Arte Moderna: "A Dança", 1910, de Henri Matisse, uma das pinturas mais famosas e representativas do Fauvismo |
Florisvaldo Mattos
Se existe um ano que se destaca
pelo tanto de incidências que se tornariam um marco na história da arte
moderna, este é o de 1905, pois nada menos de quatro episódios nele ocorreram responsáveis
por profundas mudanças no universo das artes plásticas, mas não somente nelas.
A par da sucessão de descobertas científicas, que se espraiaram pelo último
quartel do século XIX, influindo fortemente na sociedade, outra febre irrompe
na Europa, a do “espírito novo”, dominando as consciências nas grandes cidades.
E havia razões de sobra para tal, bastando assinalar uns poucos pontos.
A apenas dezesseis anos do progresso
industrial alcançado na fabricação do aço, que permitiria a quase miraculosa elevação
da Torre Eiffel, para transformar doravante a sua estrutura, de símbolo
inaugural da Exposição Universal de Paris (1889), em monumento-ícone
urbano-paisagístico da França moderna; a somente dez anos da invenção do cinema
e da mostra do primeiro filme pelos irmãos Lumière; do desenvolvimento da
psicanálise por Freud e da descoberta dos raios X, pelo físico alemão Wilhelm Röentgen
(1845-1923), e no mesmo ano da primeira sedição russa, com a revolta do
couraçado Potemkim, que será tema de famoso filme de Serguei Eisenstein (1898-1948),
para ficar nesses poucos exemplos, Paris mais uma vez fervia, tomada agora pelo
entusiasmo mais ou menos ingênuo de um crescente público disposto a acolher
como dádiva tudo que recebesse o rótulo de moderno.
Reportando-se a este período, o
escritor e poeta francês Georges-Emmanuel Clancier refere-se ao estado de
“embriaguez otimista” que predominava no ambiente intelectual e, no caso da
poesia, o empenho de Guillaume Apollinaire e seus amigos para instaurá-la no
reino do “espírito novo”.
"Mulher com Chapéu", 1905, de Henri Matisse |
“A floração de descobertas
científicas no final do século anterior e nos primeiros lustres do que se
iniciava, tanto quanto o entusiasmo mais ou menos ingênuo, com que um enorme
público acolhia esses “milagres” modernos, não se mostram estranhos a esta
vontade – paralela àquela dos sábios – as descobertas, as explorações e as experiências
de linguagem, os sonhos, o acaso, a extrema consciência ou o contrário
subconsciente, de que foram testemunhas os poetas alguns anos antes e depois da
guerra de 1914-1918” (Clancier, l955, p. 240; tradução livre) .
Assim é que, dentro de tal
panorama da civilização ocidental, não restam dúvidas de que 1905 tornou-se um
ano ímpar para a criação artística, de que não podiam se ausentar as artes
plásticas, especialmente a pintura. E ei-lo então, dando partida à Arte
Moderna, com a explosão de dois movimentos da vanguarda estética: o Fauvismo (do
francês fauvisme, variação: fovismo), no 3º Salão de Outono, em
Paris, com Henri Matisse à frente, e o Expressionismo, em Dresden, lançado por
jovens alemães do grupo Die Brüke (A
Ponte). No primeiro, soltas as “feras” (fauves),
de tão fortes e brilhantes, as cores pareciam rugir, enquanto no segundo a
tradição, o racionalismo, o naturalismo e o bom-mocismo do gosto estremeciam
sob a carga criativa de revolta da expressão autêntica, fundada na emoção do
artista.
Como se não bastasse, há mais
dois fatos que conferem galardão de ano especial a 1905. Foi nele justamente que
a pintura de Pablo Picasso (1881-1973) passa da fase azul para a consagradora
fase rosa, cujos tons predominantes, em lugar dos azuis, tornam o espírito de
suas obras menos severos, influenciando inclusive nos seus temas, que passam
agora a ser palhaços, acrobatas e dançarinos, com nítida preferência pela
figura do Arlequim. O outro fato marcante tem a ver com este momento de
revoluções artísticas apenas como um simbolismo.
É justamente no mês de agosto
que ocorre a morte de Adolph-William Bouguereau (1825-1905), pintor laureado, papa
da arte acadêmica francesa durante decênios, detentor da Legião de Honra da
França e por duas vezes ganhador do grande Prêmio Roma de pintura. Desaparecia
um feroz inimigo da arte de vanguarda, ao ponto de usar sua grande influência
para excluir obras de pintores até em consagrados salões patrocinados pelo
poder público, como aconteceu com Paul Cézanne, que não escondia sua mágoa ao
ser por ele impedido de participar do “Salon Monsieur Bouguereau”. Por tais
atitudes conservadoras e caducas, era condenado pelas novas gerações de
artistas, ao ponto de o poeta e pintor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) ter
dito, certa feia, que Bouguereau era “um mestre na hierarquia da mediocridade”.
A deusaVênus de W. Bouguereau |
Jean-Louis Perrier reproduz o
que o Boletim Religioso da Diocese de La
Rochelle et Saintes publicou, registrando de forma peculiar e sutilmente
irônica os últimos momentos de vida desse famoso artista, na edição de dia 24
de agosto de 1905.
“Ao padre que o assistia em seu
leito de morte, no instante mesmo em que ele lhe estendia as mãos trêmulas para
receber a extrema unção, disse-lhe: “O que elas tenham feito em favor do mundo
e suas vaidades, eu o reprovo”. E o boletim diocesano, reportando suas últimas
palavras: “Amém! Amém!”, completa: “Talvez neste momento o grande artista tenha
visto inclinar-se sobre ele as doces Madonas que ele em sua glória tão
maravilhosamente pintou. Elas vinham lhe anunciar o perdão celeste” (Ferrier,
1988, p. 67; tradução livre).
Depois de morto, o nome de Bouguereau passou um
tempo obscurecido, para ser depois reabilitado, pelo significado histórico para
a arte de muitas de suas obras, que passaram a merecer estudos e até alcançar
altos preços em leilões. A sua celebérrima tela intitulada La Naissance de Vênus (Nascimento
de Vênus), vendida em 1879 ao estado francês por quinze mil francos, tidos
na época como uma bela soma, está hoje no Museu de Luxemburgo, em Paris. Porém,
a arte acadêmica parece ter se enlanguescido ou morrido com ele, enquanto a
arte moderna surgia, florescia e avançava, dominando o século XX e entrando
pelo seguinte, em suas múltiplas formas de manifestação.
FAUVISMO
Na jaula com as feras
É precisamente em 18 de outubro
de 1905 que, a apenas dois anos da morte de Paul Gauguin (1848-1903), um dos
inspiradores do movimento dos Nabis (“profetas”, em hebraico), e após algum
tempo de marasmo e desânimo, o mundo artístico de Paris começa a ferver. Sob a
presidência de Auguste Renoir (1841-1919), abria-se o 3º Salão de Outono, no
Grand Palais de Champs-Élisées, para encerrar-se em 25 de novembro, contados 38
dias que iriam representar nada menos que a explosão da arte moderna na Europa.
Não era uma exposição qualquer. Junto com retrospectivas
de Ingres e Manet, o Salão apresentava em suas várias salas 1.636 obras de
artistas vivos, entre eles Paul Cézanne (1838-1906), que saíra de exílio voluntário
na sua amada e bucólica Aix-Provence, no sul da França, para ditar novos rumos
à arte. No catálogo, Élie Faure (1873-1937) saúda o que chama de “novas
energias”, impensáveis até bem poucos anos, e que pareciam dispersas desde o
Salão dos Independentes, criado em 1884 por Georges Seurat (1859-1891) e Paul
Signac (1863-1935), marco da pintura pontilhista e de uma fase até ali de largo
prestígio e influência.
À força do entusiasmo que lhe despertava a novidade,
o grande historiador de arte lançava um apelo: “É necessário que se tenha
liberdade e vontade de entender uma linguagem absolutamente nova”. Referia-se
às obras que ali mostravam os pintores de um novo estilo: Henri Matisse
(1869-1954), que doravante se tornaria o consagrado líder do movimento, com duas
telas, a peça-emblema Mulher com Chapéu
e Marinhas; André Derain (1880-1954),
com a alegria e crueza de suas Vistas de
Collioure - o mesmo lugar onde, solitário, 34 anos depois, morrerá o grande
poeta espanhol Antonio Machado, enxotado pela vitória do general Francisco
Franco, na célebre guerra civil que mergulhou a Espanha num regime ditatorial que
durará de 36 anos; Maurice de Vlaminck (1876-1958), com os violentos efeitos
pictóricos de seu Vale do Sena em Marly,
e outros mais, que baseavam sua arte na propagação de cores brilhantes e
não-naturalistas, cobrindo vastos espaços.
"Paisagem", tela de Maurice de Vlaminck (1876-1958) |
Essa parte fulgurante do salão iria produzir
imediatamente escândalo, com reações iradas na imprensa parisiense. “Joga-se um
pote de tinta na face do público”, disparou o crítico Camille Mauclair, nas
páginas do jornal Le Figaro, enquanto caberia ao conservador,
mas prestigiado Louis Vauxcelles emitir, em meio à sua metralha crítica, a
frase-chiste, que iria para sempre dar nome ao movimento e consagrá-lo. Ao
vislumbrar no meio de uma das salas a escultura em bronze, Torso de Menino, de Albert Marquet (1875-1947), rodeada de quadros
pendurados nas paredes, bradou: “C´est Donatello parmi les fauves!” (“Donatello
no meio das feras”).
(E aqui, num hipotético parêntese, me permito
cogitar se não vem daí o termo “fera”, que no Brasil se consagrou como símbolo
de força e coragem, quando João Saldanha, técnico da seleção brasileira de
futebol, proclamou em 1969 que queria um time de “onze feras” para ser campeão
do mundo, o que realmente aconteceria, no ano seguinte, mas sem ele à frente do
esquadrão vitorioso).
Nasce dessa explosão do crítico francês o termo Fauvismo.
O vocábulo se repetiria, quando, em artigo no periódico Gil Blas, de grande aceitação, referiu-se ao mesmo quadro Mulher com chapéu, de Matisse, que para o
redator reproduzia uma “virgem cristã entregue às feras de um circo”. Mas o
conservador Vauxcelles era um troglodita da linguagem que sabia das coisas. Na
ocasião, foi também em um universo de circo que ele enquadrara o colorido
excêntrico de outro “fauvista” do Salão de Outono, Georges Rouault (1871-1958).
Uma associação de ideias lhe forneceu o repente “fauve” - o hoje famoso quadro
de Henri (Le Douanier) Rousseau (1844-1910), Leão com fome (1905), cuja figura central, um leão, no meio de
selva densa, devora um antílope, sob o olhar expectante de uma pantera.
Realmente, as cores solares dos fauvistas, intensas
e vastas, como que expondo um corpo selvagem, esfolado a garras, sangrando,
pareciam refletir um estado de fúria explícita como contraponto à suavidade da
arte dos impressionistas ou os pequenos toques regulares do colorido puro dos
pontilhistas, que, vistos de certa distância, criavam efeitos de cor mais
vibrantes que os obtidos pela mistura de tintas. Os fauvistas queriam
ultrapassá-los, provocar uma ruptura na passividade do gosto persistente e na
admiração que o público ainda devotava a essas duas consagradas correntes da
pintura.
"Ecce-Homo", pintura do fauvista Georges Rouault |
Não há dúvida de que, ante o que diagnosticavam como
um estado de lassitude generalizado em relação à criação artística, os
integrantes deste primeiro dos grandes movimentos de vanguarda da arte europeia
- vigentes entre a virada do século XIX e a irrupção da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) -, optaram por elevar ao máximo a potência das cores, que deviam se
impor por sua força e intensidade, como um advento profético anunciado por
trombetas, para detonar a tepidez do ambiente e rebentar paredes a golpes de
audácia.
Eram eles todos mesmo “feras”, querendo pôr abaixo a
jaula estética em cujas grades se confinavam a criação artística e a chusma retórica
de sustentação dos valores estabelecidos. E, por aí, aspiravam embrenhar-se na
selva urbana de uma Paris que se apascentara ao longo dos amplos e claros
bulevares abertos pelo gênio urbanístico de Haussmann - (Georges-Eugène, barão,
1809-1891, político que, por nomeação de Napoleão III, administrou Paris de
1853 a 1870) -, a essa altura, presunçosamente já instalada no confortável posto
de capital mundial das artes, para onde afluía quem quisesse algum dia ter o
nome de artista consignado em verbete de enciclopédia. A cidade era o destino
preferido de poetas e artistas errantes e apátridas – Rainer Maria Rilke,
Picasso, Salvador Dali, Joan Miró, Edvard Munch, Piet Mondrian, Umberto Boccionni
e tantos mais de nacionalidades outras –, ou simplesmente de alguém interessado
em usufruir das benesses do espaço urbano, transitando por ruas, praças e
esquinas, na condição de um perfeito flâneur,
o novo personagem que a modernidade introduzira no fluxo das grandes cidades.
Com uma desinibição que literalmente fazia corar o
gosto pequeno-burguês, os fauvistas instauram uma nova ordem, a da supremacia
da cor, representada pelo arrojo de forma e tinta, cobrindo os espaços de
telas, tapetes, paredes e vitrais, pois, se não era arte profunda, pelo menos
deflagrava um prazer, com efeito de êxtase visual, na linha do que, entre 1901
e 1906, vinham e iriam suscitando exposições de Van Gogh, Gauguin e Cézanne,
seus inspiradores mais próximos, mas também os longínquos - Bruegel, El Greco,
Poussin -, por onde seguiria a caudal irreprimível das vanguardas verdadeiras:
expressionismo (também em 1905), cubismo (1908), futurismo (1909), suprematismo
(1915), dadaísmo (1916), surrealismo (1924), e seus filhotes - vorticismo
(Inglaterra, 1913, a partir de um cisma com o futurismo) e ultraísmo (Espanha,
1920, de vigor mais literário e poético, expandindo-se para a América do Sul,
até chegar a Bueno Aires, pelo inquieto espírito do jovem Jorge Luis Borges),
entre outros, excetuando-se as derivações criativas, rumo ao abstrato.
"O Pescador Napolitano", de Raoul Dufy |
Le Corbusier (Charles Édouard Jeanneret, 1887-1965)
situa o estado da arte neste momento (início do século XX) como o de
recuperação de uma “fantasia” perdida, ou de renúncia a uma obediência às
regras da imitação. Por esta ilustre conjetura, pode-se dizer que o fauvismo
imprimia a sujeição do tema à plástica pura, buscando por esta forma expressar
os efeitos do mundo material, ao acolher e incorporar soluções estéticas
transmitidas por um certo número de precursores, estabelecendo-se o predomínio
do elemento puramente plástico sobre o descritivo, que será melhor apropriado
logo adiante (1908) com maior eficácia pelo cubismo.
Com isso, segundo Le Corbusier, a narração em
pintura passa a um segundo plano; às novas experiências e pesquisas se agregam
elementos formais e colorísticos absorvidos da arte oriental e negra, com a
predominância de sensações visuais puras, que produz um efeito ornamental,
contribuindo, pela organização - de cores e formas -, para se tornar arte
superior.
Na ótica de Giulio Carlo Argan, a arte europeia se
introduz no século XX impregnada de uma forte tendência antiimpressionista que
se manifesta através de dois movimentos aflorados em dois centros distintos: um
francês, o Fauvismo; outro, propalado pelo grupo alemão Der Brücke (A Ponte). Ambos surgem em 1905, como arte
historicamente europeia, com a eliminação de pressupostos nacionalistas e
superação do caráter “essencialmente sensorial” do impressionismo.
Impõe-se o fauvismo como uma reação ao decorativismo
hedonista do movimento Art Nouveau
com uma poética que transforma a pesquisa de cores em pesquisa plástica, na
intenção de suprimir o dualismo entre sensação (cor) e construção plástica
(forma, volume, espaço). Com isso, segundo Argan, potencializa-se a
construtividade intrínseca da cor, como “elemento estrutural da visão”.
“Um elemento comum a Cézanne, Signac e Van Gogh era
a decomposição da aparência natural,
ou do “motivo”, para pôr em evidência o processo de agregação, a estrutura da
imagem pintada: com efeito, eles pintam com pinceladas destacadas, nítidas,
dispostas com certa ordem ou ritmo, que dão a ideia de matéria concreta, da cor
e construção material da imagem. A
pesquisa dos fauves se dirige
justamente à natureza dessa ordem e ritmo, que para Cézanne correspondia à
ordem intelectual da consciência; para Signac, à lei ótica dos efeitos de luz;
para Van Gogh, ao ritmo profundo da existência traduzido em gestos” (Argan,
1992, p. 232).
Vem dos fauves
a ideia do quadro como estrutura autônoma, autossuficiente, que durou até
recentemente com o advento das artes conceitual e performática. Para eles, é na
criação artística, realidade em si, que se efetiva o encontro do homem com o
mundo. Segundo Anna-Karola Kraube, os pintores fauvistas – André Derain,
Maurice de Vlaminck, Raoul Dufy (1877-1953), Kees van Dong (1877-1968) e Henri Matisse
– “seguiam as pisadas dos pintores impressionistas e pós-impressionistas”,
sendo deles coerentes continuadores.
"Música", 1910, de Henri Matisse, exemplo de uso da cor liberta do objeto |
“Os Pós-impressionistas Gauguin, Van Gogh, Seurat e
Cézanne já tinham iniciado esta transformação dos meios artísticos. A sua arte
pôde ser apreciada nas grandes exposições retrospectivas, em Paris, na passagem
do século, as quais parecem ter sido uma grande fonte de inspiração para os
jovens artistas franceses. Nos trabalhos de Matisse, por exemplo, encontramos
as grandes superfícies coloridas de Gauguin, a pureza das cores de Seurat, a
espontaneidade expressiva de Van Gogh e a composição de Cézanne baseada em
relações intrínsecas ao quadro” (Kraube, 2000, p. 85).
A ausência de simbolismo, a cor liberta do objeto,
solta no espaço, e a captura da luz graças a uma paleta vigorosa, esplendente e
pura dos fauvistas, influenciaram os expressionistas alemães do grupo Der Brücke (A Ponte), que se reuniu em
Dresden, no mesmo ano. A partir de 1908, com a publicação de um artigo, à guisa
de manifesto estético – “Anotações de um artista. A cor pura” -, Henri Matisse
passou a ser considerado em toda a Europa o líder inconteste do movimento
fauvista, por ter resolvido alinhar, segundo Kraube, “a sua linguagem pictórica
concreta por mentores mais recentes”, como dito acima.
“Matisse também estava convencido de que a cor e as
formas possuem um conteúdo expressivo próprio, independente do modelo da
natureza. Com sua concepção artística, que dava prioridade às relações
interiores do quadro, em detrimento da precisão da representação, Matisse fez
parte daqueles artistas que abriram os caminhos da arte moderna” (Kraube, 2000,
p. idem).
"Montanhas no Inverno", de Ernst-Ludwig Kircher, do grupo Die Brücke |
EXPRESSIONISMO
Nova arte para novo homem
Se o fauvismo não tinha uma ideologia, uma
plataforma de ideias projetada para a sociedade, podendo ser tomado como
exemplo nítido de arte pela arte, no sentido de prática estética que não tem
por objeto senão a si mesma, com resultado positivo, reconheça-se, não se pode
dizer o mesmo do movimento expressionista.
Considerando o conjunto de pensamentos que
alicerçava as propostas dos quatro jovens alemães reunidos em Dresden, em fins
de 1905, tem-se a evidência de que, somente seis décadas depois, no Ocidente,
se configuraria um cenário de impulso ideológico equivalente com as mudanças
sociais e técnicas que, lastreado no imaginário do consumismo e da indústria
cultural, favoreceu o surgimento de novas manifestações artísticas, tais como
pop art, arte conceitual, arte pobre, Fluxus, hiper-realismo, transvanguarda,
entre outras, na caudal dos movimentos de liberação dos costumes e afirmação de
amplos segmentos sociais (juventude, feminismo, grupos étnicos), tomando-se
como ponto de partida os anos 1960.
Assim como o século XIX forneceu ao homem a máquina
como instrumento impulsionador da modernidade, semeando transformações sociais
através da revolução do trabalho e configurando uma realidade nova, invenções
técnicas e industriais, incidência de novos conhecimentos nas áreas das
ciências naturais e humanas, e muito mais, caldearam a realidade dos inícios do
século XX. A realidade diretamente visível tornava-se outra: surge a teoria da
relatividade de Albert Einstein (1879-1955); Sigmund Freud (1856-1939) produz uma
reviravolta no mundo da consciência com a psicanálise; o físico alemão Wilhelm
Röentgen descobrira os raios X. Não era mais um mundo para o olhar de
impressionistas, neoimpressionistas e simbolistas. Os novos artistas do Die Brücke, mesmo que parecessem
utópicos ou ingênuos, desejavam olhar o mundo, como diziam, “por trás da
aparência das coisas”. Queriam indicar para o homem o que supunham ser um
futuro melhor.
“Com a fé no desenvolvimento, numa nova geração de
criadores e de consumidores, fazemos um apelo a toda a juventude, e como
juventude portadora de futuro, queremos reivindicar a liberdade, viver e lutar
contra as forças conservadoras e o poder estabelecido. Todo aquele que
representar diretamente e sem falsificações aquilo que o impele a criar, é um
de nós”. Eis o que proclamavam aqueles quatro jovens em Dresden – Ernst Ludwig
Kirchner (1880-1938), estudante de arquitetura, a trabalhar com gravura em
madeira; Erich Heckel (1883-1970), escultor; Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976),
que se dedicava à litografia, e Fritz Bleyel (1880-1966), de preferência
pintor.
"O Grito", famosa tela expressionista de Edvard Munch |
O termo “ponte” (brücke), que
aplicavam ao movimento (escolhido por Schmidt-Rottluff, por sugerir a fé que o
grupo tinha da arte no futuro, com eles literalmente fazendo a ponte) pretendia
significar a passagem para um processo criativo e a ligação entre verdadeiros
criadores, no intuito de caracterizar total recusa a ser uma escola no sentido
acadêmico da palavra, embora estivessem, os quatro, ligados a uma escola
técnica de nível superior. Almejavam absorver em suas hostes, que só fariam
dali por diante crescer, “todos os fatores de revolução e fermentação”, que
rompem com o academicismo, o impressionismo e com o Art Nouveau, de Gustav
Klimt (1862-1918) e outros. Aos membros fundadores se juntaram depois outros
artistas, como Max Pechstein (1881-1955), Otto Muller (1874-1955) e Emil Nolde
(nome verdadeiro Emil Hansen, 1867-1956), Edvard Munch (1863-1944), James Ensor
(1860-1949), Max Beckmann (1884-1950) e Egon Schiele (1890-1918). A regra do grupo
era que cada um passasse adiante o ensino da técnica que melhor dominasse.
Claramente influenciada pelo
fauvismo, no que respeita à pintura de quadros a partir de cores e formas
puras, porque também ligada aos já citados precursores, próximos (Van Gogh) e
distantes (El Greco), a concepção artística do grupo ganharia a designação de
expressionismo somente em 1911, por obra de um galerista, Herwarth Walden,
promotor da arte de vanguarda. Tanto os fauvistas como os expressionistas
praticavam uma arte de expressão, como oposição à impressão. Segundo Argan, na
impressão, a realidade - fenômeno exterior – se imprime na consciência,
enquanto na expressão ocorre o inverso, o movimento se propaga de dentro para
fora, imprimindo-se no objeto. Vocabulário estético deliberadamente
simplificado, formas reduzidas ao essencial, corpos distorcidos e espaços
diluídos, que, segundo Anna-Carola Kraube, “ignoram as leis da perspectiva” –
são as marcas das obras dos expressionistas.
“Cores luminosas, saturadas,
aplicadas superficial e independentemente da cor local com auxílio de um pincel grosso, muitas vezes envolvidas
por uma linha de contorno, imprimem aos quadros um caráter grosseiro, rude e
elementar. Preocupados em causar um efeito intenso, os expressionistas da Brücke empregavam frequentemente contrastes complementares, que permitiam
uma acentuação da luminosidade das cores. A sua pintura apaixonada e colorida
correspondia ao desejo de conferir à cor uma nova importância não só emocional,
mas também com traços de composição, ou seja unicamente relevante sob o ponto
de vista estético imanente ao quadro” (Kraube, 2000, pp. 87/88).
A estética do expressionismo
adquire desdobramento por volta de 1911, em Munique, com a ação de um grupo
liderado pelo russo Vassily Kandinsky (1866-1944) e o alemão Franz Marc
(1880-1916), a que se associaram August Macke (1887-1914) e Paul Klee (1879-1940),
entre outros, recebendo o nome de Der
Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) - sua chave criativa era a transposição de
sentimentos para a tela, de modo que os quadros “fizessem vibrar a alma”, sendo
as cores e as formas os elementos decisivos.
“Ao contrário da pintura rude
dos artistas do grupo Die Brücke, a
arte do grupo Der Blaue Reiter parece
mais delicada, sublimada e espiritual. Embora a formulação artística dos dois
grupos fosse diferente, ambos estavam unidos pela convicção de que uma obra de
arte já não podia representar a realidade de maneira ilusória, porque essa se
tinha tornado complexa e mais incompreensível do que nunca. O objetivo era,
portanto, ultrapassar o superficial” (Kraube, 2000, p. 90).
O expressionismo foi um
vigoroso movimento de arte que começou a perder força logo após o fim da
Primeira Grande Guerra, lá por 1920, cedendo à intensidade de fundo
psicanalítico do surrealismo de André Breton (1896-1966), que procurou
transferir para a criação artística os impulsos do inconsciente, inspirado em
Freud. Mas manteve o seu prestígio e influência até os dias de hoje pela mão de
muitos adeptos em todo o Ocidente.
Numa visada do panorama das
artes plásticas ocidentais dos últimos decênios, não estará, a meu ver,
incorrendo em pressa ou imprudência quem vislumbre centelhas e chispas, e até
rastros visíveis, seja das harmonias de composição dos fauvistas, ou mesmo suas
quebras de comedimento, seja dos impulsos de revolta que emergem de traços dos
expressionistas, e mesmo pela conjugação de elementos estéticos de ambos, mais
de um século depois, presentes em exposições individuais ou coletivas de obras de
artistas de várias nacionalidades. Não há dúvida, nas artes plásticas, o ano de
1905 ainda perdura.
Fontes de consulta:
Anna-Carola Kraube – História
da Pintura – Do Renascimento aos nossos dias. Lisboa: Könemann, 2000.
Dictionnaire
Enciclopédique de la Peinture – Paris: Booking International, 1994.
Georges-Emmanuel Clancier – Panorama Critique de Rimbaud au Surréalisme. Paris: Pierre Seghers
Éditeur, 1955.
Giulio Carlo Argan – Arte
Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Ian
Chilvers – Dicionário Oxford de Arte.
Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Jean-Louis
Ferrier – L´Aventure de l´Art au XXème
Siècle. (Com a colaboração de Yann Le Pichon). Paris: Chene-Hachette, 1988.
Ozenfant e Jeanneret (Le Corbusier) – Depois do cubismo. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify,
2005.
Volkmar
Essers - Matisse - Maestro del color.
Tradução: José Lebrero Stals. Alemanha: Benedikt Taschen, 1993.
"Mulher com Bandolim em Amarelo, Verde e Vermelho", expressionismo do pintor alemão Max Beckmann (1884-1950) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário