segunda-feira, 4 de maio de 2015

TRIBUTO AO GRAVADOR CALASANS NETO

Calasans Neto, ao centro, com companheiros de geração: João Ubaldo, Glauber Rocha, Sante Scaldaferri e Paulo Gil Soares 

Florisvaldo Mattos

Artista consciente e predestinado, como o definiu o também saudoso Wilson Rocha, recordo Calasans Neto na imagem do jovem integrante da sedutora e irrequieta malta que, na passagem dos trepidantes anos 50 para os 60, deixava os bancos do Colégio da Bahia para influir decisivamente no processo cultural baiano. Lá, além de autor da cenografia, fora ele ator das afamadas Jogralescas, espetáculos juvenis de poesia teatralizada, que sacudiram o marasmo do meio colegial de então.
Glauber Rocha à frente, com ele, compunham o grupo de cavaleiros andantes, portadores do mesmo fervor que se propunha destroçar tanto moinhos como as fortificações do academicismo que se erguiam e persistiam à sua frente: Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Fernando Rocha, João Carlos Teixeira Gomes, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Antônio Guerra Lima, entre outros, ao lado de demoiselles que eram, a um só tempo, companhia, sonho e inspiração. Desejavam espalhar luzes e estancar a esclerose dominante, à sua frente, apesar dos novos horizontes que o reitor Edgar Santos descortinava na então Universidade da Bahia. 
A eles me incorporei, a convite de Glauber, que se entusiasmara com um poema “Composição de ferrovia”, que eu publicara no número 11 da revista Ângulos. Calasans Neto era um desses quixotes marchando em direção à fortaleza das artes plásticas, um dos poucos redutos que a geração anterior, a de Caderno da Bahia, conseguira penetrar, graças às centelhas de modernismo que o espírito avançado de Anísio Teixeira conseguira acender e espalhar à frente da Secretaria da Educação e Cultura no governo Octávio Mangabeira (1947-51).
Foi justamente neste reduto das artes plásticas, onde já pontificavam figuras como Mário Cravo Júnior, Jenner Augusto, Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Ruben Valentim, que a sorte sorriu para o grupo que mais adiante seria rotulado de Geração Mapa, com a presença em suas hostes desses cinco nomes de indiscutível talento, força criativa e capacidade técnica: Calasans Neto, Sante Scaldaferri, José Maria Rodrigues, Ângelo Roberto e Hélio Oliveira. Compondo esse leque de criadores plásticos, embora mestre de muitas artes, inclusive da conversação sedutora, alegre e descontraída, as qualidades de Calá logo se revelariam excepcionais tanto na arte da gravura, como na ilustração de livros e na edição de álbuns.
E eu próprio, não nego, fui em muito um dos beneficiários dessas suas iluminadas aptidões, desde que, cabendo-lhe a ilustração de meu primeiro livro, Reverdor (1965), seria ele o ilustrador dos que se seguiram - Fábula Civil (1975), A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior (1996), incluindo-se a plaqueta Dois Poemas Para Glauber Rocha (1985, publicada em cooperação com Fernando da Rocha Peres), edições e versos que sua indiscutível e iluminada capacidade artística só faria realçar, como um contributo de permanência.
Cabras de Calasans Neto, em REVERDOR

Calá daria expressão gráfica a Reverdor com gravuras trabalhadas em madeira, num figurativismo que atendia às cogitações telúricas nele contidas e conferia brilho tanto às sugestões épicas quanto às emanações líricas que emergiam da editoração artesanal da minha estreia, identificando-se perfeitamente com o mundo rural percorrido pela poesia se insinuava, salpicado de imagens e metáforas. Começava pelo registro de cavaleiros medievais, introduzindo cinco longos monólogos de Garcia d´Ávila, icônico personagem dos primeiros tempos da colonização e da penetração na terra brasileira; dentro ainda da clave telúrica, surgiam esbeltas cabras, abrindo a seção intitulada “Agrotempo”, figuração que posteriormente iria adquirir forte presença na sua arte, inspirada nas cercanias bucólicas de Itapoã, onde passaria anos depois a residir; finalmente, uma última gravura interna estampava potente locomotiva, no estilo maria-fumaça, a  arrastar sombrio comboio de vagões, por sobre encostas e campinas, demarcando a modernidade com que incipiente progresso desvirginava brenhas cacaueiras presentes nos poemas da seção intitulada “Composição de ferrovia”. 
Viria depois a colaboração gráfica com que Calá conferiu dimensão de monumento ao livro Fábula Civil (1975), em forma de álbum, cujos versos abandonavam o bucolismo dos descampados rurais, para centrar-se nas plúmbeas contradições do mundo urbano, tomado de uma ânsia por reformas, transformando a paisagem em extensões de culto ao concreto armado e ao asfalto, mas carregado de forte desrespeito aos ideais do humanismo, em tempos de ditadura e corrosiva opressão.
Locomotiva, de Calasans Neto (Reverdor)

Neste cenário, as xilogravuras de Calá adquirem nova feição, reforçando uma tendência que, pelo traço, agregava forte carga de expressionismo à figuração, sem fechar as portas à ternura e à pungência. Montada em vigoroso traço, a linguagem então se firma, com títulos em baixo relevo sobre o intenso vermelho da capa; letras gravadas demarcam a página-de-rosto e se embrenham pelas três seções divisórias da edição, travando-se um diálogo de figuras com títulos também gravados.
Agora rostos tensos e meditativos se defrontam com enigmas que pululam nos versos; cavaleiros em célere fuga trafegam sobre chão de caveiras; bocas escancaradas sob açoites atestam perseguições e invocam urgência de socorro num trançado de angústia e de assombros, como habitantes solitários ou náufragos perdidos dentro de uma noite que se fecha em trevas, cujas portas não se abrem, sugestões dramáticas inteiramente captadas e ressaltadas pelos entalhes e incisões do artista.  
Calá também participou da homenagem em versos que eu e Fernando da Rocha Peres prestamos à memória de Glauber Rocha, em 1985, agora em edição também artesanal com monotipias alegóricas que aludiam a momentos épicos e dramáticos da obra do saudoso amigo e vibrante cineasta, ícone de toda uma geração. Em A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, obra editada pela Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e Arte), presentes na capa e nas separatrizes, oito gravuras de Calasans Neto enriquecem a editoração imaginada então por Claudius Portugal, todas elas refletindo as figurações tanto lúdicas quanto líricas que são marcas de sua pintura, gravuras e desenhos nos anos 1980 e 1990.
Referindo-me ao ilustrador, aqui apenas atomizo uma parte da obra gráfica do artista Calasans Neto, que, restringindo-me só ao campo da poesia, também engrandeceu o visual da obra de outros muitos autores, a começar por Samba de Roda, de Fred Souza Castro, livro que inaugurou, em 1957, a aventura editorial cognominada Edições Macunaíma (suponho seja este o primeiro livro ilustrado por ele), seguindo-se os de Fernando da Rocha Peres (Diluviano, Rurais, Tempo Objeto), Paulo Gil Soares (Mirante dos Aflitos), outros muitos e Myriam Fraga, Alberto Luiz Baraúna, Humberto Fialho Guedes, José Carlos Capinan, entre outros baianos, sem falar em Vinicius de Moraes e Pablo Neruda, além de obras de destacados ficcionistas, entre os quais Jorge Amado.
Pertence às esferas mais altas da estética e do humanismo este conluio salutar entre as artes plásticas, a poesia e a literatura, no que se refere à ilustração de obras gráficas. Faz parte da história da civilização ocidental, desde o Renascimento, esta forma de cooperação, participação e intercâmbio gráfico, que se acentuou mais incisivamente a partir dos movimentos de vanguarda nos inícios do século passado, sem menosprezar o que teria representado para o mercado livreiro, desde a segunda metade do século anterior tal parceria, notadamente a que se estabeleceu entre pós-impressionistas e simbolistas,

Quanto a mim, essa transação de minha poesia com os signos da linguagem plástica de Calasans Neto teve um significado de diálogo e congraçamento, já que a gravura desse artista, ela própria um processo poético, pressupõe entrelaçamento e sugestão tributários de identidades que emergem do significado dos temas tratados. Tal evidência trespassada por um sopro de inocência juvenil só se explica pela confluência de sentimentos e aspirações geracionais alojados num cosmo secreto das amizades. Soa como reverberação de potencialidades recônditas. Aproveito para aqui expressar o meu eterno agradecimento ao saudoso companheiro de geração e mestre da gravura Calasans Neto (1932-2006). 
Calasans Neto,  Edições Macunaíma, Plaquete, 1985

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