Honorino Rial
La mer, la mer, toujours recommencée!
Imagem: Apollonia Saintclair |
Não és Marie e nem és Mennessier,
E não serás tampouco Nodier,
Como eu nunca serei Félix Arvers.
A vida tem mistérios e segredos.
Não se pode viver de sonhos ledos,
Se a mente se escancara para os medos.
Penso que meu destino é sem remédio.
Abro a porta, surpresa: um corpo nédio,
Que surge para sepultar meu tédio.
Dizem: na encruzilhada, o Cão atenta,
Com todo o turbilhão que o tempo inventa.
Miro-te o rosto: uma ave na tormenta.
Em dias que se vestem de mormaço,
Sopras tua candura neste espaço
E à cobiça te expões de um sol devasso.
Ou por outra, sentada em um jardim,
De olhar tão longe e tão perto de mim,
Vieste, gasta de noites do sem-fim.
Silêncio é tudo que não nega sendas
E não exige que se ponham vendas
Em quem parece vir de antigas lendas.
Não posso te dizer o que ora sinto.
Se a outros, louco, disser, dirão que minto.
Nem é para mim solução o absinto.
Até penso que és mito, deusa ou fada.
Vontade de deixar-te embriagada,
Hoje, não amanhã, diva sonhada!
Ah, ponho-me de fauno na clareira
Urbana. Logo um vulto, alvissareira
Imagem; para mim, Ceci trigueira.
Contemplo-te do fundo de meus ais:
Uma estátua, mas não de mãos liriais.
Ah, boneca, tu não serás jamais.
Em meu desvairo, perdido e sem nexo,
Vendo em ti do sol vívido reflexo,
Pergunto-me como será o teu sexo.
Tu nada tens de Laura, nem de Ofélia;
Nada de flor, bem mais tens de bromélia.
Não és Cíntia, nem Lia, jamais Amélia.
Pra mim és Salomé de Sá-Carneiro,
Dançando e contorcendo-se - um salseiro! -,
A me fazer sonhar o dia inteiro.
Vejo a morena coxa – quanto brilha! -,
Tanto quanto brilhou Ninon Sevilla,
Numa sonora mexicana trilha.
Talvez até Kiki de Montparnasse,
Coração de vanguarda; outra, que trace
Em mim caminhos, medre e me ultrapasse.
Tens um livro na mão. A mente aflita,
Curiosa, indaga: "Não será Lolita?"
Ânsia maior talvez de quem cogita.
Choras porque perdeste a virgindade,
Por uma distração de pouca idade,
Com um noturno assaltante da cidade.
Sorris dessas lembranças da alvorada,
E de outras, que não servem para nada.
Hoje, mulher, não queres ser manada.
Os dias sem nenhuma maquilagem
Passas, a idade não exige; a imagem
Só precisa de um ato de coragem.
Já te queria, quando a mão me deste,
Na praia azul voltada para o Leste.
Eras só luz; em mim amanheceste.
Ouviste o que insinuava a ti meu canto.
Disseste não querer perder o encanto,
Tampouco dissolver teu sonho em pranto.
O tempo passa, como passa o dia.
Guardei meus surtos de melancolia;
Tornas agora e és uma epifania.
Quando os fados atingem belas almas,
Deuses vêm e lhes oferecem palmas.
Eu te ofereço mel, em tardes calmas.
Tu me pertences, ouve esse ditame.
Encaro a rosa. Pedes-me que te ame.
Beijo-a. Se recuso, serei infame.
No quarto, como num lance de dados,
Eu, com meus olhos vãos, arregalados,
Irrompes tu, de peitos derramados,
De coração aberto qual um mar,
Eu, só espanto, sentado, a te mirar
Os seios, duas bolas de bilhar...
Belíssima aurora, vestida em seda,
Estátua de Rodin, que o sol não veda,
Aos olhos de quem marcha para a queda.
Entre lençóis ou no sofá da sala,
És a luz que me espera. A Lua fala.
Sonoro vento sopra em céu de opala.
Subo e chego ao pedestal dos seios;
Percebo lentamente os teus gorjeios.
Se desço em disparada, perco os freios.
Tens no corpo talvez um tino sábio.
Ainda mais ambicioso chego ao lábio,
Adornado de flor, meu astrolábio.
Mordes-me e, de teus antes ternos
Olhos, ora de fogo e brasa internos,
Fluem ardências semelhando infernos.
Beijo-te. Tu me lambes, eu te lambo
Sexo e pernas, e os seios cor de jambo.
Dali saímos para dançar um mambo.
Quando vejo na praia os claros seios,
De suavidade e de beleza cheios,
O idioma deles soletrando, leio-os.
Na branca areia, em tarde de preamar,
Nua, vais; mas percebo um risco no ar,
De eu ir atrás e me perder no mar.
Sentamo-nos à beira do caminho.
Hebe nos serve taças de áureo vinho.
Brindamos. Eu te cubro de carinho.
Sei que não é hora para desvarios,
Nem tampouco de sonhos. Subo rios
Sensuais, lábios, fartando-me de brios.
Tens uma lua de ouro dentre as pernas.
Levas-me a ela, com mãos leves e ternas.
Rasgam-me o corpo sensações eternas.
Na plenitude desse instante raso,
Vibras: és como uma água a encher um vaso.
Nem mesmo ramos fazem pouco caso.
Súbito, deste-me a rosa, e eu beijei-a.
A rosa rubra de uma vã sereia,
Estendida na minudente areia.
Eu, de novo, te lambo e tu me lambes,
Neste paraíso em que somos dois bambis.
Sol, sê testemunha, antes que descambes!
De cima a baixo, ó tempora, ó mores!
E eu, a sentir que vem de teu clitóris
Uma doçura de ambrosia... Ó flores!
Abres-me o sonho em púrpura de flor,
De fruto mesmo, doce e multicor;
De canto em ramos, vésperas de amor.
Pele em brilho auroral de sóis amenos,
Os seios fartos de florais acenos,
Cubro-te, como as águas cobrem Vênus.
Teu corpo esbelto, longe de conselhos,
Faz acordar em mim uns sonhos velhos,
E eu, sobre teu ventre, a apanhar de relhos...
A madrugada vinha e te saudava
Com um despejar de amor e gozo em lava,
Áurea caudal que nunca se acabava.
Ávido, baixara eu do seio às coxas,
Ante um crepúsculo de nuvens roxas,
Que a ti me acorrentava como a rochas.
Miro do mar os pontos luminosos,
Das gaivotas os voos sinuosos,
E em teu corpo faróis de ardentes gozos.
Para aplacar o caos que me atordoa,
Saímos os dois e vamos para Goa,
Com caravela e mar de sorte boa.
Camões estará lá com seus sonetos,
De almas gentis, sonhos e amor repletos,
Sem que ventos e céus imponham vetos.
Oh! Musa de um sonhar primaveril,
Por que acendes em mim furor viril,
A enredar-me em lascívias cor de anil?
Ah, tudo igual a ter-me um amanhã,
A me lembrar o canto da cauã,
Que me tirava o sono de manhã!
Contigo, só meu sonho era o sublime
Manter intacto, que ele a mim redime,
No íntimo, porque amar nunca foi crime.
As palavras enganam, bem sabemos.
Para seguir, precisarei de remos,
Sujeito a me bater com polifemos.
Não podes ser Marie Mennessier,
Porque beleza hoje é só mais de ver.
Não é de imaginar, não é de ser.
Só não deixas meu coração em paz,
E, ante esses versos, ah! perguntarás:
"Que mulher será essa?" Descobrirás.
Sozinha, o mundo encaras, silenciosa.
És fruta e senda, em nada pedregosa;
Jamais contradição, somente rosa.
Aspiro que, no final desse ponteio,
Tudo que de alegria e amor me veio
Seja navegação de farto enleio.
Deste sonho varonil me despeço.
Acordo. Vou à estante, leio e meço:
Não se resume a vida em ter sucesso.
À tarde, como se mirasse o mar,
As cortinas abro, de par em par.
Não há nada melhor do que sonhar!
(SSA/BA, 15/07/2016)
Félix Arvers (1806-1850). Poeta e dramaturgo francês do período romântico, que ficou mundialmente famoso pelo soneto (Le Sonnet d´Arvers) supostamente inspirado por Marie Mennessier-Nodier e a ela secretamente dedicado, que pôs meio mundo, ao longo de decênios, na detetivesca tarefa de desvendar a musa inspiradora, cujo terceto final está entre as epígrafes, que encabeçam este poema.
Ceci - Apelido carinhoso de Cecília de Mariz, famosa personagem do romance O Guarani, de José de Alencar (1829-1877), publicado em 1857 e visto como epopeia da nacionalidade, servindo depois de inspiração a Carlos Gomes (1836-1896) em ópera com o mesmo título, estreada em 1870. No célebre romance, Ceci é o amor do índio goitacá Peri, assim comumente descrita: "Ceci (Cecília): moça linda, de doces olhos azuis, gênio travesso, mas meiga, suave, sonhadora, herdeira da força moral interior de seu pai, D. Antônio Mariz". (Google). O personagem depois serviria de leit-motiv a filmes, histórias em quadrinhos, série de televisão e pinturas nacionais de linhagem figurativista, aparecendo ainda em criações de música popular, como na marchinha carnavalesca A História do Brasil, de Lamartine Babo, sucesso do Carnaval de 1934, na voz de Almirante, na qual "Ceci beijou Peri / Ao som do Guarani", entre outras adaptações.
Lia – Personagem bíblica, filha mais velha de Labão, de beleza simplória, dada por este, numa tramoia, em casamento a Jacó, que preferia a bela Raquel, irmã mais nova dela, episódio consagrado por Camões num clássico soneto, cujo segundo quarteto registra:
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe dava Lia.
Mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto...
Na boca imperial que humanizou um Santo...
Vênus – Nome latino da grega Afrodite, deusa do amor e da beleza, uma das 12 divindades do Olimpo, nascida da espuma formada sobre o mar do sêmen de Urano (o Céu), que fora mutilado por Cronos (Saturno).
Quando do Olimpo nos festins surgia
As taças estendiam-lhe, ruidosos,
ela, passando, as taças lhes enchia...
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