Salvador, Praça Castro Alves, onde ficava o Tabaris Night Club
ASSUNTO:
Resumo de conferência
pronunciada por Florisvaldo Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da
Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu
presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório
da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, em Salvador (BA), na
parte circunscrita ao tema A Cidade da
Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida
intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais
transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”.
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POESIA EM TEMPOS DE BOEMIA LITERÁRIA
Florisvaldo
Mattos
Houve um tempo nesta Cidade do Salvador
em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um
refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o
intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes desaguava em desafio, em
torneios de emulação, quando não em contenda rude, açulando a curiosidade de
uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas
muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o
mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga
feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais,
passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não mais se falava dessa
espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em um bar da Rua da Ajuda, no
curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois
sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para
cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos.
A partir dos anos 1940, quando profundas
alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura,
a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e
urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a consequente
deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da
dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no
cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário
e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre,
aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim,
ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio
Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Octávio Mangabeira
(1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos
imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de
arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes.
Todos, quase em uníssono, querendo elevar o bem-estar dos baianos.
Tais sucessos vão se refletir
diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e
envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita.
Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se
libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença e a ação de
jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Genaro,
Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José
Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos
(arquitetura e mundanismo, de incursão até na política), ao sopro dos ventos
liberalizantes da Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida
intelectual mundana e universitária faz surgir, então, com tinturas
existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade,
o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema local,
um marco no gênero. Era a vibrante interseção na cidade da Geração Caderno da
Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção
plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.
Neste momento, uma coceira mental me
traz à lembrança um poema evocativo que escrevi muitos anos depois,
repercutindo as emoções e o ambiente urbano, com que me defrontei, a partir da
noite em que pisava pela primeira vez o asfalto da cidade. Sob o título de
“Tempos de Arlequim”, composto de versos cadenciados, mas sem rimas, integra o
livro Mares anoitecidos, que
publiquei no ano 2000, como parte de coletânea alusiva aos 500 anos do
Descobrimento. Não me envergonha reproduzi-lo.
Salvador é Carnaval. Quando cheguei,
Em noite de Segunda-Feira Gorda,
As cores da cidade feiticeira
E os meus olhos na praça fumegavam.
Havia corso e blocos veteranos
(Nomes claros que hoje fazem sonhar).
Sobem os Inocentes em Progresso,
Descem os Mercadores de Bagdad.
No Bob’s Bar, que depois será Cacique,
Param o som travesso e a peraltice
Da guitarra elétrica na Fobica;
Uma estrela desponta e, com a luz dela,
A multidão que pula e agita ramos
(A prévia tosca da mamãe- sacode)
Canta, dança, grita, bebe cerveja.
Eu ali que faço? Acompanho o passo.
Batalhas de confete e serpentina,
Pierrôs, lança-perfume, colombinas,
Estrelejando o chão da Rua Chile,
Onde desfilam afoxés. (A brisa
É mais um concorrente da folia,
E eu, olhos postos em longínqua trama
De sonhos dando voltas num salão
E numa rua, espelho do infinito).
Avança por meu tempo de incertezas
A máscara sedutora do passado,
Blocos de rancho fecundando auroras
E o entardecer de etéreas batucadas.
Súbito são morenas de um cordão;
Arlequim invasor da madrugada
Agarra-se à cintura de uma delas
E sobe a praça rumo à Sé que ferve.
Salvador, dos bondes fechados (séc. XIX). Foto de Pierre Verger
É nessa atmosfera de sonho e esperanças
que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira
Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da
Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já
publicando poesia na revista Ângulos,
então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de
Direito (CARB) que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito
Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo, com as
apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio
da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à
frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de
declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas,
atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira
Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto,
Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima,
Anecy Rocha, cito alguns), protegidos da sanha proibitiva e coercitiva da
pressionada direção do colégio pelo professor Ruy Simões, um fervoroso apoiador
e defensor desses anseios juvenis.
Recordo o encontro que me lançaria nessa
caudal de sonhos, com moldura exótica, senão cômica. Em inícios de 1957, o Nº 11
da revista Ângulos publicava o meu
poema “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State of Bahia South
Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I. C. (Estrada de
Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau,
permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e municípios, e o
consequente desenvolvimento da produção, gerando riqueza. Foi quando certa
manhã, eu sentado num dos bancos do hall
da faculdade, vêm me avisar que procuravam por mim na portaria. Saio para o
umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo, um deles me saúda e,
dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer
o autor do poema Composição de ferrovia, para nós o melhor poeta modernista da
Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o hilário
gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida
a ir à sua casa, na Rua General Labatut, Nº 13, 1º andar, onde, dizia-me,
costumava se reunir com os companheiros, para discutir uma quase infinita pauta
de inquietações, aspirações e planos modernistas.
A motivo desta tropelia juvenil, segue abaixo.
COMPOSIÇÃO DE FERROVIA
I - Galope
sangrento
Sobre campos de sol fotografados de fome
de manhã surpreendo-me entre maquinistas.
guarda-freios, foguistas, agulheiros
colecionam tristezas numa ferrovia.
Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,
exiladas faces como nuvens atônitas,
contra pontilhões investem, contra água pesada.
Sucedo de rotas e destinatários,
de mercadorias emerjo, melancólico.
Experiências metálicas de locomotivas
trituram músculos, afogada energia
de trabalhos humanos e apitos agudos,
trilhos que sulcam horizonte sem âncora;
me alimento de fogo, velocidades sofridas
de vagões conduzindo cacau e sombra
sobre cidades e montes, sobre latifúndio:
negro mar se agacha, silencioso salta,
come homens e meninos que choram sonhando.
Entre estações que gritam impossível atraso,
sonolentos comboios avançam na noite.
Desenvolvem sem termo choro agressivo,
um choro duro de homens e fornalhas
devorando madeiras e carne em lamento.
Lento uivo de rodas que se multiplicam
com substância noturna de salários
acumula vegetação nos eixos aluídos,
esperança consome na carreira profunda
sobre ilhas de acaso engrossando velho
patrimônio de mortes alugadas.
Rápidos horários com palavras de fumo
seu voo de espuma e lâminas corroídas
e matérias subjugadas anoitece
no sangue roxo operário com ferrugem,
elabora sentidos e desgraças na fronte
espessa. Na garganta incendiada cresce
gemido áspero de peito mutilado,
com umidades ocultas, com soluço.
II - Inclinação do Touro
Abandona-se à agonia das campinas
vencidas, idêntico de origens, branco touro.
Bruscamente desperta das árvores em fuga,
da massa dos dias. De repente, das raízes
do pranto inclina-se operoso, agrupa-se
a um barulho de ferros e caldeiras,
a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.
Do sentimento comum de águas em arranco,
súbito levanta-se, acorda ferroviárias
perspectivas amarradas ao volume do sono.
De aurora que lhe umedece cascos e chifres
baixa uma luz influente de conquista;
do seu dorso de argila ao meu rosto chega
uma luz que me alcança cruza-me os nervos
ampla de rumos mergulha na carne de todos
resistente caindo sem parar nas cabeças.
De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso
crepúsculo, evoluindo em cada elemento,
sua construção permanece de touro veloz
em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.
(Florisvaldo Mattos. Reverdor. (Salvador: Edições Macunaíma, 1065).
A entrada de Glauber Rocha no cenário sugere novo parêntese para evocar episódio de conotação ainda mais cômica, produto de uma viagem que fez ao Nordeste, em 1960, acompanhado de João Carlos Teixeira Gomes, durante a qual este sofreu um acidente, ao descer de um ônibus, forçando-o a passar o restante do trajeto com o pé enfaixado.
Com
a cabeça atulhada de projetos, buscava Glauber, nesta viagem, colher subsídios
e inspiração que iriam compor os roteiros de duas de suas obras primas
cinematográficas, Deus e o Diabo na Terra
do Sol e O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro. A certa altura da excursão, pararam em Recife e, nas
andanças por lá, se encantaram com o poeta Ascenso Ferreira, um dos ícones do
primeiro modernismo, ao lado de Manuel Bandeira, outro pernambucano.
Impressionados com a histriônica figura, resolveram convidá-lo a visitar a
Bahia. Pouco depois, com seus dois metros de altura, 120 quilos de peso, chapéu
panamá de aba larga, terno branco e gravata, o poeta de Catimbó e Cana Caiana,
desembarca em Salvador, onde o cercam de homenagens e rapapés, faz conferências,
assiste a peças teatrais, passeia e, principalmente percorre e freqüenta bares
e restaurantes, comendo e bebendo, com as honrarias que se devem a visitantes
ilustres ou boêmios consagrados, demorando-se em Salvador por cerca de um mês.
Na
véspera de voltar ao Recife, Glauber e os mais assíduos nas estripulias
resolveram fazer uma despedida, convocando a imprensa para uma entrevista com o
pernambucano. Em clima de festa, conversa regada a cerveja e acepipes já
chegando ao fim, um jornalista pergunta ao poeta: “Ascenso, durante todos esses
dias que por aqui passou, o que mais o impressionou e agradou na Bahia? Ascenso
parou, franziu a testa, olhou sorridente e bonachão para o jovem e, lembrando
talvez o que fazia naturalmente nas ruas, quando pouco sóbrio, disparou: “A
liberdade de mijar”.
Associei-me ao grupo e me engajei na saga de suas aventuras editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em torrente, livros com o selo das Edições Macunaíma; projetos cinematográficos pela nascente Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras, em galerias de arte, que se montavam então; variadas peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro, dirigida pelo pernambucano Martim Gonçalves; logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu: Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego, além do então apenas dentista, depois professor e autoridade em antropologia cultural, Vivaldo da Costa Lima. Neste contexto, não se deve esquecer a singular, solidária e entusiástica presença de um antes experiente livreiro, Zitelmann de Oliva, ora à frente da empresa Artes Gráficas, então operando na Rua do Saldanha, cujo apoio permitiu não apenas a realização dos projetos editoriais do grupo, com o lançamento dos primeiros livros de poesia e ficção, como ainda a edição de álbuns de gravura e dos três únicos números da revista Mapa, entre 1957 e 1958.
Como então os tempos de franca liberdade se casavam
com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia
da cordialidade se estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se
tornariam habituais. Eram então os mais frequentados: a Sorveteria Cubana,
ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique,
na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo
Azul e o Restaurante Porto do Moreira; o Bar Brasil e o Chez Bernard, novidade
que se instalara no terraço inaugural do Edifício Themis, ambos na Praça da Sé;
e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o
romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras,
que se abria à voracidade boêmia, na Praça Castro Alves, a uns dez metros da
estátua do poeta, junto à balaustrada sobre a Ladeira da Montanha.
Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido,
repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias
prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do
Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a
memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José
Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto
cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo
uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da
burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos,
professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além
de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local,
como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da
cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos
filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o
famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade.
Muito de histórias passadas lá permanece
no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas
quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista
do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o
restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais
conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do
serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de
Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o
cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje,
aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem
galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de
carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e
moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada
com queijo e banana pessoalmente”.
Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às
segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está
afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses.
Saudosos Antônio e Chico Moreira, donos do Porto do Moreira
A noite era realmente criança e
aconselhava outros pousos e outros desempenhos, que ninguém é de ferro, a
começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, a
casa de “China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”,
ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô,
Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar,
Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris, de cujas
noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não só as antigas de coronéis
do cacau. E aqui nova urticária mental me induz a outro parêntese, para lembrar
episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado por alguns de nossa turma
numa dessas noites de boemia peralta. Em meados de outubro de 1958, um mês
depois de fundado, o Jornal da Bahia
fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua primeira equipe de Redação,
e lá fomos receber no guichê da gerência o que nos cabia, como atores dessa
façanha - eu, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando
Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e
Glauber Rocha, editor da seção de Polícia.
Pegamos o dinheiro curto no caixa e, à
noite, com a aderência de mais alguns, alegres e felizes, marchamos todos para
o Tabaris, onde na ocasião se apresentava um balé argentino, composto de
dançarinas loiras e morenas, de corpo torneado e maiô, dançando o repertório
musical da moda, bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao som de uma afinada e
buliçosa orquestra de sopro. Era comum nos intervalos, como parte da atração,
elas, as bailarinas, virem às mesas, conversar, beber e até dançar com frequentadores.
Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e bebendo, saímos alguns a
dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, por volta da meia-noite,
Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente
inquieto mais que o normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar
contra aqueles excessos. Cenho fechado, mais que de repente, sobe na mesa e, em
pé, põe-se lá de cima a bradar, possesso: “Isto é um absurdo! Tirem daqui essas
mulheres de Babilônia!” E, em tom de execração bíblica, repete mais de uma vez
a última frase - ”Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”-, aturdindo as
moças e companheiros em volta, para então, entre o sério e o farsante,
atendendo aos clamores e ostentando no rosto um sorriso frajola, descer da
mesa, sob estrondosa gargalhada.
Fora desses lugares que menciono e das
cantinas de faculdade, davam-se ainda os encontros nas sessões dominicais do
Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo misto de advogado trabalhista e
crítico de cinema Walter da Silveira, em salas de espera dos cinemas, portas de
livraria e “hall” de faculdades. A cidade tranquila era assim intensa e
ludicamente vivida, dia e noite, em transações que varavam as madrugadas.
Volto ao começo, à história dos dois
sonetos nascidos de uma remota tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em
anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de
primavera, dias depois do surgimento do Jornal
da Bahia, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa
das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da
Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois
deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na
poesia e na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da
Geração Caderno da Bahia, na qual disputava píncaros com o poeta Wilson Rocha,
ambos ícones locais do modernismo. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos,
romancista e autor de Corta Braço,
ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da
Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação,
que acabara de lançar Além das torres do
Kremlin, relatos de viagem a Moscou, aquele experiente Chefe de Reportagem
do novo jornal, que antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido jornal que funcionou na Ladeira de São Bento
(1945-1957), pertencente ao Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e
mantido por Aristeu Nogueira e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia.
Falava-se de literatura, jornalismo e
política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio,
para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não lembro
o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito etílico, que,
indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava. Surpresos, os
dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste,
bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado,
voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua Excalibur
verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração
rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos
dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa
joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um
dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando lenda
campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto o
outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas.
Cumprindo o ritual e com a merecida
entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de
ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes
que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na edição dominical do Jornal da Bahia. Dito e feito. Dias
depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos ocupavam as duas
colunas ao lado direito da página literária, editada sob a batuta do
historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha sequer
alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria alvo
de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a
que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não apenas
por nomes consagrados de sua geração.
Em 1960, os dois poemas seriam ainda
publicados na revista Ângulos (Nº
16), então comandada por Noênio Spínola (diretor) e Antônio Guerra Lima
(Guerrinha), de redator-chefe, com João Ubaldo Ribeiro, diretor de Cultura do
CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com sorte diversa: “A cabra”
iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965), enquanto o primoroso soneto de
Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que
agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar, por direito inalienável, o do
meu saudoso e insigne êmulo.
SONETO
OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA
JAIR
GRAMACHO
Nesta
tarde o terreiro está vazio.
Distante
o laranjal se estende; a manga,
A
serra, o azul depois; tênue miçanga
De
açafrão tinge as fímbrias, o do estio Salvador: a Rua da Ajuda (Centro)
Único
resto. Esta tristeza é mais
Que
a da paisagem pobre e adormecente;
Talvez
por não ter rosas, não ter gente,
E
a solidão vagueie pelos currais.
Mas,
certo é que nesta hora, ressurrecto,
O
mito abandonado busca o luxo
Antigo
de existir; dispõe espectros
Que
em volta cirandeiam do repuxo...
Ah! Mais que basta para o instante
magro
Galinhas ver – irmãs de Meleagro!
A CABRA
FLORISVALDO MATTOS
Sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
Guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
Sobre lajedo o casco azul polindo,
Dominas suave clima em promontório;
Cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
Laborado em marfim – luz e presença
De reinos pastoris antes servidos –
Teu pelo, residência da ternura,
Onde fulguras na manhã suspensa:
Flor animal, sonora arquitetura.
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; membro da Academia de Letras da Bahia; autor de livros de poesia e ensaios; entre os quais Poesia Reunida e Inéditos (2011), Sonetos Elementais (2012), Estuário dos dias e outros poemas (2016), Antologia Poética e Inéditos (2017), Cacaueiros - Poesia, Conto. Teatro (2022), Catorze Janelas Abertas - Sonetos reunidos, com inéditos, 1953-2023 (2014), poesia; Estação de Prosa & Diversos (1997); Travessia de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004) e A comunicação social na Revolução dos Alfaiates (2018, 3ª edição), Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022), ensaios.
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