sábado, 23 de maio de 2015

FRANZ MARC - A HUMANIDADE ANIMAL

Franz Marc (1880-1916), "Cavalos amarelos"; os animais eram para ele mais belos e mais espirituais do que os humanos

Florisvaldo Mattos

Dentro de mais ou menos nove meses, tempo bastante para o nascimento de uma criança, completam-se 100 anos da morte de um dos meus preferidos entre os mais representativos nomes do expressionismo na pintura: o alemão nascido em Munique Franz Marc, que sucumbiu em pleno campo de batalha, atingido por um tiro de obus, na tarde de 4 de março de 1916, durante missão de reconhecimento. Dito assim, em tons burocráticos, limpo de pranto e dor, o que aconteceu como algo corriqueiro no meio do que foi a tragédia da Primeira Guerra Mundial não traduz historicamente a dimensão para a arte que representou o final da vida de quem melhor pintou animais desde os tempos das cavernas, os desenhos e pinturas rupestres do fim do paleolítico.
Marc teve o mesmo destino de seu amigo e companheiro de corrente artística, Augusto Macke, que com ele se alistara como soldado voluntário e também morreu, nas mesmas condições, logo no início do conflito, em agosto de 1914. Ambos compunham a linha de frente do movimento expressionista alemão e desempenharam papel significativo como precursores da abstração na arte do século 20. Com o russo Wassily Kandinsky (1866-1944), com a participação inicial do suíço Paul Klee (1879-1940), criaram em 1911 o outro importante braço do expressionismo, o Cavaleiro Azul (Blaue Reiter), como desdobramento do movimento nascido em 1905, com o grupo Die Brucke (A Ponte), que tinha à frente os pintores Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), Erich Heckel (1883-1970), Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976), além de outros. O canal estético do Cavaleiro Azul era um almanaque com ensaios de caráter internacional, a que se agregaram artistas e intelectuais de vários países.
Franz Marc conquistou fama por sua preferência em pintar animais basicamente nas cores azul, amarelo e vermelho, com o que intentava estabelecer uma comunhão de fundo panteísta com a natureza. O sucesso dessa pintura, quando ainda vivo e logo após sua morte, acabou por contribuir para ofuscar a sua opção pela abstracionismo, a partir de 1915.

Essa popularidade cresceria ainda mais com o término da Segunda Grande Guerra em 1945, quando se reacende na Alemanha, como no resto da Europa, o interesse pela arte moderna, sempre perseguida por regimes ditatoriais ou simpáticos ao nazismo e ao fascismo. Sob a acusação de arte degenerada, a obra de Marc e de outros expressionistas alemães foi alijada por Adolf Hitler da grande exposição de 1937, como indigna da cultura sancionada por um regime que aspirava durar mil anos. As restrições não distinguiam movimentos. Estavam condenadas todas as obras que circulassem sob a rubrica de arte moderna, o bastante para despertar ódio no obscurantismo vigente. Por esta razão, uma infinidade de obras iriam desaparecer de museus, galerias e até reputadas coleções particulares, sequestradas para execração pública, ocultação ou destruição, inclusive pelo fogo.
Em 1989, a cotação de um quadro de Franz Marc - Animal Fabuloso II (Cavalo), 1913 -, vendido num leilão por 2,6 milhões de marcos líquidos, quando a expectativa máxima era de 600 mil marcos, surpreendeu. Desde 1980, os preços de suas obras sobem como flechas no mercado de arte. Alcançam esses picos na batida do martelo suas pinturas de animais, selvagens ou domésticos, principalmente as de cavalos. Onde a razão de tanto prestígio e aceitação? A pintura animalista de Marc possui o poder de, ao despertar no espectador emoções puras, transportá-lo par a um mundo, o seu, do pintor, onde os animais assumem o aureolado posto de protagonistas. Estabelece-se uma relação direta entre a obra e seu observador.
A partir de 1914, Marc optou pela abstração expressiva

Oriundo de uma família de artistas, o pendor de Marc para a pintura de animais se afirmou, após estabelecer amizade com o pintor animalista Jean Bloé Niestlé (1884-1942), em 1905, que o instigou a transpor para a arte seu confesso amor pelos animais. Niestlé se desinteressava pela representação dos animais no aspecto zoológico, como objetos para ser apenas vistos e admirados. Interessava-lhe estabelecer uma empatia com eles, buscando captar a essência do animal na obra, num quadro. Tais ideias – como a de captar o animal na sua expressão própria, de natureza - fascinaram Marc, que viu ali adquirir consistência o seu íntimo desejo de pintar animais, não do ponto de vista humano, mas do ponto de vista animal, de modo que a obra despertasse no observador a sua vibração espiritual. Nesta linha, Marc não queria que o observador do quadro tivesse dúvidas quanto ao animal representado, não ficasse a cogitar sobre raça, idade, habilidades; ele deveria “sentir o frêmito da vida interior do animal”.
“Como é que um cavalo vê o mundo? Ou uma águia, um veado ou um cão? Que pobre e tão desprovida de alma é a nossa convenção que consiste em colocar os animais numa paisagem correspondente à nossa visão das coisas, em vez de nos transportarmos p ara dentro da alma do mundo animal a fim de descobrir o seu mundo visual.” (Marc, citado por Susanna Partsch, em Marc, Lisboa: Taschen, 2001). O propósito era fazer a sensibilização transmigrar do pintor para o animal e, de lá, para o observador.
Em abril de 1915, do campo de batalha, em carta à mulher, Maria Marc, confidenciava ele, visivelmente influenciado pelo drama da guerra: “Os seres humanos impuros que me rodeiam (...) não despertaram em mim meus verdadeiros sentimentos, enquanto a vitalidade pura dos animais despertou tudo o que havia de bom em mim... desde há muito tempo que acho as pessoas feias; os animais parecem-me mais belos, mais puros.” Talvez para marcar distanciamento com a pintura animalista convencional - isto é, com todos os que pintaram animais antes dele (entre tantos, Simone Martini, Uccello, Rubens, Velásquez, Delacroix, o próprio Paul Gauguin, suponho) -, escreveu ele num breve ensaio: “Os meus objetivos não se orientam para a pintura animalista especializada. Procuro um estilo bom, puro e leve, através do qual se possa assimilar pelo menos parte do que os pintores modernos me têm a dizer. Eu... procuro identificar-me de maneira panteísta com o pulsar e o correr do sangue na natureza, nas árvores, nos animais, no ar.” Quem observa os animais que pintou, especialmente os cavalos, sabe que o conseguiu.

Paul Klee acreditava que o amor aos animais era uma extensão da humanidade de Marc. Logo em seguida à sua morte, escreve em seu diário: “Ele tem uma afeição humana pelos animais. Ele os elevava ao seu próprio nível.” Susanna Partsch é mais precisa: “O esforço de Marc para se pôr no lugar dos animais levou-o a antropomorfizá-los e, na maior parte dos seus quadros, a retratar os sentimentos humanos, senão a retratar-se a si próprio.” Na tentativa “de ver e pintar através de seus olhos” (do animal), acabou, diz ela, “por pintar os traços humanos”. Com isso, realizou uma pintura expressionista de aparência mais delicada, subjetiva e espiritual, em contraponto à estética dos expressionistas do Die Brucke (Erich Heckel, Kirchner, Egon Schiele), embora como eles soubesse que a obra de arte não podia ser uma reprodução enganosa da realidade, tal a sua complexidade.
Em Franz Marc, como em outros do Blaue Reiter, o mais importante eram as formas e as cores, atitude que tinha como precursores Vincent Van Gogh e Paul Gauguin e, extensivamente, os fauvistas (Matisse, Vlaminck). O conhecimento dos pós-impressionistas e simbolistas levou-o a abandonar a perspectiva realista e, segundo a crítica, a optar por um espaço sem profundidade que une num mesmo plano o tema e a paisagem, com a forma dos animais, arredondada, a se confundirem com os contornos das colinas e dos montes, o que manifesta incessante busca por um a expressão da igualdade entre o homem e o animal, ambos identificados na s ua origem comum de natureza.
Esse caminho lhe foi possível, a partir de 1910, quando conheceu Augusto Macke e Kandinsky, com ideias que prenunciam o abstracionismo, o que permite a Marc alcançar um modo de expressão adaptado à sua visão panteísta do mundo, numa obra em que, por fim, irão aliar-se elementos fauvistas, cubistas, futuristas e expressionistas, com feição própria baseada num elemento essencial - a cor, esta não mais ligada ao objeto representado, mais posto inteiramente a serviço da expressão. Violentos contrastes de cor e nítido traço irão dar forma a seus cavalos humanizados, até optar pela abstração, por volta de 1915. Marc morreu mal completados os seus 36 anos de idade.

CAVALOS ESPIRITUAIS

Florisvaldo Mattos

                                  
                        Quero esses, e somente esses,
                        cavalos da natureza,
                        livres de arreios e pulsos (...)
                                   (F. M., Fábula Civil, 1975)

 
"Cavalo Azul", de Marc; cores simbólicas, não naturalistas

Luzem para a humanidade
os cavalos de Franz Marc,
azuis, amarelos, rubros,
seus cavalos sonhadores.

Seres límpidos, gestados
em luz de mente sensível,
animais no seu poder
de revelar a existência.

Há o sentimento da vida,
as emoções verdadeiras,
correndo por esses claros
horizontes que amanhecem.

Formas altas, pensativas,
cavalos espirituais,
a cor, o frêmito e o instinto
perpetuam-se na paisagem,

mais belos, mais puros, eles,
como todos são realmente,
galopando vastos  prados,
na vizinhança da essência.

Olhados da eternidade,
são prova mais que patente
de que para o homem que sonha
a natureza não morre.

Aos ímpios seres humanos
nada dizem, nada exprimem,
são só lições de beleza,
que explode como verdade.

Nas suas curvas e pelos,
eles trazem para nós,
dádiva de um deus oculto,
o ócio que ao bem sucede.

Voam. Movidas pelo vento,
as ágeis crinas, ao sol,
agitam signos dourados,
azuis que sejam com a chuva.

Superiores à tristeza
que invade e aprisiona a alma,
pedras e nuvens clareiam
essas torres flamejantes.

Em teclado de colinas,
ao ritmo dos cascos rútilos,
a plenitude da tarde
rege a música da terra.

Mais que a luz que se dissolve
nos contornos da aparência,
vibra, fulge e permanece

o que está por trás do humano.

O SONHO, de Franz Marc, de 1912; arte em que sentimentos animais e humanos devem misturar-se como na existência 

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