad em ser saqueada no hallo outra diferencia sino que lo fue de aquellos, y no destos”.58
Por outro lado, os homens que participaram dos acontecimentos no interior das linhas holandesas pouco se importaram com bandeiras sobre a Sé ou com a nação dos primeiros a entrar na cidade recuperada, contudo, eles registraram de modo particularmente interessante a entrada das forças católicas na cidade e o problema da pilhagem castelhana sobre os bens locais. Tanto Aldenburgk quanto o autor anônimo da relação inglesa registraram, em termos bastante semelhantes, a revenda aos moradores de Salvador de suas próprias casas recuperadas pelas forças católicas. Mais que isso, eles registram o saque da cidade:
But let mee note one thing here which is worth the observation, concerning the Portugals. The prince Don Frederico a little before his goeing away sold to the portugals their houses, which before were their owne, and at his goeing away did not onely take away all goods till it came to old stooles and dores, but also stript then naked of all armes and munition, and did take away all their ordnance that was planted to sea or land-ward. So that the towne in now more weake then it was when the hollander tooke it in. More may be said of this but I will not.59
A considerar o que afirmaram estes dois soldados de Holanda, a vitória da expedição católica contra os heréticos foi também uma vitória sobre os portugueses! Principalmente sobre os portugueses do Brasil!
***
Conforme ficou exposto no início deste trabalho, ao disputar pela verdade, os cronistas disputavam bem mais do que a espessura de uma fatia do mercado de livros. Tratou-se da supremacia de uma versão. O objeto da “guerra de tintas” que seguiu o feito bélico de Salvador foi o lugar da nobreza e da fidalguia de Portugal nos domínios da coroa, ocupada por cabeça castelhana; e isso era problema de primeira grandeza.
Seria certamente ingenuidade crer que, de algum modo, os escritores envolvidos anteciparam, nas letras, os sentimentos e interesses que moveram os atos perpetrados em primeiro de dezembro de 1640: a retomada da independência. A guerra de tintas não expressava um sentimento nacional adormecido ou esmagado; ao contrário, expressou um mal-estar de fidalgos, e tão somente dos membros da nobreza latu sensu. O objeto desse desconforto, conforme foi exposto mais acima, era o lugar ocupado pelos vassalos portugueses no exercício de seu “natural” e antigo papel na sociedade portuguesa: governar, defender o reino e suas conquistas. A significativa ausência de conteúdo “autonomista” pode ser ainda intuída do fato de que um dos registros mais significativos
desse desacerto saiu da pena de escritor famoso e entusiasta do domínio filipino: Manuel de Faria e Sousa. Ainda mais, ao que se pôde constatar, o incômodo também foi recíproco: os hidalgos da armada não estiveram satisfeitos com seus pares lusitanos.
Após a Restauração, a batalha de Salvador perdeu importância e a guerra de tinta que lhe estava associada simplesmente acabou. O que não impediu uma manifestação, um tanto tardia, mas bastante curiosa de Diogo Gomes Carneiro, “brasiliense e natural do Rio de Janeiro”, interessado em conclamar a nobreza de Portugal à causa da independência. Este autor refere-se à bravura lusitana em defesa das conquistas do reino ainda sob o domínio castelhano, citando o feito da Bahia como exemplo significativo. Diz ele:
... quando na Bahia do Salvador metropoli do estado do Brazil, resistirâo ao Holandes os portugueses, moradores, & filhos daquella dilatada provincia, aonde com fineza ha tantos annos observão as leis da nova guerra que ensinarão ao mundo, em que reduzirão a temeridade a obrigações do valor.60
Por fim, cabe considerar que a tensão entre os escritores do feito de Salvador certamente não poderia passar notada apenas pelos seus próprios autores. Seria muito estranho supor que uma disputa dessa envergadura, envolvendo escritores ilustres de dois reinos governados pela mesma coroa, não fosse percebida. Pelo que foi exposto mais acima, pode-se imaginar que a “guerra de tintas” não apresentava aos olhos de seus leitores o caráter de uma disputa literária strictu sensu, estava diretamente em jogo a proeminência da fidalguia de Portugal. Não é difícil supor que uma controvérsia envolvendo o valor e as capacidades dos vassalos lusitanos de D. Felipe IV apresentava um potencial desagregador no que toca às pretensões unificadoras das armas ibéricas: se, no episódio de Salvador, boa parte dos cronistas expressaram um desacerto entre castelhanos e portugueses, o que não aconteceria numa ação conjunta das armas em qualquer outro ponto do dilatado Império, ou mesmo na Catalunha? O risco de arrefecimento dos ânimos da fidalguia portuguesa no exercício de suas funções tradicionais a serviço de seu rei poderia ser elevado.61
Ao que assegura o estudo de Stuart Shwartz, já citado algumas vezes no presente trabalho, o governo da Monarquia Católica percebeu o problema. Diante do andamento da guerra de tintas, o Conselho de Estado de D. Felipe IV não se furtou a tomar medidas voltadas à contenção dos ânimos: a multiplicação de relações, crônicas e histórias do feito de Salvador foi proibida.62
Conforme já foi lembrado no início do presente texto, o fato de Portugal se rebelar cerca de quinze anos após a batalha de Salvador permite pensar que os problemas descritos são reveladores de um quadro político que acabou por evoluir num sentido inesperado. Mas não deixa de ser expressivo de uma dinâmica da fidalguia nem sempre reconhecida e valorizada.
Notas
1 Os autores agradecem ao apoio fornecido pelo CNPq à realização deste trabalho.
2 Pela quantidade de publicações já repertoriadas, em diversas ocasiões, é fácil verificar a extensão do problema. José Honório Rodrigues, no seu livro Bibliografia do Domínio Holandês no Brasil, Rio de Janeiro: INL, 1949, p. 190-209, arrola mais de quarenta títulos de relações e de crônicas sobre a batalha de Salvador. É curioso lembrar que o metódico pesquisador tenha deixado de lado exatamente o texto do mais conhecido escritor da língua portuguesa do século XVII, o Padre Antônio Vieira.
3 CRISTÓVÃO, Fernando. “A luta de libertação da Bahia em 1625 e a batalha dos seus textos narrativos e épicos”. Quinto Império, Salvador, v. 1, n. 16, 2002, p. 79-103. O trabalho busca integrar, com sucesso, contribuições extra peninsulares à análise. Sua caracterização do conflito de textos contribuiu de forma singular para o presente estudo.
4 SCHWARTZ, Stuart B. “The Voyage of the vassals: royal power, nobles obligations and merchant capital before the portuguese restoration of independence 1624-1640”. The American Historical Review, 96, 3, 1991, p. 735-62.
5 A Catalunha rebelou-se em junho de 1640, seis meses antes do levante português de primeiro de dezembro. Nápoles revoltou-se em julho de 1647.
6 As mais variadas manifestações escritas de descontentamento com relação ao domínio castelhano ficaram conhecidas com o curioso nome de “Literatura Autonomista”. Alguns estudos já antigos buscaram dar conta deste material, sendo o mais notável deles a obra CIDA.
7 DE, Hernâni. A Literatura Autonomista sob os Felipes. Lisboa: Sá da Costa, sd. O texto de Acetto conheceu tradução brasileira recente pela editora Martins Fontes. O estudo mais importante sobre este tema é o trabalho VILLARI, Rosario, Elogio dela Dissimulazione, la lotta politica nel seicento. Bari: Laterza, 1987.
8 GUERREIRO, Bartolomeu. Sermão que fez o Padre Bertolameu Guerreiro da
Companhia de Jesus, na cidade de Lisboa na Capella Real, dia de São Thome, anno
de 1623, cuja festa como de Padroeiro da India celebra, por ordem dos Reys o
Tribunal daquelle Estado com offertas publicas das drogas delle. Lisboa: Pedro Craesbeeck, impressor del Rey, 1624, p. 7r. A última frase deste trecho citado não é destituída de significado político. Há uma ambiguidade expressa na referência aos descendentes de D. Manuel. Entre seus “netos” havia certamente Felipe II, mas também aqueles outros pretendentes à coroa de Portugal que perderam a disputa em 1580, entre eles D. Catarina de Bragança, avó de D. João, o monarca da Restauração do reino.
9 “Mas neste favor com que os menores tem obrigação de acodir à necessidade do Rey, há de entrar a fidelidade dos ministros: a não tomarem mais dos vassalos, que pede a necessidade do Rey”. GUERREIRO, Op. Cit. p. 10v.
10 Idem, p. 8v.
11 MARQUES, João Francisco. A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina.
Porto: INIC, 1986.
12 OLIVEIRA, António de. Poder e oposição política em Portugal no período Filipino (1580-1640). Lisboa: Difel, 1991;
_____. Movimentos Sociais e Poder em Portugal no século XVII. Coimbra:
IHES/FL, 2002.
13 Cf a esse respeito, o texto clássico BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, especialmente p. 120-163.
14 SOARES, Pero Roiz. Memorial. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1953, p. 466.
15 Idem, p. 465-75.
16 Note-se que a peça do padre Antônio de Sousa, encenada nesta ocasião,
versava sobre as conquistas de Portugal no Oriente e exaltava D. Manuel I e os
grandes portugueses do século XVI ligados a esta proeza. Cf. MIMOSO,
João Sardinha SJ.Relacion de la Real Tragicomédia com que los padres de la Compañia de Jesus em su Colégio de S. Anton de Lisboa recibieron a la Magetad Católica de Felipe II de Portugal. Lisboa: Jorge Rodriguez, 1620.
17 LISBOA, J. Carlos. Uma peça desconhecida sobre os holandeses na Bahia. Rio de Janeiro: INL, 1961. A peça foi editada no século XVII, no volume: Comedias Novas e Escogidas, vol. XXXIII. Madri, 1670, p. 201-33. El Brasil Restituido de Lope de Vega foi editada diversas vezes em coletâneas do teatro espanhol. A licença de encenação foi
emitida em 29 de outubro de 1625, conforme pode ser visto no estudo BARREIRO, José Maria Viqueira. El lusitanismo de Lope de Vega y su Comedia “El Brasil Restituido”. Coimbra: FLUC/Coimbra Editora, 1950, p. 217-8.
18 ALDENBURGK, Johann Gregor. Relação da Conquista e perda da cidade do
Salvador pelos holandeses em 1624-5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1961.
19 A plaine and true relation of the going forth of a Holland fleete the eleventh of november 1623, to the coast of Brasil with the taking of Salvador, and the chief occurrences falling out there, in the time of the hollanders continuance therein. As also the coming of the sapnhish armado to Salvadoe, with the beleaguering of it, the accedints falling in the towne the time of beleaguering... Roterdam, 1626.
20 A plaine and true relation, cit. p. 3.
21 Poucos anos antes dos acontecimentos de Salvador, um impresso circulou em Paris dando novas da passagem de Felipe III por Lisboa, do juramento das cortes a seu sucessor e da atitude dissimulada dos lusitanos com relação aos seus verdadeiros sentimentos para com o seu rei castelhano. Cf. Le serment de fidelité faict au prince d’Espagne, à l’ouverture des Estats du Royaume de Portugal. Paris: Nicolas Alexandre, 1619, p. 7.
22 GUERREIRO, Bartolomeu SJ. Jornada dos vassalos da coroa de Portugal, pera se recuperar a Cidade do Salvador, na Bahia de todos os Santos, tomada pollos Olandezes, a oito de mayo de 1624, & recuperada ao primeiro de mayo de 1625. Feita pollo padre Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus. Lisboa: Mattheus Pinheiro, 1625. O jesuíta, que esteve embarcado na frota portuguesa, tinha seu volume pronto em outubro desse mesmo ano, conforme atestam as primeiras licenças para publicação, datadas de 7 de novembro.
23 Idem, páginas não numeradas.
24 Guerreiro viveu sete anos na corte dos Duques de Bragança, foi confessor de D. Theodósio e pregou nas exéquias celebradas em 1630 em sua memória. O sermão foi publicado dois anos 1625, depois: cf. GUERREIRO, Bartolomeu. Sermam que fez o R. P. Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus nas exequias do anno que se fizerão ao serenissimo Principe D. Theodosio segundo Duque de Bragança em Villaviçosa na Igreja dos religiosos de S. Paulo primeiro hermitão onde o dito senhor está depositado em 29 de novembro de 1630. Lisboa: Mathias Rodrigues, 1632. O sermão faz um elogio exaltado da Casa de Bragança declarando em uma passagem o seu expressivo posto no reino: “Tres grandezas tem o Reyno de
Portugal, com ser tão pequeno, & limitado pera quem fora pequena a
Monarchia Romana. Primeira a famosa cidade de Lisboa, cabeça do Reyno enchendo
todas as partes do mundo com a opulencia de seus comercios, como se fora
senhora do Oceano, como em outros tempos foy [...] A segunda, as conquistas do Reyno.
Senhoreando a monarchia portuguesa os berços donde o sol nos nasce, & as sepulturas onde se nos esconde: dando principio ao seu senhorio, onde a Monarchia Romana pos fim a seu imperio [...] A terceira, a magnificencia real da casa de Bragança, que a pos os Reys se segue, & declara por tenção sua Depois de vos, nos” 26v-27r.
25 Cf. SCHWARTZ Cit. p. 744-5.
26 Joaquim Veríssimo Serrão, por exemplo, tratando das expedições holandesas sobre as conquistas de Portugal, refere-se à perda e recuperação da Bahia nos seguintes termos: “Um ataque de surpresa, em 1624, levou à conquista de Salvador, notícia que ao chegar ao Reino causou a maior emoção. No ano seguinte, uma frota enviada de Lisboa pôde reconquistar a capital do Brasil”. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O tempo dos filipes em
Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Colibri, 1994. Este texto foi publicado em 1982, num extenso manual de História de Portugal.
27 GUERREIRO, Bartolomeu. Jornada dos Vassalos, Cit. p. não numerada.
28 VARGAS, Tomás Tamayo de. Restauracion d la ciudad Del Salvador, I Baia de Todos-Sanctos, em la província del Brasil por lãs armas de Dom Philippe IV, el grande, Rei Catholico de lãs Espanas, Índias etc. Madri: viúva de Alonso Martin, 1628, p. não numerada. Este livro foi traduzido ao português e dedicado a D. Pedro II por Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva em 1847.
29 Ibidem, p. não numerada.
30 Ibidem, p. não numerada.
31 A carta não saiu impressa na época. VIEIRA, Antônio. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, vol. I, p. 3-70.
32 VIEIRA, Op. Cit. p. 11.
33 Felipe II, após a invasão de Portugal pelas forças castelhanas, fez reunir as cortes do reino em 1580. Na ocasião fez-se o acordo que, entre diversos outros itens, estatuía o princípio da nomeação de portugueses para as funções de governo no reino (exceção aberta apenas para o Vice-Rei, se membro da família real) e do ultramar.
34 MOERBEECK, Jan Andries. Redenen Wâeromme de West-Indisch Compagnie dient
te trachten het Landt van Brasilia den Connick van Spangie te ontmachtigen en data ten eersten. Amsterdam:
Cornelius Lodewycksz, 1624. Há tradução brasileira publicada com o título: Os
holandeses no depois: cf. GUERREIRO, Bartolomeu. Sermam que fez o R. P.
Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus nas exequias do anno que se fizerão
ao serenissimo Principe D. Theodosio segundo Duque de Bragança em Villaviçosa
na Igreja dos religiosos de S. Paulo primeiro hermitão onde o dito senhor está depositado em 29 de novembro de 1630. Lisboa: Mathias Rodrigues, 1632. O sermão faz um elogio exaltado da Casa de Bragança declarando em uma passagem o seu expressivo posto no reino: “Tres grandezas tem o Reyno de Portugal, com ser tão pequeno, & limitado pera quem fora pequena a Monarchia Romana. Primeira a famosa cidade de Lisboa, cabeça do Reyno enchendo todas as partes do mundo com a opulencia de seus comercios, como se fora senhora do Oceano, como em outros tempos foy [...] A segunda, as conquistas do Reyno. Senhoreando a monarchia portuguesa os berços donde o sol nos nasce, & as sepulturas onde se nos esconde: dando princípio ao seu senhorio, onde a
Monarchia Romana pos fim a seu imperio [...] A terceira, a magnificencia real da casa de Bragança, que a pos os Reys se segue, & declara por tenção sua Depois de vos, nos” v-27r.
35 NARBONA Y ZUÑIGA, Eugenio de. “Historia de la Recuperacion del Brasil”. Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 69, 1950, p. 170.
36 GUERREIRO, p. 5.
37 Dentre as inúmeras edições desse texto, destaca-se a já citada de José Maria
Viqueira Barreiro. O original de Lope de Vega acompanhado de longa introdução e de comentários nem sempre dignos de consideração.
38 Entre as causas do descuido de Diogo de Mendonça Furtado estaria o fato de “los
governadores del siglo antes passan a ser mercadores que capitanes”, FARIA E SOUSA, Manuel de. Epitome de las Historias Portuguesas. Bru xelas: Foppens, 1677, p. 332.
39 Epitome, p. 333.
40 VALENCIA Y GUZMÁN, Juan de. Compendio historial de la jornada del Brasil año 1625. Recife: Pool, 1984, p.247.
41 Compendio, p. 251.
42 NARBONA Y ZUÑIGA, Eugenio de. Historia, p.191.
43 VIEIRA, Cartas, p. 27.
44 MENEZES, Manuel de. “Recuperação da cidade do Salvador”, Revista do IHGB,
1850, p. 400.
45 Plaine and True Relation, p. 9.
46 ALDENBURGK, Johann Gregor. Relação da Conquista, p. 178.
47 ALDENBURGK. Relação, p. 187.
48 “... se tomo possession de la ciudad en nombre de Don Philipe el Quarto Rei de las Espanas, entrando en ella el maestro de campo general, su teniente; i el maestro de campo Don Juan de Orellana con algunas compañias para su guarda; como para la prevencion de lo que conveniesse, assi en el modo de proceder de los soldados, como en el cobro de la hazienda real...” VARGAS, Tomas Tamayo de. Recuperacion, p. 134r-v.
49 VARGAS. Recuperacion, p. 134v-5r.
50 Relaçam verdadeira de tudo o succedido na restauração da Bahia de todos os Santos desde o dia, em que partirão as armadas de sua Magestade, té o em que em a dita Cidade forão arvorados seus estandartes com grande gloria de Deos, exaltação do Rey, & Reyno, nome de seus vassallos, que nesta empresa se acharão, anihilação, & perda dos Olandezes ali domados. Mandada pellos officiaes de sua Magestade a estes Reynos.
Porto: João Rodriguez, 1625, p. não numerada. A data da taxação é 12 de julho de 1625 e, conforme assegurou Pero Róis Soares, a notícia do sucesso chegou a 6 de julho na capital. O documento foi reeditado depois em Lisboa. Mais recentemente o IHBG publicou a relação no volume 5 de sua revista.
51 “Resolutas estas capitulações; deram os olandeses a entrada na cidade, foram os primeiros que entraram, o Marquês de Coprani e D. João de Orelhana, a quem não tocava a entrada, & tocava a Antônio Moniz Barreto, Mestre de Campo de um terço português”. GUERREIRO, Jornada, p. 58v.
52 GUERREIRO. Jornada, p. 59r.
53 GUERREIRO. p. 58/59.
54 MENEZES. Recuperação, p. 592.
55 MENEZES. Recuperação, p. 591.
56 MENEZES. Recuperação, p. 592-3.
57 VIEIRA. Cartas, p. 44.
58 FARIA E SOUSA. Epitome, p. 335.
59 Plaine end True Relation, p. 20. ALDENBURGK. Relação: Igualmente, tiveram que os portugueses de resgatar de novo a cidade de S. Salvador e pagar dobrado tributo anual ao tesouro espanhol... Além do mais, tiveram os portugueses de resgatar os seus velhos canhões em poder dos espanhóis, que muito espoliaram a cidade, carregando os navios da frota com pau-brasil, fumo, açúcar, especiarias e tudo quanto puderam arrebanhar de mesas, cadeiras, tapeçarias e móveis”, 218.
60 CARNEIRO, Diogo Gomes. Oração Apodixica aos scismaticos da patria. Lisboa: Lourenço de Anvers, 1641, f. 8r. 61 Sete anos após os acontecimentos de Salvador, João Pinto Ribeiro publicou um livreto cujo título já expunha a resistência à idéia do empenho dos fidalgos portugueses nas guerras da Monarquia: Discurso sobre os fidalgos e soldados portugueses não militarem em conquistas alheias desta coroa. Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1632.
62 “The council of State acted to prevent the publication before Menezes could publish his. See Consulta, Council of State, April 1623 [sic], British Library, London, Egerton 324, fol. 18”. SCHWARTZ. p. 740n.
Farto Nordeste lavrador do século XVII, pintura de Franz Post |
RESUMO
A reconquista da cidade de Salvador pelas forças da Monarquia Católica em 1625 foi um grande feito bélico. A abundância de testemunhos, relatos e histórias da batalha são tantos elementos que certificam a importância do acontecido para seus contemporâneos. Um exame detido dessa literatura é capaz de mostrar uma oposição, ainda que dissimulada, entre fidalgos portugueses e castelhanos: eles disputavam a proeminência nos feitos bélicos e a honra do desempenho vitorioso. Festejada, narrada e comemorada, a Batalha da Bahia acabou por se transformar num acontecimento revelador de tensões entre fidalgos de Portugal e de Castela, que iria alimentar uma dissensão mais que secular e que viria a tomar corpo em dezembro de 1640 Palavras-chave: salvador, século XVII, narrativas históricas.
ABSTRACT
The reconquering of the city of Salvador by the Catholic Monarquic Forces was a belic enterprise of great impact. The abundance of narrations, stories and live accounts of the battle testify to its importance for their contemporaries. A detailed exam of this literature shows the opposition, even if veiled, between the “Fidalgos” from Portugal and from Castela: they both claimed proeminence of belic achievements and the merit of victorious deeds. The Battle of Bahia, narrated and celebrated to great extent, turned out to be revealing of the tensions between the “fidalgos” of Portugal and Castela, which in turn would give rise to a discution more than secular eventually embodying itself in December 1640. Keywords: Salvador, XVIIth Century, historical narratives. (recebido em julho de 2004 e aprovado em novembro do mesmo ano).
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