quarta-feira, 27 de novembro de 2024

BOEMIA LITERÁRIA NA BAHIA DOS ANOS 50/60

 

        Salvador, Praça Castro Alves, onde ficava o Tabaris Night Club


ASSUNTO: 

Resumo de conferência pronunciada por Florisvaldo Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, em Salvador (BA), na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”.

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POESIA EM TEMPOS DE BOEMIA LITERÁRIA

                                                                     Florisvaldo Mattos                                                          

Houve um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não em contenda rude, açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não mais se falava dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em um bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos.

A partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a consequente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Octávio Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes. Todos, quase em uníssono, querendo elevar o bem-estar dos baianos.

Tais sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença e a ação de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Genaro, Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura e mundanismo, de incursão até na política), ao sopro dos ventos liberalizantes da Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida intelectual mundana e universitária faz surgir, então, com tinturas existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade, o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema local, um marco no gênero. Era a vibrante interseção na cidade da Geração Caderno da Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.

Neste momento, uma coceira mental me traz à lembrança um poema evocativo que escrevi muitos anos depois, repercutindo as emoções e o ambiente urbano, com que me defrontei, a partir da noite em que pisava pela primeira vez o asfalto da cidade. Sob o título de “Tempos de Arlequim”, composto de versos cadenciados, mas sem rimas, integra o livro Mares anoitecidos, que publiquei no ano 2000, como parte de coletânea alusiva aos 500 anos do Descobrimento. Não me envergonha reproduzi-lo.


Salvador é Carnaval. Quando cheguei, 

Em noite de Segunda-Feira Gorda, 

As cores da cidade feiticeira 

E os meus olhos na praça fumegavam. 


Havia corso e blocos veteranos 

(Nomes claros que hoje fazem sonhar). 

Sobem os Inocentes em Progresso

Descem os Mercadores de Bagdad.


No Bob’s Bar, que depois será Cacique

Param o som travesso e a peraltice 

Da guitarra elétrica na Fobica

Uma estrela desponta e, com a luz dela, 


A multidão que pula e agita ramos 

(A prévia tosca da mamãe- sacode) 

Canta, dança, grita, bebe cerveja. 

Eu ali que faço? Acompanho o passo. 


Batalhas de confete e serpentina, 

Pierrôs, lança-perfume, colombinas, 

Estrelejando o chão da Rua Chile, 

Onde desfilam afoxés. (A brisa 


É mais um concorrente da folia, 

eu, olhos postos em longínqua trama 

De sonhos dando voltas num salão 

E numa rua, espelho do infinito). 


Avança por meu tempo de incertezas 

A máscara sedutora do passado, 

Blocos de rancho fecundando auroras 

E o entardecer de etéreas batucadas. 


Súbito são morenas de um cordão; 

Arlequim invasor da madrugada 

Agarra-se à cintura de uma delas 

E sobe a praça rumo à Sé que ferve.

        Salvador, dos bondes abertos (séc. XX). Foto de Pierre Verger

É nessa atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito (CARB) que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo, com as apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, cito alguns), protegidos da sanha proibitiva e coercitiva da pressionada direção do colégio pelo professor Ruy Simões, um fervoroso apoiador e defensor desses anseios juvenis.

Recordo o encontro que me lançaria nessa caudal de sonhos, com moldura exótica, senão cômica. Em inícios de 1957, o Nº 11 da revista Ângulos publicava o meu poema “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State of Bahia South Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I. C. (Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau, permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e municípios, e o consequente desenvolvimento da produção, gerando riqueza. Foi quando certa manhã, eu sentado num dos bancos do hall da faculdade, vêm me avisar que procuravam por mim na portaria. Saio para o umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo, um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer o autor do poema Composição de ferrovia, para nós o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o hilário gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida a ir à sua casa, na Rua General Labatut, Nº 13, 1º andar, onde, dizia-me, costumava se reunir com os companheiros, para discutir uma quase infinita pauta de inquietações, aspirações e planos modernistas.

A motivo desta tropelia juvenil, segue abaixo.


COMPOSIÇÃO DE FERROVIA

 

I - Galope sangrento

 

Sobre campos de sol fotografados de fome

de manhã surpreendo-me entre maquinistas.

guarda-freios, foguistas, agulheiros

colecionam tristezas numa ferrovia.

Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,

exiladas faces como nuvens atônitas,

contra pontilhões investem, contra água pesada.

 

Sucedo de rotas e destinatários,

de mercadorias emerjo, melancólico.

Experiências metálicas de locomotivas

trituram músculos, afogada energia

de trabalhos humanos e apitos agudos,

trilhos que sulcam horizonte sem âncora;

me alimento de fogo, velocidades sofridas

de vagões conduzindo cacau e sombra

sobre cidades e montes, sobre latifúndio:

negro mar se agacha, silencioso salta,

come homens e meninos que choram sonhando.

 

Entre estações que gritam impossível atraso,

sonolentos comboios avançam na noite.

Desenvolvem sem termo choro agressivo,

um choro duro de homens e fornalhas

devorando madeiras e carne em lamento.

Lento uivo de rodas que se multiplicam

com substância noturna de salários

acumula vegetação nos eixos aluídos,

esperança consome na carreira profunda

sobre ilhas de acaso engrossando velho

patrimônio de mortes alugadas.

 

Rápidos horários com palavras de fumo

seu voo de espuma e lâminas corroídas

e matérias subjugadas anoitece

no sangue roxo operário com ferrugem,

elabora sentidos e desgraças na fronte

espessa. Na garganta incendiada cresce

gemido áspero de peito mutilado,

com umidades ocultas, com soluço.

 

II - Inclinação do Touro

 

Abandona-se à agonia das campinas

vencidas, idêntico de origens, branco touro.

Bruscamente desperta das árvores em fuga,

da massa dos dias. De repente, das raízes

do pranto inclina-se operoso, agrupa-se

a um barulho de ferros e caldeiras,

a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.

Do sentimento comum de águas em arranco,

súbito levanta-se, acorda ferroviárias

perspectivas amarradas ao volume do sono.

 

De aurora que lhe umedece cascos e chifres

baixa uma luz influente de conquista;

do seu dorso de argila ao meu rosto chega

uma luz que me alcança cruza-me os nervos

ampla de rumos mergulha na carne de todos

resistente caindo sem parar nas cabeças.

De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso

crepúsculo, evoluindo em cada elemento,

sua construção permanece de touro veloz

em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.


(Florisvaldo Mattos. Reverdor. (Salvador: Edições Macunaíma, 1065).


A entrada de Glauber Rocha no cenário sugere novo parêntese para evocar episódio de conotação ainda mais cômica, produto de uma viagem que fez ao Nordeste, em 1960, acompanhado de João Carlos Teixeira Gomes, durante a qual este sofreu um acidente, ao descer de um ônibus, forçando-o a passar o restante do trajeto com o pé enfaixado.

Com a cabeça atulhada de projetos, buscava Glauber, nesta viagem, colher subsídios e inspiração que iriam compor os roteiros de duas de suas obras primas cinematográficas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. A certa altura da excursão, pararam em Recife e, nas andanças por lá, se encantaram com o poeta Ascenso Ferreira, um dos ícones do primeiro modernismo, ao lado de Manuel Bandeira, outro pernambucano. Impressionados com a histriônica figura, resolveram convidá-lo a visitar a Bahia. Pouco depois, com seus dois metros de altura, 120 quilos de peso, chapéu panamá de aba larga, terno branco e gravata, o poeta de Catimbó e Cana Caiana, desembarca em Salvador, onde o cercam de homenagens e rapapés, faz conferências, assiste a peças teatrais, passeia e, principalmente percorre e freqüenta bares e restaurantes, comendo e bebendo, com as honrarias que se devem a visitantes ilustres ou boêmios consagrados, demorando-se em Salvador por cerca de um mês.

Na véspera de voltar ao Recife, Glauber e os mais assíduos nas estripulias resolveram fazer uma despedida, convocando a imprensa para uma entrevista com o pernambucano. Em clima de festa, conversa regada a cerveja e acepipes já chegando ao fim, um jornalista pergunta ao poeta: “Ascenso, durante todos esses dias que por aqui passou, o que mais o impressionou e agradou na Bahia? Ascenso parou, franziu a testa, olhou sorridente e bonachão para o jovem e, lembrando talvez o que fazia naturalmente nas ruas, quando pouco sóbrio, disparou: “A liberdade de mijar”.  

    Grupo da Geração Mapa, vendo-se Joca, Guerrinha, FM, Calá e Hélio Oliveira (1960).

Associei-me ao grupo e me engajei na saga de suas aventuras editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em torrente, livros com o selo das Edições Macunaíma; projetos cinematográficos pela nascente Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras, em galerias de arte, que se montavam então; variadas peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro, dirigida pelo pernambucano Martim Gonçalves; logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu: Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego, além do então apenas dentista, depois professor e autoridade em antropologia cultural, Vivaldo da Costa Lima. Neste contexto, não se deve esquecer a singular, solidária e entusiástica presença de um antes experiente livreiro, Zitelmann de Oliva, ora à frente da empresa Artes Gráficas, então operando na Rua do Saldanha, cujo apoio permitiu não apenas a realização dos projetos editoriais do grupo, com o lançamento dos primeiros livros de poesia e ficção, como ainda a edição de álbuns de gravura e dos três únicos números da revista Mapa, entre 1957 e 1958.

Como então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se tornariam habituais. Eram então os mais frequentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo Azul e o Restaurante Porto do Moreira; o Bar Brasil e o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço inaugural do Edifício Themis, ambos na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade boêmia, na Praça Castro Alves, a uns dez metros da estátua do poeta, junto à balaustrada sobre a Ladeira da Montanha.


NOITE DE ESTRELAS PRATEADAS

                        A Nino Guimarães (boêmio), in memoriam

 

                                   Noite alta, céu risonho,

                                   A quietude é quase um sonho (,,,)

                                               (Cândido das Neves, valsa)

 

   

 Há um marulho de sombras no meu leito. 

A cidade adormece (eu disse um dia...).

Onde a esquina que até me livraria

Dessas noites de chumbo em que me deito?

                                                                                        Entrada do Tabaris Night Club                                 

Hão de dizer que afundo em nostalgia,        

Que não tenho durezas de homem feito.

Tenho sonhos fecundos, tenho um peito;

Só não tenho razão, filosofia.

 

Vou por noites maiores e menores,

Por onde transitaram meus amores,

Em praças de jardim sem flor-de-lis.

 

Gritam: “Para que servem as manhãs?”       

Vejo na porta alguém metido em lãs,         

Que me convida a entrar no Tabaris.*                                                                                                


SSA/BA, manhã de 26/08/2015

*Tabaris Night Club: casa noturna, ao estilo de cabaré com música e dança, que funcionou em Salvador, de 1933 a 1968.

Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade.

Muito de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada com queijo e banana pessoalmente”. Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses, assim como este soneto de Fred Souza Castro, reproduzido abaixo, reportando-se à morte de José Moreira, dono do restaurante, em 1975.                                                            


A noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, que ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, a casa de “China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não só as antigas de coronéis do cacau. E aqui nova urticária mental me induz a outro parêntese, para lembrar episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado por alguns de nossa turma numa dessas noites de boemia peralta. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua primeira equipe de Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que nos cabia, como atores dessa façanha - eu, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia.

Pegamos o dinheiro curto no caixa e, à noite, com a aderência de mais alguns, alegres e felizes, marchamos todos para o Tabaris, onde na ocasião se apresentava um balé argentino, composto de dançarinas loiras e morenas, de corpo torneado e maiô, dançando o repertório musical da moda, bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao som de uma afinada e buliçosa orquestra de sopro. Era comum nos intervalos, como parte da atração, elas, as bailarinas, virem às mesas, conversar, beber e até dançar com frequentadores. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e bebendo, saímos alguns a dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, por volta da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente inquieto mais que o normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar contra aqueles excessos. Cenho fechado, mais que de repente, sobe na mesa e, em pé, põe-se lá de cima a bradar, possesso: “Isto é um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!” E, em tom de execração bíblica, repete mais de uma vez a última frase - ”Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”-, aturdindo as moças e companheiros em volta, para então, entre o sério e o farsante, atendendo aos clamores e ostentando no rosto um sorriso frajola, descer da mesa, sob estrondosa gargalhada.


Grupo de já ausentes, da Geração Mapa: João Ubaldo Ribeiro (2014), Glauber Rocha (1981), Calasans Neto (centro, 2006), Sante Scaldaferri (2015) e Paulo Gil Soares (2000)

Fora desses lugares que menciono e das cantinas de faculdade, davam-se ainda os encontros nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo misto de advogado trabalhista e crítico de cinema Walter da Silveira, em salas de espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade tranquila era assim intensa e ludicamente vivida, dia e noite, em transações que varavam as madrugadas.

Volto ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma remota tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do Jornal da Bahia, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na poesia e na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da Geração Caderno da Bahia, na qual disputava píncaros com o poeta Wilson Rocha, ambos ícones locais do modernismo. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de Corta Braço, ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação, que acabara de lançar Além das torres do Kremlin, relatos de viagem a Moscou, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo jornal, que antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido jornal que funcionou na Ladeira de São Bento (1945-1957), pertencente ao Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e mantido por Aristeu Nogueira e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia.

Falava-se de literatura, jornalismo e política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio, para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não lembro o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava. Surpresos, os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando lenda campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto o outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas.

Cumprindo o ritual e com a merecida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na edição dominical do Jornal da Bahia. Dito e feito. Dias depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos ocupavam as duas colunas ao lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha sequer alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração.

Em 1960, os dois poemas seriam ainda publicados na revista Ângulos (Nº 16), então comandada por Noênio Spínola (diretor) e Antônio Guerra Lima (Guerrinha), de redator-chefe, com João Ubaldo Ribeiro, diretor de Cultura do CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com sorte diversa: “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965), enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar, por direito inalienável, o do meu saudoso e insigne êmulo.

 

SONETO OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA

 

                                                           JAIR GRAMACHO


Nesta tarde o terreiro está vazio.

Distante o laranjal se estende; a manga,

A serra, o azul depois; tênue miçanga

De açafrão tinge as fímbrias, o do estio      

Salvador: a Rua da Ajuda (Centro)

Único resto. Esta tristeza é mais

Que a da paisagem pobre e adormecente;

Talvez por não ter rosas, não ter gente,

E a solidão vagueie pelos currais.

Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto,

O mito abandonado busca o luxo

Antigo de existir; dispõe espectros

Que em volta cirandeiam do repuxo...

          Ah! Mais que basta para o instante magro

          Galinhas ver – irmãs de Meleagro!

 

A CABRA

 

                    FLORISVALDO MATTOS

 

 Talvez um lírio. Máquina de alvura

Sonora ao sopro neutro dos olvidos.

Perco-te. Cabra que és já me tortura

Guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.    

Calasans Neto: Cabras e Baleia


 

Máquina e jarro. Luar contraditório

Sobre lajedo o casco azul polindo,

Dominas suave clima em promontório;

Cabra: o capim ao sonho preferindo.

 

Sulca-me perdurando nos ouvidos,

Laborado em marfim – luz e presença

De reinos pastoris antes servidos –

 

Teu pelo, residência da ternura,

Onde fulguras na manhã suspensa:

Flor animal, sonora arquitetura.


Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; membro da Academia de Letras da Bahia; autor de livros de poesia e ensaios; entre os quais Poesia Reunida e Inéditos (2011), Sonetos Elementais (2012), Estuário dos dias e outros poemas (2016), Antologia Poética e Inéditos (2017), Cacaueiros - Poesia, Conto. Teatro (2022), Catorze Janelas Abertas - Sonetos reunidos, com inéditos, 1953-2023 (2014), poesia; Estação de Prosa & Diversos (1997); Travessia de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004) e A comunicação social na Revolução dos Alfaiates (2018, 3ª edição), Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022), ensaios.

ARIOVALDO MATOS

                                   In memoriam

 

Nem (abra-se o caderno do passado)

se fôssemos parentes saberias

o que guardava-me a mente a teu lado

pelo correr das noites e dos dias,

 

Quando, sôfrego, à máquina escrevias

páginas de um jornal – ou quase um brado

que ia e voltava a teu convívio, alado

tropel sobre impassíveis geografias.                                                                                                                                                                   FM - Fotolab, de Mauro Coelho. 2015

Como decifrador de calendários,

a batalha dos signos açulava-

te a matilha de ventos operários.

 

Eras real, um homem verdadeiro.

Mais não pude guardar, se o que eu sonhava

era ser aprendiz de feiticeiro.


Florisvaldo Mattos, A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e Arte), p. 50, 1996. 


NA AJUDA, PERTO DO ANGELUS

                                        A Pedro Moacir Maia


                                   Vellos e vellas, mentras monean

                                   Silbam as salves y os padrenuestros.

                                                                       Rosalia de Castro

 

Vagando em horários que induzem à meditação,

No centro da ilustre urbe de caminhos imperfeitos,

Pelas cinco que um agosto rege de cinza e frio,

Ando sobre remotas pedras de um templo ultrajado,

Sítio por onde transitaram pés de cinco séculos.

Ajuda se chama e Sé de Palha foi esta casa

De oração e olvido, que ambição voraz amputou:

Cá sombrias paredes com pinturas descascadas,

Santos em seus nichos, a dialogar com sossegados

Mármores, sob arcadas que aludem a inquisições

E a penas sancionadas pela autoridade do latim.

Um careca no órgão, um cantor de blusa listrada,

Como se de pedra fossem, calmos entoam cânticos.

Luzes mortiças sob imagens sacras em panóplias,

Cenas do evangelho toscas espalham-se no teto,

Escorrem por janelas ancestrais de falso gótico

E o púlpito de madeira lavrada onde ressoam

Veementes sermões, gestos falazes, sagacidades.

Entre jogos de luz e sombra, entre volumes, mesclas

De formas neoclássicas e pungente barroquismo,

Frias flores em altares de círios apagados;

Homens e mulheres, as mãos em prece, a ruminar

Silentes verdades que adubam a razão dos pobres,

Em semblantes de conformismo e vaga transgressão.

Bailam no ar transidos coros de infância e lembranças

De garotas (onde estarão elas?) de seios duros,

Fugazmente apalpados na hora de tanger os sinos,

Aquela depois do Ângelus, nos maios de novena,

Enquanto padre Luiz San Juan a cabeça meneia

E cochila entre as gastas alfaias da sacristia.  


(Florisvaldo Mattos. Poesia Reunida e Inéditos, p. 239, 2011)

           Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos (Sucursal do JB, 1976)
 

POEMAS DEDICADOS A AMIGOS DA GERAÇÃO MAPA
                         

POEMA PREPOSICIONADO

                                   A Glauber Rocha

 

Florisvaldo Mattos


Debaixo dessas pontes de limo,

debaixo desses rios parados,

por que nos quererão ativos,

mas não honrados?

 

Por que sobre esses verões poluídos,

por sobre esses ventos domados

por que nos quererão amigos,

mas não amados?

 

Diante desses mares vencidos,

diante desses muros inviolados,

por que nos quererão perdidos

viajantes sem mapa?

 

Atrás dessas botas de verniz,

atrás dessas máscaras de aço,

por que nos quererão submissos

seres programados?

 

Nesse fosso de espanto e mito,

nessa fria massa de ocasos,

por que não paramos de rijo

o fóssil barco?

 

Com as ferramentas da vida

com os amantes, com os amados,

Por que logo não explodimos

a obstinada máquina?

 

Fique no ouvido o som terrível

cravem na carne os estilhaços,

antes me quero morto ou sofrido,

porém honrado. 


(Fábula civil, 1975)


MASSA

            A Fernando da Rocha Peres


Sucede que um dia me sucedo

ventos galopei por outros prantos

e perto vou sendo tudo longe

os pés disformes assentados

no leito de sangue desse rio.

 

Sucede que um dia o peito abre-se         Glauber e Fernando na Rua Chile

mais aurora e flor mais sentimento    

e resume em ser o que era ter

tanto melhor morte traz a sorte

de correr liberado noutros cantos.

 

Sucede que um dia renuncio

ao querer resoluto que apodrece

em lavra final de tempo e sal.

Assim despojado de sombras asas

me levem que chegarei em breve.

 

Sucede que um dia se afundou

o navio com bagagens ancestrais.

Recusando o baralho onisciente

debitei a angústia de viver

ao livro dos homens – não ao diabo.

 

Sucede que um dia me conheço

afinal. Sou todo companheiros.

Labirinto de chagas mas por onde

corre um raio farto de vontade

faço do amor aos outros meu caminho.


(Fábula civil, 1975)


AO ÓCIO

            Deus nobis haec otia fecit.

                                   (Virgílio, Bucólicas)

 

(Libações a Fernando da Rocha Peres)


 Em Peres que na curva dos cinquenta             

verdeja e, dedilhando o clavicórdio, 

relumbra ao puro amor gregoriano,

não daquele inventor do calendário,               Peres, poeta e historiador

mas do nosso, mais santo e venerado,

que é como a gente trata o ser profano,

quero saudar com vinho e outros goles

a seara de estudo com que vinga

o passado de um nome tão presente

e mais do que isto esculpe pertinências

que Adão não foi capaz de nos legar.

E  pelo homem devoto de outra espécie

que é das letras divino sacerdócio

mui para sempre bebamos, pelo ócio.

 

(Salvador, 27 nov.1986)  


LOAS A FERNANDO PERES

           

Peres nos setenta e cinco

É só iluminação.

Sabe a vinho que deixa um vinco    

De afetos no coração.                       

 m resolvida,

Reúne verdade e graça

Bula Pro Nobis” na praça              

É prece be

Com Urânia, prêmio da vida.   

A

 

 

Filhos e netos queridos

Fazem o bardo sorrir:

Cabelos brancos descidos

 

E a alma predestinada

Na faina de resistir

Aos mercadores do nada.

 

(Saudação ao bardo encanecido Fernando da Rocha Peres, fã do trompete de Chet Baker, no dia do seu aniversário, 27/11/2011).

(Estuário dos dias e outros poemas, p. 207, 2016)


VESTÍGIOS DO JAZZ

A F. Peres, fã de Chet Baker                                        Trompetista Chet Baker


 

Assim: Chet

arremete                    

seu trompete,       

som de escrete,

nem que chova

canivete.

 

(SSA/BA, 10 ago.2001)

                                                               CANTEIRO DE OBRAS

                        A Calasans Neto

  

Triste nada mais triste

nas torrentes urbanas

são passos insones sombras

entre automóveis e hábitos.                        

 

Marulho de pés e pedra                    Cabras, de Calasans, para "Reverdor"

escuro clamor de buzinas

deslizamos sobre leito

de ritos – sulcos na face.

 

Os engenheiros rasgam

o ventre da cidade

mar de mitos represado

o fel da impotência

escorre ladeira abaixo.

 

Tudo resplandece em luxo visual

no cotidiano das paredes claras.

 

Dentadura gretada de edifícios

engole projeta miragens

morno hálito de sangue

sobre todos – por ali sai

um odor antigo um bafio

negro muito sem disfarces.

 

Lábios e mãos se apagam

em escrita de muros – implacável

olhos ouvidos rostos numerados

mansamente nos consumimos

em surdo medo e azinhavre.


(Fábula civil, 1975)


AURA ALVAÇÃ

                        A Sante Scaldaferri

 

Ó cintilação campestre

remanescente cerâmica

de universo patriarcal!

 

Contemplo claro rebanho                     Sante Scaldaferri, No Campo do Gado

de reses lentas ganhando

o silêncio das pastagens.

Explode pelos currais

sinuoso berro de espuma,

drapejam vozes de aboio

sobre capim outonal,

verde produção de esterco

consagra o chão mineral.

 

Ó perene geografia

de homens e naves, sistema

do couro, campo domado!

 

Andejo rechã buscando

germinais rastos de reses.

Ao sol da manhã prefiro

curar sofridas corolas

ou laçar chifres em fuga

– arisca abóboda, ogiva

do tempo aprisionado –,

colher a rosa alvaçã,

pelagem do incontemplado.


(Fábula civil, 1975)


SANTE OITENTÃO EM SÃO BENTO

                                                                                             

Claro domingo de sol e verão chegando,

Cercado de solenidade e ritos sacros

Que somente aos santos se reservam,

Entre os negros e os rubros, ante o mármore

Do altar, para onde se remete a claridade,

Em dia de São Lucas de todos fraterno,

Com nostalgias de Bizâncio, incenso e cânticos,

Devoto Sante Scaldaferri parecia

Reger, com sua Marina e áulicos de sempre,

Sosigeanamente, uma festa de opala,

Com oitenta diáfanos anjos a cortejá-lo.

Sinos quase tubas. E logo entre as arcadas,

Ínclito repasto, com vinhos e iguarias

Vastas, que recendem aromas do Oriente.

 

(Refere-se ao ato religioso pelos oitenta anos do pintor Sante Scaldaferri, na

Igreja de São Bento, em Salvador, dez. 2008 ).


TOLEDO SOBRE O TEJO

            A João Carlos Teixeira Gomes

  

Súbito revolvida a cal dos dias,

passam-me sob os olhos, remansadas

à luz de verde aparição, as frias

águas do Tejo ruminando espadas.

 

Mortas de pesquisar rumos e vias,

sempre ao gume da pedra aventuradas,

movem-se como lágrimas – sombrias

lacerações de estrelas galopadas.

 

Toledo está ferida de rosetas,

chorada pelos ventos outonais,

rendendo-se ao assalto de secretas

 

paixões com que subjuga terra gasta

onde lampejam cascos e metais

o cavaleiro godo que se afasta. 


(Fábula civil, 1975)


SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS

                    (A JC Teixeira Gomes, no dia dos seus 80 anos – 09/03/2016)                     

 

Cansei-me de pensar no que era o dia,

Se ele entre dois crepúsculos se evade.

Cansei de me perder nessa agonia,

Fosse hora calma, fosse tempestade.                   João Carlos Teixeira Gomes


               

 

Juntei a vida inteira os Elementos

E a cada um dispensei olhar de justo.

Se regem mundos, regem os momentos,

Não conseguem parar o sol injusto.

 

A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses

Que governam e nutrem a Humanidade,

Como me adverte o oráculo de Elêusis.

 

Não podemos mudar de itinerário.

Ao fim nos resta uma única verdade:

O nosso cabedal é o calendário.


(Estuário dos dias e outros poemas, p. 125, 2016)


ARTE E AURA

                                   A Ângelo Roberto

 

Ventos, ventos que vão,

Ondas, ondas que volvem,

 

Espelhos que se abeiram,                    Ângelo Roberto, Cavalo em Domação


Estátuas que retraem,

 

Semblantes que passeiam,

Estrelas que se apagam,

 

Sonoros rios de ontem,

Caminhos recurvados,

 

E próximo um sopro

De súbita alegria,

Na fronteira do sonho,

Quase irreal, um corpo,

Em labor impalpável:

Sombra que luz – sua alma.


(Poesia Reunida e Inéditos, 2011)


 

ÍNTIMOS CAMINHOS

                  A Antônio Guerra Lima

 

"Não sei para onde vou

 - Sei que não vou por aí!"

                                                (José Régio)

 

Não. Nada de penhascos irreais,

Tampouco de florestas invisíveis!

Por aqui tudo fala à sensação,

Ao olhar, ao aroma, à língua, ao tato,

Ao som. Feliz de quem os tem. Ó vós,

Que ditais pelos montes de onde venho,

Por trás de sombras como que vazias?

Enquanto me desfaço de meus fardos

Ancestrais, meu cabedal de fadigas,

Lábios trazem clarões de frescas auras,

Meus pés sibilam sobre sendas rudes,

Mas com promessa de horizontes novos.

Se me pedes que siga o teu caminho,

Descansa. Sei que não vou por aí!

 

(SSA/BA, 1º de maio de 2013 - In Estuário dos dias e outros poemas, 2016)


TARDE NA VÁRZEA COM CHUVA

A João Ubaldo Ribeiro

                        (“Não existe poesia sem infância”, ele disse)

 

A chuva há de passar... De quando em quando,

Um alarido vem pelo ar, fugidio.

Na tarde bruxuleante, além do rio,

Teles e Caboclinho estão jogando.                  João Ubaldo Ribeiro, por Valtério 


 

Não posso ver; a chuva me atrapalha.

Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.

Avanço a rua. Minha tia ralha

(nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”    

 

Raiva. Bato três vezes na madeira.

Será que vai chover a tarde inteira?

Digam como lá estão os litigantes.

 

É agosto, sim, e chove sem parar.

Dentro, o menino quer comemorar

logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.


(Estuário dos dias e outros poemas, p. 83, 2016)


CLAREIRA DE BÚZIOS

(À poeta Myriam Fraga, in memoriam)


Quando a luz da inocência nos sequestra

e o vento beija a face das jaqueiras,

é quando de alma saio porta afora,

para deslumbre inaugural dos olhos

 

voltados para a terra, enfeitiçados.

Paro e começo a vislumbrar meu mundo.

Convido-os a ir comigo pela aurora

e por clareiras de fecundos vales,

 

por colinas, encostas e ladeiras,

de onde escorre um lençol de suavidade,

que cinge, cobre e invade corpos e almas,

faiscando em cores quando o sol se põe.

 

Vou por caminhos vastos de mim mesmo.

Entre flores silvestres e tabuas,

vivo, como se o sol tivesse mãos

e o dia respirasse nos meus passos.                

 

Caminho pela tarde, e se desenha

um concerto de deuses em simpósio:

Diana à frente a caçar perdizes; Ceres,

junto à água, nua, na arte de semear.

 

A inocência possui muitos idiomas,             Poeta Myriam Fraga (1937-2016)

que fraseiam manhãs, tardes e noites

e a cada um dos sentidos condecoram

com medalhas de amor da natureza.

 

Adornando belíssimo silêncio,

logo nos prende a música dos ramos.

Um papagaio remete da forquilha

urgentes telegramas pela brisa;

 

a voz de guriatãs por entre folhas,

a do sabiá (que digam os que o ouviram)

e a dos curiós no arame das pastagens, 

ou rasantes de carcarás bravios.

 

Convido-os mais, a ver da serra, ao longe,

alta e azul, o recorte melancólico,

com que, serena, rege as urdiduras

do despencar da chuva sobre os campos.

 

E, acima, o céu de azuis e claridades,

ou de repente céu de negras nuvens,

onde se tece o cipoal de crenças,

que faz o homem dormir mais sossegado.

 

Uma extensão de flores, um jardim,

me faz lembrar o poeta dos aromas,

o de ardências sensuais e de crepúsculos,

que um dia me levou ao belo e ao mar.

 

Ah, venham conhecer o mar de verdes

e este céu de ternura que nos cobre.

Tudo nos favorece gentilmente

o correio das brisas delatoras.

 

Louros e sapucaias, calmos cedros,

maçarandubas e jequitibás,

quantas vezes beijei suas raízes,

ao calor de manhãs, sempre insensíveis

 

ao arbítrio das tardes e das noites. 

Recolhem seu mutismo venerável

e o guardam no candor da consistência,

ante a inviolada paz que lhes dá vida.

 

Vibro. Quero sentir na plenitude

essa glória de ver e contemplar

o luxo de existir que um poeta viu

em clareira de deuses e anjos farta.

 

Daqui percebo o sol se despedindo

das montanhas, das águas e das pedras

e, entre nuvens de cores, vindo a noite,

para nutrir de sonhos quem trabalha.

 

Atentem. Agora não mais verão

o desfraldar dos ecos e das flores;

um galope de luzes nos visita

e se abre em cortinado o firmamento.

 

E nele, em cima, o terno olhar da lua,

igualmente os de estrelas, piscadores,

que, longe, o homem há milênios ignoram,

sem dele nunca serem ignorados.

 

Amo esta terra, doce, única e funda,

que enche as amadas horas de meus dias

com as instantâneas formas debuxadas

no claro céu, nos campos e nos montes;

 

vivas, na música que riachos cantam,

até mesmo no sopro útil e rude

forjado em búzio, em cobre ou alumínio,

que assalta as tardes, alertando as gentes.

 

(SSA/BA,15/02/2016) 


A AMIGOS DA GERAÇÃO MAPA


A UM EXILADO ENTRE SEREIAS

 

                                   Ao insigne poeta Jair Gramacho

 

Irei aí um dia, amigo, em cavalgada

De pássaros, de ventos, visitá-lo!

Uma égua, tal a do Campos, na estrada,

Estará lá a roçar-se em seu cavalo,                 O poeta Jair Gramacho romântico


 

Por sob um céu de salvas e perfumes.

Creio vê-la a aspirá-los, como gente.

E que haverá no brilho de seus lumes

Versos que cedem halo a sol frequente.

 

Creio ver ainda mais; até moçoilas

Tecendo uma coroa de azaleias,

Em seda guarnecida a lantejoulas.

 

Eu cá adivinho a cena: águas lá embaixo

Despacham-lhe miríades de sereias.

E elas: “Viemos servi-lo, seu Gramacho”.


(Imagens da terra, in Mares anoitecidos, 2000)



SOTEROLIMOS

                        A Jeovah de Carvalho

 

A cidade distende o couro crespo                                                                                                                                                                                                                                                    imerso nos gemidos dos telhados;

janelas e portas (fanais da noite),

despejando lamentos sobre pedras,

saem do escuro por uma luz sonora

por onde viaja a goiva do grave Hansen,   

retorcem-se cruciais chapas de Mário,              

ladeiras onde versos de Godô

formam lagos de esperma flutuante.                                     

 

Bordéis que torres sacras abençoam                                                      

(tudo o que sabemos a fé redime)                                                                                                                                                                                                                                                  as horas silentes, escoando clamor,             

soluço e preces sobre frontes boêmias;

serenas lanças de astros que ornamentam       

recintos de dolente passar, ó

pontas soberbas contra o choro agudo

de sacrossantos rostos mendicantes,

faces roídas de infinita espera.

 

Eretas torres de azulejaria

enferma (e as luxuriosas cornijas?),

que perscrutais pelo céu de amaranto

para antepasto na manhã de ausências?            

Que anseios guardais em pedra de lioz?                 Salvador, Centro Antigo, Pelô


     

Aspa da noite, deusa de chavelho,

a lua vem com o ventre pressuroso,

as ladeiras se enroscam e há um torpor

que amortece o tambor nos cabarés.

 

Tudo isto é obra do oceano que lá embaixo

rola parlamentando com os rochedos.

Lixo da rua, o mesmo dos navios

que lançam do mar tudo que emporcalha

a fímbria muda, a fímbria que admiramos,

dos administradores prometidos

gestos nos poupa, e que só morte esconde.

Tudo é inexorável, e nós sabemos:

um pedaço de mar é o que nos sobra.

 

A cidade adormece. Lábios boêmios

se cruzam sob marquises enfeitadas

com a luz que salta da burocracia.

Lentos lagos ali de morna esperma,

corredores de espelhos, qualquer coisa         

que venha e nos livre das asperezas.

E logo esta mulher que está de costas,

lábios partidos, ombros nus, cidade

descarnada, a pele colada aos ossos.                                

 

O clamoroso ventre da montanha,

na noite de gemidos, no cassino,

mulheres seminuas, apostas altas;

na rua iluminada, bondes rangem,

levando bêbados; as rotativas

despacham o noticiário em pacotes:

povos guerreiros de sangrentas vozes,

os pobres nas manchetes de polícia,

as miúdas intrigas de governo.

 

A vida civilizada de uns poucos

o porto despeja em caixote e pipa.

Sabemos quem são os ricos, o infeliz           

amanhã e o próximo morto; sabemos

que tudo permanecerá, ninguém

(gente ou jornal) pergunta se há razão.

Passa a noite, e a manhã há de passar.

A tarde trará cores renovadas,

afastando o que dantes era dúvida.

 

Os habitantes abandonarão

a pompa dos festins; a roleta, o álcool.

Saímos todos a praticar esportes.

Os capitães estão em polvorosa:

arquivaram as velhas ambições,

o momento não era para festas.

Apenas a cidade amanhecera,

navios foram na costa afundados.

É a manchete do dia, certamente.


(Imagens da terra, in Mares anoitecidos, 2000)


URBE DE LUZ TRANSFUSA

                        Para Agnaldo (Siri) Azevedo, in memoriam

 

ondas de cor muito mais que arpejos                 Cineasta Agnaldo Siri Azevedo  

a cidade desfolha-se em mugidos

hemoptises de ouro muros lavam

farmácia líquida justo a inundar

claustros pátios

                            iriadas praças

                                                  e ao fim praias

mercúrio aí a escorrer de rota veia

 

desbordantes muito mais que solfejos

alaridos na encosta avarandada

leque de velas

                     ao largo lúdicas

                                               tufos amarelos

jorram de fímbria agora efervescente

quem sabe ecos de claustrais batalhas

 

ah, talvez bizâncio entornado tenha

vinhos de missa sangue de mosteiros

que em palácio beberam sentinelas                    Salomé dançando para Herodes 


sorvendo taças e cruzando aljavas                

agora dormem

                          agora dança

salomé de curvas sinuosas em palco                      

de cristal que urge hipnotizar o antipas

bem ali guardado

bem ali sentado

no seu trono de pórfiro e ametista

ao bruxulear de lâmpadas de azeite

música a derramar-se das estrelas

do fundo lasso lá onde a encosta doira-se

 

(sol ora revérbero em tela

de passado não passado)

 

ávidos rostos perscrutam

no horizonte ausentes naus

sob a luz que sugere penitências

nostálgica de flagelos

jardim de miosótis hortênsias muitas              

despejados da abóboda replicam

vento solteiro a propagar canções

tangendo violões sulcando areia

 

logo angustiado som

sobe incrustado de ônix

de laca império vasto

ornado de luz lívida

                                                                                                                                                            Poente. Foto de Cida Barral                                                                                                                                        

súbito carne viva de fósforo transida

ou mugir de harpa em crânio paranoico

subindo por um estuar de rampas

a arder num céu de cânhamo vermelho.


(Imagens da terra, in Mares anoitecidos, 2000)

 








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