Salvador, Praça Castro Alves, onde ficava o Tabaris Night Club
ASSUNTO:
Resumo de conferência
pronunciada por Florisvaldo Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da
Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu
presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório
da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, em Salvador (BA), na
parte circunscrita ao tema A Cidade da
Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida
intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais
transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”.
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POESIA EM TEMPOS DE BOEMIA LITERÁRIA
Florisvaldo
Mattos
Houve um tempo nesta Cidade do Salvador
em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um
refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o
intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes desaguava em desafio, em
torneios de emulação, quando não em contenda rude, açulando a curiosidade de
uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas
muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o
mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga
feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais,
passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não mais se falava dessa
espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em um bar da Rua da Ajuda, no
curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois
sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para
cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos.
A partir dos anos 1940, quando profundas
alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura,
a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e
urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a consequente
deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da
dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no
cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário
e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre,
aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim,
ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio
Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Octávio Mangabeira
(1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos
imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de
arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes.
Todos, quase em uníssono, querendo elevar o bem-estar dos baianos.
Tais sucessos vão se refletir
diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e
envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita.
Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se
libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença e a ação de
jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Genaro,
Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José
Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos
(arquitetura e mundanismo, de incursão até na política), ao sopro dos ventos
liberalizantes da Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida
intelectual mundana e universitária faz surgir, então, com tinturas
existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade,
o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema local,
um marco no gênero. Era a vibrante interseção na cidade da Geração Caderno da
Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção
plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.
Neste momento, uma coceira mental me
traz à lembrança um poema evocativo que escrevi muitos anos depois,
repercutindo as emoções e o ambiente urbano, com que me defrontei, a partir da
noite em que pisava pela primeira vez o asfalto da cidade. Sob o título de
“Tempos de Arlequim”, composto de versos cadenciados, mas sem rimas, integra o
livro Mares anoitecidos, que
publiquei no ano 2000, como parte de coletânea alusiva aos 500 anos do
Descobrimento. Não me envergonha reproduzi-lo.
Salvador é Carnaval. Quando cheguei,
Em noite de Segunda-Feira Gorda,
As cores da cidade feiticeira
E os meus olhos na praça fumegavam.
Havia corso e blocos veteranos
(Nomes claros que hoje fazem sonhar).
Sobem os Inocentes em Progresso,
Descem os Mercadores de Bagdad.
No Bob’s Bar, que depois será Cacique,
Param o som travesso e a peraltice
Da guitarra elétrica na Fobica;
Uma estrela desponta e, com a luz dela,
A multidão que pula e agita ramos
(A prévia tosca da mamãe- sacode)
Canta, dança, grita, bebe cerveja.
Eu ali que faço? Acompanho o passo.
Batalhas de confete e serpentina,
Pierrôs, lança-perfume, colombinas,
Estrelejando o chão da Rua Chile,
Onde desfilam afoxés. (A brisa
É mais um concorrente da folia,
E eu, olhos postos em longínqua trama
De sonhos dando voltas num salão
E numa rua, espelho do infinito).
Avança por meu tempo de incertezas
A máscara sedutora do passado,
Blocos de rancho fecundando auroras
E o entardecer de etéreas batucadas.
Súbito são morenas de um cordão;
Arlequim invasor da madrugada
Agarra-se à cintura de uma delas
E sobe a praça rumo à Sé que ferve.
Salvador, dos bondes abertos (séc. XX). Foto de Pierre Verger
É nessa atmosfera de sonho e esperanças
que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira
Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da
Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já
publicando poesia na revista Ângulos,
então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de
Direito (CARB) que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito
Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo, com as
apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio
da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à
frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de
declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas,
atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira
Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto,
Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima,
Anecy Rocha, cito alguns), protegidos da sanha proibitiva e coercitiva da
pressionada direção do colégio pelo professor Ruy Simões, um fervoroso apoiador
e defensor desses anseios juvenis.
Recordo o encontro que me lançaria nessa
caudal de sonhos, com moldura exótica, senão cômica. Em inícios de 1957, o Nº 11
da revista Ângulos publicava o meu
poema “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State of Bahia South
Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I. C. (Estrada de
Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau,
permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e municípios, e o
consequente desenvolvimento da produção, gerando riqueza. Foi quando certa
manhã, eu sentado num dos bancos do hall
da faculdade, vêm me avisar que procuravam por mim na portaria. Saio para o
umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo, um deles me saúda e,
dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer
o autor do poema Composição de ferrovia, para nós o melhor poeta modernista da
Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o hilário
gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida
a ir à sua casa, na Rua General Labatut, Nº 13, 1º andar, onde, dizia-me,
costumava se reunir com os companheiros, para discutir uma quase infinita pauta
de inquietações, aspirações e planos modernistas.
A motivo desta tropelia juvenil, segue abaixo.
COMPOSIÇÃO DE FERROVIA
I - Galope
sangrento
Sobre campos de sol fotografados de fome
de manhã surpreendo-me entre maquinistas.
guarda-freios, foguistas, agulheiros
colecionam tristezas numa ferrovia.
Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,
exiladas faces como nuvens atônitas,
contra pontilhões investem, contra água pesada.
Sucedo de rotas e destinatários,
de mercadorias emerjo, melancólico.
Experiências metálicas de locomotivas
trituram músculos, afogada energia
de trabalhos humanos e apitos agudos,
trilhos que sulcam horizonte sem âncora;
me alimento de fogo, velocidades sofridas
de vagões conduzindo cacau e sombra
sobre cidades e montes, sobre latifúndio:
negro mar se agacha, silencioso salta,
come homens e meninos que choram sonhando.
Entre estações que gritam impossível atraso,
sonolentos comboios avançam na noite.
Desenvolvem sem termo choro agressivo,
um choro duro de homens e fornalhas
devorando madeiras e carne em lamento.
Lento uivo de rodas que se multiplicam
com substância noturna de salários
acumula vegetação nos eixos aluídos,
esperança consome na carreira profunda
sobre ilhas de acaso engrossando velho
patrimônio de mortes alugadas.
Rápidos horários com palavras de fumo
seu voo de espuma e lâminas corroídas
e matérias subjugadas anoitece
no sangue roxo operário com ferrugem,
elabora sentidos e desgraças na fronte
espessa. Na garganta incendiada cresce
gemido áspero de peito mutilado,
com umidades ocultas, com soluço.
II - Inclinação do Touro
Abandona-se à agonia das campinas
vencidas, idêntico de origens, branco touro.
Bruscamente desperta das árvores em fuga,
da massa dos dias. De repente, das raízes
do pranto inclina-se operoso, agrupa-se
a um barulho de ferros e caldeiras,
a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.
Do sentimento comum de águas em arranco,
súbito levanta-se, acorda ferroviárias
perspectivas amarradas ao volume do sono.
De aurora que lhe umedece cascos e chifres
baixa uma luz influente de conquista;
do seu dorso de argila ao meu rosto chega
uma luz que me alcança cruza-me os nervos
ampla de rumos mergulha na carne de todos
resistente caindo sem parar nas cabeças.
De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso
crepúsculo, evoluindo em cada elemento,
sua construção permanece de touro veloz
em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.
(Florisvaldo Mattos. Reverdor. (Salvador: Edições Macunaíma, 1065).
A entrada de Glauber Rocha no cenário sugere novo parêntese para evocar episódio de conotação ainda mais cômica, produto de uma viagem que fez ao Nordeste, em 1960, acompanhado de João Carlos Teixeira Gomes, durante a qual este sofreu um acidente, ao descer de um ônibus, forçando-o a passar o restante do trajeto com o pé enfaixado.
Com
a cabeça atulhada de projetos, buscava Glauber, nesta viagem, colher subsídios
e inspiração que iriam compor os roteiros de duas de suas obras primas
cinematográficas, Deus e o Diabo na Terra
do Sol e O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro. A certa altura da excursão, pararam em Recife e, nas
andanças por lá, se encantaram com o poeta Ascenso Ferreira, um dos ícones do
primeiro modernismo, ao lado de Manuel Bandeira, outro pernambucano.
Impressionados com a histriônica figura, resolveram convidá-lo a visitar a
Bahia. Pouco depois, com seus dois metros de altura, 120 quilos de peso, chapéu
panamá de aba larga, terno branco e gravata, o poeta de Catimbó e Cana Caiana,
desembarca em Salvador, onde o cercam de homenagens e rapapés, faz conferências,
assiste a peças teatrais, passeia e, principalmente percorre e freqüenta bares
e restaurantes, comendo e bebendo, com as honrarias que se devem a visitantes
ilustres ou boêmios consagrados, demorando-se em Salvador por cerca de um mês.
Na
véspera de voltar ao Recife, Glauber e os mais assíduos nas estripulias
resolveram fazer uma despedida, convocando a imprensa para uma entrevista com o
pernambucano. Em clima de festa, conversa regada a cerveja e acepipes já
chegando ao fim, um jornalista pergunta ao poeta: “Ascenso, durante todos esses
dias que por aqui passou, o que mais o impressionou e agradou na Bahia? Ascenso
parou, franziu a testa, olhou sorridente e bonachão para o jovem e, lembrando
talvez o que fazia naturalmente nas ruas, quando pouco sóbrio, disparou: “A
liberdade de mijar”.
Associei-me ao grupo e me engajei na saga de suas aventuras editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em torrente, livros com o selo das Edições Macunaíma; projetos cinematográficos pela nascente Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras, em galerias de arte, que se montavam então; variadas peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro, dirigida pelo pernambucano Martim Gonçalves; logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu: Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego, além do então apenas dentista, depois professor e autoridade em antropologia cultural, Vivaldo da Costa Lima. Neste contexto, não se deve esquecer a singular, solidária e entusiástica presença de um antes experiente livreiro, Zitelmann de Oliva, ora à frente da empresa Artes Gráficas, então operando na Rua do Saldanha, cujo apoio permitiu não apenas a realização dos projetos editoriais do grupo, com o lançamento dos primeiros livros de poesia e ficção, como ainda a edição de álbuns de gravura e dos três únicos números da revista Mapa, entre 1957 e 1958.
Como então os tempos de franca liberdade se casavam
com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia
da cordialidade se estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se
tornariam habituais. Eram então os mais frequentados: a Sorveteria Cubana,
ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique,
na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo
Azul e o Restaurante Porto do Moreira; o Bar Brasil e o Chez Bernard, novidade
que se instalara no terraço inaugural do Edifício Themis, ambos na Praça da Sé;
e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o
romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras,
que se abria à voracidade boêmia, na Praça Castro Alves, a uns dez metros da
estátua do poeta, junto à balaustrada sobre a Ladeira da Montanha.
A Nino Guimarães
(boêmio), in memoriam
Noite
alta, céu risonho,
A
quietude é quase um sonho (,,,)
(Cândido
das Neves, valsa)
A cidade adormece (eu disse um dia...).
Onde a esquina que
até me livraria
Dessas noites de
chumbo em que me deito?
Hão de dizer que afundo em nostalgia,
Que não tenho
durezas de homem feito.
Tenho sonhos
fecundos, tenho um peito;
Só não tenho razão,
filosofia.
Vou por noites maiores e menores,
Por onde transitaram meus amores,
Em praças de jardim sem flor-de-lis.
Gritam: “Para que servem as manhãs?”
Vejo na porta alguém metido em lãs,
Que me convida a entrar no Tabaris.*
SSA/BA, manhã de
26/08/2015
*Tabaris Night
Club: casa
noturna, ao estilo de cabaré com música e dança, que funcionou em Salvador, de
1933 a 1968.
Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade.
Muito de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada com queijo e banana pessoalmente”. Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses, assim como este soneto de Fred Souza Castro, reproduzido abaixo, reportando-se à morte de José Moreira, dono do restaurante, em 1975.
A noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, que ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, a casa de “China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não só as antigas de coronéis do cacau. E aqui nova urticária mental me induz a outro parêntese, para lembrar episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado por alguns de nossa turma numa dessas noites de boemia peralta. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua primeira equipe de Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que nos cabia, como atores dessa façanha - eu, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia.
Pegamos o dinheiro curto no caixa e, à
noite, com a aderência de mais alguns, alegres e felizes, marchamos todos para
o Tabaris, onde na ocasião se apresentava um balé argentino, composto de
dançarinas loiras e morenas, de corpo torneado e maiô, dançando o repertório
musical da moda, bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao som de uma afinada e
buliçosa orquestra de sopro. Era comum nos intervalos, como parte da atração,
elas, as bailarinas, virem às mesas, conversar, beber e até dançar com frequentadores.
Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e bebendo, saímos alguns a
dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, por volta da meia-noite,
Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente
inquieto mais que o normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar
contra aqueles excessos. Cenho fechado, mais que de repente, sobe na mesa e, em
pé, põe-se lá de cima a bradar, possesso: “Isto é um absurdo! Tirem daqui essas
mulheres de Babilônia!” E, em tom de execração bíblica, repete mais de uma vez
a última frase - ”Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”-, aturdindo as
moças e companheiros em volta, para então, entre o sério e o farsante,
atendendo aos clamores e ostentando no rosto um sorriso frajola, descer da
mesa, sob estrondosa gargalhada.
Grupo de já ausentes, da Geração Mapa: João Ubaldo Ribeiro (2014), Glauber Rocha (1981), Calasans Neto (centro, 2006), Sante Scaldaferri (2015) e Paulo Gil Soares (2000)
Fora desses lugares que menciono e das cantinas de faculdade, davam-se ainda os encontros nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo misto de advogado trabalhista e crítico de cinema Walter da Silveira, em salas de espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade tranquila era assim intensa e ludicamente vivida, dia e noite, em transações que varavam as madrugadas.
Volto ao começo, à história dos dois
sonetos nascidos de uma remota tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em
anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de
primavera, dias depois do surgimento do Jornal
da Bahia, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa
das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da
Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois
deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na
poesia e na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da
Geração Caderno da Bahia, na qual disputava píncaros com o poeta Wilson Rocha,
ambos ícones locais do modernismo. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos,
romancista e autor de Corta Braço,
ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da
Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação,
que acabara de lançar Além das torres do
Kremlin, relatos de viagem a Moscou, aquele experiente Chefe de Reportagem
do novo jornal, que antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido jornal que funcionou na Ladeira de São Bento
(1945-1957), pertencente ao Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e
mantido por Aristeu Nogueira e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia.
Falava-se de literatura, jornalismo e
política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio,
para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não lembro
o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito etílico, que,
indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava. Surpresos, os
dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste,
bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado,
voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua Excalibur
verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração
rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos
dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa
joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um
dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando lenda
campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto o
outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas.
Cumprindo o ritual e com a merecida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na edição dominical do Jornal da Bahia. Dito e feito. Dias depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos ocupavam as duas colunas ao lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha sequer alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração.
Em 1960, os dois poemas seriam ainda
publicados na revista Ângulos (Nº
16), então comandada por Noênio Spínola (diretor) e Antônio Guerra Lima
(Guerrinha), de redator-chefe, com João Ubaldo Ribeiro, diretor de Cultura do
CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com sorte diversa: “A cabra”
iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965), enquanto o primoroso soneto de
Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que
agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar, por direito inalienável, o do
meu saudoso e insigne êmulo.
SONETO
OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA
JAIR
GRAMACHO
Nesta
tarde o terreiro está vazio.
Distante
o laranjal se estende; a manga,
A
serra, o azul depois; tênue miçanga
De açafrão tinge as fímbrias, o do estio
Salvador: a Rua da Ajuda (Centro) |
Único
resto. Esta tristeza é mais
Que
a da paisagem pobre e adormecente;
Talvez
por não ter rosas, não ter gente,
E
a solidão vagueie pelos currais.
Mas,
certo é que nesta hora, ressurrecto,
O
mito abandonado busca o luxo
Antigo
de existir; dispõe espectros
Que
em volta cirandeiam do repuxo...
Ah! Mais que basta para o instante
magro
Galinhas ver – irmãs de Meleagro!
A CABRA
FLORISVALDO MATTOS
Sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
Guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Calasans Neto: Cabras e Baleia |
Máquina e jarro. Luar contraditório
Sobre lajedo o casco azul polindo,
Dominas suave clima em promontório;
Cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
Laborado em marfim – luz e presença
De reinos pastoris antes servidos –
Teu pelo, residência da ternura,
Onde fulguras na manhã suspensa:
Flor animal, sonora arquitetura.
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; membro da Academia de Letras da Bahia; autor de livros de poesia e ensaios; entre os quais Poesia Reunida e Inéditos (2011), Sonetos Elementais (2012), Estuário dos dias e outros poemas (2016), Antologia Poética e Inéditos (2017), Cacaueiros - Poesia, Conto. Teatro (2022), Catorze Janelas Abertas - Sonetos reunidos, com inéditos, 1953-2023 (2014), poesia; Estação de Prosa & Diversos (1997); Travessia de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004) e A comunicação social na Revolução dos Alfaiates (2018, 3ª edição), Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022), ensaios.
ARIOVALDO MATOS
In
memoriam
Nem (abra-se o caderno do passado)
se fôssemos parentes saberias
o que guardava-me a mente a teu lado
pelo correr das noites e dos dias,
Quando, sôfrego, à máquina escrevias
páginas de um jornal – ou quase um brado
que ia e voltava a teu convívio, alado
tropel sobre impassíveis geografias. FM - Fotolab, de Mauro Coelho. 2015
Como decifrador de calendários,
a batalha dos signos açulava-
te a matilha de ventos operários.
Eras real, um homem verdadeiro.
Mais não pude guardar, se o que eu sonhava
era ser aprendiz de feiticeiro.
Florisvaldo Mattos, A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e Arte), p. 50, 1996.
NA AJUDA, PERTO DO ANGELUS
Vellos
e vellas, mentras monean
Silbam
as salves y os padrenuestros.
Rosalia
de Castro
Vagando em horários que induzem à meditação,
No centro da ilustre urbe de caminhos imperfeitos,
Pelas cinco que um agosto rege de cinza e frio,
Ando sobre remotas pedras de um templo ultrajado,
Sítio por onde transitaram pés de cinco séculos.
Ajuda se chama e Sé de Palha foi esta casa
De oração e olvido, que ambição voraz amputou:
Cá sombrias paredes com pinturas descascadas,
Santos em seus nichos, a dialogar com sossegados
Mármores, sob arcadas que aludem a inquisições
E a penas sancionadas pela autoridade do latim.
Um careca no órgão, um cantor de blusa listrada,
Como se de pedra fossem, calmos entoam cânticos.
Luzes mortiças sob imagens sacras em panóplias,
Cenas do evangelho toscas espalham-se no teto,
Escorrem por janelas ancestrais de falso gótico
E o púlpito de madeira lavrada onde ressoam
Veementes sermões, gestos falazes, sagacidades.
Entre jogos de luz e sombra, entre volumes, mesclas
De formas neoclássicas e pungente barroquismo,
Frias flores em altares de círios apagados;
Homens e mulheres, as mãos em prece, a ruminar
Silentes verdades que adubam a razão dos pobres,
Em semblantes de conformismo e vaga transgressão.
Bailam no ar transidos coros de infância e lembranças
De garotas (onde estarão elas?) de seios duros,
Fugazmente apalpados na hora de tanger os sinos,
Aquela depois do Ângelus, nos maios de novena,
Enquanto padre Luiz San Juan a
cabeça meneia
E cochila entre as gastas alfaias da sacristia.
(Florisvaldo Mattos. Poesia Reunida e Inéditos, p. 239, 2011)
POEMA
PREPOSICIONADO
A Glauber
Rocha
Florisvaldo
Mattos
Debaixo
dessas pontes de limo,
debaixo
desses rios parados,
por que
nos quererão ativos,
mas não
honrados?
Por que
sobre esses verões poluídos,
por sobre
esses ventos domados
por que
nos quererão amigos,
mas não
amados?
Diante
desses mares vencidos,
diante
desses muros inviolados,
por que
nos quererão perdidos
viajantes
sem mapa?
Atrás
dessas botas de verniz,
atrás
dessas máscaras de aço,
por que
nos quererão submissos
seres
programados?
Nesse
fosso de espanto e mito,
nessa
fria massa de ocasos,
por que
não paramos de rijo
o fóssil
barco?
Com as
ferramentas da vida
com os
amantes, com os amados,
Por que
logo não explodimos
a
obstinada máquina?
Fique no
ouvido o som terrível
cravem na
carne os estilhaços,
antes me
quero morto ou sofrido,
porém
honrado.
(Fábula civil, 1975)
MASSA
A
Fernando da Rocha Peres
Sucede que um dia me sucedo
ventos galopei por outros prantos
e perto vou sendo tudo longe
os pés disformes assentados
no leito de sangue desse rio.
Sucede que um dia o peito abre-se Glauber e Fernando na Rua Chile
mais aurora e flor mais sentimento
e resume em ser o que era ter
tanto melhor morte traz a sorte
de correr liberado noutros cantos.
Sucede que um dia renuncio
ao querer resoluto que apodrece
em lavra final de tempo e sal.
Assim despojado de sombras asas
me levem que chegarei em breve.
Sucede que um dia se afundou
o navio com bagagens ancestrais.
Recusando o baralho onisciente
debitei a angústia de viver
ao livro dos homens – não ao diabo.
Sucede que um dia me conheço
afinal. Sou todo companheiros.
Labirinto de chagas mas por onde
corre um raio farto de vontade
faço do amor aos outros meu caminho.
(Fábula civil, 1975)
AO ÓCIO
Deus nobis haec otia fecit.
(Virgílio, Bucólicas)
(Libações a Fernando da Rocha Peres)
verdeja e, dedilhando o clavicórdio,
relumbra ao puro amor gregoriano,
não daquele inventor do calendário, Peres, poeta e historiador
mas do nosso, mais santo e venerado,
que é como a gente trata o ser profano,
quero saudar com vinho e outros goles
a seara de estudo com que vinga
o passado de um nome tão presente
e mais do que isto esculpe pertinências
que Adão não foi capaz de nos legar.
E pelo homem devoto de outra espécie
que é das letras divino sacerdócio
mui para sempre bebamos, pelo ócio.
(Salvador,
LOAS A FERNANDO PERES
Peres nos setenta e cinco
É só iluminação.
Sabe a vinho que deixa um vinco
De afetos no coração.
Reúne verdade e graça
“Bula Pro Nobis”
na praça
É prece be
Com Urânia, prêmio da vida.
Filhos e netos queridos
Fazem o bardo sorrir:
Cabelos brancos descidos
E a alma predestinada
Na faina de resistir
Aos mercadores do nada.
(Saudação ao bardo
encanecido Fernando da Rocha Peres, fã do trompete de Chet Baker, no dia do seu
aniversário, 27/11/2011).
(Estuário dos dias e outros poemas, p. 207, 2016)
VESTÍGIOS DO JAZZ
A F. Peres, fã de Chet Baker Trompetista Chet Baker
Assim: Chet
arremete
seu trompete,
som de escrete,
nem que chova
canivete.
(SSA/BA, 10 ago.2001)
A
Calasans Neto
Triste nada mais triste
nas torrentes urbanas
são passos insones sombras
entre automóveis e hábitos.
Marulho de pés e pedra Cabras, de Calasans, para "Reverdor"
escuro clamor de buzinas
deslizamos sobre leito
de ritos – sulcos na face.
Os engenheiros rasgam
o ventre da cidade
mar de mitos represado
o fel da impotência
escorre ladeira abaixo.
Tudo resplandece em luxo visual
no cotidiano das paredes claras.
Dentadura gretada de edifícios
engole projeta miragens
morno hálito de sangue
sobre todos – por ali sai
um odor antigo um bafio
negro muito sem disfarces.
Lábios e mãos se apagam
em escrita de muros – implacável
olhos ouvidos rostos numerados
mansamente nos consumimos
em surdo medo e azinhavre.
(Fábula civil, 1975)
AURA ALVAÇÃ
A Sante Scaldaferri
Ó cintilação campestre
remanescente cerâmica
de universo patriarcal!
Contemplo claro rebanho Sante Scaldaferri, No Campo do Gado
de reses lentas ganhando
o silêncio das pastagens.
Explode pelos currais
sinuoso berro de espuma,
drapejam vozes de aboio
sobre capim outonal,
verde produção de esterco
consagra o chão mineral.
Ó perene geografia
de homens e naves, sistema
do couro, campo domado!
Andejo rechã buscando
germinais rastos de reses.
Ao sol da manhã prefiro
curar sofridas corolas
ou laçar chifres em fuga
– arisca abóboda, ogiva
do tempo aprisionado –,
colher a rosa alvaçã,
pelagem do incontemplado.
(Fábula civil, 1975)
SANTE OITENTÃO EM SÃO BENTO
Claro domingo de sol e verão chegando,
Cercado de solenidade e ritos
sacros
Que somente aos santos se
reservam,
Entre os negros e os rubros, ante
o mármore
Do altar, para onde se remete a
claridade,
Em dia de São Lucas de todos
fraterno,
Com nostalgias de Bizâncio,
incenso e cânticos,
Devoto Sante Scaldaferri parecia
Reger, com sua Marina e áulicos de
sempre,
Sosigeanamente, uma festa de
opala,
Com oitenta diáfanos anjos a
cortejá-lo.
Sinos quase tubas. E logo entre as
arcadas,
Ínclito repasto, com vinhos e
iguarias
Vastas, que recendem aromas do
Oriente.
(Refere-se ao ato religioso pelos oitenta anos do pintor
Sante Scaldaferri, na
Igreja de São Bento, em Salvador, dez. 2008 ).
TOLEDO SOBRE O TEJO
A João
Carlos Teixeira Gomes
Súbito revolvida a cal dos dias,
passam-me sob os olhos, remansadas
à luz de verde aparição, as frias
águas do Tejo ruminando espadas.
Mortas de pesquisar rumos e vias,
sempre ao gume da pedra aventuradas,
movem-se como lágrimas – sombrias
lacerações de estrelas galopadas.
Toledo está ferida de rosetas,
chorada pelos ventos outonais,
rendendo-se ao assalto de secretas
paixões com que subjuga terra gasta
onde lampejam cascos e metais
SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS
(A
JC Teixeira Gomes, no dia dos seus 80 anos – 09/03/2016)
Cansei-me de pensar no que era o dia,
Se ele entre dois crepúsculos se evade.
Cansei de me perder nessa agonia,
Fosse hora calma, fosse tempestade. João Carlos Teixeira Gomes
Juntei a vida inteira os Elementos
E a cada um dispensei olhar de justo.
Se regem mundos, regem os momentos,
Não conseguem parar o sol injusto.
A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses
Que governam e nutrem a Humanidade,
Como me adverte o oráculo de Elêusis.
Não podemos mudar de itinerário.
Ao fim nos resta uma única verdade:
O nosso cabedal é o calendário.
(Estuário dos dias e outros poemas, p. 125, 2016)
ARTE E AURA
A
Ângelo Roberto
Ventos, ventos que vão,
Ondas, ondas que volvem,
Espelhos que se abeiram, Ângelo Roberto, Cavalo em Domação
Estátuas que retraem,
Semblantes que passeiam,
Estrelas que se apagam,
Sonoros rios de ontem,
Caminhos recurvados,
E próximo um sopro
De súbita alegria,
Na fronteira do sonho,
Quase irreal, um corpo,
Em labor impalpável:
Sombra que luz – sua alma.
(Poesia Reunida e Inéditos, 2011)
ÍNTIMOS CAMINHOS
"Não sei para onde vou
- Sei
que não vou por aí!"
(José
Régio)
Não. Nada de penhascos irreais,
Tampouco de florestas invisíveis!
Por aqui tudo fala à sensação,
Ao olhar, ao aroma, à língua, ao tato,
Ao som. Feliz de quem os tem. Ó vós,
Que ditais pelos montes de onde venho,
Por trás de sombras como que vazias?
Enquanto me desfaço de meus fardos
Ancestrais, meu cabedal de fadigas,
Lábios trazem clarões de frescas auras,
Meus pés sibilam sobre sendas rudes,
Mas com promessa de horizontes novos.
Se me pedes que siga o teu caminho,
Descansa. Sei que não vou por aí!
(SSA/BA, 1º de maio de 2013 - In Estuário dos dias e outros poemas, 2016)
TARDE NA VÁRZEA COM CHUVA
A João Ubaldo Ribeiro
(“Não existe poesia sem infância”, ele disse)
A chuva há de passar... De quando em quando,
Um alarido vem pelo ar, fugidio.
Na tarde bruxuleante, além do rio,
Teles e Caboclinho estão jogando. João Ubaldo Ribeiro, por Valtério
Não posso ver; a chuva me atrapalha.
Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.
Avanço a rua. Minha tia ralha
(nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”
Raiva. Bato três vezes na madeira.
Será que vai chover a tarde inteira?
Digam como lá estão os litigantes.
É agosto, sim, e chove sem parar.
Dentro, o menino quer comemorar
logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.
(Estuário dos dias e outros poemas, p. 83, 2016)
CLAREIRA DE BÚZIOS
(À poeta Myriam Fraga, in memoriam)
Quando a luz da inocência nos sequestra
e o vento beija a face das jaqueiras,
é quando de alma saio porta afora,
para deslumbre inaugural dos olhos
voltados para a terra, enfeitiçados.
Paro e começo a vislumbrar meu mundo.
Convido-os a ir comigo pela aurora
e por clareiras de fecundos vales,
por colinas, encostas e ladeiras,
de onde escorre um lençol de suavidade,
que cinge, cobre e invade corpos e almas,
faiscando em cores quando o sol se põe.
Vou por caminhos vastos de mim mesmo.
Entre flores silvestres e tabuas,
vivo, como se o sol tivesse mãos
e o dia respirasse nos meus passos.
Caminho pela tarde, e se desenha
um concerto de deuses em simpósio:
Diana à frente a caçar perdizes; Ceres,
junto à água, nua, na arte de semear.
A inocência possui muitos idiomas, Poeta Myriam Fraga (1937-2016)
que fraseiam manhãs, tardes e noitese a cada um dos sentidos condecoram
com medalhas de amor da natureza.
Adornando belíssimo silêncio,
logo nos prende a música dos ramos.
Um papagaio remete da forquilha
urgentes telegramas pela brisa;
a voz de guriatãs por entre folhas,
a do sabiá (que digam os que o ouviram)
e a dos curiós no arame das pastagens,
ou rasantes de carcarás bravios.
Convido-os mais, a ver da serra, ao longe,
alta e azul, o recorte melancólico,
com que, serena, rege as urdiduras
do despencar da chuva sobre os campos.
E, acima, o céu de azuis e claridades,
ou de repente céu de negras nuvens,
onde se tece o cipoal de crenças,
que faz o homem dormir mais sossegado.
Uma extensão de flores, um jardim,
me faz lembrar o poeta dos aromas,
o de ardências sensuais e de crepúsculos,
que um dia me levou ao belo e ao mar.
Ah, venham conhecer o mar de verdes
e este céu de ternura que nos cobre.
Tudo nos favorece gentilmente
o correio das brisas delatoras.
Louros e sapucaias, calmos cedros,
maçarandubas e jequitibás,
quantas vezes beijei suas raízes,
ao calor de manhãs, sempre insensíveis
ao arbítrio das tardes e das noites.
Recolhem seu mutismo venerável
e o guardam no candor da consistência,
ante a inviolada paz que lhes dá vida.
Vibro. Quero sentir na plenitude
essa glória de ver e contemplar
o luxo de existir que um poeta viu
em clareira de deuses e anjos farta.
Daqui percebo o sol se despedindo
das montanhas, das águas e das pedras
e, entre nuvens de cores, vindo a noite,
para nutrir de sonhos quem trabalha.
Atentem. Agora não mais verão
o desfraldar dos ecos e das flores;
um galope de luzes nos visita
e se abre em cortinado o firmamento.
E nele, em cima, o terno olhar da lua,
igualmente os de estrelas, piscadores,
que, longe, o homem há milênios ignoram,
sem dele nunca serem ignorados.
Amo esta terra, doce, única e funda,
que enche as amadas horas de meus dias
com as instantâneas formas debuxadas
no claro céu, nos campos e nos montes;
vivas, na música que riachos cantam,
até mesmo no sopro útil e rude
forjado em búzio, em cobre ou alumínio,
que assalta as tardes, alertando as gentes.
(SSA/BA,15/02/2016)
A AMIGOS DA GERAÇÃO MAPA
A UM EXILADO ENTRE SEREIAS
Ao
insigne poeta Jair Gramacho
Irei aí um dia, amigo, em cavalgada
De pássaros, de ventos, visitá-lo!
Uma égua, tal a do Campos, na estrada,
Estará lá a roçar-se em seu cavalo, O poeta Jair Gramacho romântico
Por sob um céu de salvas e perfumes.
Creio vê-la a aspirá-los, como gente.
E que haverá no brilho de seus lumes
Versos que cedem halo a sol frequente.
Creio ver ainda mais; até moçoilas
Tecendo uma coroa de azaleias,
Em seda guarnecida a lantejoulas.
Eu cá adivinho a cena: águas lá embaixo
Despacham-lhe miríades de sereias.
E elas: “Viemos servi-lo, seu Gramacho”.
(Imagens da terra, in Mares anoitecidos, 2000)
SOTEROLIMOS
A
Jeovah de Carvalho
A cidade distende o couro crespo imerso nos gemidos dos telhados;
janelas e portas (fanais da noite),
despejando lamentos sobre pedras,
saem do escuro por uma luz sonora
por onde viaja a goiva do grave Hansen,
retorcem-se cruciais chapas de Mário,
ladeiras onde versos de Godô
formam lagos de esperma flutuante.
Bordéis que torres sacras abençoam
(tudo o que sabemos a fé redime) as horas silentes, escoando clamor,
soluço e preces sobre frontes boêmias;
serenas lanças de astros que ornamentam
recintos de dolente passar, ó
pontas soberbas contra o choro agudo
de sacrossantos rostos mendicantes,
faces roídas de infinita espera.
Eretas torres de azulejaria
enferma (e as luxuriosas cornijas?),
que perscrutais pelo céu de amaranto
para antepasto na manhã de ausências?
Que anseios guardais em pedra de lioz? Salvador, Centro Antigo, Pelô
Aspa da noite, deusa de chavelho,
a lua vem com o ventre pressuroso,
as ladeiras se enroscam e há um torpor
que amortece o tambor nos cabarés.
Tudo isto é obra do oceano que lá embaixo
rola parlamentando com os rochedos.
Lixo da rua, o mesmo dos navios
que lançam do mar tudo que emporcalha
a fímbria muda, a fímbria que admiramos,
dos administradores prometidos
gestos nos poupa, e que só morte esconde.
Tudo é inexorável, e nós sabemos:
um pedaço de mar é o que nos sobra.
A cidade adormece. Lábios boêmios
se cruzam sob marquises enfeitadas
com a luz que salta da burocracia.
Lentos lagos ali de morna esperma,
corredores de espelhos, qualquer coisa
que venha e nos livre das asperezas.
E logo esta mulher que está de costas,
lábios partidos, ombros nus, cidade
descarnada, a pele colada aos ossos.
O clamoroso ventre da montanha,
na noite de gemidos, no cassino,
mulheres seminuas, apostas altas;
na rua iluminada, bondes rangem,
levando bêbados; as rotativas
despacham o noticiário em pacotes:
povos guerreiros de sangrentas vozes,
os pobres nas manchetes de polícia,
as miúdas intrigas de governo.
A vida civilizada de uns poucos
o porto despeja em caixote e pipa.
Sabemos quem são os ricos, o infeliz
amanhã e o próximo morto; sabemos
que tudo permanecerá, ninguém
(gente ou jornal) pergunta se há razão.
Passa a noite, e a manhã há de passar.
A tarde trará cores renovadas,
afastando o que dantes era dúvida.
Os habitantes abandonarão
a pompa dos festins; a roleta, o álcool.
Saímos todos a praticar esportes.
Os capitães estão em polvorosa:
arquivaram as velhas ambições,
o momento não era para festas.
Apenas a cidade amanhecera,
navios foram na costa afundados.
É a manchete do dia, certamente.
(Imagens da terra, in Mares anoitecidos, 2000)
URBE DE LUZ TRANSFUSA
Para Agnaldo (Siri) Azevedo, in memoriam
ondas de cor muito mais que arpejos Cineasta Agnaldo Siri Azevedo
a cidade desfolha-se em mugidoshemoptises de ouro muros lavam
farmácia líquida justo a inundar
claustros pátios
iriadas praças
e ao fim praias
mercúrio aí a escorrer de rota veia
desbordantes muito mais que solfejos
alaridos na encosta avarandada
leque de velas
ao largo lúdicas
tufos amarelos
jorram de fímbria agora efervescente
quem sabe ecos de claustrais batalhas
ah, talvez bizâncio entornado tenha
vinhos de missa sangue de mosteiros
que em palácio beberam sentinelas Salomé dançando para Herodes
sorvendo taças e cruzando aljavas
agora dormem
agora dança
salomé de curvas sinuosas em palco
de cristal que urge hipnotizar o antipas
bem ali guardado
bem ali sentado
no seu trono de pórfiro e ametista
ao bruxulear de lâmpadas de azeite
música a derramar-se das estrelas
do fundo lasso lá onde a encosta doira-se
(sol ora revérbero em tela
de passado não passado)
ávidos rostos perscrutam
no horizonte ausentes naus
sob a luz que sugere penitências
nostálgica de flagelos
jardim de miosótis hortênsias muitas
despejados da abóboda replicam
vento solteiro a propagar canções
tangendo violões sulcando areia
logo angustiado som
sobe incrustado de ônix
de laca império vasto
ornado de luz lívida
súbito carne viva de fósforo transida
ou mugir de harpa em crânio paranoico
subindo por um estuar de rampas
a arder num céu de cânhamo vermelho.
(Imagens da terra, in Mares anoitecidos, 2000)
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