Calasans Neto, ao centro, com companheiros de geração: João Ubaldo, Glauber Rocha, Sante Scaldaferri e Paulo Gil Soares |
Florisvaldo Mattos
Artista consciente e
predestinado, como o definiu o também saudoso Wilson Rocha, recordo Calasans
Neto na imagem do jovem integrante da sedutora e irrequieta malta que, na
passagem dos trepidantes anos 50 para os 60, deixava os bancos do Colégio da
Bahia para influir decisivamente no processo cultural baiano. Lá, além de autor
da cenografia, fora ele ator das afamadas Jogralescas,
espetáculos juvenis de poesia teatralizada, que sacudiram o marasmo do meio
colegial de então.
Glauber Rocha à frente, com
ele, compunham o grupo de cavaleiros andantes, portadores do mesmo fervor que
se propunha destroçar tanto moinhos como as fortificações do academicismo que
se erguiam e persistiam à sua frente: Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil
Soares, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Fernando Rocha, João Carlos
Teixeira Gomes, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Antônio Guerra Lima, entre
outros, ao lado de demoiselles que
eram, a um só tempo, companhia, sonho e inspiração. Desejavam espalhar luzes e
estancar a esclerose dominante, à sua frente, apesar dos novos horizontes que o
reitor Edgar Santos descortinava na então Universidade da Bahia.
A eles me incorporei, a
convite de Glauber, que se entusiasmara com um poema “Composição de ferrovia”, que
eu publicara no número 11 da revista Ângulos.
Calasans Neto era um desses quixotes marchando em direção à fortaleza das artes
plásticas, um dos poucos redutos que a geração anterior, a de Caderno da Bahia,
conseguira penetrar, graças às centelhas de modernismo que o espírito avançado de
Anísio Teixeira conseguira acender e espalhar à frente da Secretaria da
Educação e Cultura no governo Octávio Mangabeira (1947-51).
Foi justamente neste reduto das
artes plásticas, onde já pontificavam figuras como Mário Cravo Júnior, Jenner
Augusto, Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Ruben Valentim, que a sorte sorriu
para o grupo que mais adiante seria rotulado de Geração Mapa, com a presença em
suas hostes desses cinco nomes de indiscutível talento, força criativa e capacidade
técnica: Calasans Neto, Sante Scaldaferri, José Maria Rodrigues, Ângelo Roberto
e Hélio Oliveira. Compondo esse leque de criadores plásticos, embora mestre de
muitas artes, inclusive da conversação sedutora, alegre e descontraída, as qualidades
de Calá logo se revelariam excepcionais tanto na arte da gravura, como na
ilustração de livros e na edição de álbuns.
E eu próprio, não nego, fui em
muito um dos beneficiários dessas suas iluminadas aptidões, desde que, cabendo-lhe a ilustração
de meu primeiro livro, Reverdor (1965),
seria ele o ilustrador dos que se seguiram - Fábula Civil (1975), A
Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior (1996), incluindo-se a plaqueta Dois Poemas Para Glauber Rocha (1985, publicada
em cooperação com Fernando da Rocha Peres), edições e versos que sua indiscutível
e iluminada capacidade artística só faria realçar, como um contributo de permanência.
Cabras de Calasans Neto, em REVERDOR |
Calá daria expressão gráfica
a Reverdor com gravuras trabalhadas
em madeira, num figurativismo que atendia às cogitações telúricas nele contidas
e conferia brilho tanto às sugestões épicas quanto às emanações líricas que emergiam
da editoração artesanal da minha estreia, identificando-se perfeitamente com o mundo
rural percorrido pela poesia se insinuava, salpicado de imagens e metáforas. Começava
pelo registro de cavaleiros medievais, introduzindo cinco longos monólogos de
Garcia d´Ávila, icônico personagem dos primeiros tempos da colonização e da
penetração na terra brasileira; dentro ainda da clave telúrica, surgiam
esbeltas cabras, abrindo a seção intitulada “Agrotempo”, figuração que posteriormente
iria adquirir forte presença na sua arte, inspirada nas cercanias bucólicas de
Itapoã, onde passaria anos depois a residir; finalmente, uma última gravura interna
estampava potente locomotiva, no estilo maria-fumaça, a arrastar sombrio comboio de vagões, por sobre encostas
e campinas, demarcando a modernidade com que incipiente progresso desvirginava brenhas
cacaueiras presentes nos poemas da seção intitulada “Composição de
ferrovia”.
Viria depois a colaboração gráfica
com que Calá conferiu dimensão de monumento ao livro Fábula Civil (1975), em forma de álbum, cujos versos abandonavam o
bucolismo dos descampados rurais, para centrar-se nas plúmbeas contradições do
mundo urbano, tomado de uma ânsia por reformas, transformando a paisagem em
extensões de culto ao concreto armado e ao asfalto, mas carregado de forte
desrespeito aos ideais do humanismo, em tempos de ditadura e corrosiva
opressão.
Locomotiva, de Calasans Neto (Reverdor) |
Neste cenário, as
xilogravuras de Calá adquirem nova feição, reforçando uma tendência que, pelo
traço, agregava forte carga de expressionismo à figuração, sem fechar as portas
à ternura e à pungência. Montada em vigoroso traço, a linguagem então se firma,
com títulos em baixo relevo sobre o intenso vermelho da capa; letras gravadas demarcam
a página-de-rosto e se embrenham pelas três seções divisórias da edição, travando-se
um diálogo de figuras com títulos também gravados.
Agora rostos tensos e
meditativos se defrontam com enigmas que pululam nos versos; cavaleiros em célere
fuga trafegam sobre chão de caveiras; bocas escancaradas sob açoites atestam perseguições
e invocam urgência de socorro num trançado de angústia e de assombros, como
habitantes solitários ou náufragos perdidos dentro de uma noite que se fecha em
trevas, cujas portas não se abrem, sugestões dramáticas inteiramente captadas e
ressaltadas pelos entalhes e incisões do artista.
Calá também participou da
homenagem em versos que eu e Fernando da Rocha Peres prestamos à memória de
Glauber Rocha, em 1985, agora em edição também artesanal com monotipias
alegóricas que aludiam a momentos épicos e dramáticos da obra do saudoso amigo e
vibrante cineasta, ícone de toda uma geração. Em A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, obra editada pela
Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e Arte), presentes na
capa e nas separatrizes, oito gravuras de Calasans Neto enriquecem a editoração
imaginada então por Claudius Portugal, todas elas refletindo as figurações tanto
lúdicas quanto líricas que são marcas de sua pintura, gravuras e desenhos nos
anos 1980 e 1990.
Referindo-me ao ilustrador, aqui
apenas atomizo uma parte da obra gráfica do artista Calasans Neto, que, restringindo-me
só ao campo da poesia, também engrandeceu o visual da obra de outros muitos autores,
a começar por Samba de Roda, de Fred
Souza Castro, livro que inaugurou, em 1957, a aventura editorial cognominada
Edições Macunaíma (suponho seja este o primeiro livro ilustrado por ele),
seguindo-se os de Fernando da Rocha Peres (Diluviano,
Rurais, Tempo Objeto), Paulo Gil Soares (Mirante dos Aflitos), outros muitos e Myriam Fraga, Alberto Luiz Baraúna, Humberto Fialho Guedes, José
Carlos Capinan, entre outros baianos, sem falar em Vinicius de Moraes e Pablo
Neruda, além de obras de destacados ficcionistas, entre os quais Jorge Amado.
Pertence às esferas mais altas
da estética e do humanismo este conluio salutar entre as artes plásticas, a
poesia e a literatura, no que se refere à ilustração de obras gráficas. Faz
parte da história da civilização ocidental, desde o Renascimento, esta forma de
cooperação, participação e intercâmbio gráfico, que se acentuou mais
incisivamente a partir dos movimentos de vanguarda nos inícios do século passado,
sem menosprezar o que teria representado para o mercado livreiro, desde a
segunda metade do século anterior tal parceria, notadamente a que se
estabeleceu entre pós-impressionistas e simbolistas,
Quanto a mim, essa transação
de minha poesia com os signos da linguagem plástica de Calasans Neto teve um
significado de diálogo e congraçamento, já que a gravura desse artista, ela
própria um processo poético, pressupõe entrelaçamento e sugestão tributários de
identidades que emergem do significado dos temas tratados. Tal evidência
trespassada por um sopro de inocência juvenil só se explica pela confluência de
sentimentos e aspirações geracionais alojados num cosmo secreto das amizades.
Soa como reverberação de potencialidades recônditas. Aproveito para aqui expressar
o meu eterno agradecimento ao saudoso companheiro de geração e mestre da
gravura Calasans Neto (1932-2006).
Calasans Neto, Edições Macunaíma, Plaquete, 1985 |
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