sábado, 3 de maio de 2025

REVERDOR: CINCO MONÓLOGOS DE GARCIA D´ÁVILA

    Garcia D´Ávila avançou pelo oeste baiano, fundando os sertões 

 Magnífica postagem, alusiva à história dos vaqueiros do Nordeste, na qual a Bahia desponta como marco decisivo e inaugural. Em toda a sua grandeza, porque não saudar o nome do português Garcia D´Ávila, que, ainda jovem, integrava a esquadra de Tomé de Souza, em 1549, que aportava para fundar a Cidade da Bahia, futura capital do Brasil-Colônia, mas ele, com um destino ainda mais amplo: o de assentar conquistas, por todo oeste da Província, avançando por terras rudes e áridas, até o sul do hoje Piauí, abrindo vastos campos, cobrindo-os de gado e animais de carga e montaria e de gentes para explorá-lo, legando-nos o que hoje chamamos de Grande Sertão, com seu castelo de primeiro nobre da terra colonizada, próximo do que hoje se denomina turisticamente Praia do Forte, local que tinha o nome de Tatuapara ("Tatuapara rechã, de olhos comidos de salsugem", FM). Pois bem. Não podia deixar passar este momento sem transcrever um poema constante do primeiro livro que publiquei, (REVERDOR, 1965, há justos 60 anos), como parte da separatriz de abertura, intitulado "Cinco Monólogos de Garcia D´Ávila".


REVERDOR

        (1955-1964)

 

 A DOMAÇÃO DAS PEDRAS

 (Onde se alude a varões portugueses que aqui vieram ter poderes e honrarias – entre eles Garcia D´Ávila, conquistador primeiro, suas lutas pela dominação da terra, feudo tropical onde reinou e reina).

 I

Os homens de Reverdor

os cavaleiros verdes

por aqui passaram ágeis.

Negros cavalos

moviam cúpulas ágeis.

 

Céu de esporas cintila. Chão

rápido/coturno/elmo suspenso.

Pulverizam aldeias e costumes

                                  metais furiosos.

 

Verdes passaram armaduras roídas

(cavaleiros seguiam com olhos roídos)

sobre terra/sobre águas instantâneas/

súbito ecoaram buzinas de espuma.

O sangue soava/ as pedras soavam/

um anjo inclinou-se rodeado de lâminas.

 

Entre colunas de primitivo sono

Garcia D´Ávila alongou garras lunares:

lavrava um território de salmoura

onde corriam escamosos ginetes

dentadura feudal sofregamente

tritura caracóis aurinevados.

 

De gelo sob céu fixo vaso que veste

arquitetura cega das semanas

os dias passam roendo cavaleiros.

Rútilo (consumido em chamas e distância)

rei olha de cima campo/mar/espelho            

onde gado mugeme inexistente.                         

 

II

Há poentes: aves renascentes

armaduras cintilam aço e escamas.

Calasans Neto, gravura (1965)

 

Outono muge de elmos reluzente.

Abril (diurno algoz) que somos nós?

Sob desfraldados relhos dorsos tesos.

Metais fuzilam. Descem das narinas

herança e gelo de armas latifúndio;

raízes da memória, rastros velhos,

presença de chão rútilo/meus sóis

ultramarinos. Aéreos potros puxam

meus avós: galope surdo anterior.

                                               REINO

 

III

Cavaleiros de retorno sofrem

súbita lança dos meses contra

limo das equipagens. São

cavaleiros em fogo rodeados

de fúria, ancoram sombra e cúpulas. Não

dormem, nem olho nem aparições.

Nem elmos cruzados. Ó nuvem

de remota poeira, já meus deuses

singram de rio leito calcário.

 

IV

Há ferrugem. Goteja dos escudos

hora incêndio das três. Garcia D´Ávila

madruga em caracóis, amadurece

BOÍNVIO transmudado agricultor

refúgio de evidências perseguidas.

Um pouco vem do mal. Do outro lado

perde-se acontecido sem mudanças,

gira escasso pensar embrutecido:

“Tantas pedras arrasto, tanto sono”.

 

Feudo, casa plural do Ávila.

                                              FEUDO.

 

CINCO MONÓLOGOS

DE GARCIA D´ÁVILA


 

   Castelo de Garcia d´Ávila (Tatuapara), em Praia do Forte, ruínas


PRIMEIRO MONÓLOGO

(Geografia alvaçã)

 

 Estações desfraldam panorâmagos.

Ainda grávidos de espanto, meus

furacões regressam: sons gestantes

de barro caminhado, de relógios,

avanço do pé chão cordilheira.

 

Extensão contida. Paz-ingresso

de aurora corporal reproduzindo

campos de mar tão sempre fauces

                                          Lúcifer

alimento conflito chão verdura.

Subvenções de tempo retomado

horizonte escurecem bois morados.

 

Da montanha me avisto: antessombra

navegadora de chão encarcerado

dragão cerne de espadas ouro nocivo,

três estrelas navais de malefícios

ao ombro. Raízes endurecidas. Meu

caule trânsfuga de andrajos, céu

sítio de homens com arneses

                                   (metais e couros)

velozes. Buzinas triunfantes obrigam

verdes campos sonhos gado em aquário.

 

Acaso vou. Artefatos

de conquista sangram resina.

Sangro. Dois homens cantam

amarrados sobre lombos.

Cascos somam às horas

                             a fábula veloz.

Mastigo tochas de avanço.

São úteis. Rumino espelhos.

Acaso venço luz nordesteã?

Mugementes reses ferem

deserto: maduros cornos

durmo sobre suas brasas.

 

Âncoras nos cascos rútilos,

âncoras nos peitos, âncoras.

Pedra feroz, aguçados

saltos de relincho. Facão

na madeira, carne surpresa

esmagada. Facão viola

corpo mito, olho tupã

escraviza: pastagens só

onde bois meus ossos comem

meu sangue bebem, subindo.

 

Ó colonial verdade, torturado

cerne de gelo; ó duelo fóssil (angra

interior), evidência camuflada!

Recolho ventos neutros e os domados

cascos me seguem na planície. Sombras

recalcam mistério útil – AGROTEMPO.

 

Rubra massa de origens amanhece

do incandescente rastro, do galope.

Flechas riscando tronco imune/fogo

rasteiro de horizontes desabados.

Ainda rastros em brasa, rubra espora

acende minerais na marcha escura.

 

SEGUNDO MONÓLOGO

(Ouro dos rastros)

 

Rei, reino meu teço de chamas, reino

ausente de escrituras. Sesmarias

reúno, trituro búzios cor de níquel,

virgens de passo e voz, estranho aquário.

De boa mão consigo-os, laborando

coragem de improvadas lideranças.

 

Meu pouso é aqui, aqui minha vigilância.

Mãos de bugre decepem-me o pescoço,

se cá recolho pedra sustentável

de domínio, de rastro vencedor.

Eu só; lá Tomés e outros bons se foram,

cansados girassóis ultramarinos.

 

Naves no azul. De passos degredados

cheguem, ingressem luas resistentes.

Porto seja de livres ancoragens,

lâmina mineral onde bocejem

pedaços de existência portuguesa:

olho armado no azul ou foz do sono.       

Garcia d´Ávila, o conquistador

 

Pobre de mim, infante manuelino,

astro cego de veias navegadas.

Aves sejam naves e naves nomes

inscritos sobre espelhos acordados,

entre sopros de ventos mercantis

esperança germinem mastros bêbedos.

 

Rosto terei na terra preso à pedra,

se da pedra reverdeço expectante

e cavaleiros formam retaguarda

de sangue já bebido pelos dias.

Acende-me ferrugem dos cabelos

estratégia de troncos mal dormidos.

Esquina hereditária, nascedouro

de sol remanescente, águas vomitam

ossos. Descem varões. Pontuais cornetas

derivam pela carne emudecida,

abre-se ignoto pasto, voz e pulsos

ardem de um outro clima prisioneiros.

 

Inauguremos rútilo estatuto

dos meses esculpindo abril a faca.

Outono debruçado nos rochedos

rumina semeaduras fracassadas.

Conservo corações dentro da boca,

cavalos mastigam pêndulos, germinam.

 

Planetas lerdos pendem amestrados,

gotejam ferraduras no silêncio.

O mistério persegue as aves novas,

atinge céu deserto de armaduras.

Cavaleiros recuam, adormecem

sobre lanças partidas sobre escudos.

 

Pelo estuário ouço fôlego das horas

inchar-se embaraçado nos cipós.

Tempo de cercas. Estação de sombras

a colher. Tempo grávido de selvas

dominadas, de campo insone, tempo

de rosetas ferozes, de massacres. 

 

TERCEIRO MONÓLOGO

(As muralhas, o tempo)

 

Rios mudaram curso. Pesadelos

regressam enfunando espessas velas.

Recebo meus avós, meus netos saltam

metidos nos gibões riscos herdados.

Espada enfurecida mitos sulca,

lima comunidades, mapas rói.

 

Eu, Ávila, de el-rei servo ancorado,

perseguidor do tempo e perseguido,

desperto raízes onde os ódios fluem,

de âmagos faço leis onde circulam

couros de tão possuídos sempre lumes,

sempre flagelação de tão roídos.

 

Couro-feudo, binômio entardecido,

sombrazul no planalto simultâneo,

dissolve expedições, escravos come,

apodrece vestuários. Enferrujam-se

arneses, muda-se guerra dos gumes,

andejam solidões comendo os ontens.

 

Refúgio patriarcal, chão fortaleza,

ou muda antevisão ou segurança,

a naus prenhes de viagens e comércio

seja casa de el-rei (pouso indiviso)

protetora de coágulos transeuntes.

Resiste além do sono, além da febre.

 

Levantem-se janelas contra os medos

contra âncoras de fomes invasoras.

Perigos traficantes alvorecem,

investem contra adormecidos limos:

há olhos presos nas lajes superpostas,

perfuram torres florações de ingresso.

 

Muro vigente. Lâmpada dos riscos

revisora de mapas forasteiros

congela expectativas e naufrágios,

cimento mouro e vigas ancestrais

equipagens de espanto guardam, frias,

pelos porões de odor peninsular.

 

Caravelas virão abastecidas

de fúria, de ambições, de sedes negras.

Capitães e marujos epilépticos

aqui recrutam mortes para embarque.

Pelos montes farejam negligência,

pelos oceanos domam calendários.

 

Emboscada no tempo. Tatuapara

rechã de olhos comidos de salsugem.

Agora, concubinas intangíveis

transitam pelos pátios. Recomeça

a linguagem dos lábios movediça,

levanta-se da poeira alfandegária.

 

Agora, dorsos crescem. Só hoje fulge

economia de ouro masturbado.

No silêncio premiado luzem sexos

rodeados de soluço, consumidos

por dentes de brancuras aguçadas:

ventres de índias e negras navegados.

    Casa da Torre, interior

 

QUARTO MONÓLOGO

(O fel das roupagens)


Sobre areia largados utensílios,

à vigilância (naus enraivecidas)

dos cães. Os homens já são água e vento.

Retomemos o rastro dos cavalos,

o tempo regressivo, o sortilégio.

Sopram búzios os corpos esfolados.

 

Um grito sai das veias. Mutilados

pescoços emigrantes, olhos gastos

revisam espetáculo dos rios:

a guerra está no sangue, sem verdades

submissas, sem marfins – os absolutos.

 

Ei, parem. É comigo que eles falam,

os mortos, os prantos dominados.

Ardem de escravidão os nervos mudos.

Para os campos de el-rei, para os poentes,

os trabalhos acendem lábios duros,

os sonhos se aluíram na memória.

 

É comigo que duelam dedos murchos,

e sou eu quem trafega em suas noites,

piso chão de resgate e pesadelos.

Todos sabem quem sou. Os que morreram

guardam o dever retido na montanha,

os ódios recomeçam e há retorno.

 

Mortos, crivam no vidro a fúria toda

do principal momento não vivido.

Humanos gritos (sempre humanos) deixam

nas paredes a intacta geografia

do tempo aprisionado – resistência

do apodrecido chão que os mortos pisam.

 

Meu tempo é medieval: um barão doente

vomita girassóis. Os dentes velhos

removem a canção dos muros frios,

por onde deslizasse mão ossuda,

que, dos olhos nascida, florescera

em nave corrompida ou vãos tijolos.

 

Os bens adormeceram indivisos,

tão feitos do marfim dos patriarcas.

A palavra escondeu as previsões

súbito amanhecida de mudanças.

O barão é um barão, sempre um barão,

doira-se entre soluços e águas mortas.

 

Olhos pendem acesos da muralha,

riscando negro limo da memória,

e medem a extensão – antessonhado

mundo. Reina o mesmo tempo inviolado.

Onde o espelho, o relho? Quero um espelho

onde veja o possuído tempo unânime,

o tempo meu, cortando extintos rostos,

apagados gemidos, como lâminas.

Quem vem lá, distante, avançando?

Quem ameaça meu solo, minha fauna?

Quem já próximo está violando o templo?

 

O espaço jaz imerecido.

Flui a verdade entre caminhos mortos.

Olho em redor: sumiram do terraço

guardas e lavradores – todos, hoje,

avançam na planície. As armas foram-se.

Devolvido o silêncio, as torres dormem.


    Castelo de Garcia d´Ávila, visto do fundo em ruínas
 
 

QUINTO MONÓLOGO

(Chão de clarins)

 

Gado vegetal arde seu minério.

Salto fruto, antes agarro, antes

do salto. Desertos maduros fumegam.

Se te colho, pesa entre meus dedos

agitado precipício. Sempre madeira,

nuvem colada à terra, cavalgo

raízes, massas de tempo, manhãs

circulares corto, vou. Asa dura

anoiteço, horizonte perde seu voo.

 

Sangram melancolia doiradas esporas.

Paisagem depois do frio: jarros

vencidos, flechas atravessando

olhos delinquentes, coleantes

vidros, rostos navalhados – sempre

madeira. Chifres recolhidos,

gado negro corcovas corolas.

 

Espadas subterrâneas,

bocas de escamas além.

Espumas e astros-rastros

móveis (ânforas recolho)

chão de clarins. Caracóis

anteriores, revólveres.

                         Asa dura armadura.

 

Administradores do sono chegam,

preservam cabelos, punhais

contemporâneos, sítios. Marcam

exercício. Rastro noturno

de federal solidão ainda resta.

Bois aéreos e mãos: ao lado

dragões furiosos armam previdência

de rostos madrugadores. Bocas

movediças: depois de lenhos,

introdução de sons pontiagudos

pelas têmporas, metais amargos.

  

Horizontes velhos, ouço-lhes os cascos.

Autorizando noites, acumulam

apodrecidas flores nos vitrais.

 

Perdem-se. Envelheço folhas, provo

ânimo de rumos circunstanciais,

rubras orelhas pendem. Gastos

                                      lábios resistem, gastos.

 

Solidão – oásis rendido, selva.

Rio-som ergue oculta muralha,

agrifluentes dorsos chão vermelho.

 

Minha sombra, meu minério. Lua

escura de sabor cansaço,

levanto olhos reclusos: debaixo

da noite cruzam alvenarias

gotejantes, privilégios de ruína,

arma-se reino paraíso-hora.

Os dias perdem seus volumes, fogem

minutos – massa pelos varais

do  sono. Empresa conclusa: caules

compactos de sono, diviso murais

do pranto retornante – reino insondado.

 

ASAS LÚCIFER GARCIA

D´ÁVILA RUMINA

SONHO ENCOURADO MONTANHA.

 


    Ruínas da Casa da Torre

Um sádico em terras baianas: a história da crueldade na Casa da Torre

Garcia d’Ávila, maior latifundiário da Bahia e do Brasil, era um torturador sádico e compulsivo


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Tortura de escravos e heresias na Casa da Torre 

Luiz Mott

https://books.scielo.org/id/yn/pdf/mott-9788523208905-06.pdf 

Excertos:

O jugo e a correia fazem dobrar o pescoço: para o mal escravo, tortura e tronco! Eclesiastes, 33:27. O objetivo deste artigo é divulgar um medonho documento conservado até hoje escondido debaixo de sete chaves nos arquivos secretos da Inquisição de Lisboa: trata-se da denúncia das crueldades extremadas e inauditas praticadas contra seus escravos pelo homem mais rico da Bahia, e de todo o Brasil na segunda metade do século XVIII, o Mestre de Campo Garcia d’Ávila Pereira de Aragão. Os requintes de crueldade ali descritos nunca chegariam ao nosso conhecimento, não fosse o zelo humanitário de uma testemunha corajosa que os denunciou ao Tribunal do Santo Ofício. Sem tal testemunho, dificilmente imaginaríamos que o sadismo de um senhor de escravos chegasse a tanto. Não surpreende, pois, que certos esmeros de perversidade se tenham constituído segredo sigilosamente guardado debaixo de sete chaves, tais aqueles preservados e cobiçados receituários de doces e bolos, bem assim de bicos e de rendas, verdadeiros patrimônios de família, passando de geração a geração no escorrer dos anos, na biqueira do tempo etc...

diz José Alípio Goulart, autor do pioneiro livro sobre castigos de escravos no Brasil, Da palmatória ao patíbulo. E completa inteligentemente o mesmo autor: “Barbaridades sepultadas para sempre no monturo azedo das bagaceiras, perdidas na poeira dos sumiços eternos, de vez que emudecidas as vozes capazes de as denunciarem. Malgrado, porém, toda e tão apurada cautela, muitas das crueldades praticadas derrubaram as muralhas do sigilo, transpuseram as barreiras do silêncio, permitindo à posteridade horrorizada conhecer como cevavam a fúria selvagem e os bestiais instintos de certos senhores e feitores de escravos.2 Tais comentários parecem ter sido encomendados para descrever este documento, escrito provavelmente pela mesma época que Beccaria publicava Dei Delitti (1764), obra fundamental no questionamento da tortura e logo colocada pela Inquisição no Index dos livros proibidos. A melhor fonte para conhecermos a Casa da Torre é o livro de Pedro Calmon, História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros3, que informa que desde a chegada do primeiro Garcia d’Ávila na Bahia, criado do governador Tomé de Sousa, esta “espantosa família” nunca parou de crescer em riqueza e poder. Tendo como principal pecúlio duas cabeças de vaca, em 1551, os descendentes de Garcia d’Ávila tornar-se-ão os principais latifundiários e pecuaristas do Brasil Colonial, conquistadores de Sergipe e do sertão do São Francisco, proprietários da metade de todo o território do Piauí. Um de seus descendentes, o segundo a ostentar o nome de Francisco Dias d’Ávila, em 1676, mandou degolar, de uma só vez, 400 tapuias, aprisionando-lhes as mulheres e crianças.  

Além das fazendas de gado, a Casa da Torre possuía poderosos engenhos no Recôncavo. Garcia d’Ávila Pereira, o terceiro a ostentar este prestigioso e famigerado nome, bisavô de nosso malvado denunciado, preferia os canaviais às pastagens sertanejas. Dizem que ouvia missa todos os dias na capela de seu engenho, conseguindo, em 1732, a invejada patente de Familiar do Santo Ofício, tornando-se oficialmente espião e informante do Tribunal Inquisitorial. Nessa época, o principal e mais severo Comissário do Santo Ofício na Bahia era o cônego João Calmon, filho de outro importante senhor de engenho no mesmo Recôncavo da Bahia de Todos os Santos. Garcia d’Ávila Pereira de Aragão nasceu a 4 de outubro de 1735, em Santo Tomás do Iguape, na fazenda do avô. Casou-se duas vezes, sem deixar descendentes. Sua primeira mulher, D. Teresa Cavalcanti de Albuquerque, era filha do alcaide-mor da Bahia; sua segunda esposa, D. Josefa Maria da Conceição e Lima, descendia dos Rocha Pitta e dos Costa Lima. Um seu conterrâneo, o cônego Macedo Lema, diz que sua segunda mulher nunca se arriscou a uma vida conjugal com o 4º Garcia d’Ávila na Casa da Torre, preferindo ficar morando, mesmo depois de casada, na residência paterna, na cidade da Bahia. “Cavaleiro selvagem na forma exterior”, foi condecorado com a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo (1752) e Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre no ano seguinte. “Sem nenhuma dúvida, foi o mais rico dos filhos do Brasil, inteligente e arrebatado: o último varão da estirpe dos Garcia d’Ávila”, diz seu biógrafo Pedro Calmon. Faleceu em 1805, aos 70 anos. É exatamente esse ilustre fazendeiro baiano, riquíssimo, nobre pelos quatro costados e pelas conquistas e títulos honoríficos de seus antepassados, o autor de uma série de torturas e castigos contra seus escravos, que o torna merecedor do deplorável título de o maior carrasco de que até então se tem notícia na história do Brasil. Triste sina: o mais rico e o mais cruel de todos os brasileiros escravistas.

O documento, que constitui o cerne deste trabalho, encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, entre os Processos da Inquisição de Lisboa, catalogado sob o nº 16.687: são 12 folhas manuscritas, assinadas por José Ferreira Vivas. Infelizmente, não temos nenhuma referência sobre quem era este denunciador, nem o ano em que o documento foi escrito: como o denunciado, o 4º Garcia d’Ávila, só morreu em 5 de outubro de 1795, situamos esse manuscrito no terceiro quartel do século XVIII. Tudo leva a crer que o denunciante tinha certa proximidade do Mestre de Campo, pois presenciara ele próprio algumas de suas palavras e “heresias”. Conforme o leitor poderá constatar, no início do documento, o autor alega o dever de “descarregar sua consciência”, denunciando o rico fazendeiro como autor, por fala e feitos, de 47 “heresias”: 26 itens referem-se a torturas e castigos crudelíssimos aplicados pelo Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão contra seus escravos e 21 itens incriminam o proprietário da Casa da Torre em sacrilégios, blasfêmias e irreverência contra a religião católica – a única permitida na época em toda cristandade. Uma pequena introdução sobre o significado e extensão dos castigos e torturas na sociedade escravista ajudará o leitor a melhor avaliar a importância e situar historicamente o documento em questão. Apesar da criminosa e cínica conivência da Igreja Católica com a escravidão colonial, verdade seja dita, mais de uma vez alguns membros do clero, ou mesmo certas instituições religiosas, chamavam a atenção dos senhores de escravos no sentido de que não exagerassem nos castigos contra seus cativos.4 Na obra Economia cristã dos senhores no governo de seus escravos (1700), o jesuíta Jorge Benci dedica cinco capítulos a esse tema, defendendo que os senhores deviam castigar os servos merecedores de correção, porém relevando-lhes algumas faltas mais leves, evitando os impropérios injuriosos e as sevícias além dos açoites e prisões moderadas.5 Por seu turno, outro jesuíta, o Padre Antonil (1711), sintetiza assim as necessidades da escravaria:

No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber: PAU, PÃO e PANO. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada ou levantada, e com instrumentos muitas vezes de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque o capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado [...] Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis e marcá-los na cara e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, não seria para se sofrer entre bárbaros, muito menos entre cristãos católicos.6

Apesar de o delatante José Ferreira Vivas dizer que denunciava por ordenarem assim os Editais do Santo Ofício, lidos em todas as igrejas e capelas do Brasil no primeiro domingo da Quaresma, como hoje fazem com o início da Campanha da Fraternidade, nada encontramos na dezena de “desvios” descritos pela Inquisição nos referidos Editais que obrigassem os cristãos a denunciar aos Comissários do Santo Ofício os maus-tratos dos senhores a seus escravos. Os inquisidores estavam interessados, sobretudo, em perseguir os hereges, cristãos-novos, feiticeiros, sodomitas, bígamos. A inclusão de torturas e castigos excessivos contra os negros no rol das heresias constitui, a meu ver, uma interpretação sui generis do próprio conceito deste “crime”, pois, stricto sensu, heresia formal é definida como um erro voluntário e pertinaz em questões de fé ou de dogma. Somente no lato sensu é que heresia pode ser entendida como “ação ou delito contrário à religião”. Destarte, se a essência do cristianismo é a caridade, o ato de ultrapassar os limites sugeridos pelos teólogos no castigo da escravaria poderia então, ser caracterizada, no sentido amplo, como contrária à religião, portanto, heresia. Trata-se, obviamente, de uma ampliação generosa e justa do conceito de heresia, mas à qual os inquisidores não deram a menor atenção nem seu beneplácito, posto que tanto esta denúncia das heresias de Garcia d’Ávila Pereira Aragão contra seus escravos, como outra denúncia contra um outro cruel torturador carioca, Antônio José Vieira7, foram simplesmente arquivadas pelo Santo Ofício. Isto é, não redundaram no julgamento e castigo dos culpados, apesar de ambas denúncias serem razoavelmente fidedignas; posto que a do Rio de Janeiro tinha 18 testemunhas, sendo 56 os que testemunharam contra o torturador da Casa da Torre. Também, pudera, se o bisavô do denunciado fora Familiar do Santo Ofício, e o próprio 4º Garcia d’Ávila tinha imunidades decorrentes de seu hábito da Ordem de Cristo, não seriam os protestos de um desconhecido Sr. Vivas que iriam abalar o respeito devido ao homem mais rico da América portuguesa. A possibilidade de se denunciar maus-tratos excessivos dos senhores contra seus escravos tinha sido certa feita aventada pelo próprio rei D. Pedro II de Portugal em 1688, quando, numa célebre carta enviada ao governador de Pernambuco, dizia: Por ser informado que muitos poderosos deste Estado que têm escravos lhes dão muito mau trato e os castigam com crueldades, o que não é lícito aos senhores dos tais escravos, porque só lhes pode dar aquele moderado castigo que é permitido pelas Leis e, desejando evitar que os pobres escravos, sobre lhes faltar a liberdade, padeçam a tirania e vingança de seus senhores, sou servido que de hoje em diante, em todas as devassas gerais que se tirarem nessa Capitania, se pergunte pelos Senhores que com crueldade castigam os seus escravos, e aqueles que o fizerem, sejam obrigados a vendê-los a pessoas que lhes darem bom trato.8

As denúncias deviam ser aceitas mesmo se feitas pelos próprios escravos castigados. Após três dias deste alvará, nova carta régia reforçava o determinado, mandando que os arcebispos avisassem aos governadores os excessos cometidos pelos escravocratas. Decorrido menos de um ano, a palavra do Rei voltava atrás: “Considerando os inconvenientes da execução das ordens anteriores, hei por bem que não tenham efeito, para que se evitem as perturbações que entre os escravos e seus Senhores já começam a haver com a notícia que tiveram das ordens que se vos havia passado”.9

A imoderação e a tirania extremadas dos senhores continuaram portanto impunes. Não entrarei aqui na discussão sobre a maior ou menor crueldade do escravismo em terras brasileiras: remeto o leitor interessado sobretudo aos trabalhos de J. A. Goulart, Arthur Ramos, Emília Viotti da Costa, R. Boxer, Gilberto Freyre, e aos viajantes e cronistas que deixaram pungentes páginas sobre a escravidão.10 Nestas obras, há, inclusive, relatos sobre formas mais usuais de se castigar a escravaria. Concluímos esta introdução perguntando: qual o sentido de se divulgar um documento tão cruel, que retrata com todo realismo e fidedignidade toda a maldade, sadismo e desumanidade com que um fazendeiro baiano castigava seus cativos? Não seria mais acertado imitar o baiano Rui Barbosa e apagar, não só a “mancha negra” de nossa História, mas também, e sobretudo, as manchas de sangue, ainda mais envolvendo famílias tão importantes e históricas? Divulgando este martirológio, tenho três objetivos: Primeiro, fazer justiça, mesmo que póstuma e tardia, a esta espantosa família dos Garcia d’Ávila, “dinastia de pioneiros”, mas também campeões de genocídio e violência contra índios e negros. Mesmo que nos transportemos aos séculos anteriores, quando a violência não era apanágio dos donos do poder, época em que a própria Igreja Católica – seja o arcebispo da Bahia, sejam os inquisidores e pontas-de-lança locais – justificavam e ordenavam as torturas mais terríveis e dolorosas, flagelações, até a fogueira, a fim de manter a integridade da fé e a hegemonia dos príncipes da Igreja e dos lacaios de Cristo –, mesmo nos transportando para período tão violento, a crueldade de certos senhores, como a deste potentado baiano, atinge as raias do delírio mórbido e sádico, obrigando-nos a discordar radicalmente da radiografia ufanista e edulcorada que Pedro Calmon fez destes homens cruéis, quando escreveu: 

É tempo de se deterem os escritos de História diante desses clãs, em cuja cadeia rácica como que se percebe melhor a coesão das eras, a unidade consanguínea do Brasil que ajudaram a formar, construindo a sua casa patriarcal, devassando-lhe os sertões, alargando as suas fronteiras ou disciplinando a sua vida coletiva, sem esquecer as boas tradições do lar português, religioso, severo e sóbrio, que não perdeu nos trópicos nenhuma de suas características avoengas. Tomamos a espantosa Casa da Torre como um exemplo”.11 

Após ler o documento-denúncia, que o leitor julgue de que lado está a razão. Complementar a este objetivo, ao divulgar este manuscrito inédito, queremos dar direito à história e revelar à luz do dia, esse bando de negros e mestiços tão desafortunados, cujos gemidos, urros de dor, litros de sangue derramados debaixo do chicote, cicatrizes terríveis, queimaduras infernais, permaneceram ocultos e abafados por mais de duzentos anos. Publicando as barbaridades deste senhor de escravos, quero demonstrar meu respeito e solidariedade para com estas criaturas massacradas: com o negrinho Arquileu, que tendo apenas quatro anos, quase morreu debaixo do chicote de seu terrível senhor, simplesmente porque um passarinho picou o figo de que ele devia tomar conta; com o preto velho Antônio Magro, beirando os 80 anos, cujo suplício incluiu o ardor de uma mancheia de pimentas malaguetas introduzidas em seu ânus através de um canudo de pito. Minha solidariedade com estes verdadeiros mártires e a firme esperança de que, no presente e no futuro, negros, mestiços e brancos constituamos realmente neste país uma democracia racial, uma sociedade pluralista, onde a diferença – seja da cor, de sexo ou da orientação sexual – não implique nenhum tipo de dominação. 

Este verdadeiro “manual de torturas” remete-nos à presença, ainda tão forte e medonha, embora mais escondida, da tortura na sociedade baiana e brasileira contemporâneas. Ainda na década de 80, quase todas as semanas, os jornais locais, inclusive o dos Calmon, têm denunciado a prática de tortura nas prisões, delegacias, camburões etc. Poucos dias antes de terminar este artigo, os jornais estamparam a foto revoltante de uma família baiana cujos dez membros – incluindo crianças, mulheres e doentes – foram barbaramente espancados, pisoteados, vários tiveram seus braços e pernas quebrados, por policiais de Salvador, toda essa crueldade supervisionada por uma delegada. 

Desde 1821, a Inquisição foi encerrada; a escravidão já completou 60 anos, foi abolida há mais de um século; a declaração dos Direitos Humanos e a tortura continua ainda tão presente em nossa Bahia de hoje. O tormento do anjinho cedeu lugar ao choque nas partes genitais; o bacalhau foi substituído pelo pau-de-arara; o tronco foi para o museu mas a “fanta” está nas ruas. Nossa esperança e desejo é que todos esses instrumentos terríveis de suplício e tortura tornem-se definitivamente peças de museu, prenúncio de uma nova sociedade menos violenta, sem opressores nem oprimidos. Que tal restaurar as ruínas da Casa da Torre e ali fazer o museu da extinta violência na Bahia de Todos os Santos? 

A divulgação do presente documento da Torre do Tombo justifica-se ainda por revelar faceta pouco conhecida de nossa história das mentalidades: as blasfêmias e sacrilégios perpetrados por um destacado membro da elite colonial, contribuindo para o resgate da história da irreligiosidade e ateísmo na América Portuguesa. Assim sendo, comprovam-se os limites reais da autoridade aterradora do Tribunal da Inquisição, que apesar de ter autoridade para confiscar os bens, açoitar e condenar à fogueira, hereges e heterodoxos, não chegou, contudo, a inibir palavras e ações francamente hostis à Santa Religião. Antecipamos ao leitor que malgrado a gravidade destas denúncias, o Tribunal do Santo Ofício nada fez contra este mau cristão, agindo com igual indiferença em relação a certos blasfemos despossuídos de riquezas. 

A derradeira justificativa da divulgação deste documento tem a ver com o que ele diretamente nos informa, e de primeira mão, sobre a cultura material da própria Casa da Torre: ao descrever as torturas e sacrilégios ali praticados por seu terratenente, o denunciante fornece, aqui e acolá, dados concretos sobre as instalações, espaços, utensílios e personagens que compunham o dia a dia e se movimentavam dentro desta portentosa propriedade senhorial do Recôncavo Baiano, justamente considerado o único “castelo” construído na América Portuguesa. Sugiro que o leitor preste atenção não apenas nos atos cruéis e irreverentes praticados por Garcia D’Ávila Pereira Aragão, mas também atente para os aspectos materiais e sociais que servem de pano de fundo a este espantoso relatório. À guisa de contribuição para se reconstituir tal paisagem, no final do manuscrito enumero e esclareço alguns elementos citados no documento que permitem-nos visualizar o interior, as redes de relação e o quotidiano da famigerada Casa da Torre.

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