terça-feira, 19 de agosto de 2014

FERROVIAURA

"Ferrovia / estrela agrimensora no deserto"... "Estação de Estrada de Ferro", pintura de Tulio Dias, 2012



I – Caminhos profundos

Tão nascida do homem como o homem
artefato da vida como a vida
de repente apagou-se fumo
                                               Flora

sobrevinda outorgou-se aura de espanto
sob frio apenas ululante rastro
de universo roubado à geometria

Pena que teve origem que sofrido
foi-lhe o passo de rio ossificado
comércio e fábrica foi
                                      Oceano útil

onde massas de fel tiveram porto
polígino conúbio do trabalho
com lavouras nutrindo-se em neblina
durou flecha de sol e foi perpétuo
vento esculpindo solo atormentado

Como oferta de assombro como silvo
indecifrado agreste nascimento
algo rompeu da selva taciturna
holocausto  a cipoal empedernido
despontou nos vales de secreto fausto
súbita mãe gestando moitas
                                               Deus

ex machina em seu tempo/movimento
senda de lavra e sangue

                                               Ferrovia

estrela agrimensora no deserto
pesquisando rochedos serras altas
teodolito assentado sobre a carne
mirando grotas pássaros em coma
arrosta-se à navegação de precipícios
célere mordendo manhãs desperta
chão de lágrimas águas ofendidas
floresta /brenha folhas
                                  
                                               E ao fundo nuvens


Garra amputada à fauna de felinos
carapaça equipada de luz rude
para oferenda a deificado fruto

O verbo no princípio era de ferro
de fogo
                de fumaça mensageira
Lábaro sobrevoando paralelas
ou trilhos no úmido chão laborado
ou metal fugidio cravado em som
ou claro gesto na cor liberado
aeroplano espectral fotografando
tumba ou leito da State of Bahia
South Western Railway Company
de estio agulha para sempre cose
minério pedras troncos
                                               Labareda

língua incessante touro arremetendo
ao descampado o cosmo em disparada

Está morta
                        Sumiram-lhe os ouvidos
Foi-se o grito alvoroçador do verde
os olhos de esperança se apagaram
O dorso
                        O peito

                                              O império mineral

"Rodas e trilhos no asilo da ferrugem / abalando dormentes"
Hoje está morta
                                   E era maciço ferro
Era madeira forte
Tudo muito real
Serpente de fumo ou cão ígneo
rojado contra um milhão de relógios

  
II– A navegação dos horários

Conscientemente
                                 instalo-me sobre mudos
pontilhões e repasso calendários
De vapor o marulho transeunte
é das locomotivas ofegantes
Rodas e trilhos no asilo da ferrugem
abalando dormentes na lembrança
ensaiam no ar nostálgico de ruídos
brados
Ancoram em terminais de sono
onde tudo é memória luto sombra

Congelados nos postes de telégrafo
espectros de mensagens desgarradas
soterrando-se em Morse de azinhavre
cifram em sinais de brumoso código
a solidão das estações em ruína
duelam contra ventos redundantes
funcionários dementes engenheiros
severos cabos-de-turmas
                                               Oligarcas
 que à mesa pela noite jogam cartas
bebem uísque, soda e vinho do Porto
pantagruelicamente comem lauto
repasto convertido em florilégio
peões da estrada a martelar o sexo
regressando de abismos petrificam
desolado tributo que persegue
Mutuns Rio do Braço Água Preta
Santa Cruz Serra Verde Catolé
Cascata Pedras Pretas Poiri

Os atletas do trem soprando búzios
voam no pelo de cavalos doidos

Ante brasa e aço a dança dos foguistas
desperta cogumelos que deslizam
lentos por corredores de resina
e naufragam em crepitante pélago

Guarda-freios e maquinistas bêbados
escapando de sujos botequins
entoam sobre plataformas ermas
velhas canções de esperma itinerante

A fome lhes comeu o olhar de espanto
comeu-lhes rosto braços pensamento
e agora por entre aldeias sanatórios
praças com animais mumificados
acena-lhes com moedas de crepúsculo
misturadas a ânsias confissões gemidos
que viajam na mala dos correios
pelos desvios despachando brisas
que sobressaltam como os telegramas

O maquinista da 15 era Paizinho
só ele percebe o que lhe dizem toros
estalando como ossos na fornalha

Paiva ia na 12 engolindo rampas

A 13 parecia o Cabeçorra
sacolejando-se em Banco do Pedro

Rude pandeiro é a terra quando a máquina
14 galgando Corte Obrigado
corta nervos na  pedra com seu  berro

Papa terra                                           Come trilho
Sobe serra                                          Salta Rio
Bebe fonte                                         Torra folha
Empurra nuvem                                 Arrasta safra
Açoita vento                          Acolhe pranto
Fruto acende                          Usura afaga
Conta mortos                         Canta a vida
Entrista casa                                       Espanta as aves

Rompe manhã                        Acorda as águas
Afia a tarde                                        O sangue queima
Aclara a noite                         O sonho alegra

E ferro fere o ar ferido                      
"A máquina quando geme / é a centelha sentindo..."
 a máquina

                        A máquina quando geme
é a centelha sentindo a cento e vinte
a bandeira vermelha nas tangentes
era de fato um sinal de perigo
que ninguém viu descendo para Ilhéus

Árvore rio nuvem recolheram
espetáculos de roupas suarentas
e teceram no espaço dos horários
biografias murais de óleo e carvão

Dos trens de carga aqueles vagões negros
levam sonhos de infância em feixe e fardo
cabedais de família minhas queixas
rolam por ribanceiras vêm como águas
de cheia
                        Torturadas torturando

As armações dos verdes armazéns
delegam ao ferro forças irreais
para guardar sob zinco a sacaria
Safras de cacau
           
                             Vidas em coágulo

Mercadorias fremem ao som distante
de um telefone negro endoidecido
O velho Barros chefe-da-estação
polindo estrelas sobre o guarda-sol
distribui caracóis aos passageiros
ou  desvendando leis no roto clima
sujeita o tempo a seu apito mágico
A máquina parece assombração
quando parte espantando as alimárias
Te-Aviso Gasosa Telefone
Fortaleza Cuscuz Besta Melada
curvos às cargas longe grimpam montes
doando seu trunfo ao infinito
sobre verde que espelho a tarde sangra

III – Cemitério de esperança

a)
Nem mesmo estavas preparada
Estavas como caça fatigada
quando de ti veio se acercando
por entre ramos cedros sapucaias
desavindo rumor
                                Severidades
ensombrecendo leito matutino

Era preciso que o céu baixasse rápido
que tudo se cobrisse de argamassa
e se desse ao ferro cemitério
Tudo era preciso no momento
Era preciso que se abatesse a caça
e se fizesse sombra onde era sol
se apagasse o caminho de alegrias
por onde seguiam os que voltavam

b)
olhos mergulho agudos na folhagem
perfuro frondes de onde saltam rostos
cavados dentes olhos do barranco
aparições enfermas se debruçam
sobre desfiladeiro imaginário
que persigo em desembestada fúria
vozerio que se arma me acompanha
eleva-se como corpo trespassado
veloz dardo que passa e me detém

Gritam choram tremem dentes olhos
rostos qual pensa esteira de gemidos
lua despedaçada em mar distante
relâmpagos amargos que me fendem
o coração
                   a boca paralisa


c)
Eu sei
              Tens até mágoa
                                      Quando vens
Espetas teu apito verdejante
no céu na flora de abundante mel
madeira mineral que te rodeia
– e o louro e o fel e a mão oculta
e sobre a roxa amêndoa de cacau
que anuncia o verão
                                   Vens e despejas
tua usina de aromas
                                   teu calor
Eu sei
Tens vontade até de recuar
para o seio absoluto da manhã
e lá polir a crosta de ferrugem
arrancar-se depois do inanimado
chão da morte
                          como ave ou como estrela
súbito em voo raso sobre os campos

E a mim vens com teu peso
                                               teu galope
animal de pelagem coruscante
rolas sobre meu peito
                                      meu semblante
sobre meus olhos hóspedes do vento
a de ontem vida tua enfermidade

Vens como se rompesse a noite em febre
açulando os outeiros acordando
pássaros empalhados nas ramagens
malgrado tudo
                                   Sonho capturado
vens banhada de luz e tempestade
tua massa colora os ambientes
embriaga o instante avança e nos eriça
cadáver hoje que se inventou bandeira
ao roçar de teu sopro
                                   Teu convívio


IV – Expectante reflexão

O trem
               verde e vermelho como a vida
mas pode-se agregar ocre e amarelo
se é de homens e coisas que se fala
O trem
  ânsias de infância/arrimo de velhice
O trem
   rebanho de acenos/rama flamejante
O trem
   ágil pesadelo/viação da aurora
O trem
   transido soluço/bandeira de sorrisos
O trem
   flauta de vidro/vertebrado canto
O trem
   centopeia de nuvem/potro de esmeralda
O trem
               O trem de Água Preta

Dardo de som lançado ao infinitivo
rajada de luz atravessando o paraíso
me aduba  o coração o sonho acorda
o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.
Terminal e estação da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista, por volta dos anos 1940, extinto com a ferrovia nos anos 1960




Nenhum comentário:

Postar um comentário