Pablo Picasso (1881-1973) pintando GUERNICA em seu atelier na Rue des Agustins, em Paris, após abril de 1937 |
Florisvaldo Mattos
Transcorrem precisamente neste dia 26 abril os 78 anos de
um dos mais trágicos e dolorosos episódios do século XX, o bombardeio da
pequena cidade de Guernica, no norte da Espanha (Países Bascos), por aviões da
Legião Condor, a mando de Adolf Hitler, prenunciando tragédia ainda maior, a da
segunda guerra mundial que iria ser por ele deflagrada pouco mais de dois anos
depois (01 de setembro de 1939), com a invasão da Polônia.
Não há como esquecer. Por duas vezes, estático e
perplexo, prostrei-me diante de Guernica,
a célebre pintura mural do catalão Pablo Picasso, que retrata com força de
sentimento patriótico e poderoso humanismo o horror daquela tarde. A primeira,
em 1978, em Nova York, a obra então dominando amplo salão à entrada do MoMA
(Museu de Arte Moderna), onde permaneceu de 1942 a 1991, por expressa e
cautelosa vontade do pintor; a segunda, em 1994, já em Madri, no museu Casa Del
Arte Reina Sophia, para onde a obra se transferira depois de breve período num
anexo do Museu do Prado, agora ocupando quase inteiramente vasta parede cercada
de vidros blindados e severo aparato de segurança.
Em ambas as ocasiões, pude sentir o halo de admiração,
reverência e pasmo que envolvia o semblante de cada um dos que, mirando a obra,
se postavam em longas filas, semelhando talvez, num e noutro momento, a
impactante sensação de que se tomaram os visitantes da grande exposição
internacional de Paris, quando se depararam com o imenso painel de 3,51m x 7,52m,
que ornava a entrada do pavilhão da Espanha, ainda em 1937.
Uns, segundo relatos, sem conter as lágrimas, sacudidos
pelos ecos da luta fratricida que à época era travada na Espanha; outros, um
séquito de jovens pintores, extáticos com a imagem da violência que desfilava pelo
imenso painel, e talvez pela premonição do futuro sombrio que viria logo a
seguir, a segunda grande guerra mundial. Deixava ali Guernica o modesto e
lúgubre atelier de Pablo Picasso, na Rue des Grands-Agustins, na Rive Gauche, para
entrar na história.
Por isso mesmo, o episódio trágico de Guernica e a
monumental obra de Picasso, que se tornaria um ícone da arte moderna e da luta
ideológica do século XX, comportam duas narrativas, nas quais a guerra
sobressai como palco de carnificina e símbolo de morte e horror: a do
bombardeio covarde da pacata cidade basca situada em frente ao golfo de
Biscaia, pelos caças-bombardeiros de Hitler, e a da célebre obra pintada por um
artista-símbolo, na qual, remontando à concepção de Homero, na Ilíada, se mais uma vez comprova que a
beleza emerge do sofrimento e do desastre.
Hoje, ante o espetáculo planetário da dissolução de
valores, com o terror instalado, atomizado e quase familiarizado no cotidiano
de cidades, países e povos do mundo, de que são tristes exemplos os ataques do
11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos, a invasão e ocupação do Iraque, em
2003, o surgimento de hordas fanáticas de terroristas na Europa, no Oriente
Médio, na África e em tantos outros lugares, de inspiração política ou
religiosa, com mortes, mutilações e dor generalizada, pode-se ter uma ideia do
que significaram a tragédia da pequena cidade basca e a sua memória pelas mãos
de um gênio da pintura.
Avião da Legião Condor bombardeando Guernica |
NAS RUÍNAS DE GUERNICA
Quase às 5 da tarde em ponto – Quase como o eco fatal de
um verso de Lorca (“Eram cinco da tarde em ponto” – “A captura e a morte”, em Pranto por Ignácio Sánchez Mejías,
1935), a tragédia de Guernica começou exatamente às 16:45 horas de uma
segunda-feira, em 26 de abril de 1937, dia de feira na cidade, a cujas ruas
estreitas nesse dia afluíam camponeses dos vales vizinhos com seus produtos.
Assim o inglês Hugh Thomas narra fielmente o momento fatídico:
“Já houvera antes outras incursões aéreas na região, mas
Guernica não tinha sido bombardeada. Às vinte para as cinco, começaram a surgir
os Heinkels 111, primeiro bombardeando a cidade, e em seguida metralhando as
ruas. Os Heinkels foram seguidos pelos antigos espectros da Guerra da Espanha,
os Junkers 52. O povo começou a correr pela cidade. Foi também metralhado.
Bombas incendiárias, pesando até 1.000 libras, assim como poderosos explosivos,
foram lançados por ondas de aviões que surgiram de vinte em vinte minutos até
às oito menos um quarto. O centro da cidade estava então destruído e em chamas.
Tinham sido mortas 1.654 pessoas e feridas 889. A Casa do Parlamento Basco e o
famoso carvalho, que ficavam afastados do centro, não foram atingidos.”
Correspondente de guerra na Espanha conflagrada, e por
isso testemunha, outro inglês, George L. Steer, enviou um relato ao Times, de Londres, no qual mostrava a
estratégia clara do ataque: semear a carnificina e o pânico entre a população
civil da cidade. Eis a sua descrição do insólito momento: “Quando entrei em
Guernica, após meia noite, as casas estavam caindo de todos os lados, e era
totalmente impossível, até para bombeiros, entrar no centro da cidade. Os
hospitais Josefinas e Convento de Santa Clara eram montanhas luminosas de
brasas, e as igrejas, exceto a de Santa Maria, foram destruídas; as poucas
casas que ainda estavam de pé estavam condenadas. Quando voltei a Guernica
naquela tarde, a maior parte da cidade ainda estava queimando, e novos
incêndios tinham se iniciado. Cerca de 30 mortos estavam jogados no hospital
arruinado”.
O episódio provocou um clamor mundial, não apenas pela
tragédia em si, mas pelo que ali se prenunciava. Começando a sua escalada,
Hitler, justos oito meses antes, entre os acordes de uma ópera wagneriana,
anunciara seu apoio ao general espanhol Francisco Franco, que, partindo do
Marrocos, deflagrara a guerra civil para derrubada do governo democrático da
República Espanhola, o que culminaria com a vitória das falanges franquistas,
em 18 de julho de 1939, vésperas do início da Segunda Guerra mundial, com a
invasão nazista da Polônia. E resolveu fazer de Guernica palco para teste de
seu poderio bélico, mostrando eficiência de sua força aérea e a extensão mortífera
de sus bombas e granadas. Mandou uma carta ao caudilho e o resultado é o que se
viu e a história registra: a tragédia maior sobrevinda com a grande guerra de
1939-1945.
Passaram-se 78 anos, a Espanha livrou-se de Franco, cuja
ditadura durou de 1939 a 1975, com a sua morte, democratizou-se, curou suas
feridas e progrediu imensamente, embora no momento ainda enfrente os danos de
uma crise financeira que abalou os países da chamada zona do euro em 2008. E,
apesar da dissidência basca, sustentada pelo ETA (partido separatista), os
habitantes de Guernica seguiram o mesmo caminho, resolvendo transformar num
lugar de paz e espírito conciliador o que ficou para a humanidade como um
símbolo da beligerância nazifascista no mundo.
Montaram um museu no centro da cidade, local maior da
tragédia, onde se exibe permanentemente a memória dolorosa do bombardeio, tais
como fragmentos de bombas e fotografias da destruição, e filmes documentários
de variada criação e procedência. Os que a visitam também se prevalecem da
manutenção de um centro de pesquisa sobre a paz, com o nome de Guernica
Relembrada (Gernika Gogoratuz, em basco), que recentemente produziu um filme
com o título de O bombardeio de Guernica: a marca dos homens. Possui também o
museu cópias de esboços da obra de Picasso (provavelmente fotos de Dora Maar),
e da própria obra.
Guernica era só ruínas após o bombardeio perpetrado por aviões a mando de Adof Hitler, que testava suas armas de guerra |
E, neste clima de sobranceiro perdão, uma das paredes do
Museu de Guernica exibe emoldurada em um quadro o que mentes apressadas
poderiam tomar como tardio gesto ou suprema ironia: uma carta do então
presidente da Alemanha, Roman Herzog, datada de 27/3/97, a propósito dos 60
anos da tragédia, em que reconhece o ataque da Legião Condor como
“injustificável ato de bombardeio aéreo”, acrescentando, solidário e
compadecido: “As vítimas desta terrível atrocidade sofreram angústia humana.
Nós repudiamos o bombardeio pelos aviadores alemães e o horror que ele causou.
Agora nós pedimos reconciliação e paz entre nossos povos”.
Indo de encontro a qualquer juízo temerário, a carta de
Herzog refletia uma lição de ética real, que vem de Homero e da qual derivaram
ideias de máxima importância na história posterior da humanidade – para a
Europa e, daí, para o mundo -, como as da anistia política e do armistício, e
por isso, também, dos acordos de paz entre nações beligerantes.
Foi quando o gênio grego narrou no último livro da Ilíada o encontro de Príamo, rei de
Tróia, com Aquiles, matador de Heitor, seu filho, este um dos episódios mais
cruéis da epopeia. Desfazendo-se dos brios de sua majestade e da idade, o
ancião chega sozinho ao acampamento do inimigo; veio resgatar o corpo mutilado
de Heitor, em presença do homem que o matara. Aquiles o recebe, manda-o sentar
numa poltrona, ouve-o, aquiesce ao pedido e, mesmo ante a sua relutância,
convida Príamo para jantar. Diz Homero:
“Depois de
satisfeita a vontade de comer, o dardânida Príamo, maravilhado, fita Aquiles:
aquele porte, aquele aspecto, dizia-se seu rosto refletir o dos deuses. Mas
Aquiles também admira Príamo, contemplando seu rosto bondoso e ouvindo as
palavras do Dardânida”.
Príamo levou o corpo de Heitor e a guerra prosseguiu.
Jasper Griffin define o encontro entre os dois personagens dessa guerra mítica
como “a oportunidade de mostrar grande cortesia e reconhecer-se reciprocamente
o esplendor e a fragilidade que coexistem na natureza dos homens”.
Não deve pensar diferente hoje o povo de Guernica,
marcado pelo horror da tragédia, mesmo tendo que calar sobre ele durante os 36
anos da ditadura do general Francisco Franco. Subsiste entre os seus habitantes
um halo de dignidade que permeia este espírito altaneiro, próprio do povo
espanhol. No entanto, visitando a cidade em 2000, o americano Herbert Mitgang,
em artigo para o The New York Times, anotava, resumindo suas observações e
contatos, o sentimento que sobrevive naqueles corações resignados: “Perdoar,
sim; esquecer, jamais”.
Visão da tragédia: após o bombardeio, muitos corpos se espalhados pelo chão |
ARTE MAIOR E MANIFESTO POLÍTICO
A frase comumente atribuída a Pablo Picasso – “Eu não
procuro, eu acho” -, se verdadeira, poderia parecer imodesta, mas encontra
total comprovação nesta sua célebre pintura mural. Através do poeta José
Bergamin, então adido cultural da sua embaixada em Paris, o governo republicano
encomendara ao pintor uma composição para ornamentar o pavilhão da Espanha na
grande exposição internacional, com abertura marcada para junho, três meses
depois, tendo como temas o trabalho, o progresso e a paz. Pedia-se apenas uma
obra impactante, monumental, duradoura.
Picasso aceitou a encomenda por uma quantia então
simbólica de 150 mil francos, já que desde o ano anterior assumira atitude
política, ao colaborar com a propaganda republicana, com duas séries de
gravuras (Sueño y mentira de Franco),
e começou a preparar os esboços para o grande painel centrado em símbolos
marcantes da Espanha.
Foi quando em abril sobreveio o ataque covarde a Guernica
pela Legião Condor, com o mortandade em sua maioria de velhos, mulheres e
crianças. Ao ler a notícia e ver, aterrorizado, as fotos no diário Ce Soir, de 1º
de maio, Picasso mudou de ideia, resolvendo pintar uma tela que significasse
maiúscula resposta à insanidade e atrocidade da carnificina. Eis como a sua
decisão foi definida pela voz de uma das maiores autoridades em arte, o
italiano Giulio Carlo Argan:
“Assim nasce, em poucas semanas, Guernica, que se pode
dizer o único quadro histórico de nosso século. Ele o é não por representar um
fato histórico, e sim por ser um fato histórico. É a primeira intervenção
resoluta da cultura na luta política; à reação, que se exprime destruindo, a
cultura democrática responde pelo punho de Picasso, criando uma obra-prima”.
Em complemento,
Argan chega a fazer uma inusitada comparação. Considerando a problemática
histórica, social e política do século XX e a histórico-religiosa do século XVI,
Argan iguala o significado de Guernica
de Picasso ao do Juízo Final, de
Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Parra ele, ambos intervieram “com a
autoridade do gênio” na questão mais candente de suas respectivas épocas.
Nos dias de Guernica, que problema europeu era esse?
Resumia-se a duas frentes preocupantes: a da ambiciosa ameaça do rearmamento
alemão, que se revelara na ousadia da escolha da cidade basca para campo de
teste bélico, arrasando-a, e a ascensão do fascismo na Itália, consubstanciada
na ocupação da Etópia por Benito Mussolini, em 1935, que duraria até 1941, duas
agressões que prenunciavam o ocaso da democracia na Europa, o travamento ao
avanço revolucionário da luta operária e, para culminar, a conflagração mundial
próxima. O próprio Picasso prescrevia então: “A pintura não foi feita para
enfeitar paredes. A pintura é uma arma, é a defesa contra o inimigo”.
O célebre mural de Picasso, pintado em Paris, foi para Nova York e hoje está na Casa Del Arte Reina Sophia, em Madri |
Esse o ânimo geral da Europa. E o que se passava na Paris
onde Picasso vivia? Era só efervescência. Estava nos estertores o governo da
Frente Popular, liderado por Léon Blum, afetando duramente o futuro do que
então se rotulava de “causa comum” e, frente à ameaça nazifascista, ganhavam
consistência movimentações para oferecer apoio à luta dos republicanos contra
os nacionalistas na Espanha, onde a República definhava, e se empreendiam ações
solidárias para acolher os refugiados espanhóis, na sua maioria intelectuais.
Dentre outros, integravam esse comitê Pablo Picasso, José Bergamín, Jean
Cassou, Louis Aragon, Tristan Tzara e Paul Éluard, que num só mês ajudaram umas
500 pessoas, entre as quais os poetas Antonio Machado e Rafael Alberti. André
Malraux, outro solidário que tinha lutado na Espanha, voltava dos Estados
Unidos aonde fora pronunciar uma série de conferências para arrecadar fundos em
socorro dos republicanos espanhóis.
Apenas negro, branco e cinza. As diferentes etapas da
composição de Guernica puderam ser seguidas graças à série de fotos que Dora
Maar, então companheira de Picasso, fizera dos desenhos e esboços, todos por
sinal coloridos, mas, talvez por isso, usados pelo artista em preto e branco.
Até hoje se discute essa mudança – o não uso de cores na pintura definitiva -,
dando-se a isso várias interpretações. O competente Argan dá a sua: “Em
Guernica não há cor, apenas negro, branco e cinza. Está excluído que Picasso
tenha utilizado o monocromatismo para conferir uma tonalidade sombria e trágica
ao quadro: tudo é claro, as linhas traçam com precisão os planos destinados a
se preencherem de cor, mas a cor não está ali, foi embora”.
Guernica, detalhe: cavalo, lâmpada, candeia e noticiário |
Quando perguntaram ao artista a razão da ausência de cor
no quadro, ele respondeu irritado que “não tivera tempo de finalizar”. No
entanto, existe uma explicação específica. Segundo Jean-Louis Ferrier, a
ausência de cor se deveu a uma opinião do poeta Paul Éluard, que acompanhava
quase diariamente a elaboração da obra e o convenceu de que, como estava,
refletia mais o atormentado universo a que se reportava. E é de Ferrier esta
frase, ao aludir à morte de Picasso em 1973, aos 92 anos: “Durante três quartos
de século, ele lançou sobre a arte um vento de tempestade”, de que Guernica foi prova contundente, já que
bastou ao pintor, livrando-se das imposições ocasionais de conteúdo e objeto,
socorrer-se da forma para expressar, mais que um momento, a crise vivida então
pela civilização ocidental”.
A própria cidade de Guernica tinha consciência disto,
pois, a propósito dos 70 anos da criação do famoso painel, 30 artistas se reuniram
em abril de 2007, em San Sebastian (cidade basca) para homenagear o que os
bascos consideram o símbolo universal dos horrores da guerra: no pátio externo
de uma galeria de arte, foi instalado um painel branco, com as mesmas dimensões
da obra de Picasso, para que interviessem sobre ele, com base em fragmentos do
original distribuídos a cada um deles. Tinha-se o propósito de que o mural,
refletindo a interpretação pessoal que cada um dos pintores atribuía a Guernica, como expressão aglutinadora de
diferentes tendências, estivesse à disposição da população e dos visitantes
durante os atos rememorativos do episódio.
NA POESIA, ESQUECER JAMAIS
Desde a sua primeira exposição, a obra tem sido celebrada
por escritores e poetas. Entre estes, não poderia estar ausente Paul Éluard,
que lhe dedicou um poema (La victoire de
Guernica), no qual preferiu glorificar a gente do povo cuja morte iria
servir de exemplo à humanidade – “Homens
reais para quem o desespero, / alimenta o fogo devorador da esperança” e,
juntos, irão abrir “a última brotação do
futuro”. Para Rafael Alberti, conterrâneo de Picasso, na grande pintura a
cor canta com outra ortografia “e a mão
dispara uma nova escritura”. Para ele, como “uma onda e outra desolada”, Guernica
significa “dor em vermelho vivo”,
onde a arte “começa a ser um jogo
explosivo”.
Os habitantes de
Guernica também poderiam perfeitamente adotar, como rótulo dessas fatais
evocações, os versos iniciais do famoso poema de T. S. Eliot, marco da poesia
moderna universal, porém publicados justos e prenunciativos quinze anos antes
(1922), The Waste Land (A Terra Desolada),
que dizem: “Abril é o mais cruel dos
meses, gerando / Lilases que saltam da terra morta, misturando / Lembranças e
desejos, excitando / Raízes inertes com as chuvas da primavera.”... (No
original: “April is the cruellest month, breeding / Lilacs out
of the dead land, mixing / Memory and desire,
stirring / Dull roots with spring rain.”).
Não há prova maior neste caso.
Anos depois da visita ao MoMa, impelido pela sensação de espanto
que me causara a visão inaugural da obra, coube-me redigir um poema à memória
da tragédia de Guernica, que integra o grupo de A Caligrafia do soluço (edição da Fundação Casa de Jorge Amado,
1996), de inspiração ibérica, que vai adiante reproduzido, finalizando esta
evocação.
REVISITANDO GUERNICA
(Via Picasso; Madri, 1994)
(Via Picasso; Madri, 1994)
Onde álacres campinas de recreio
Abriam-se a canto e alarido escolar;
Onde antes havia o tempo sem abismos,
Coruscantes ruas, comércio lucrativo,
Familiar convívio de pacatos rostos,
Ah, tudo desapareceu na hora agra:
Algo se transmudou em chão rugoso,
A seara insone de insaciadas fomes.
Abriam-se a canto e alarido escolar;
Onde antes havia o tempo sem abismos,
Coruscantes ruas, comércio lucrativo,
Familiar convívio de pacatos rostos,
Ah, tudo desapareceu na hora agra:
Algo se transmudou em chão rugoso,
A seara insone de insaciadas fomes.
Foram mil seiscentos e cinquenta
Mortos; oitocentos e oitenta e nove
Feridos e aleijados. Em Guernica,
As platibandas antes imponentes
Testemunharam o furor do sangue;
Enquanto avança o vento assoviando,
Fendas no chão de crenças, sonhos
Súbito de pedra viram coágulos.
Mortos; oitocentos e oitenta e nove
Feridos e aleijados. Em Guernica,
As platibandas antes imponentes
Testemunharam o furor do sangue;
Enquanto avança o vento assoviando,
Fendas no chão de crenças, sonhos
Súbito de pedra viram coágulos.
Aquartelados nos oitões da sombra,
De alumínio e aço centuriões desatam
Os arsenais de mortas dinastias –
Metálico tropel, inferno a vômitos.
Meteoro cravado a ferro e fogo
Sobre chaga ainda incólume sem idade,
Guernica: Troia em terras de Numância;
Canudos no caminho de My-lai.
De alumínio e aço centuriões desatam
Os arsenais de mortas dinastias –
Metálico tropel, inferno a vômitos.
Meteoro cravado a ferro e fogo
Sobre chaga ainda incólume sem idade,
Guernica: Troia em terras de Numância;
Canudos no caminho de My-lai.
Como que pendentes das estatísticas
E dos noticiosos radiofônicos,
Milhares de pássaros em pânico,
Mulheres e homens por aqui passaram,
Sem olhos e mãos aos céus clamando.
Ao marulho de pés acorrentados,
Marcham por vales e nevados montes.
Marcham, e marcham para a eternidade.
E dos noticiosos radiofônicos,
Milhares de pássaros em pânico,
Mulheres e homens por aqui passaram,
Sem olhos e mãos aos céus clamando.
Ao marulho de pés acorrentados,
Marcham por vales e nevados montes.
Marcham, e marcham para a eternidade.
Guernica: touro ferido e mulher desesperada clamando aos céus |
Fontes:
Livros:
ARGAN. Giulio Carlo – Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FERRIER, Jean-Louis – L´Aventure de l´Art au XXe siècle. Paris:
Chêne-Hachette, 1988.
GRIFFIN, Jasper – Homero. Madri: Alianza Editorial, 1980.
LOTTMAN, Herbert L. – La Rive Gauche: Intelectuales y política en Paris (1935-50). Barcelona: Editorial Blume. Versão espanhola: José Martinez Guerricabetia, 1985.
MATTOS, Florisvaldo – Estação de Prosa & Diversos. Salvador: Memorial das Letras, 1997.
__________ A caligrafia do soluço e Poesia anterior (Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado, 1996).
THOMAS, Hugh – A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, dois volumes. Tradução: Hélio Pólvora e Moniz Sodré, 1964.
ARGAN. Giulio Carlo – Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FERRIER, Jean-Louis – L´Aventure de l´Art au XXe siècle. Paris:
Chêne-Hachette, 1988.
GRIFFIN, Jasper – Homero. Madri: Alianza Editorial, 1980.
LOTTMAN, Herbert L. – La Rive Gauche: Intelectuales y política en Paris (1935-50). Barcelona: Editorial Blume. Versão espanhola: José Martinez Guerricabetia, 1985.
MATTOS, Florisvaldo – Estação de Prosa & Diversos. Salvador: Memorial das Letras, 1997.
__________ A caligrafia do soluço e Poesia anterior (Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado, 1996).
THOMAS, Hugh – A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, dois volumes. Tradução: Hélio Pólvora e Moniz Sodré, 1964.
T. S.
Eliot – A Terra Inútil (The Waste
Land). Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1956); tradução de Paulo Mendes Campos.
Na
internet:
CRUZ,
José Raimundo Gomes da – Guernica: perdoar, mas nunca esquecer. S/D.
DIEHL, Jörg – Destruição de Guernica por Hitler – Praticando Blitzkrieg no País Basco. Berlim: Der Spiegel, 27/04/2007.
HIDALGO, J. C. – Quando um quadro não é só arte. S/D.
#
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; autor de livros de poesia e ensaio,
sendo os últimos Poesia Reunida e Inéditos
(São Paulo: Escrituras Editora, 2011) e Sonetos
elementais (Salvador: EPP Publicações, 2012. Ocupa a Cadeira nº 31 da
Academia de Letras da Bahia.
DIEHL, Jörg – Destruição de Guernica por Hitler – Praticando Blitzkrieg no País Basco. Berlim: Der Spiegel, 27/04/2007.
HIDALGO, J. C. – Quando um quadro não é só arte. S/D.
Pablo Picasso compôs Guernica em 36 módulos pintados, todos antes fotografados por Dora Mahar, na época sua mulher |
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