Ophellia, do pré-rafaelita inglês John Everett Millais (1829-1896) |
Florisvaldo Mattos
LAVOURA
FATAL COM GÓRGONAS
As portas e as janelas, tristemente,
Miravam serrania e verdes pastos.
Assim como derrete campos vastos,
O sol na tarde insulta rosto ardente.
Sou um homem de outrora. Estes meus braços,
Que atravessaram matas, montes, rios,
Na aura vertiginosa dos plantios,
Carregam a memória de balaços,
Que hoje não denuncia a mão deserta.
Cacau, um deus que chega e arreia a mala,
Vindo de México ou de Guatemala,
Amor ao ferro, só, nenhum alerta.
E quando
as intempéries regurgitam,
São
os céus vingativos que vomitam.
(SSS/BA, 26/0/2017)
DE
BEM COM A PECUÁRIA
No caminho
da serra estava eu; eu,
Mirando ao
longe os altos verdejantes.
À noite
ali verdejam pirilampos;
De tão
doce, embaixo, a água é quase mel.
Levei
tempos ali, pensando grande
Em torto
plantar de sonho e ilusão.
Alguém para
e me diz: “Não seja insano!
Satanás só
franqueia a contramão”.
Tapei
ouvidos, olhos fechei, fui
Em frente,
a deslumbrar-me pelos pastos
Com as
fosforescências de um sol vacum,
Mais
deslumbrado quanto mais sonhava.
E me
perdia após na noite vária,
Encantado
com a palavra Pecuária.
(FM. SSA,
23/03/2017)
ENTRE MAR E FLORA
Dum nos fata sinunt, oculos satiemos amore*
Dum nos fata sinunt, oculos satiemos amore*
Sexto
Propércio (c. 47-15 a.C.)
Procuro-te;
não sei por onde andas
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.
No teu encalço, a tarde toda turva,
Compraz-me te mirar, de curva em curva.
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.
No teu encalço, a tarde toda turva,
Compraz-me te mirar, de curva em curva.
(Salvador,
manhã de 26/01/2017)
*Enquanto
os fados nos permitem, no amor saciemos nossos olhos.
ENQUANTO
A NOITE VAI-SE
Pelo sol
da manhã, muitos me viram;
Da terra,
pelo sal, outros me acharam.
É sempre
belo o dia, quando lírios
Tiveram
chão e luz e não murcharam.
Já um dia
foste noite de meu bem;
Nem por
isso fiquei embaraçado.
Pior foi
quando vi, ali e além,
O nada que
restou de meu passado.
Noite, por
que te vás? Quero-te perto
Do pouco
que de mim ficou na estrada.
Em tudo
que me foi pranto e deserto,
Não me
verás chorar água passada.
Um deus passou correndo na clareira.
Não vi, porque dormi a noite
inteira.
(SSA/BA,
21/10/2016)
COM
A ALMA DA RUAS
As ruas de Água Preta começavam
Onde se perde a minha solidão.
Era no Apertucho que me esperavam
As alegrias de meu coração.
A Ruy Barbosa era uma rua enorme,
Que consumia o meu sonhar ligeiro,
Deixando para trás a do Cruzeiro,
A ouvir o som de uma canção que dorme.
Que irei fazer na Rua do Comércio,
Entre burros de cargas e tropeiros,
De calça nova, inutilmente, a ver se
O que me diz a lábia dos caixeiros
Não vale nada do que eu
guardo mais
Do campinho lá da Rua do
Gás?
(FM-Tarde
de 11/01/2017, nova morada)
SEM
AS CORDAS DE AÇO
Para
Durval Burgos
Trêmulas
folhas a cantar modinhas,
Que ele
anotava para o seu violão;
Seja de
flores ou de ervas daninhas,
É assim
que se compõe uma canção;
Ou da água
venha no sabor da espuma,
Ou de um
demônio de pernas roliças;
Vencendo o
mar, que acende o sol na bruma,
Seja o
começo de infindáveis liças;
Beijando a
pedra que sobrou da tarde,
O mar
revolto já se foi embora.
A jornada de
sons pela noite arde,
Tantas
notas armou com vento e flora.
Na esperança de outra manhã mais
doce,
Dedilha a pedra qual se cordas
fosse.
(SSA/BA,
aurora de 24/10/2016)
ECOS
DE MIM MESMO
De tanto
ler compêndios de arte vária,
Um dia
pensei que a Morte é que me acalma.
Esta
literatura funerária
Me fez
perder os dias de minha alma.
Saio e
abro então as portas do outro mundo,
Pondo-me
entre deserto e mar bravio.
Quando me
torna à terra o mar profundo,
Soa dentro
de mim um sol de estio.
Glacial
sempre, em seus pormenores duros,
O tempo me
fizera cauteloso,
Ausentando
de mim os meus futuros.
Se vezes
me senti pouco operoso,
Entre
nuvens passei, tomei o visto:
Tenho
nome, sou gente; enfim, existo.
(SSA/BA, 26/11/2016, manhã, em nova
morada)
SINTÁTICO
VERÃO TRAVESSO
Calmo, um
dia empenhei-me em ler o mar.
O mar me
rogava que não o lesse.
As ondas
eram para mim palavras;
As
espumas, sílabas sobre a areia.
Mirava o
céu, as aves confirmavam,
Pelo
próprio som que elas imitavam.
O mar
ardia e me recriminava,
E me
mandou que consultasse os peixes.
Lá fui, e
mergulhei por entre rochas.
A um que
passava de fulgente escama
Instei se
o mar, de tarde ou de manhã,
Não
escondia um cabedal de histórias.
Manda-me o peixe que regresse à
areia.
Lá, estirada, me aguarda uma sereia.
(SSA/BA, 20/12/2016)
O Amor de Dante, 1857, do pré-rafaelita inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-1882)
SOBRE O SONETO INGLÊS
Desde que foi supostamente inventado por um italiano
no século XIII, o soneto que tem sobrevivido séculos a fio, como forma poética,
na estrutura de catorze versos, que os italianos Petrarca e Dante Alighieri
aperfeiçoaram, fixando-a na disposição estrófica de dois quartetos e dois
tercetos (4-4-3-3), com o rótulo de soneto clássico petrarquiano, que ganharia
o mundo adaptado praticamente a todas as culturas do Ocidente, até que o gênio
de William Shakespeare a ela associasse derivação por ele inventada, que
ganharia o rótulo de soneto inglês ou shakespeareano, obediente ao conjunto dos
catorze versos, mas disposta na estrutura de três quartetos unificados, de
rimas independentes, encerrando-se com um dístico de rimas emparelhadas. No
entanto, embora praticada na sua finitude compacta de reconhecido valor rítmico,
a esta forma tem sido negada a classificação de soneto, sob a alegação de que
jamais se consagraria com este nome nas línguas em que a forma petrarquiana
prevaleceu. É este ponto que destaca o ensaísta Alexandre Timbelli, em texto disponível em http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/2062310, publicado na internet, citando opiniões de J. G. de Araújo Jorge e de Vasco de Castro Lima, que trataram
do assunto, e remontando ao Trato de
Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, escrito em 1905, observando
que nele “o Soneto Inglês não está
sequer mencionado como Gênero Lírico de Poesia”. Lembra ele que essa
forma adquiriu formato definitivo a partir da publicação da obra de William
Shakespeare intitulada The Sonnets – 154 Sonetos, em 1609. No entanto, as
duas formas têm subsistido em idiomas ocidentais, como o português e o
castelhano, consagradas pelo culto de poetas maiores e menores, como a expressão
de um sensível ajuste verbal, em que ideias e imagens se envolvem com palavras para
alcançar a emoção. O certo é que, apesar de o soneto ter sido condenado e
execrado pelo modernismo, cultores de ambas as formas não têm faltado no curso
dos séculos; a primeira, desde a alta Idade Média, desafiando movimentos,
escolas e marés do gosto, enquanto a segunda, martelando na mesma bigorna, prosseguiu
e prossegue praticada por poetas de alta sensibilidade, inclusive entre nós o
baiano Jair Gramacho (1930-2003), com primorosos exemplos. (F. M.)
§§§ FLORISVALDO MATTOS é poeta, ensaísta e jornalista; pertence à Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a Cadeira nº 31; professor aposentado da Universidade Federal da Bahia; tem onze livros publicados, oito de poesia e três de ensaios, entre estes, os recentes Poesia Reunida e Inéditos (2011), Sonetos elementais (2012) e Estuário dos dias e outros poemas (2017), de poesia; A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates (1998) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004), de ensaios. |
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