"Ferrovia / estrela agrimensora no deserto"... "Estação de Estrada de Ferro", pintura de Tulio Dias, 2012 |
I –
Caminhos profundos
Tão
nascida do homem como o homem
artefato
da vida como a vida
de
repente apagou-se fumo
Flora
sobrevinda
outorgou-se aura de espanto
sob frio
apenas ululante rastro
de
universo roubado à geometria
Pena que
teve origem que sofrido
foi-lhe o
passo de rio ossificado
comércio
e fábrica foi
Oceano útil
onde
massas de fel tiveram porto
polígino
conúbio do trabalho
com
lavouras nutrindo-se em neblina
durou
flecha de sol e foi perpétuo
vento
esculpindo solo atormentado
Como
oferta de assombro como silvo
indecifrado
agreste nascimento
algo
rompeu da selva taciturna
holocausto a cipoal empedernido
despontou
nos vales de secreto fausto
súbita
mãe gestando moitas
Deus
ex
machina em seu
tempo/movimento
senda de
lavra e sangue
Ferrovia
estrela
agrimensora no deserto
pesquisando
rochedos serras altas
teodolito
assentado sobre a carne
mirando
grotas pássaros em coma
arrosta-se
à navegação de precipícios
célere mordendo
manhãs desperta
chão de
lágrimas águas ofendidas
floresta
/brenha folhas
E ao
fundo nuvens
Garra
amputada à fauna de felinos
carapaça
equipada de luz rude
para
oferenda a deificado fruto
O verbo
no princípio era de ferro
de fogo
de fumaça mensageira
Lábaro
sobrevoando paralelas
ou
trilhos no úmido chão laborado
ou metal
fugidio cravado em som
ou claro
gesto na cor liberado
aeroplano
espectral fotografando
tumba ou
leito da State of Bahia
South
Western Railway Company
de estio
agulha para sempre cose
minério
pedras troncos
Labareda
língua
incessante touro arremetendo
ao
descampado o cosmo em disparada
Está
morta
Sumiram-lhe os ouvidos
Foi-se o
grito alvoroçador do verde
os olhos
de esperança se apagaram
O dorso
O peito
O
império mineral
"Rodas e trilhos no asilo da ferrugem / abalando dormentes" |
Hoje está
morta
E era maciço
ferro
Era
madeira forte
Tudo
muito real
Serpente
de fumo ou cão ígneo
rojado
contra um milhão de relógios
II– A
navegação dos horários
Conscientemente
instalo-me
sobre mudos
pontilhões
e repasso calendários
De vapor
o marulho transeunte
é das
locomotivas ofegantes
Rodas e
trilhos no asilo da ferrugem
abalando
dormentes na lembrança
ensaiam
no ar nostálgico de ruídos
brados
Ancoram
em terminais de sono
onde tudo
é memória luto sombra
Congelados
nos postes de telégrafo
espectros
de mensagens desgarradas
soterrando-se
em Morse de azinhavre
cifram em
sinais de brumoso código
a solidão
das estações em ruína
duelam
contra ventos redundantes
funcionários
dementes engenheiros
severos
cabos-de-turmas
Oligarcas
que à
mesa pela noite jogam cartas
bebem
uísque, soda e vinho do Porto
pantagruelicamente
comem lauto
repasto
convertido em florilégio
peões da
estrada a martelar o sexo
regressando
de abismos petrificam
desolado
tributo que persegue
Mutuns
Rio do Braço Água Preta
Santa
Cruz Serra Verde Catolé
Cascata
Pedras Pretas Poiri
Os
atletas do trem soprando búzios
voam no
pelo de cavalos doidos
Ante
brasa e aço a dança dos foguistas
desperta
cogumelos que deslizam
lentos
por corredores de resina
e naufragam
em crepitante pélago
Guarda-freios
e maquinistas bêbados
escapando
de sujos botequins
entoam
sobre plataformas ermas
velhas
canções de esperma itinerante
A fome
lhes comeu o olhar de espanto
comeu-lhes
rosto braços pensamento
e agora
por entre aldeias sanatórios
praças
com animais mumificados
acena-lhes
com moedas de crepúsculo
misturadas
a ânsias confissões gemidos
que
viajam na mala dos correios
pelos
desvios despachando brisas
que
sobressaltam como os telegramas
O
maquinista da 15 era Paizinho
só ele
percebe o que lhe dizem toros
estalando
como ossos na fornalha
Paiva ia
na 12 engolindo rampas
A 13
parecia o Cabeçorra
sacolejando-se
em Banco do Pedro
Rude
pandeiro é a terra quando a máquina
14
galgando Corte Obrigado
corta
nervos na pedra com seu berro
Papa
terra Come
trilho
Sobe
serra Salta
Rio
Bebe
fonte Torra
folha
Empurra
nuvem Arrasta
safra
Açoita
vento Acolhe
pranto
Fruto
acende Usura
afaga
Conta
mortos Canta a
vida
Entrista
casa Espanta
as aves
Rompe
manhã Acorda as
águas
Afia a
tarde O
sangue queima
Aclara a
noite O sonho
alegra
a máquina
A máquina quando geme
é a
centelha sentindo a cento e vinte
a
bandeira vermelha nas tangentes
era de
fato um sinal de perigo
que
ninguém viu descendo para Ilhéus
Árvore
rio nuvem recolheram
espetáculos
de roupas suarentas
e teceram
no espaço dos horários
biografias
murais de óleo e carvão
Dos trens
de carga aqueles vagões negros
levam
sonhos de infância em feixe e fardo
cabedais
de família minhas queixas
rolam por
ribanceiras vêm como águas
de cheia
Torturadas torturando
As
armações dos verdes armazéns
delegam
ao ferro forças irreais
para
guardar sob zinco a sacaria
Safras de
cacau
Vidas em coágulo
Mercadorias
fremem ao som distante
de um
telefone negro endoidecido
O velho
Barros chefe-da-estação
polindo
estrelas sobre o guarda-sol
distribui
caracóis aos passageiros
ou desvendando leis no roto clima
sujeita o
tempo a seu apito mágico
A máquina
parece assombração
quando
parte espantando as alimárias
Te-Aviso
Gasosa Telefone
Fortaleza
Cuscuz Besta Melada
curvos às
cargas longe grimpam montes
doando
seu trunfo ao infinito
sobre
verde que espelho a tarde sangra
III –
Cemitério de esperança
a)
Nem mesmo
estavas preparada
Estavas
como caça fatigada
quando de
ti veio se acercando
por entre
ramos cedros sapucaias
desavindo
rumor
Severidades
ensombrecendo
leito matutino
Era
preciso que o céu baixasse rápido
que tudo
se cobrisse de argamassa
e se
desse ao ferro cemitério
Tudo era
preciso no momento
Era
preciso que se abatesse a caça
e se
fizesse sombra onde era sol
se
apagasse o caminho de alegrias
por onde
seguiam os que voltavam
b)
olhos
mergulho agudos na folhagem
perfuro
frondes de onde saltam rostos
cavados
dentes olhos do barranco
aparições
enfermas se debruçam
sobre
desfiladeiro imaginário
que
persigo em desembestada fúria
vozerio
que se arma me acompanha
eleva-se
como corpo trespassado
veloz
dardo que passa e me detém
Gritam
choram tremem dentes olhos
rostos
qual pensa esteira de gemidos
lua
despedaçada em mar distante
relâmpagos
amargos que me fendem
o coração
a boca paralisa
c)
Eu sei
Tens até mágoa
Quando vens
Espetas
teu apito verdejante
no céu na
flora de abundante mel
madeira
mineral que te rodeia
– e o
louro e o fel e a mão oculta
e sobre a
roxa amêndoa de cacau
que
anuncia o verão
Vens e
despejas
tua usina
de aromas
teu calor
Eu sei
Tens
vontade até de recuar
para o
seio absoluto da manhã
e lá
polir a crosta de ferrugem
arrancar-se
depois do inanimado
chão da
morte
como ave ou como estrela
súbito em
voo raso sobre os campos
E a mim
vens com teu peso
teu
galope
animal de
pelagem coruscante
rolas
sobre meu peito
meu semblante
sobre
meus olhos hóspedes do vento
a de
ontem vida tua enfermidade
Vens como
se rompesse a noite em febre
açulando
os outeiros acordando
pássaros
empalhados nas ramagens
malgrado
tudo
Sonho
capturado
vens
banhada de luz e tempestade
tua massa
colora os ambientes
embriaga
o instante avança e nos eriça
cadáver
hoje que se inventou bandeira
ao roçar
de teu sopro
Teu convívio
IV –
Expectante reflexão
O trem
verde e vermelho como a vida
mas
pode-se agregar ocre e amarelo
se é de
homens e coisas que se fala
O trem
ânsias de infância/arrimo de velhice
O trem
rebanho de acenos/rama flamejante
O trem
ágil pesadelo/viação da aurora
O trem
transido soluço/bandeira de sorrisos
O trem
flauta de vidro/vertebrado canto
O trem
centopeia de nuvem/potro de esmeralda
O trem
O trem de Água Preta
Dardo de
som lançado ao infinitivo
rajada de
luz atravessando o paraíso
me
aduba o coração o sonho acorda
o trem de
Ilhéus do fundo de seu sono.
Terminal e estação da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista, por volta dos anos 1940, extinto com a ferrovia nos anos 1960 |
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