sexta-feira, 17 de maio de 2024

400 ANOS DA CHAMADA INVASÃO HOLANDESA

    Holandeses chegam às Índias Ocidentais, no início do século 17 

Por Florisvaldo Mattos

(Esqueceram-se? Pois, eu não. Baianos deixem por um momento de vocalizar o baianês e pensem na história da Bahia!)

Precisamente, em 9 de maio de 2024, cometi esta postagem no Facebook: hoje, desde as 3h40m da manhã, estão se cumprindo os redondíssimos 400 anos da chamada invasão holandesa da Bahia, que assim é sempre narrada, para estudantes secundaristas e também curiosos, como eu:

"No dia 9 de maio de 1624, chega a Salvador, na Bahia, uma forte esquadra de guerra holandesa (26 navios e mais de 3 mil homens) comandada por Jacob Willekens e Piet Heyen. Era a primeira invasão holandesa ao Brasil e, a certeza da vitória era tamanha que a esquadra já trazia o primeiro governador holandês, Johan van Dorth. A escolha de Salvador devia-se não apenas à riqueza da capitania (a mais lucrativa, depois de Pernambuco), mas também à sua privilegiada posição geográfica. A cidade contava com um excelente porto e serviria de base para futuras expansões a outras regiões do Brasil. Além disso, sendo capital da colônia, era a chave para um controle eficiente do território" (Google, citando uma historiadora).


Esqueceram-se? Pois, eu não, nem agora, nem antes, desde que em 2000 publiquei livro intitulado “Mares anoitecidos – Florisvaldo Mattos” (capa), reunindo mais de 40 poemas sobre este imenso episódio histórico, que integrou o programa comemorativo dos 500 anos do Descobrimento. Interessei-me poeticamente pelo assunto depois que li dois livros essenciais: “Relação da Conquista e Perda da Cidade do Salvador pelos Holandeses em 1624-1625”, do alemão Johann Gregor Aldenburk, que fazia parte da armada holandesa, publicado em 1627, mas em tradução patrocinada pela UFBA (1961), e “A Invasão Holandesa da Bahia”, do padre Antônio Vieira, em edição baiana de 1955, e como se tratava de projeto poético não deixei de ler uma carretilha de poetas espanhóis, portugueses e brasileiros, que incentivavam a minha curiosidade de leitor interessado e sensível. E até mesmo o grande mantuano Virgílio.
Essa malograda aventura dos chamados flamengos na Bahia, que durou um anos e dois meses, com governador no domínio e tudo mais, findou-se por ação do império espanhol, então à frente de Portugal (Felipe II), enviando para cá uma grande armada, chefiada pelo general de sua confiança, Dom Fradique de Toledo Osório, que, vitorioso, acabou mandando os holandeses para casa.
Como se tratava de poesia, deixando para os sábios as mais firmes e fiéis (?) narrativas, dei preferência a me centrar na fantasia, que me afluía do malogro e da derrota dos holandeses, seguindo os rastros de Homero, na “Ilíada” (guerra de Troia), tentando fazer de meu verso uma lança, coberta de signos e sonhos vastos, que desse ao leitor a impressão de força criadora.
E é por isso que escolhi, como emblema, entre tantos poemas, “Estrada de Monte Serrat”, composto de seis sonetos monoestrófico, sem rimas, que narra a morte do general governador Johann van Dorth, vindo ele do depois chamado Forte de Monte-Serrat, numa bem armada tocaia, em Água de Meninos. Aí vai abaixo; e como ilustração, a capa do livro, de 2000, a caminho de ser incluído, em reedição, provavelmente, no programa celebrativo dos 400 anos deste importante episódio histórico, a cargo da ALBA Cultural, em cooperação com o IGHB, tendo agora à frente o jornalista Paulo Bina.



FLAMENGOS NA BAHIA: ANATOMIA DE UM POEMA

Florisvaldo Mattos

            Em tempos de globalização, ciberespaço, redes interconectadas e mensagens on-line, facetas do que se vem, há décadas, ambiguamente chamando de pós-modernidade, pode parecer insensatez alguém se decidir a escrever um longo poema inspirado em fato histórico ocorrido há quase quatrocentos anos, como foi a presença dos holandeses na Bahia, entre maio de 1624 e julho de 1625, e sobre ele proferir palestra, mesmo sem estar a obra inteiramente concluída. Mas aconteceu algo que pareceu me justificar: a cordial maquinação de dois confrades da Academia de Letras da Bahia, o historiador Waldir Freitas de Oliveira e o poeta Fernando da Rocha Peres, que me induziram a redigir essas temerárias linhas, mesmo arriscando-me a ser, no mínimo, classificado de presunçoso.

            Dividido em duas partes – Dias de 1624 e Dias de 1625 –, o que já se encontra em grande parte escrito compreende uma série de poemas sob o título geral de Mares anoitecidos, com um subtítulo de visível inflexão barroca – Conjeturas em torno de transações e desditas do Sig. Flaminco, em Baía de sal e sol, com forma de útero –, que pretendem refazer, misturando os gêneros épico e lírico, a trajetória daquela longínqua aventura, já por demais conhecida, na forma em que está obrigatoriamente narrada nos compêndios de história pátria, mas não se trata de poesia histórica, uma vez que (presume-se) exercícios nesse campo, vedado a poetas, parecem mais apropriados ao trabalho de prosadores, que lidam com pesquisa e documentos históricos, ficcionistas ou dramatúrgicos.

            Melhor me parece defini-lo como um ensaio em versos, que intenta captar, de maneira pessoal, o universo dramático em que se moveu o destino de milhares de indivíduos, tão europeus quanto os que, precedendo-os em pouco mais de um século, subjugaram os primitivos habitantes do lugar, estabelecendo-se na terra, para explorar suas potencialidades territoriais e suas riquezas e exercer total dominação econômica, política e administrativa, enfim, trafegar pela humanidade daqueles povos de diversa nacionalidade, que, tomados de determinação, sonhos e ambição de poder e fortuna, aqui vieram ter, atravessando o oceano de um hemisfério a outro, com navios e armas, dispostos a suplantar heroicamente inúmeras vicissitudes: chegam de madrugada, travam lutas, conquistam a terra, estabelecem domínio, impõem normas, mas, acossados por guerrilhas, nunca realmente vencem, até serem finalmente derrotados e expulsos por forças de maior calibre, levando cada um consigo apenas um passaporte espanhol, nada mais.

            Já que a ideia central é a de um malogro, melhor direi que se trata de um poema sobre a infelicidade, ou talvez um hino à fraternidade dos seres humanos, que toma o partido da descrição de emoções e vivências do lado e pela voz de quem se inseriu num jogo de contradições, que mistura razão e sentimentos, motivações, desejos e atividades individuais e coletivas, envolvendo ações e personagens, desde o êxito inicial até o total e inapelável fracasso.

            No século XVII, já não havia espaço para o final feliz das epopeias do passado. A Companhia das Índias Ocidentais era uma empresa comercial, um braço da burguesia europeia nascente, não uma confraria de heróis míticos vitoriosos, como os da Antiguidade Clássica e Idade Média (Ulisses, Eneias, os cavaleiros cruzados), passando tudo isto a ser alusão, invocação ou evocação. O tempo, então e doravante, é o da aniquilação do herói. Gradativamente, desaparecem a utopia e a fé; instala-se o império do malogro: será a hora do cavaleiro-de-triste-figura, de perfil e destinos diversos. O tempo então era o de buscar, como dizem os relatos, “o tesouro rico, porém mal seguro” (intento que, ainda, continua e que se contém numa quadra em verso, também lembrada e atribuída a Brás Garcia Mascarenhas (1596-1656), no poema épico “Viriato trágico”, que assim reza:

            A idade de ouro então lembrava,

            E a da prata, que florescia,

            Já com intercadências vacilava

            Porque perto a do ferro transluzia.

             Cabe a pergunta sobre quando e por que me interessei pelo tema e a forma como resolvi abordá-lo. Ocorre, sem nada a ver com literatura, que certo dia, me caiu nas mãos, por gentileza de um empresário italiano do ramo de hotelaria e alimentação, para minha surpresa nada menos do que um descendente distante de Giovanni Vicenzo de Sanfelice, o célebre conde de Bagnuolo e marquês de Torrecusa, integrante da armada vitoriosa chefiada por D. Fradique de Toledo Osório, e um dos luminares das batalhas contra os holandeses, na Bahia, e depois, em Pernambuco. Doava-me Alfredo Boccaglini de Sanfelice, 49 anos, então residente em Salvador, um recorte amarfanhado e amarelado de jornal napolitano dos anos de 1890, que recordava o episódio flamengo, com redação e olhos italianos, recebido por sua mãe, Luisa Sanfelice, das mãos de uma prima octogenária, Luisa Virginia Imperiali dei Marchesi di Serracapriola, também descendente de Bagnuolo, mas àquela altura já morta, que, por não estar familiarizada com tais fatos históricos, não soube precisar em que jornal de Nápoles saíra a para mim ali alvissareiro informe.

            Esse recorte, que trazia apenas enigmática assinatura de A. Com., cuja tradução publiquei no caderno A Tarde Cultural, em edição destinada a rememorar a entrada dos holandeses na Baía de Todos os Santos (9 de maio de 1624), graças à gentileza da professora italiana Silvia La Regina, então ensinando na UFBA, abriu-me caminho a outras leituras. A primeira delas iria ser um escrito relativo à presença dos flamengos na Bahia, constante da Enciclopédia Larousse que acabei por descobrir ser de autoria do historiador Pedro Calmon, com um elegante resumo dos fatos, aqui e ali pontuado de ironia, mas o impulso maior me viria basicamente de duas outras publicações, estes por si mesmos célebres: a Relação da conquista e perda da Cidade do Salvador pelos holandeses em 1624-1625, de autoria do alemão Johann Gregor Aldenburgk, que integrava a armada holandesa, publicado na Alemanha em 1627, mas no Brasil somente em 1961, sob patrocínio conjunto do Conselho Nacional de Pesquisas e Universidade Federal da Bahia, em tradução do pernambucano Alfredo de Carvalho, e A invasão holandesa da Bahia, do padre Antônio Vieira, na edição de 1955 da Livraria Progresso Editora, que reproduz com ortografia atualizada a chamada “Carta Ânua de 1624-1625”, de cuja redação fora incumbido por seus superiores o jesuíta ainda jovem.

            E, para ser justo, confesso, mais me servi, por seu grande realismo e sinceridade, das informações contidas no impressionante livro de Aldenburgk, do que das de Vieira, a meu ver condicionadas pelos interesses políticos e eclesiásticos da dominação colonial e, por isso, consabidamente parciais. Claro que li outros textos, mas esses eram os que mais me pareciam bastantes ao sonho que me animava.

Os poemas de Mares anoitecidos referem-se ao infeliz trânsito dos flamengos na Bahia, mas não se fixam na essência histórica dos fatos, já que estes, é fácil supor, mais se me abriam a projeções de imaginação criativa do que a áridas descrições. Por isso, as ações de personagens neles avizinham-se da invenção, embora se agrupem numa ordem temporal que se inicia com o incidente dramático da chegada das tropas (tidas ainda hoje como invasoras), prosseguem com a conquista do lugar, a fuga da população, a reação e os combates, o saque e a divisão do butim (inclusive com os mercenários delas integrantes), a guerrilha, as incursões flamengas pela Baía de Todos os Santos e litoral, a paisagem, o mar e seus mistérios, a dominação e os ofícios, os idílios, sofrimentos, desilusões, humilhações e tristezas, a reconquista, a derrota final, a expulsão das tropas, as despedidas e o regresso dos vencidos, as punições e condenações – enfim, todo o arsenal de situações e emoções que permeiam o acontecer em geral, desde os começo do existir humano.

            Embora se trate de uma narração difusa, quatro protagonistas históricos dessas ações se destacam em poemas específicos. Um monólogo dramático conjetura o instante mesmo da morte, numa emboscada, do general Johann van Dort, que era comandante das tropas e governador constituído pelo conselho de guerra holandês, narrada pela própria vítima, em junho de 1624, no qual intento resumir a vida inteira do flamengo, sob a forma de revelação teatralizada; outro poema suscita as circunstâncias da morte, em outubro do mesmo ano, do bispo Dom Marcos Teixeira, um paradigma da resistência e da guerrilha; um outro delineia a figura do gentil-homem e cavaleiro triunfante do espanhol Dom Fradique de Toledo Osório, chefe das tropas redentoras e o grande vencedor final, cujo feito seria depois desprezado; finalmente, de forma alusiva, referencial, o solitário almirante Jacob Willekens, comandante-geral da esquadra holandesa, que passou todo o tempo da ocupação dentro de seu navio. A maior parte da narrativa poética dessa malograda e infeliz aventura se expressa pela voz oculta de um seu suposto protagonista.

            Há motivos para especial destaque dos três primeiros personagens. Desde os bancos escolares que frequentei, na adolescência, impressionava-me o modo como os historiadores teatralizavam aspectos desse fato histórico. Um deles, creio que Vicente Tapajós, em livro para o curso ginasial, narrando o momento crucial da execução do general Van Dort, cercado e atacado em Água de Meninos por hordas guerrilheiras, punha na boca de um dos algozes, que o trespassara com a espada, a inflamada frase: “Morra, infame!”. Intrigada, a mente juvenil então se perguntava como teria sido possível, senão por visível part-pris narrativo, surpreender em tal momento palavras tão nítidas de celebração, a transpirar ódio, embora beirassem a contrafação e a caricatura.

            Aldenburgk corrige esse viés do oficialismo narrativo, sancionando ânimo de vencedores. Por outro lado, devo ao padre Antônio Vieira (Lisboa, 1608-Salvador, 1697), ao dedicar a Dom Fradique apenas seis páginas das 74 de sua narrativa encomendada, o impulso para retratar o comportamento cavalheiresco do espanhol, baseado nas lições que oferecera de direito internacional, ao se compungir da sorte dos vencidos, após a vitória, segundo palavras do próprio Aldenburgk. A meu ver, menosprezando o verdadeiro herói do triunfo, Vieira jogava com os interesses políticos, que submetiam a Colônia do Brasil, desde que Portugal, a sua pátria, a que os jesuítas deviam vassalagem e privilégios, era então domínio da Coroa espanhola sob Felipe IV. Dei a esse poema o título de “Reversa Troia”, por na essência resumir o sentido geral de minha composição, na qual os que cercaram e conquistaram a cidade acabaram vencidos e expulsos, ao contrário do desenlace trágico narrado por Homero, na Ilíada, em que os gregos sitiaram, conquistaram e liquidaram ou escravizaram os troianos, como em muitos episódios que a história conserva. Com base ainda em Aldenburgk, cogitei que o elevado gesto do espanhol se avizinhava dos sentimentos de piedade e compaixão que Aristóteles, na Poética, define como pontos centrais de configuração da tragédia, em sua forma clássica. Comovia-se Don Fradique com o triste destino dos vencidos.

            A narrativa sectária de Vieira, em contrapartida, iria me fornecer o ingrediente de realismo necessário para o retrato heroico que traço do bispo Dom Marcos Teixeira, uma vez que lá, das vestes rústicas à aparência desgrenhada de um chefe devastado pelo cansaço e as doenças, em ações de guerra por campos, rios e florestas, acompanhado de um séquito de clérigos guerreiros, prefigurava a imagem de um personagem trágico, o Senhor Bom Jesus Conselheiro, o beato dos conflagrados sertões baianos, quase três séculos depois. Já o comandante Willekens era um personagem misterioso e insólito que, enquanto permaneceu a esquadra por mais de um ano no porto de Salvador, jamais deixou o seu navio para vir à terra.

            Embora jamais tenha nutrido a pretensão de cultivar uma estética, capaz de oferecer base convincente ao que escrevo, nem poderia tê-la, por motivos fáceis de presumir, de que o maior é a flagrante limitação de meus conhecimentos filosóficos, embora alguns pensadores não me sejam de todo estranhos, creio que devo dizer sobre a forma de alguns poemas.

Sou partidário da ideia de que a criação poética advém da confluência entre dois procedimentos, duas operações que ocorrem em separado: uma controlada pelo subconsciente, que em geral precede a execução do poema, a que costumamos chamar de inspiração, de manifesto fundamento romântico, a porta por onde o sonho e a imaginação transitam, e outra que pertence à esfera da inteligência, que, empenhada no manejo de recursos formais, de caráter simbólico, arregimenta signos e ordena a expressão da linguagem, para a execução e até a modificação do objeto, o poema. À primeira operação presidem as musas, como está nos clássicos; a segunda se processa e se conclui pela contínua presença da insatisfação, que domina a mente e o ânimo de cada autor. Tudo isso ajustado para alcançar a emoção, presente na necessidade de o poeta ser sincero para consigo mesmo e para com o seu possível leitor, ou ouvinte.

            Considero-me um tributário das ideias do Modernismo, a corrente estética que mais influência exerceu sobre a arte do século XX, envolvendo as suas mais diversas linguagens, mas valho-me dos recursos que estão ao alcance de minha formação intelectual, como seja o respeito à tradição literária e cultural, e, por isso, não me peja reconhecer e agradecer a influência de muitos mestres do passado. Assim, embora prefira o verso livre ou branco, um dos pilares da poética modernista, como se sabe, sinto-me com frequência atraído pela recorrência a formas clássicas, talvez por gosto pessoal ou carência, que não descarta a estrofe, o verso medido e até a rima, ao ponto de algumas vezes me valer da forma do soneto, embora numa diversa ordem de pensamento, construção e expressão, isto é, sem devota submissão a convenções. Procuro formas que eu possa exercitar com naturalidade e não me provoquem tortura íntima ou mental.

            Nos poemas de Mares anoitecidos, tenho trabalhado com formas variadas, em versos que tomam corpo em função do próprio ritmo linguístico e, assim, não deverá causar surpresa ao leitor a presença de decassílabos, endecassílabos, alexandrinos, com ou se hemistíquio, heptassílabos e outros, versos longos ritmados ou curtos, entremeados ou em sequência, brancos ou rimados, que frequentam antigos manuais de versificação, numa aura evocativa de ritmos jâmbicos e híbridos. Em certos casos, o andamento pode até parecer prosaico, pois cada vez mais estou convencido, com perdão dos prosadores, de que a prosa não é mais do que uma degradação da poesia, despojada que se mostra do que as palavras guardam e ressoam de sua origem mágica. Não me arrependo, nem acho que tais opções técnicas me desonrem, desde que se trata da eleição de um processo criativo e construtivo, que, a meu ver, mais propicia que complica o entendimento do enunciado. Não me incomodo se, por preconceito ou através de crítica teórica, alguém venha me tachar de discursivo, de me enfileirar entre os que possam ser rotulados de neoconservadores. Não é uma defesa, mas uma manifestação de consciência e conformidade.

            Quanto ao conjunto em si, estabelecendo relação direta com o possível leitor, achei por bem redigir um poema a título de prólogo, lavrado em versos alexandrinos brancos, em que procuro justificar a razão e razões de minha iniciativa, que no fundo se desenovela como um só poema, fatiado em vários outros, num retorno às formas e à ambiência pânica de meu primeiro livro, Reverdor, de 1965, mas distante de certas soluções formais, então em voga, que contribuíam para refrear em muito a expressão poética.

Foram especificamente os cinco monólogos de Garcia D´Ávila, com que se inicia Reverdor, que me inspiraram o monólogo dramático da morte do general Johann Van Dort, mas, agora, ao retomar a entonação épica que o tema favorecia, a reflexão e a experiência literária me indicavam que chegara o momento de dizer emocionalmente bem mais. Não nutrindo satisfações, nem expectativas de museus, e advertido de que nosso idioma, como todos aliás, configura uma tradição entranhada no sangue e na memória do povo brasileiro, nos poemas de Mares anoitecidos, optei por ser simples, fluente e claro, ao usar palavras e frases legíveis, mais facilmente acessíveis ao entendimento do leitor médio.

            Confesso que o envolvimento com a temática e a determinação em construir um poema que se estendesse em camadas superpostas me levaram de volta à leitura de poetas de adormecida predileção, a maioria espanhóis e latino-americanos. E lá fui eu, pensando em atos de conquista, cavaleiros, armaduras, elmos, lanças, cavalos e escudos, barcos e águas ignotas, gentes e terras incultas, mitologias, grandezas e incertezas, revirar páginas e versos de Francisco de Quevedo, Antonio Machado e Miguel Hernandez; de Rubén Darío, Cesar Vallejo, Santos Chocano, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges e do luso Camões e, porque não, de dois ardorosos baianos, Gregório de Mattos e Jair Gramacho, e mesmo o velho Itaparica, em publicação de cujo resgate se incumbiu briosamente o poeta Fernando da Rocha Peres, quando diretor do Centro de Estudos Baianos, da UFBA, que me ofertou um exemplar, e até um pouco do bucolismo do portentoso Virgílio, nas suas Églogas.

Tudo isso me vinha à mente, para que não me tornassem estranhos a atmosfera, o ambiente e o tempo humano, o memorável universo enfartado de coragem, aventuras e ímpetos de um século, em que viveram, além de Miguel de Cervantes, Francisco de Quevedo e Luis de Góngora, luminares outros, como Calderón de La Barca, Lope de Veja, Diego Velásquez, El Greco e o holandês Rembrandt, por isso de ouro chamado, e em que ocorreram aquelas remotas e obscuras façanhas, agora poeticamente revivida, sem medo de que neste processo criativo se surpreendam exemplos de intertextualidade, mas sentindo-me como as tivesse vivido e testemunhado, com a mesma intensidade e garra com que, em tempos de juventude, deblaterava com ideias em defesa de verdades que cedo se tornariam conformada ilusão, restando apenas a memória do fervor. E posso afirmar que saio dessa afanosa experiência como se tivesse me apossado daquele “contínuo de emoção captada em tranquilidade” (emotion collected in tranquility), o estado próprio da poesia, encastoado na célebre definição do inglês William Wordsworth (1770-1850). E, neste itinerário de sonho e aventura, o verso é a minha lança, e a fantasia, na velha ideia de força criadora proclamada por Hegel, o meu escudo.

ADENDO NECESSÁRIO

A origem dessa redação notoriamente revista reside em palestra pronunciada durante seminário, que o Conselho Estadual de Cultura, de que era presidente o professor e historiador Waldir Freitas Oliveira, promoveu entre 20 de julho e 24 de novembro de 1999, sob o título de “Brasil 500 anos – Encontros na Bahia”, dividido em quatro sessões, na primeira das quais, realizada no auditório do Museu de Arte Moderna, coube-me falar sobre tema de minha livre escolha, situado no século XVII. Foi o próprio organizador que me anunciou, informando que eu pronunciaria conferência sob o título de “Flamengos na Bahia: razão e razões de um poema”, anunciando a próxima publicação de um poema épico por mim escrito “sobre a invasão da Bahia pelos holandeses em 1624”. Em publicação da carioca Imago Editora, Mares anoitecidos seria lançado no segundo semestre de 2000.

Como nessa palestra, só agora 21 anos depois incluída neste livro, referi-me a personagens do histórico episódio, que mereceram figurar em poemas evocativos de suas estadas na Bahia do século XVII, sinto-me estimulado a transcrever o monólogo que tenta reproduzir o momento do suplício que ceifou a vida do general Johann van Dort, por ele próprio, heroica e dramaticamente narrado; mas antes, por sua evidente singularidade, creio ser conveniente revelar a circunstância que me levou a adotar tal técnica narrativa.

Entre minhas remotas leituras, um dia bati-me com uma das tessituras épicas de Jorge Luis Borges, “Poema conjetural” (El otro, el mismo, 1964), em que o argentino reconstrói o monólogo de um de seus antepassados no momento mesmo em que está sendo degolado por uma horda de guerrilheiros contra os quais lutava. Segundo o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal (Jorge Luis Borges. Ficcionario – Una antología de sus textos. México: Fondo de Cultura Económica, 1985), nesse poema, Borges estava utilizando um recurso poético que tornara famoso o poeta inglês Robert Browning (1812-1889), adotado em seu livro Dramatis Personae, publicado em 1864 (Borges escreveu o dele justos 100 anos depois).

Decidi espontaneamente seguir este mesmo insólito modelo poético, optando por reverenciar um tema heroico, em elocução dramática, que, como diz Monegal, “reduz a vida inteira de um homem a um momento extraordinário e revelador”. Assim como Borges, mas em escala criativa de imensa inferioridade, considerei que essa técnica se ajustava perfeitamente ao que transitava em minha imaginação e a adotei na redação do poema, em que uso, como epígrafe, elocução do poema do argentino. A essa altura, vejo-me instigado a transcrever adiante, além desse, outro poema que suscita também instante dramático desse indelével malogro, mas de sopro idílico, refletindo o momento do adeus de uma das jovens mulheres que viveram prévias ilusões desses infaustos dias e nelas confiaram, despedindo-se, na véspera mesma da expulsão, de um dos guerreiros batavos, com quem travara, por meses, em cauteloso silêncio, relações de amor, encanto e devoção.

 


 

 



ESTRADA DE MONTE SERRAT

“Pisan mis pies la sombra de las lanzas
que me buscan.”
(Jorge Luis Borges)

Atacado em Água de Meninos, o general flamengo Johann Van Dort, governador e comandante geral, vendo sumir o sol numa tempestade de espadas, lanças e balas de mosquete, antes de morrer, cogita de sua sorte:

I
Mal me distingue e afaga a luz primeira
da manhã, quando me ponho de surpresa
a ver a fortaleza São Felipe.
Por caminhos de pedra e matos íngremes,
de regresso, afastando-me da escolta,
armada de escopetas e pistolas,
qual penetrasse estreito labirinto,
o troar de um tropel demais severo
de portugueses, de índios e de pretos,
de mui ervadas flechas de repente
sobre nós derrubasse temeroso
céu de balas, espadas e azagaias,
em chuva celerada, trespassando
tanto quanto cavalos e trombetas.

II
Zune o tempo de horror, o instante último
do bom negócio e jogo de cobiça,
que me impeliu a essas obscuras águas,
a combater nas fontes de riqueza
as potestades do ibero inimigo,
e até a Serra Leoa fui perseguir
barcos negreiros, ou farto butim
de especiarias por todos cobiçado.
Mergulho na razão de tais destrezas,
que me põem a pelejar contra desertos,
rudimentares formas de viver;
cogito do ouro louco que essas lanças,
essas balas, essas espadas guardam
e vêm agora emoldurar-me a hora última.

III
Cristãos-novos, sabei que nós flamengos,
de tanto traficar sonhos translúcidos,
costumamos lavrar os horizontes
com a mesma mão que sagra nossas preces.
Cristãos-novos, sabei que costumamos,
bem mais que organizar tropas e frotas,
bem mais que perseguir Marte e Netuno,
prezar a natureza por primeiro;
em terra ao mar subtraída, bem mais que a ouro,
cultivamos tulipas e jacintos,
bem mais doamos ao chão apetecido:
campo iriado de luas pastoris.
Gente sublimamos e ao mundo rotas
abrimos de galhardas esperanças.

IV

Ignoro essas paragens. Eu, de bruços,
antes que à noite funda me arremessem,
me volto para o céu indecifrável,
miro a armada de nuvens aportando,
com mensagens que omitem meu destino;
eu que me alimentei de sal batavo,
de celtas e germanos tenho o sangue,
a fala de seus sons contaminada;
eu, Johann Van Dort, general flamengo,
conhecedor de códigos e cânones,
provados na gerência de um exército,
sob um céu fibroso como de sombras,
quedo, decifro gumes que me aguardam.

V
Cruzei os oceanos com minha sombra
a vagar suspeitosa de meus dias
por campos e montanhas, por estradas,
no encalço de um Aquiles incansável,
que se ofusca no espelho da distância.
O dia avança, enquanto some a fina
malha de luz que tece meu destino
na areia fúlgida onde impera a fúria
do ferro que me alaga o suor de sangue.
E fujo para dentro de mim mesmo
em busca de razões vertiginosas,
que expliquem meu passado e meu presente:
apenas vejo um porto, uma cidade
e um rosto moço a olhar o mar defronte.

VI
Armas, gentes de cenho atormentado,
que não fabricam máquinas nem aram
o pensamento além de manuscritos,
cortinas abrem só para o passado,
mais que a da prata e do ouro mercantil,
idade só do ferro experimentam,
fecham-me o caminho, o peito afundam,
com a desmedida sombra de seus passos.
Por última vez fito o claro céu,
agora imerso em vaga bruma, na hora
em que recebo a última cutilada.
Está escrito nos livros: todo brioso
marinheiro tem sua enganosa ilha
e todo lutador, suas Termópilas.

(Florisvaldo Mattos. “Mares Anoitecidos”. RJ: Imago Editora, p. 39, 2000)


O ADEUS DA NEGRA MINA

 

Meu destino africano revoguei

(de para lá voltar cortando os mares),

a meus santos patronos implorei

para de ardis dos fados te livrares.

 

Para mim não fazia diferença,

na fortuna que os deuses me teceram,

estar contigo ou com outro, mas a crença

no que, vindo do mar, meus olhos leram.

 

A face da coragem que trazias,

além de barcos, armas, sonhos, velas,

inseriu no infinito de meus dias

o segredo invisível das procelas.

 

Havia algo mais que não era só

o corpo, o coito, a força, que não era

a bruta lei do mando, o relho, o pó

do eito, onde lavrava eu minha quimera.

 

E para consagrar tua coragem,

em qualquer tempo e lugar por onde andes,

dei-te meu coração como ancoragem,

a sombra, o mel e a flor de árvores grandes,

 

pelo frescor dos campos sossegados,

por dentro da floresta silenciosa,

a fugir de espada e ferrões ervados,

em que me vinhas como ave e eras rosa.

 

De outras vezes, embaixo das muralhas,

teu mudo peito pulsava, e eu gemia.

Tu chegavas cansado das batalhas;

eu, sendas a ver por onde a tarde ia.

 

À noite, quando a noite enfim chegava,

eu te despia o gasto arnês de guerra;

vinha do aceso de ti estuante lava,

nosso íntimo fervor, o sal da terra.

 

Daqui como de lá, e de muito além,

teu lábio entoa com esperança e zelo

uma canção que do passado vem,

de remotas pirâmides de gelo.

 

Quão diversos do teu são meus cantares!

Quando a tarde esplende de fulgores,

de savana eles falam, e de lunares

caminhos, de água e areia, sol e flores;

 

Dos símbolos maiores que me seguem

por rastros de leões, gnus e leopardos,

chão dos que fogem e dos que perseguem,

beirando espelhos de reflexos pardos.

 

Agora te vás, meu bom Sig. Flamminco,

levando em teu bornal dores e sombras,

tudo que em ti deixou um duro vinco,

de batalhas, de perdas e de sombras.

 

E que me fica de teu corpo claro,

para me acompanhar sob céus incertos?

Traspassando da terra o injurioso aro,

tua semente povoará desertos.

 

(Florisvaldo Mattos. Rio de Janeiro: Mares Anoitecidos, Imago Editora, pp. 39 a 41 e pp. 83 a 85, 2000).

 

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