Agonia, pintura a óleo, do expressionista alemão Egon Schiele |
Florisvaldo Mattos
Se
é possível comemorar um barulho literário de 85 anos, este seria precisamente o
que teve como protagonista involuntário um poeta, na longínqua manhã de 6 de
junho de 1912, cuja "sombra magra" deveria estar se movimentando pelo
centro do Rio de Janeiro, melancolicamente engolfada em angústias e ânsias, que
eram o diapasão de sua vida, desde que nascera na Paraíba, 28 anos antes. Nesse
dia estava saindo do prelo, para desde então agitar mentes de leitores e de
críticos pelo restante do século, Eu,
o estranho livro do estranho Augusto dos
Anjos, cuja figura Órris Soares, seu amigo e primeiro crítico sério, com
atordoante precisão, sete anos depois, assim descrevia:
"Foi
magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida - faces reentrantes, olhos
fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer
de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma
crispação de demônio torturado. (...) Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o
sombrio da epiderme trigueira. A clavícula, arqueada. No omoplata, o corpo
estreito quebrava-se numa curva para diante. Os braços pendentes, movimentados
pela dança dos dedos, semelhavam duas rabecas tocando a alegoria dos seus versos.
O andar tergiversante, nada aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens
que lhe agitavam o cérebro."
Isso
é mais que um retrato, algo que parece ter saído da paleta de um adepto do
expressionismo alemão, ou talvez de um membro de outra também escola de
pintura, em voga alhures, na época em que Augusto dos Anjos escrevia seus mais
poderosos e contundentes poemas, sem nenhuma repercussão por aqui, como depois
ficaria provado - o cubismo. Pois é justamente com a arte deles, dos
expressionistas (Munch, Ensor, Kirchner) e dos cubistas (Derain, Picasso,
Braque), que se assemelha esteticamente uma parcela substancial da poesia desse
paraibano nascido no Engenho Pau d'Arco, como poderia demonstrar uma pinçagem
em nada trabalhosa nos poemas de seu impressionante livro.
"Do observatório em que eu estou
situado
A
lua magra, quando a noite cresce,
Vista,
através do vidro azul, parece
Um
paralelepípedo quebrado”
("Tristezas
de um Quarto Minguante")
Ou:
“Às
vezes, das pirâmides o quedo
E
atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma
sombria interjeição de medo!
("Uma
Noite no Cairo")
“Nos terrenos baixos,
Das
laranjeiras eu admiro os cachos
E
a ampla circunferência da laranja.
("Gemidos
de Arte")
E
mais em outros poemas:
"A
manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo
E a câmara odorífera dos sucos.
"Lançavam
pinceladas pretas de óleo
Na
arquitetura arcaica dos sobrados".
"O
amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!
"Araucárias,
traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens"
"Com a cara hirta tatuada de
fuligens"
"É
a dor da força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do nada!"
O
que será isto, dentre outros exemplos, senão modernismo pleno, premonitório,
vanguarda? De um só jato, sugerem no mínimo derivações literárias da estética
do expressionismo e do cubismo que, entre 1905 e 1914, ano da morte do poeta,
esquentavam a atmosfera da arte europeia. A crítica inicial, dividindo-se entre
informativa e opinativa, mas preconceituosa, iria preocupar-se basicamente nele
com o insólito, o estranho, o chocante, o monstruoso. "O Eu fez barulho
logo à chegada", proclamava Oscar Lopes, em O Paiz, três dias depois de lançado o livro. Completados sete dias,
13 de junho, dele falava o baiano Euricles Matos, em A Tribuna, chamando Augusto dos Anjos de "belo poeta" e
vendo o Eu como "o acontecimento poético do ano".
Quatro
dias depois, 17, aparecia no Correio da
Manhã a crítica de Osório Duque-Estrada, primeira análise em profundidade
da obra, que logo de entrada dizia: "Deste original e desequilibradíssimo
poeta não fez ainda a crítica um juízo definitivo, imparcial e sincero."
Reconhecia-lhe valor como "promessa de um extraordinário poeta, abortada
na alma de um filósofo", de "um grande talento transviado pelo
cientificismo", mas numa situação que favorecia a presença de
"verdadeiras monstruosidades, aleijões abortados de uma fantasia delirante
e de uma torturada imaginação que se obstina em parecer única e original".
Apreciando
seus poemas concretamente, o crítico revelava certo espanto, em forma de
blague: "À primeira vista, parece que o homem é doido; mas não é". No
entanto, ao lado de afirmativas que deviam torturar ainda mais o poeta no seu
silêncio, em uma passagem de sua análise, Duque-Estrada quase teve a premonição
do que havia de essencial na poética do Eu, a chave de sua permanência dentro
da literatura brasileira. Ei-la: "São inúmeros os versos duros e sem
ritmos, creio que propositalmente empregados para que as extravagâncias de
forma corram paralelas com as teratologias de concepção." Passou perto,
mas sem enxergar por inteiro a modernidade de Augusto dos Anjos, tarefa de que
se encarregariam muitos de seus pósteros.
Coube
ao pernambucano Álvaro Lins atirar no alvo e acertar na mosca, começando por
ver o pouco êxito do Eu, na época do lançamento, como decorrente da sua
condição de "corpo estranho aos padrões correntes", que eram ainda os
da vigência estética tardia do parnasianismo e do simbolismo no Brasil.
Taxativo, afirma Lins, sem titubear: "Ele é, entre todos os nossos poetas
mortos, o único realmente moderno, com uma poesia que pode ser compreendida e
sentida como a de um contemporâneo", um poeta "iluminado por uma
projeção de permanente atualidade, que o lança incessantemente para o futuro,
como um ente cada vez mais vivo, com o seu canto apropriado para tocar
diretamente a inteligência, o coração e os sentidos de homens de todos os
tempos"; enfim, foi "o poeta brasileiro cujo pensamento atingiu maior
altura, densidade e consistência".
Mais
tarde, Alfredo Bosi encontraria em Augusto dos Anjos um "poeta poderoso
que deve ser mensurado por um critério estético extremamente aberto", cuja
"visão cósmica e desespero radical" produzia uma poesia
"violenta e nova", própria de um "espectador da agonia", um
"poeta do cosmo em dissolução". A modernidade que os críticos
passaram a vislumbrar na poética de Augusto dos Anjos provinha basicamente de
ele não reverenciar o caráter nobre ostentado pela poesia dos decênios
anteriores, nem aspirar a ser compreendido logicamente, valendo-lhe mais o
conceito que a percepção, através de uma expressão em que memória e objeto
visado se interligam.
De
fato, embora a poesia de Augusto dos Anjos mantenha vínculos com a forma
simbolista, na ideia poética transmitida quase nada o vincula ao símbolo, à
mística ou ao penumbrismo do momento. Prefere percorrer um caminho povoado de
imagens bárbaras para, quebrando o impulso da lógica, que poderia ser um
resquício parnasiano, tratar com elementos provenientes da ciência e da
filosofia que, à sua época, influenciavam os espíritos cultos e, assim,
poder-se-ia dizer, plagiando André Salmon, um teórico do cubismo, melhor
representar na totalidade os homens e as coisas. O que nele poderia parecer
esquemático, como se supunha, na verdade, provinha de uma inspiração ante o
terror do mundo, que logo depois a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918)
iria comprovar: o espelho da inteligência a deformar os objetos sob um toldo
sombrio de tristeza e morbidez. Predomina uma razão estética nova, ao amparo da
melancolia e, frequentemente, do tétrico, a revelar signos que, à luz da
ciência e da filosofia materialista, traspassam a floresta de conhecimentos
antes incutidos na consciência dos possíveis destinatários daquela poesia vista
como estranha.
A
poesia de Augusto dos Anjos confundiu os críticos da primeira hora - e até de
depois - justamente porque refletia uma atmosfera de mudanças que o poeta,
homem culto e ávido leitor, percebera, pela incursão e revelação de novos
prismas que a ciência então facilitava. Malgrado as estocadas chocantes de seus
versos, em que muitos veriam mau-gosto, o poeta paraibano deixou um bloco
homogêneo de poemas com que mergulha na realidade profunda do ser humano, e
dele próprio, e era novo o horizonte para o qual sua obra apontava. O futuro
não lhe pertencia, mas ficou evidente que lhe fazia cativantes acenos.
Aberta
à argúcia da interpretação dos signos da ciência, parece inegável que a obra de
Augusto dos Anjos atua como espelho e sorvedouro de múltiplos domínios do
conhecimento humano - na época em pleno descortínio de horizontes -, que se
projetavam em seus versos e que neles encontravam abrigo: geologia ("Nos
recôncavos úmidos das hulhas"); mineralogia ("Era a dor do minério
castigado"); química ("Eu, filho do carbono e do amoníaco");
física ("A alma dos movimentos rotatórios"); astronomia ("Em
cujo fundo a Via-Láctea existe"); matemática ("E a morte, é esse
danado número um"); geometria ("Batia com o pentágono dos
dedos"); antropologia ("Na luta da espingarda contra a flecha");
biologia ("Tinha a abundância de uma artéria rota"); botânica ("Também,
das diatomáceas da lagoa"); zoologia ("E eu me encolhia todo como um
sapo"); anatomia ("Copiava a polidez de um crânio calvo");
psicologia (" A matilha espantada dos instintos"); geografia
("Foi nessa ilha encantada de Cipango"); história ("Esse achincalhamento
do progresso"); economia política ("O homem grande oprimindo o homem
pequeno"), e outras tantas ciências presentes em seus poemas - enfim, toda
a engrenagem de saberes que informava a fluente modernidade, a densa matéria
cultural com que dialogava seu espírito.
Dirão,
mas ele não dispensou a métrica e usava a rima. É fato, mas tudo como meio,
jamais como fim, já que não se mostrava escravo de convenções estéticas,
sobretudo literárias. O que interessava a Augusto dos Anjos não eram sistemas
rítmicos e padrões sonoros, mas tão-somente a operação do pensamento, para
distinguir o mundo dos objetos referenciados à sua alma. Expulsava de suas
preocupações todo valor anedótico que poderia advir do lavor parnasiano ou das
sugestões de penumbra do simbolismo, que seguramente iriam aprisioná-lo nas
grades - esse o termo - do academicismo como um mero repetidor de fórmulas.
Nele o cérebro predomina sobre a visão e a audição. Era das ideias que lhe
vinha o impulso geral da criação poética. Nada na sua poesia é decorativo, nada
é moral; por isso iria incomodar certo gosto cultivado o que a muitos parece
nele ter de chocante. Na realidade, a poesia desse paraibano recusa o mundo
unívoco da evidência, trocando-o pelo da pluralidade de mundos particulares;
preferia atuar num universo de culto a uma idiossincrasia e, por isso, o belo
em Augusto dos Anjos acaba por ser realmente, como já foi dito, uma questão de
gosto. O conceito de gosto liga o belo intimamente à subjetividade humana, como
faculdade para distinção entre o belo e o feio, fundamento da opinião crítica
em arte e literatura.
Arrisco-me
a um corolário: depois do lançamento do Eu, de Augusto dos Anjos, a poesia
brasileira nunca mais seria a mesma; a modernidade de que estava possuída
lançou para longe a corrente fria das águas em que ainda se banhavam poetas
recalcitrantes, como o cearense José Albano, os dois Fontes (Martins e Hermes),
Raul de Leoni, Moacir de Almeida e Amadeu Amaral, e até mesmo alguns dos nossos
primeiros grandes modernos: Manuel Bandeira (Cinza das Horas), Jorge de Lima
(XIV Alexandrinos) e - quem diria? - Mário de Andrade (Há uma Gota de Sangue em
Cada Poema), esses últimos, por sinal, todos de 1917. Augusto dos Anjos,
pode-se dizer, foi um navegador que, voltado embora incipientemente para o
dinamismo universal, abandonara a superfície em busca de outras temperaturas.
Não imitou ninguém e quem o quis imitar se perdeu. Depois dele iria para sempre
fender-se o muro da poesia de efeitos decorativos, eivada de amores cândidos e
elementos morais e cívicos. Ele falava direto à consciência poética e até com
ela esgrimia.
Sou
tentado, mais uma vez, à inferência. A história da dicção poética brasileira
seria outra se Augusto dos Anjos, ao invés dos artifícios da métrica e da rima,
que reduzia a técnica de seus praticantes a um ofício bate-bate - por ele
recusado, diga-se (Órris Soares) - tivesse adotado o verso-livre, que 10 anos
depois seria a haste em que tremulava a bandeira revolucionária dos modernistas
e que já aparecera, adotado pela primeira vez no Brasil, no mesmo ano de aparição
do Eu, 1912, introduzido pelo simbolista Mário Pederneiras que lançava seu
livro Ao léu do Sonho e à mercê da Vida. Os modernistas adotaram o verso-librismo,
com que declararam guerra sem tréguas ao soneto, à métrica e à rima, a tudo
enfim que era fixo, mas, como ficaria patente, falharam nas opções estéticas,
preferindo ao expressionismo e ao cubismo as peraltices do futurismo de F.T.
Marinetti, que recomendava ao artista "voltasse suas costas ao passado e
aos procedimentos convencionais para preocupar-se tão-somente com a vida
agitada e barulhenta da florescente cidade industrial" (Joshua C. Taylor).
Explica-se
a atitude dos modernistas que viriam logo a seguir, não se detendo sobre
Augusto dos Anjos, sua arte e seu pensamento, pela empolgação que despertara o
espírito beligerante e iconoclasta do manifesto de Marinetti, sensibilizando de
logo a imaginação de escritores e artistas em toda a Europa e, dali,
imediatamente, no mundo inteiro. O rumo proposto era menos fecundo, mas
entusiasmava, embora o caráter titubeante do movimento de Marinetti se
manifestasse logo ao findar-se a Grande Guerra (1914-1918), quando os
futuristas passaram a desentender-se quanto a práticas e princípios, não
faltando entre eles quem execrasse o próprio Marinetti por ter colocado a
vigorosa e agressiva tática de propaganda do movimento original a serviço do
fascismo nascente, sob a liderança de Benito Mussolini, que dela se apropriou
como suporte filosófico e estético à sua empreitada política, causa talvez da
rápida perda da influência mundial do movimento.
Cabe
aqui um parêntese na comichão de uma pergunta: por que os modernistas
brasileiros se tornaram seguidores do futurismo? Deduzo: por uma questão apenas
de similitude e aproximação. Como movimento cultural e estilo artístico, o
futurismo surgiu numa das nações industriais ao seu tempo menos avançadas da
Europa moderna, a Itália, de onde provinham, além de Marinetti, artistas do
quilate de Carrá, Russolo, Balla, Boccioni e Severini e, por isso, de desenho
socioeconômico mais fronteiriço das aspirações da emergente elite intelectual
brasileira, notadamente a paulista de 1922, ano da Semana de Arte Moderna.
A
industrialização italiana, no início do século, estava muito aquém da que então
usufruíam franceses, ingleses e alemães, embora os futuristas com seu propósito
específico de exaltar a máquina, como observa Vytautas Kavolis, e de impor à
natureza "o molde dinâmico da mobilidade mecânica", se mostrassem
mais harmonizados com o espírito do industrialismo que outros movimentos de
vanguarda. Parece ter sido esta a razão acalentadora dos nossos modernistas,
que sonhavam com uma desvairada paulicéia tão industrializada quanto as cidades
italianas que lhe serviam de espelho, estimulados que estavam também por outro
fator: a presença crescente da imigração italiana em São Paulo, que iria
favorecer uma articulação econômica conformadora entre agricultura e
industrialização, envoltas ambas por um componente modernizador. Não custa
lembrar o que estava acontecendo na Europa, desde o início do século, em
matéria de expansão demográfica: a migração europeia se torna a mais importante
do mundo, contribuindo para consolidar e desenvolver as economias e as
sociedades de além-mar, entre estas incluindo-se as da Argentina e Brasil, o
que se expressa em números formidáveis: por volta de 1913, nada menos de
400.000 somente italianos tinham cruzado o oceano com destino a esses dois
países e aos Estados Unidos, afugentados de suas terras pela miséria, conforme
dados históricos.
Deu
no que deu, entre nós: para um país de incipiência industrial e ainda agrário,
como o Brasil dos anos 20, teriam feito muito melhor se aspirassem e sonhassem
mais alto, esteticamente, seguindo em outra direção - a das oficinas em que se
forjava e de onde se projetaria a grande arte do século, que era justamente o
que propalavam e por que propugnavam os expressionistas e os cubistas, embora
vivessem estes em sociedades industrialmente mais avançadas. Aqui, preferiu-se
o anedótico, de mistura com um certo nacionalismo (que abriria portas ao
fascismo tupiniquim, é bom lembrar), justamente o que Augusto, anos antes, já
abominava. É o que provariam os anos por vir.
Em
Augusto dos Anjos, observa-se que a andadura de sua poética atrelava-se a um
arcabouço histórico do qual irrompia a modernidade com o tecido de um fenômeno
global, não restrito apenas a um país, ou mesmo a um continente, a Europa, mas
um fenômeno assim de abrangência planetária, a cuja influência ninguém, de
nenhum lugar, deveria estar imune. A aspereza intrínseca de sua dicção poética
configurava o que se poderia chamar, com Lionel Trilling, uma "linha de
hostilidade" contra o que considerava velho, um desencanto para com
modelos estéticos, anteriores, mas ainda renitentes, atraído por uma ideia
associada à consciência da desordem, de um sentimento de desespero, uma
ebulição de energias íntimas que se ligava a um ponto de inflexão moderna, que
inesperadamente logo iria deixar tudo para trás.
Era
como se nele, pelo teor da obra, aflorassem nos trópicos, já em processo de
amadurecimento, ideias de rompimento com um statu
quo ante que, sustentadas e desenvolvidas na Europa dos anos 1890,
inauguravam o novo século, despertando grande fascínio por uma nova consciência
- estética, psicológica e histórica -, a denunciar aquela propulsão dos tempos
modernos que, no dizer de Bladbury e McFarlane, "trazem consigo novas
esperanças e votos de progresso e novas forças, psíquicas e sociais,
subjacentes", já detectadas anteriormente na filosofia de Nietzsche, no teatro
de Ibsen e Strindberg, na pintura de Gauguin e Cézanne, no vigor de uma
transição moderna que leva a uma vertiginosa associação entre mente e emoção e,
sob um signo de fragmentação e descontinuidade, a um próximo agrupamento de
forças, revigorante e continuador. Puro modernismo.
Indignado
com o pouco caso que os paraibanos faziam de Augusto dos Anjos, depois de uma
visita à Paraíba, aonde fora levado pela mão de José Lins do Rego (erguiam
estátuas a políticos conservadores, enquanto davam o nome do poeta a um mísero
beco), ainda jovem, Gilberto Freyre resolveu escrever, depois de ler o Eu que o
amigo emprestara, um artigo em inglês que publicaria numa revista
norte-americana, dando uma nova interpretação à sua poesia original, encoberta
por um caso (agudo, diria depois Zé Lins) de desajustamento de personalidade.
Dessa leitura Freyre sairia convicto de que, ao contrário da maior parte dos
poetas latino-americanos, Augusto dos Anjos "não tinha a obsessão das
palavras suaves nem das vogais sempre doces", porque dava a seus poemas
"um audacioso sabor mais para os olhos que para os ouvidos",
comparando-o aos artistas do expressionismo alemão, e indo além: "Havia em
Augusto dos Anjos alguma coisa de um moderno pintor alemão expressionista; um
gosto mais de decomposição que de composição".
Ao
que parece intencionalmente, Gilberto Freyre tocava num ponto fundamental,
ligando a poesia de Augusto dos Anjos ao expressionismo que, dominante na
Alemanha a partir de 1905, pregava na arte o abandono das ideias tradicionais
em favor de distorções ou exageros de forma e cor para expressar, em estado de
premência, a emoção do artista, do qual na época eram os maiores representantes
nada menos que Edvard Munch, James Ensor e Kirchner, inspirados no precursor
Van Gogh, que optara pelas distorções de formas naturais, para expressar
"as terríveis paixões do homem".
Embora
duvidando de que deles tenha tomado conhecimento, o crítico Anatol Rosenfeld
compara Augusto dos Anjos, pelo lado sadomasoquista, não sem razão, a Georg
Trakl, Georg Heym e, sobretudo, a Gottfried Benn (nascido dois anos depois
dele, 1886), poetas representativos do expressionismo alemão, quando introduz a
palavra "de dura e firme consistência", oriunda da ciência e da
filosofia, "no corpo mofado da língua poética tradicional", gerando
com isso uma "terminologia exotérica", exata como as fórmulas
matemáticas, mas que, embora alusiva a uma semântica bárbara, produz ao mesmo
tempo um "efeito encantatório", revelando um poeta ansioso por
libertar-se da prisão da língua e expressionalmente da prisão da linguagem
poética vigente.
E
mesmo observando "diferenças profundas, de forma e substância", dos
três alemães entre si e deles para com o brasileiro, Rosenfeld no entanto
vislumbra "coincidências notáveis", particularmente entre Augusto dos
Anjos e Benn, referindo-se ao que em ambos os casos se poderia chamar de
"uma poesia de necrotério". Depois de um paralelo, alinhando
expressões e versos de um e outro, diz o crítico: "Essa poesia
sadomasoquista lança o desafio do radicalmente feio à face do pacato burguês,
desmascarando, pela deformação hedionda, a superfície harmônica e açucarada de
um mundo intimamente podre. Não só o ser humano, também a palavra e a metáfora
tradicionais desintegram-se ante o impacto dessa poesia" - pela presença
de um núcleo "irradiador de tensões", que torna o mundo de Augusto
dos Anjos, "na essência, proparoxítono, esdrúxulo, dissonante".
A
essa perspectiva não ficaria imune um outro analista da obra de Augusto dos
Anjos, o crítico Agripino Grieco; para ele, tratava-se de um poeta amante das
"paisagens em desalinho" e das dissonâncias, observando-lhe, ao
compará-lo com o português Cesário Verde, seu mais próximo par na língua,
"certa volúpia de escandalizar o burguês", em que persistia "um
prazer aristocrático de contrariar os escrúpulos do próximo".
É
verdade que um forte traço expressionista se manifesta na poesia de Augusto dos
Anjos, mas não pode ser alijada, a meu ver, a presença concomitante da vertente
cubista, já que nela a beleza se expressava em termos de volume, de linha, de
massa, de peso, como esclarecia Georges Braque, numa declaração (1908-1909), em
que indicava a forma pela qual buscava melhor interpretar a sua "impressão
subjetiva", e - por que não? - também em termos de energia, de dínamos
elétricos, de Raio X, de átomos, de rutilâncias, de microscópios, de caos, de
Cosmo novo, enfim, de geometria e física, para apreender o objeto nas suas
várias faces - ou, para se ver, no Eu, em um de seus versos emblemáticos, um
sobrevivente "dentro da filogênese moderna", onde residia claramente
sua subjetividade.
Em
um sem-número de versos de Augusto dos Anjos pode ser realmente deduzida toda
uma geometria que, ao tempo da escritura dos poemas do Eu ultrapassa em suas
especulações as três dimensões da geometria euclidiana, voltada mais para os
signos de uma realidade concebida, referenciada mais à mente que à instância
dos sentidos, emparelhando-se com as cogitações e preocupações, que, como
registrou Apollinaire (a propósito de Picasso), "na linguagem dos ateliês
modernos, eram designados pelo termo quarta dimensão.
"Um
Picasso estuda um objeto como um cirurgião disseca um cadáver", observava
o francês, fixando situação provavelmente igual à que Augusto dos Anjos deveria
conceber na sua forma peculiar de interpretar as impressões de sua inteligência
criativa, o que pode perfeitamente sugerir que o paraibano, cá nos trópicos,
por intuição, fora atacado pelas mesmas preocupações dos cubistas no início de
seu movimento.
Se
atentarmos para uma observação de André Salmon relativamente à arte de Jean
Metzinger e Robert Delaunay, dois a quem se atribuem as primeiras formulações
do cubismo (1908), ao dizer que pintavam paisagens "povoadas de casinhas
reduzidas à estrita aparência de paralelepípedos", não estaremos longe de
algumas construções de Augusto dos Anjos, como a aqui já citada, referente à
sua visão da lua em quarto-minguante, em que a ideia poética recompõe o objeto
contemplado na forma de "um paralelepípedo quebrado", à distorção da
imagem por um vidro.
A
semelhança se dá porque, na realidade, era o infinito que o poeta tomava como
dimensão de seu ideal artístico; é o que exprimiam suas aspirações e
inquietudes, recobrindo de um clamor sombrio suas meditações sobre os produtos
da ciência contemporânea, em sua forma singular - sempre mais cerebral que
sensual - de alcançar o sublime. Como poeta, seu tempo era interior, a
realidade só lhe interessava mediada pelo conhecimento, atribuindo uma função
social à renovação que se pudesse imprimir às aparências.
"Os
poetas e os artistas determinam as características de sua época e o futuro se
desdobra docilmente aos seus desejos", sentenciava Apollinaire, no momento
mesmo em que Augusto dos Anjos criava uma poesia cujos traços essenciais só
poderiam ser decodificados, e mesmo interpretados, por pessoas de uma época
posterior, pensando já além de seu tempo, como efetivamente aconteceu.
O
modernismo de Augusto dos Anjos não passaria desapercebido a outro crítico e
também poeta, o maranhense Ferreira Gullar, que, depois de reconhecer-lhe uma
linguagem poética, cuja impostação original o faz superar influências anteriores
e o livra do formalismo e do elemento puramente ornamental, como era da dicção
poética, à sua época, desvenda-lhe "traços que caracterizam a nova poesia,
a que se convencionou chamar de poesia moderna", e atesta que, por seus
poemas, passa não a doirada plumagem que vestia a poesia anterior, mas "a
experiência concreta da vida", mediada por uma nova linguagem.
As
impurezas que incomodavam as mentes e os ouvidos dos contemporâneos do poeta, e
até posteriormente, seja dito, eram as mesmas que, na poesia como em qualquer
arte, estampavam a face mutante do moderno. Em Augusto dos Anjos, segundo
Gullar, "manifesta-se a consciência - que é moderna - do caráter
contingente, histórico, situado, da existência". E um aspecto que a muitos
pareceu negativo no paraibano, a vizinhança expressional em alguns momentos com
a prosa, tida como impureza, era justamente outro traço que o impulsionava para
o moderno, o da descontração formal, tão cara aos futuros modernistas, porque
não pode haver poesia constituída somente de elementos poéticos, seria o seu
fim, já dizia Eliot (citado por Gullar). A conservação de "alguma
impureza" é da própria essência da poesia moderna, já que grande parcela
do mundo da modernidade se compõe de impurezas.
Ao
contrário do que a muitos poderia parecer, por trás da carapaça que lhe vestia
a pobreza e a melancolia, Augusto dos Anjos possuía uma inteligência de antenas
ligadas no seu tempo. Era um guerreiro de "espadas rútilas", como
disse num de seus mais perfeitos sonetos ("Vencedor"), portador de
uma cultura variada e vasta para sua idade (morreu com 30 anos incompletos).
Para comprová-lo basta listar ao léu, à guisa de ilustração, os nomes citados,
direta ou indiretamente, em muitos de seus poemas, que revelam a qualidade de suas
leituras e de seu gosto. Deem-se exemplos. Pintores que apreciava: Leonardo da
Vinci e Rembrandt (chega num poema, "Queixas Noturnas", referindo-se
a um "quadro de aflições" e, lógico, à pintura acadêmica brasileira,
a dizer textualmente que "o próprio Pedro Américo não pinta.../Para
pintá-lo, era preciso tinta/Feita de todos os tormentos do homem"; não é
preciso mais...); filósofos e cientistas, dispensando o execrado Haeckel das
moneras: Anaximandro, Giordano Bruno, Schopenhauer, Herbert Spencer, Darwin, o
xará Augusto Comte, Nietzsche (este, segundo o crítico baiano Eduardo Portela);
na música: Richard Wagner; poetas e escritores: Ésquilo, Propércio, Shakespeare,
Goethe, os irmãos Goncourt, além de livros seminais, como a Bíblia, o Rig-Veda,
e as mitologias grega, egípcia, germânica e oriental - somente o que está
citado em poemas, o que faz supor que seu horizonte tendia a ampliar-se muito.
A
85 anos do lançamento do Eu, se Augusto dos Anjos permanece um expoente
solitário, ainda de árdua decifração dentro da poesia brasileira, desafiando os
exegetas, ele se tornou uma figura inevitável; não há como a ele ser
indiferente, ante a sucessividade das edições de sua forte poesia: chegam a
quase meia centena, um dado impressionante para o gênero. Além do mais, já de
algum tempo, não se tem furtado a obra do poeta ao diálogo com outras
linguagens artísticas modernas, sabendo-se que foi à poesia do paraibano que Glauber
Rocha recorreu, no momento de fixar com signos dramáticos o título completo de
seu filme Di, que narra o enterro de Emiliano Di Cavalcanti, no Rio de Janeiro,
em 1976 (por sinal, de exibição até hoje interditada pela família do pintor).
Deu-lhe como aposto nada menos que a primeira estrofe de um famosíssimo soneto
dele - "Versos Íntimos": "Vês?! Ninguém assistiu ao
formidável/Enterro de tua última quimera. / Somente a ingratidão - esta pantera
-/Foi tua companheira inseparável.”
O
gesto escritural do instigante cineasta baiano insinua que a obra de Augusto
dos Anjos, por não se conter nos estreitos limites de sua temporalidade, começa
a estabelecer contato com outras formas modernas de conhecimento, o que sugere
possibilidades de contato com outras linguagens artísticas, como a música, a
dança, a pintura, a escultura, o teatro, a confirmar que a arte de Augusto dos
Anjos, por seus elementos intrínsecos e extrínsecos, arrebenta com as
cronologias, dialogando tanto com o passado (o longínquo e o próximo), como com
o presente e com o futuro - uma poesia que se mantém como arte viva, devoradora
de perspectivas históricas.
E
para comprová-lo, a imagem do paraibano vem de projetar-se hígida no terreno da
ficção literária com o romance de Ana Miranda, A última quimera (1995), título oriundo de um verso do mesmo soneto
que inspirou Glauber Rocha, no qual nos últimos capítulos duas surpresas se
reservam ao personagem-narrador. No primeiro episódio, o Jornal do Commércio do Rio de Janeiro anuncia sucessivas tiragens a
se esgotarem da reedição do Eu,
chegando a vender em pouco tempo (supõe-se em 1920) cinquenta mil exemplares.
“Torna-se o mais espantoso sucesso de livraria dos últimos tempos! Impossível
não admirar certas composições! Um talento superior! A obra de um ourives
louco!” - são exclamações do narrador, ao presenciar que “gente de diversas
classes corre aos balcões para tentar compreender a poesia insondável de
Augusto.” Ele havia vencido, embora tarde. No outro, no capítulo final, é a
presença de uma jovem de “rosto pálido”, fazendo supor alguém dotado de uma
intensa e sofrida vida espiritual”, que o aborda de madrugada numa farmácia,
instigando-o a falar “alguns minutos sobre Augusto”, mas ele tem pressa e segue
para casa, “como se fugisse”.
Referências
Ana Miranda - A última quimera (romance). São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
Ferreira Gullar -"Augusto
dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina", in Toda a Poesia de Augusto dos
Anjos. RJ: Paz e Terra, 1976.
Eudes Barros - A Poesia de Augusto dos Anjos - Uma Análise
de Psicologia e Estilo, Rio de
Janeiro: editora Ouvidor, 1974.
José Paulo Paes- “Augusto dos
Anjos ou o evolucionismo às avessas”. Introdução a Os melhores poemas de Augusto dos Anjos. São Paulo: Global Editora,
1994.
Gilberto Freyre -"Nota sobre
Augusto dos Anjos", in Perfil de
Euclides e Outros Perfis. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1944.
H. B. Chipp
-Teorias da Arte Moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996, principalmente os seguintes textos: "História
Anedótica do Cubismo", 1912, de André Salmon; "Cubismo", de
Albert Gleizes e Jean Metzinger; "Começos do Cubismo" e "Os
Pintores Cubistas", de Guillaume Apollinaire e "O Futurismo,
introdução", de Joshua C Taylor. Vários tradutores.
Juca Pontes
(editor) - Augusto dos Anjos - Obra,
Discussão e Crítica num Centenário.
João Pessoa (PB), 1984.
Malcolm
Bradbury e James McFarlane- "O nome e a natureza do modernismo", in Modernismo - Guia Geral. Tradução:
Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Maurice
Crouzet - História Geral das Civilizações,
Volume 15 - A Época Contemporânea. Tradução: J. Guinsburg e
Vítor Ramos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
Orris Soares
- Elogio de Augusto dos Anjos.
Introdução à segunda edição do Eu
(1920), reproduzida nas seguintes, inclusive na citada de 1983. Em 1996, a
editora Nova Aguilar (RJ) publicou a Obra Completa de Augusto dos Anjos, em
capa dura e papel-bíblia, org. pelo poeta Alexei Bueno.
Vytautas
Kavolis -"Expresionismo abstracto e puritanismo", in La expresión artística: un estudio sociológico. Tradução: Aníbal
C. Leal. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1970.
______________________
Versão
ligeiramente ampliada de ensaio publicado em A TARDE Cultural de 07/06/97 pelos 85 anos da primeira edição do Eu, de Augusto dos Anjos, no Rio de
Janeiro.
Carta de Ester, esposa de Augusto,
a Sinha Mocinha, mãe do Poeta:
“O mês de outubro já corria em meados quando Augusto dos Anjos adoeceu. O Dr. Custódio Junqueira lhe fez uso de alguns remédios, que não fizeram ceder o mal estar. No dia 29, Augusto caiu na cama com muita febre, frio e dor de cabeça. O Dr. Custódio foi novamente chamado. A base do pulmão direito está congestionada, disse, depois que o examinou […]
A doença abateu o seu corpo franzino, não conseguindo, entretanto, abater-lhe o espírito que se conservou lúcido até 20 minutos antes de expirar… Ele me chamou, despediu-se de mim, dizendo-me:
Mande as minhas lágrimas para a minha mãe; mande lembranças para os meus amigos do Rio; trate bem as criancinhas Glória e Guilherme; dê lembranças às meninas do grupo… Recomendou-me que guardasse com cuidado todos os seus versos…”
AUGUSTO LIGHT
Antologia
O conjunto de poesias de Augusto dos
Anjos que se lerá adiante representa uma seleção inteiramente arbitrária,
reunindo criações suas constantes de Eu e
outras poesias que, mantendo seu
alto nível de imaginação, construção poética e força expressionista e, assim,
confirmando e concentrando qualidade, apresentam uma elocução e um desenho
estético distantes dos poemas construídos sob o signo do tétrico e do aziago,
com que o poeta paraibano ficou mais conhecido e, até por causa disso, fosse
geralmente mal interpretado e caricaturado.
(F. M.)
AGONIA DE
UM FILÓSOFO
Consulto o
Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E,
ante obras tais, me não consolo...
O
Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica
fúria do harmatã inquieto!
Assisto
agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os
fenômenos do solo
Parecem
realizar de polo a polo
O ideal de
Anaximandro de Mileto!
No hierático
areópago heterogêneo
Das ideias,
percorro como um gênio
Desde a alma
de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos
mundos o velário espesso;
E em tudo
igual a Goethe, reconheço
O império da
substância universal!
O MORCEGO
Meia-Noite.
Ao meu quarto me recolho
Meu Deus! E
este morcego! E, agora vede;
Na bruta
ardência da sede,
Morde-me a
goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar
levantar outra parede...”
-Digo.
Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o
teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente
sobre a minha rede!
Pego de um
pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo.
Minh’alma se concentra.
Que ventre
produziu tão feio parto?!
A
Consciência Humana é este morcego!
Por mais que
a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
A IDEIA
De onde ela
vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz
que sobre as nebulosas
Cai de
incógnitas criptas misteriosas
Como as
estalactites duma gruta?!
Vem da
psicogenética e alta luta
Do feixe de
moléculas nervosas,
Que, em
desintegrações maravilhosas,
Delibera, e
depois, quer e executa!
Vem do
encéfalo absconso que a constringe,
Chega em
seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue,
mínima, raquítica...
Quebre a
força centrípeta que a amarra
Mas, de
repente, e quase morta, esbarra
No molambo
da língua paralítica!
DEBAIXO
DO TAMARINDO
No tempo de
meu pai, sob estes galhos,
Como uma
vela fúnebre de cera,
Chorei
bilhões de vezes com a canseira
De
inexorabilíssimos trabalhos!
Hoje, esta
árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como
uma caixa derradeira,
O passado da
Flora Brasileira
E a
paleontologia dos Carvalhos!
Quando
pararem todos os relógios
De minha
vida e a voz dos necrológios
Gritar nos
noticiários que eu morri,
Voltando à
pátria da homogeneidade,
Abraçada com
a própria Eternidade
A minha
sombra há de ficar aqui!
A UM
CARNEIRO MORTO
Misericordiosíssimo
carneiro
Esquartejado,
a maldição de Pio
Décimo caia
em teu algoz sombrio
E em todo
aquele que for seu herdeiro!
Maldito seja
o marcador vadio
Que te
vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã
aquece o mundo inteiro
E guarda as
carnes dos que estão com frio!
Quando a
faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro
que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos -
fontes de perdão - perdoaram!
Oh! tu que
no perdão eu simbolizo,
Se fosses
Deus, no dia do Juízo,
Talvez
perdoasses os que te mataram!
RICORDANZA DELLA MIA
GIOVENTÚ
A minha ama
de leite Guilhermina
Furtava as
moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha,
minha Mãe, ralhava...
Via naquilo
a minha própria ruina!
Minha ama,
então, hipócrita, afetava
Susceptibilidade
de menina:
“- Não, não
fora ela! - “E maldizia a sina,
Que ela
absolutamente não furtava.
Vejo,
entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim
somente cabe o furto feito...
Tu só
furtaste a moeda, o ouro que brilha...
Furtaste a
moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei
mais, porque furtei o peito
Que dava
leite para a tua filha!
GEMIDOS
DE ARTE II
O sol agora,
de um fulgor compacto,
E eu vou
andando, cheio de chamusco,
Com a
flexibilidade de um molusco,
úmido,
pegajoso e untuoso ao tacto!
Reúnam-se em
rebelião ardente e acesa
Todas as
minhas forças emotivas
E armem
ciladas como cobras vivas
Para
despedaçar minha tristeza!
O sol de
cima espiando a flora moça
Arda,
fustigue, queime, corte, morda!...
Deleito a
vista na verdura gorda
Que nas
hastes delgadas se balouça!
Avisto o
vulto das sombrias granjas
Perdidas no
alto...Nos terrenos baixos,
Das
laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla
circunferência das laranjas.
Ladra
furiosa a tribo dos podengos
Olhando para
as pútridas charnecas
Grita o
exército avulso das marrecas
Na úmida
copa dos bambus verdoengos.
Ou pássaro
alvo artífice da teia
De um ninho,
salta, no árdego trabalho,
De árvore em
árvore e de galho em galho,
Com a
rapidez duma semicolcheia.
Em grandes
semicírculos aduncos,
Entrançados,
pelo ar, largando pelos,
Voam à
semelhança de cabelos
Os chicotes
finíssimos dos juncos.
Os ventos
vagabundos batem, bolem
Nas árvores.
O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos
vegetais rebenta inteira
De todos os
corpúsculos do pólen.
A câmara
nupcial de cada ovário
Se abre. No
chão coleia a lagartixa.
Por toda a
parte a seiva bruta esguicha
Num estravasamento
involuntário.
Eu, depois
de morrer, depois de tanta
Tristeza,
quero, em vez do nome - Augusto,
Possuir aí o
nome dum arbusto
Qualquer ou
de qualquer obscura planta!
VERSOS
DE AMOR
A um poeta erótico
Parece muito
doce aquela cana
Descasco-a,
provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor,
poeta, é como a cana azeda,
A toda a
boca que não o aprova engana.
Quis saber
que era o amor, por experiência,
E hoje que,
enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu
ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as
ciências menos esta ciência!
Certo, este
o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o
egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto
a mim. Por conseguinte
Chamas amor
aquilo que eu não chamo.
Oposto ideal
ao meu ideal conservas.
Diverso é,
pois, o ponto outro de vista
Consoante o
qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver,
consoante o qual, o observas.
Porque o
amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito,
é éter, é substância fluída,
É assim como
o ar que a gente pega e cuida,
Cuida,
entretanto, não o estar pegando!
É a
transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima
e impalpável,
Que anda
acima da carne miserável!
Como anda a
garça acima dos açudes!
Para
reproduzir tal sentimento
Daqui por
diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias
- o inventor da flauta -
Vou inventar
também outro instrumento!
Mas de tal
arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono,
que o idioma em que te eu falo
Possam todas
as línguas decliná-lo
Possam todos
os homens compreendê-lo!
Para que,
enfim, chegando à última calma
Meu pobre
coração roto não role,
Integralmente
desfibrado e mole,
Como um saco
vazio dentro d’alma!
SONETOS
I
A meu pai doente
Para onde
fores, Pai, para onde fores,
Irei
também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para
amenizar as dores tuas,
Eu, para
amenizar as minhas dores!
Que coisa
triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem
crença e as árvores tão nuas
E tu,
gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas
crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te,
meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente
aos mil tormentos teus
De assim
magoar-te sem pesar havia?!
-Seria a mão
de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é
justo, e sendo justo, Deus,
Deus não
havia de magoar-te assim!
II
A meu pai morto
Madrugada de
Treze de Janeiro,
Rezo,
sonhando, o oficio da agonia.
Meu Pai
nessa hora junto a mim morria
Sem um
gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe
ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei,
cuidei que ele dormia,
E disse à
minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”!
deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para
ver a Natureza!
Em tudo o
mesmo abismo de beleza,
Nem uma
névoa no estrelado véu...
Mas
pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias,
num carro azul de glórias,
Ver a alma
de meu Pai subindo ao Céu
VANDALISMO
Meu coração
tem catedrais imensas,
Templos de
priscas e longínquas datas,
Onde um nume
de amor, em serenatas,
Canta a
aleluia virginal das crenças.
Na ogiva
fúlgida e nas colunatas
Vertem
lustrais irradiações intensas
Cintilações
de lâmpadas suspensas
E as
ametistas e os florões e as pratas.
Com os
velhos Templários medievais
Entrei um
dia nessas catedrais
E nesses
templos claros e risonhos...
E erguendo
os gládios e brandindo as hastas,
No desespero
dos iconoclastas
Quebrei a
imagem dos meus próprios sonhos!
VENCEDOR
Toma as
espadas rútilas, guerreiro,
E, à
rutilância das espadas, toma
A adaga de
aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração
- estranho carniceiro!
Não podes?!
Chama então presto o primeiro
E o mais
possante gladiador de Roma.
E qual mais
pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum pôde
domar o prisioneiro.
Meu coração
triunfava nas arenas.
Veio depois
um domador de hienas
E outro
mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram
todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde
domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém
doma um coração de poeta!
A
ILHA DE CIPANGO
Estou
sozinho! A estrada se desdobra
Como uma
imensa e rutilante cobra
De epiderme
finíssima de areia...
e por essa
finíssima epiderme
Eis-me
passeando como um grande verme
Que, ao sol,
em plena podridão, passeia!
A agonia do
sol vai ter começo!
Caio de
joelhos, trêmulo...Ofereço
Preces a
Deus de amor e de respeito
E o Ocaso
que nas águas se retrata
Nitidamente
reproduz, exata,
A saudade
interior que há no meu peito...
Tenho
alucinações de toda a sorte...
Impressionado
sem cessar com a morte
E sentindo o
que um lázaro não sente,
Em negras
nuanças lúgubres e aziagas
Vejo
terribilíssimas adagas,
Atravessando
os ares bruscamente.
Os olhos
volvo para o céu divino
E observo-me
pigmeu e pequenino
Através de
minúsculos espelhos.
Assim, quem
diante duma cordilheira,
Para, entre
assombros, pela vez primeira,
Sente
vontade de cair de joelhos!
Soa o rumor
fatídico dos ventos,
Anunciando
desmoronamentos
De mil
lajedos sobre mil lajedos
E ao longe
soam trágicos fracassos
De heróis,
partindo e fraturando os braços
Nas pontas
escarpadas dos rochedos!
Mas de
repente, num enleio doce,
Qual se num
sonho arrebatado fosse,
Na ilha
encantada de Cipango tombo,
Da qual, no
meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da
perpétua maravilha,
À cuja
sombra descansou Colombo!
Foi nessa
ilha encantada de Cipango,
Verde,
afetando a forma de um losango,
Rica,
ostentando amplo floral risonho,
Que
Toscanelli viu seu sonho extinto
E como
sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre
essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me
bem. Nesse maldito dia
O gênio
singular da Fantasia
Convidou-me
a sorrir para um passeio...
Iríamos a um
país de eternas pazes
Onde em cada
deserto há mil oásis
E em cada
rocha um cristalino veio.
Gozei numa
hora séculos de afagos,
Banhei-me na
água de risonhos lagos,
E finalmente
me cobri de flores...
Mas veio o
vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me
com o pano da mortalha,
Que estou
cosendo para os meus amores!
Desde então
para cá fiquei sombrio!
Um
penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me
a sensibilidade
E a grandes
golpes arrancou as raízes
Que prendiam
meus dias infelizes
A um sonho
antigo de felicidade!
Invoco os
deuses salvadores do erro.
A tarde
morre. Passa o seu enterro!...
A luz
descreve ziguezagues tortos
Enviando à
terra os derradeiros beijos.
Pela estrada
feral dois realejos
Estão
chorando meus amores mortos!
E a treva
ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento
é uma caverna oblonga
Em cujo
fundo a Via-Láctea existe.
E como agora
a lua cheia brilha!
Ilha maldita
vinte vezes a ilha
Que para
todo o sempre me fez triste!
QUEIXAS
NOTURNAS
Quem foi que
viu a minha Dor chorando?!
Saio.
Minh’alma sai agoniada.
Andam
monstros sombrios pela estrada
E pela
estrada, entre estes monstros, ando!
Não trago
sobre a túnica fingida
As insígnias
medonhas do infeliz
Como os
falsos mendigos de Paris
Na atra rua
de Santa Margarida.
O quadro de
aflições que me consomem
O próprio
Pedro Américo não pinta...
Para
pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de
todos os tormentos do homem!
Como um
ladrão sentado numa ponte
Espera
alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia
incoercível de roubar a luz,
Estou à
espera de que o Sol desponte!
Bati nas
pedras dum tormento rude
E a minha
mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso
que a Alegria é uma doença
E a Tristeza
é minha única saúde.
As minhas
roupas, quero até rompê-las!
Quero,
arrancado das prisões carnais.
Viver na luz
dos astros imortais,
Abraçado com
todas as estrelas!
A Noite vai
crescendo apavorante
E dentro do
meu peito, no combate,
A Eternidade
esmagadora bate
Numa
dilatação exorbitante!
E eu luto
contra a universal grandeza
Na mais
terrível desesperação
É a luta, é
o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura
contra a natureza!
Para essas
lutas uma vida é pouca
Inda mesmo
que os músculos se esforcem;
Os pobres
braços do mortal se torcem
E o sangue
jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas
vezes a agonia é tanta
Que, rolando
dos últimos degraus,
O Hércules
treme e vai tombar no caos
De onde seu
corpo nunca mais levanta!
É natural
que esse Hércules se estorça,
E tombe para
sempre nessas lutas,
Estrangulado
pelas rodas brutas
Do mecanismo
que tiver mais força.
Ah! Por
todos os séculos vindouros
Há de
travar-se essa batalha vã
Do dia de
hoje contra o de amanhã,
Igual à luta
dos cristãos e mouros!
Sobre
histórias de amor o interrogar-me
É vão, é
inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou
capaz de amar mulher alguma
Nem há
mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem
favos e tem caldos quentes
E ao mesmo
tempo que faz bem, faz mal;
O coração do
Poeta é um hospital
Onde
morreram todos os doentes.
Hoje é
amargo tudo quanto eu gosto;
A benção
matutina que recebo...
E é tudo: o
pão que como, a água que bebo,
O velho
tamarindo a que me encosto!
Vou enterrar
agora a harpa boêmia
Na atra e
assombrosa solidão feroz
Onde não
cheguem o eco duma voz
E o grito
desvairado da blasfêmia!
Que dentro
de minh’alma americana
Não mais
palpite o coração - esta arca,
Este relógio
trágico que marca
Todos os
atos da tragédia humana!
Seja esta
minha queixa derradeira
Cantada
sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este,
enfim, o último canto meu
Por esta
grande noite brasileira!
Melancolia!
estende-me a tu’asa!
És a árvore
em que devo reclinar-me...
Se algum dia
o Prazer vier procurar-me
Dize a este
monstro que eu fugi de casa!
A ÁRVORE DA
SERRA
-As árvores,
meu filho, não têm alma!
E esta
árvore me serve de empecilho...
É preciso
cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu
tenha uma velhice calma!
- Meu pai,
por que sua ira não se acalma?!
Não vê que
em tudo existe o mesmo brilho?
Deus pôs
almas nos cedros...no junquilho...
Esta árvore,
meu pai, possui minha’alma!
-Disse - e
ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a
árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a
árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos
golpes do machado bronco,
O moço
triste se abraçou com o tronco
E nunca mais
se levantou da terra!
TRISTEZAS DE
UM QUARTO MINGUANTE
Quarto
Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste...
Nos engenhos
de várzea não existe
Talvez um
outro que se lhe equipare!
Do
observatório em que eu estou situado
A lua magra,
quando a noite cresce,
Vista,
através do vidro azul, parece
Um
paralelepípedo quebrado!
O sono
esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300
quilos no epigastro...
Dói-me a
cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a
metade de uma casca de ovo.
Diabo! Não
ser mais tempo de milagre!
Para que
esta opressão desapareça
Vou amarrar
um pano na cabeça,
Molhar a
minha fonte com vinagre.
Aumentam-se-me
então os grandes medos.
O hemisfério
lunar se ergue e se abaixa
Num
desenvolvimento de borracha,
Variando à
ação mecânica dos dedos!
Vai-me
crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os
nervos o desejo doudo
De
dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele
semicírculo medonho!
Mas tudo
isso é ilusão de minha parte!
Quem sabe se
não é porque não saio
Desde que,
6a feira, 3 de maio,
Eu escrevi
os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada a
estirar línguas vermelhas
Lambe o ar.
No bruto horror que me arrebata,
Como um
degenerado psicopata
Eis-me a
contar o número das telhas!
- Uma, duas,
três, quatro...E aos tombos, tonta
Sinto a
cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta
recomeço, em ânsias; - Uma...
Mas
novamente eis-me a perder a conta!
Sucede-me a
uma tontura outra tontura
-Estarei
morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a
Vida - aquela grande aranha
Que anda
tecendo a minha desventura!
A luz do
quarto diminuindo o brilho
Segue todas
as fases de um eclipse...
Começo a ver
coisas de Apocalipse
No triângulo
escaleno do ladrilho!
Deito-me
enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco
lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo
mortalhas me recorda,
E o
amontoamento dos lençóis desmancho.
Vêm-me à
imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por
exemplo, numa festa...
Tomba uma
torre sobre a minha testa,
Caem-me de
uma só vez todos os dentes!
Então dois
ossos roídos me assombraram...
- ”Por
ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já
não querem mais comer-nos
e os
formigueiros já nos desprezaram”.
Figuras
espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o
pesadelo duradouro...
Choro e
quero beber a água do choro
Com as mãos
dispostas à feição de conchas.
Tal uma
planta aquática submersa,
Antegozando
as últimas delícias
Mergulho as
mãos - vis raízes adventícias -
No algodão
quente de um tapete persa.
Por muito
tempo rolo no tapete,
Súbito me
ergo. A lua é morta, Um frio.
Cai sobre o
meu estômago vazio
Como se
fosse um copo de sorvete!
A alta
frialdade me insensibiliza;
O suor me
ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha
família ainda está dormindo
E eu não
posso pedir outra camisa!
Abro a
janela. Elevam-se fumaças
Do engenho
enorme. A luz fulge abundante
E em vez do
sepulcral Quarto Minguante
Vi que era o
sol batendo nas vidraças.
Pelos
respiratórios tênues tubos
Dos poros
vegetais, no ato da entrega
Do mato
verde, a terra resfolega
Estrumada,
feliz, cheia de adubos.
Côncavo, o
céu, radiante e estriado, observa
A universal
criação. Broncos e feios,
Vários répteis
cortam os campos, cheios
Dos tenros
tinhorões e da úmida erva.
Babujada por
baixos beiços brutos,
No humos
feraz, hierática, se ostenta
A monarquia
da árvore opulenta
Que dá aos
homens o óbolo dos frutos.
De mim
diverso, rígido e de rastos
Com a
solidez do tegumento sujo
Sulca, em
diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente
pelos mata-pastos.
Entretanto,
passei o dia inquieto,
a ouvir,
nestes bucólicos retiros
Toda a salva
fatal de 21 tiros
Que festejou
os funerais de Hamleto!
Ah! Minha
ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser,
numa última cobiça,
A fatia
esponjosa de carniça
Que os
corvos comem sobre as jurubebas!
Porque,
longe do pão com que me nutres
Nesta hora,
oh! Vida em que a sofrer me exortas
Eu estaria
como as bestas mortas
Pendurado no
bico dos abutres!
O LAMENTO DAS COISAS
Triste, a
escutar, pancada por pancada,
A
sucessividade dos segundos,
Ouço, em
sons subterrâneos, os do Orbe oriundos
O choro da
Energia abandonada!
É a dor da
força desaproveitada
-O cantochão
dos dínamos profundos,
Que, podendo
mover milhões de mundos,
Jazem ainda
na estática do Nada!
É o soluço
da forma ainda imprecisa...
Da
transcendência que se não realiza...
Da luz que
não chegou a ser lampejo...
E é em suma,
o subconsciente aí formidando
Da Natureza
que parou, chorando,
No
rudimentarismo do Desejo!
O
MEU NIRVANA
No
alheamento da obscura forma humana,
De que,
pensando, me desencarcero,
Foi que eu,
num grito de emoção, sincero,
Encontrei,
afinal, o meu Nirvana!
Nessa
manumissão schopenhaureana,
Onde a Vida
do homem aspecto fero
Se desarraiga,
eu, feito força, impero
Na imanência
da Idéia Soberana!
Destruída a
sensação que oriunda fora
Do tato -
ínfima antena aferidora
Destas
tegumentárias mãos plebéias -
Gozo o
prazer, que os anos não carcomem,
De haver
trocado a minha forma de homem
Pela
imortalidade das Idéias.
NATUREZA ÍNTIMA
Ao filósofo Farias Brito
Cansada de
observar-se na corrente
Que os
acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se
em si mesma, um dia,
A natureza
olhou-se interiormente!
Baldada
introspecção! Noumenalmente
O que Ela,
em realidade, ainda sentia
Era a mesma
imortal monotonia
De sua face
externa indiferente!
E a Natureza
disse com desgosto:
“Terei
somente, porventura, rosto?!
“Serei
apenas mera crusta espessa?!
“Pois é
possível que Eu, causa do Mundo,
“Quando mais
em mim mesma me aprofundo
“Menos
interiormente me conheça?!”
A FLORESTA
Em vão com o
mundo da floresta privas...
- Todas as
hermenêuticas sondagens,
Ante o
hieroglifo e o enigma das folhagens,
São
absolutamente negativas!
Araucárias,
traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos
de álamos selvagens,
Como um
convite para estranhas viagens,
Tornam todas
as almas pensativas!
Há uma força
vencida nesse mundo!
Todo o
organismo florestal profundo
É dor viva,
trancada num disfarce...
Vivem só,
nele, os elementos broncos,
- As
ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca
puderam realizar-se!
NUMA
FORJA
De
inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei
numa forja, ao meio dia,
Trinta e
seis graus à sombra. O éter possuía
A térmica
violência de um braseiro.
Dentro a cuspir escórias
De fúlgida limalha
Dardejando
centelhas transitórias,
No horror da
metalúrgica batalha
O ferro chiava e ria!
Ria, num sardonismo doloroso
De ingênita amargura,
Da qual, bruta, provinha
Como de um
negro cáspio de água impura
A multissecular desesperança
De sua espécie abjeta
Condenada a
uma estática mesquinha!
Ria com essa
metálica tristeza
De ser na Natureza
Onde a
Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente
para o gozo
Da integração completa.
Uma
consciência eternamente obscura!
O ferro
continuava a chiar e a rir.
E eu nervoso, irritado,
Quase com febre, a ouvir
Cada átomo de ferro
Contra a incude esmagado
Sofrer, berrar, tinir.
Compreendia
por fim aquele berro
À substância
inorgânica arrancado
Era a dor do
minério castigado
Na
impossibilidade de reagir!
Era um
cosmos inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando a bigorna
Asperamente
a sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia
cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!
Era a revelação
De tudo que ainda dorme
No metal
bruto ou na geléia informe
No parto
primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão,
- O ígneo jato vulcânico
Que,
atravessando a absconsa cripta enorme
De minha cavernosa subconsciência,
Punha em clarividência
Intramoleculares
sóis acesos
Perpetuamente
às mesmas formas presos,
Agarrados à
inércia do Inorgânico
Escravos da Coesão!
Repuxavam-me
a boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angústia alarmante
Própria de
alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore
que a atmosfera ultriz destronca.
A ouvir todo
esse cosmos potencial,
Preso aos
mineralógicos abismos
Angustiado e arquejante
A debater-se
na estreiteza bronca
De um bloco de metal!
Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Executava,
em lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o
incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!
Ao clangor
de tais carnes de martírio
Em cismas
negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma
imaginação convulsionada
Mais revolta
talvez de que a onda atlântica
Compreender a semântica
Dessa
aleluia bárbara gritada
Às margens
glacialíssimas do Nada
Pelas coisas
mais brutas do Universo!
MINHA
ÁRVORE
Olha: É um
triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a
erva tem dor...Roem-na amarguras
Talvez
humanas, e entre rochas duras
Mostra ao
Cosmos a face degradada!
Entre os
pedrouços maus dessa morada
É que, às
apalpadelas e às escuras,
Hão de
encontrar as gerações futuras
Só, minha
árvore humana desfolhada!
Mulher
nenhuma afagará meu tronco!
Eu não me
abalarei, nem mesmo ao ronco
Do furacão,
que, rábido, remoinha...
Folhas e
frutos, sobre a terra ardente
Hão de
encher outras árvores! Somente
Minha
desgraça há de ficar sozinha!
APOCALÍPSE
Minha
divinatória Arte ultrapassa
Os séculos
efêmeros e nota
Diminuição
dinâmica, derrota
Na atual
força, integérrima, da Massa.
É a
subversão universal que ameaça
A natureza,
e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a
ebulição que a água alvorota
E põe todos
os astros na desgraça!
São
despedaçadamente, derrubadas,
Federações
sidéricas quebradas...
E eu só, o
último a ser, pelo orbe adiante,
Espião da
cataclísmica surpresa,
a única luz
tragicamente acesa
Na
universalidade agonizante!
A
NOITE
A
nebulosidade ameaçadora
Tolda o
éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde
amplas teias de carvões sombrios
No ar que
álacre e radiante, há instantes, fora.
A água
transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão
do oceano e entre os navios
Troa bárbara
zoada de ais bravios,
Extraordinariamente
atordoadora.
À custódia
do anímico registro
A planetária
escuridão de anexa...
Somente
iguais a espiões que acordam cedo,
Ficam
brilhando com fulgor sinistro
Dentro da
treva onímoda e complexa
Os olhos
fundos dos que estão com medo!
O ÚLTIMO NÚMERO
Hora da
minha morte. Hirta, ao meu lado,
A Ideia
estertorava-se...No fundo
Do meu
entendimento moribundo
Jazia o
Último Número cansado.
Era de
vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente
de si mesmo oriundo,
Fora da
sucessão, estranho ao mundo,
Com o
reflexo fúnebre do Incriado:
Bradei: -
Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último
Número, atro e subterrâneo,
Parecia
dizer-me: “É tarde, amigo!
Pois que a
minha antogênica grandeza
Nunca vibrou
em tua língua presa,
Não te
abandono mais! Morro contigo!”
ETERNA
MÁGOA
O homem por
sobre quem caiu a praga
Da tristeza
do mundo, o homem que é triste
Para todos
os séculos existe
E nunca mais
o seu pesar se apaga!
Não crê em
nada, pois, nada há que traga
Consolo à
mágoa, a que só ele assiste
Quer
resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe
aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que
sofre, mas o que não sabe
É que essa
mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida,
é que essa mágoa infinda
Transpõe a
vida do seu corpo inerme;
E quando
esse homem se transforma em verme
É essa mágoa
que o acompanha ainda!
PLENILÚNIO
Desmaia o
plenilúnio. A gaze pálida
Que lhe
serve de alvíssimo sudário
Respira
essências raras, toda a cálida
Mística
essência desse alampadário.
E a lua é
como um pálido sacrário
Onde as
almas das virgens em crisálida
De seios
alvos e de fronte pálida,
Derrubam a
urna dum perfume vário.
Voga a lua
na etérea imensidade!
Ela, a
eterna noctâmbula do Amor,
Eu,
noctâmbulo da Dor e da Saudade.
Ah! Como a
branca e merencória lua,
Também
envolta num sudário - a Dor,
Minh’alma triste pelos céus flutua!
(A TARDE CULTURAL, 1997)
Carta a Hildeberto Barbosa Filho
MILTON MARQUES JÚNIOR
Professor e escritor
A casa de Augusto
Hildeberto Barbosa Filho
Por que procurar
a casa de Augusto?
Estaria essa casa
no Beco do Carmo,
na Rua Direita, no Beco
Malagrida?
Onde, quando, por que
a casa de Augusto?
O Pau d’Arco, Recife,
a terra pobre de Cruz
do Espírito Santo?
Prefiro pensar
que a casa de Augusto
nunca existiu.
(Ah! O abstrato das saudades!).
Nunca existiu a casa de Augusto. Nem na capital, nem no Rio, nem em Leopoldina. Augusto não carece de casa. Os poetas não têm casa. Inútil procurar a casa de Augusto. Os poetas residem no ar rarefeito da biosfera. São sombras magras com pele de rinoceronte. Tivesse casa, Augusto, seria a Ponte Buarque de Macedo, o negro peito da ama Guilhermina, a lâmina minuciosa de uma metáfora apocalíptica. Casa por casa, por que não pensar nas volúpias da Ilha de Cipango, na solidão das lagartixas espiando as coisas mortas, no chocalho fatídico dos ossos, no verme que rói e arruína, nas viagens da monera, na cicatriz do quarto minguante, na poesia de tudo quanto é morto? Quem sabe, a casa de Augusto não transcende a vila de Sapé, a usina triste, o tamarindo, o corrupião sem sorte? Sua casa, se casa existe, se foi com as águas do rio Paraíba, vista das margens como um palácio paradoxal. Casa sem nenhuma arquitetura, maquete desarticulada, casa de sombras e de assombros. Casa cujo endereço se perde nos carvalhos da poesia. Casa fechada e obscura onde os fantasmas bebem o vinho dos versos mais perfeitos. Onde a dor reina, soberba e absurda, diante do nada. Onde a arte arde e explode seus signos malditos como a única forma de existir. A casa de Augusto está localizada na avenida de seus sonetos. Seu número é o mesmo da aritmética da morte. Casa inatingível, sem destinatário. Não importa a cana do engenho, não importa se Jesus viveu na Serra da Borborema. Não importa o milagre do finado Toca. Não importa o gemido da árvore na serra, o positivismo, o ébrio, o coveiro, a sibarita. A casa de Augusto é a casa do seu pai. Do pai. Por que não procurá-la naquele carro de glórias subindo aos céus, Elias no volante, aureolado?
Nunca existiu a casa de Augusto. Nem na capital, nem no Rio, nem em Leopoldina. Augusto não carece de casa. Os poetas não têm casa. Inútil procurar a casa de Augusto. Os poetas residem no ar rarefeito da biosfera. São sombras magras com pele de rinoceronte. Tivesse casa, Augusto, seria a Ponte Buarque de Macedo, o negro peito da ama Guilhermina, a lâmina minuciosa de uma metáfora apocalíptica. Casa por casa, por que não pensar nas volúpias da Ilha de Cipango, na solidão das lagartixas espiando as coisas mortas, no chocalho fatídico dos ossos, no verme que rói e arruína, nas viagens da monera, na cicatriz do quarto minguante, na poesia de tudo quanto é morto? Quem sabe, a casa de Augusto não transcende a vila de Sapé, a usina triste, o tamarindo, o corrupião sem sorte? Sua casa, se casa existe, se foi com as águas do rio Paraíba, vista das margens como um palácio paradoxal. Casa sem nenhuma arquitetura, maquete desarticulada, casa de sombras e de assombros. Casa cujo endereço se perde nos carvalhos da poesia. Casa fechada e obscura onde os fantasmas bebem o vinho dos versos mais perfeitos. Onde a dor reina, soberba e absurda, diante do nada. Onde a arte arde e explode seus signos malditos como a única forma de existir. A casa de Augusto está localizada na avenida de seus sonetos. Seu número é o mesmo da aritmética da morte. Casa inatingível, sem destinatário. Não importa a cana do engenho, não importa se Jesus viveu na Serra da Borborema. Não importa o milagre do finado Toca. Não importa o gemido da árvore na serra, o positivismo, o ébrio, o coveiro, a sibarita. A casa de Augusto é a casa do seu pai. Do pai. Por que não procurá-la naquele carro de glórias subindo aos céus, Elias no volante, aureolado?
A Rua Augusto dos Anjos, em João Pessoa
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