domingo, 18 de agosto de 2024

BAHIA: POESIA E ARTE, NA 2ª METADE DO SÉCULO XX


    Lavadeiras, de Carybé, pintor do grupo de Caderno da Bahia

ATORES DA POESIA


Cid Seixas


Esta é uma mesa redonda de poetas, ou melhor, é um encontro de poesia. Um momento em que todos nós teremos oportunidade de ouvir e de falar um pouco da criação poética. Uns falando da sua própria experiência, outros falando do contexto no qual se insere o seu processo criativo. Falando de outros poetas.

O texto a seguir traça um quadro múltiplo ou um panorama sumário da poesia baiana do século vinte(NÓS, POR EXEMPLO)

Devo começar dizendo que a minha presença nesta mesa, ao lado de um criador de obra vasta e nacionalmente reconhecida, como Ruy Espinheira Filho, – poeta que “escreve no peito dos homens”, conforme o dizer do estudioso e crítico do modernismo brasileiro Mário da Silva Brito – a minha presença pode ser atribuída à generosidade e à amizade do professor doutor Francisco Ferreira de Lima e dos demais organizadores deste encontro.

Estou aqui presente na qualidade de poeta menor, de... – gravem a expressão irônica com a qual me defino – meio-poeta. Acredito que nenhum criador, nenhum intelectual, deve medir a sua importância a partir da autoavaliação, da autoestima, mas a partir do juízo isento e descomprometido de terceiros; da crítica, portanto. Ou mesmo de uma crítica desfavorável. Em 1979, Flávio Renê Kothe, quando do lançamento do meu primeiro livro que alcançou circulação nacional, com uma tiragem excessiva de três mil exemplares, Fonte das pedras, publicado pela Editora Civilização Brasileira, estampou dois artigos de exaltada crítica demolidora, um no Rio e outro em São Paulo. Num dos trechos em que procurava demonstrar seu desagrado pela produção deste autor, ele dizia:

“Cid Seixas parece ser um desses tantos poetas que, só porque escreve algo parecido com versos, também se acha no direito de dizer besteiras. Não é um poetastro simplesmente menosprezível e que não saiba nada do que está fazendo, mas
também não é uma grande voz no horizonte da poesia. Com boa vontade pode ser até considerado um poeta quase estadual. Seixas está mais para a espacialização de Cummings do que para a sutileza de Mallarmé. Não que ele não queira ser
sutil, mas Salvador não é Paris, especialmente a Paris do sonho de qualquer subdesenvolvido.”


Aceitando o puxão de orelha do crítico, reconheço desde já que o meu papel no quadro da poesia brasileira, ou mais modestamente, da poesia baiana, é de um coadjuvante; não de um protagonista, como a maioria dos escrevedores de versos imagina ser. É, portanto, na qualidade de poeta que, com boa vontade, no dizer desse crítico, pode ser considerado quase estadual, que participo desta mesa redonda para falar de poetas federais, de poetas estaduais e, talvez, municipais. 
Lembre-se que a conhecida expressão foi ironicamente usada por Drummond, no livro Alguma Poesia, de 1930, no contexto de um pequeno poema dedicado a Manuel Bandeira, em que dizia: 

   Nu, de José Guimarães, 1º modernista baiano

“O poeta municipal                 
Discute com o poeta estadual  
Qual deles é capaz
De bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
Tira ouro do nariz.”


Toda literatura – quer seja aquela que se considera patrimônio da humanidade, quer seja a literatura nacional, a literatura estadual, ou ainda o acervo de uma região – toda literatura é constituída tanto por autores essenciais quanto por autores secundários, terciários etc. Os primeiros, os grandes autores, os poetas fortes, na terminologia do crítico norte-americano Harold Bloom, são poucos, são raros. Os demais, os poetas menores, são muitos. Mas uma tradição literária não dispensa nem a uns nem a outros. Os escritores considerados secundários, os continuadores de um processo, são responsáveis pelo estabelecimento do gosto, pela fixação das conquistas trazidas pelos mestres.
Fernando Pessoa só pôde ser reconhecido e compreendido, depois dos seus diluidores, depois dos pequenos poetas que deram curso ao discurso imprevisto e inovador da sua poesia. Todos aqueles que, mesmo não sendo grandes vozes, realizam um trabalho sério e consciente, contribuem para a afirmação da literatura do seu povo e da sua língua.
É, portanto, penso eu, na qualidade de escritor secundário, ou mesmo terciário, que participo desta mesa. Ou melhor: na condição de meio poeta (pedi que gravassem a expressão). De meio poeta porque poeta-crítico. Um pouco poeta, um pouco crítico. Como não atribuo a mim mesmo a designação de poeta (porque poeta é Pessoa, é Drummond, é Shakespeare), como dispenso rótulo gracioso, é na condição de leitor da poesia presente em toda arte que aqui estou.
Por isso, não falarei do meu próprio trabalho, salvo se, acidentalmente, ele for lembrado nas discussões ou debates que fecharão esta mesa-redonda. Falarei aqui da poesia baiana como uma construção social, conjunta. Os grandes poetas deixam uma espécie de vazio quando se vão. É como se a ausência da palavra primordial inibisse o surgimento de outras vozes. Soam, apenas, velhas vozes saudosas. Depois do fenômeno Castro Alves, a Bahia viveu

uma espécie de baile da saudade das viúvas do arrebatamento lírico de Cecéu; como Castro Alves era tratado pelos mais próximos.
Tivemos dificuldade de sair do romantismo. Romantismo esse que vai impregnar os parnasianos e os simbolistas baianos. Carentes de grandes vozes, nos apegamos demasiadamente ao passado, à tradição. Vejam que quando o modernismo chegou à Bahia, com a publicação da revista
Arco & Flecha – em 1928, e com a geração de poetas e teóricos como Eugênio Gomes, Godofredo Filho, Afrânio Coutinho, Hélio Simões, Pinto de Aguiar e Carvalho Filho – vejam que mesmo nesse momento de busca de novidades, o movimento modernista na Bahia foi designado de “tradicionismo dinâmico”. Seus protagonistas não ousavam romper com a tradição. A tradição era mais forte do que a renovação.
Para melhor compreensão da vida literária baiana dessa época, convém não perder de vista o alvorecer do século, quando Afrânio Peixoto e Xavier Marques esboçaram um procedimento estético que se tornou matriz para poetas, prosadores e publicistas.
Entre os nossos criadores mais destacados do início do século XX estão os chamados “bravos rapazes” das revistas
Nova Cruzada e Os Annaes, que desempenharam o papel de disseminadores do simbolismo, no primeiro decênio do século vinte. Mas os nomes de Pethion de Villar, Pedro Kilkerry, Durval de Moraes e Arthur de Salles não poderiam transpor os limites do simbolismo visto da província e anunciar a instauração do pensamento moderno. As condições do ambiente cultural baiano criavam entraves para o grande salto que representaria uma nova revolução na sua formação estética.
Bem verdade que em outros estados nordestinos, poetas de inspiração parnasiana e simbolista evoluíram para o modernismo, conforme o significativo exemplo de Jorge de Lima – que começou como sonetista neoparnasiano, autor do antológico “Acendedor de Lampiões”, um dos
XIV Alexandrinos, e chegou a ostentar o título de “Príncipe dos
Poetas de Alagoas”. Jorge de Lima conseguiu dar o salto e já com
O Mundo do Menino Impossível aderiu ao modernismo.
Até mesmo o fenômeno Pedro Kilkerry, que foi uma espécie de “sistema de alarme premonitório” da arte poética moderna, teve sua voz abafada pelo som bombástico dos tambores retóricos da velha Bahia. Surpreendentes são alguns trechos de Kilkerry no
Jornal Moderno, em 1913:
– “Olhos novos para o novo! Tudo é outro ou tende para outro!
– O metro é livre: vivamo-lo. O mais importante, porém, de tudo, dessa complexidade, de toda essa demência raciocinante é que as harmonias individuais, os caracteres não podem ser velhos como os senadores de Roma ou os sete sábios que cofiaram longas barbas na velha Grécia. Não se arrastam passos,
braços não tremem; na existência do século não se titubeia.
– Ao tempo em que escrevo estas linhas, já aí está a urgência suarenta do tipógrafo a espiá-la e ouço a trepidação ansiosa do maquinismo impressor, a que estou associando a ânsia dos leitores no nosso órgão, que é o do seu momento social, da hora que soa.”
Apesar da sonora proposta vanguardista –
Olhos novos para o novo! – a província desconheceu ou não quis entender esse lado da contribuição de Kilkerry, cujo pensamento foi encontrar paralelo anos depois, não mais na Bahia, mas, em São Paulo, pelo intrépido voyeur Oswald de Andrade: “Ver com olhos livres”, conforme notou e anotou atento Augusto de Campos, traçando um paralelo entre os dois poetas. Para demonstrar a força da tradição entre nós, veja-se um caso emblemático: Em 1928 a Pongetti editava o livro Samba Verde, com poemas nitidamente modernos, de Godofredo Filho que, antes mesmo do esperado lançamento, recolheu toda a edição e afastou o seu autor do rol dos primeiros modernistas brasileiros.

          Eurico Alves, feirense, primeiro poeta futurista da Bahia


Teriam os tambores antigos atingido os ouvidos cosmopolitas do modernista baiano, abatendo o pássaro em voo pleno? A tradição fala mais forte na primeira capital da colônia, onde a vanguarda é
tradicionistaÉ este contexto cultural que nos estrutura, que fala por todos nós. Somos todos uma consequência desta “Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante”, conforme o verso do nosso poeta primeiro, Gregório de Mattos. Algumas cidades do interior contribuíram de modo notável para a formação do quadro de poetas modernos da Bahia. Feira de Santana nos deu tanto Godofredo Filho, autor do longo e famoso “Poema da Feira de Santana”, quanto Eurico Alves, poeta telúrico, que fez os ventos da roça soprarem sobre os ares cosmopolitas do modernismo.
Do sul do estado, das roças de cacau, veio a poesia de Sosígenes Costa. O poeta transitou do simbolismo para o modernismo. Seu texto que mais me fascina insere-se numa trilogia brasileira formada por
Martim Cererê, de Cassiano Ricardo (publicado em 1928),
Cobra Norato, de Raul Bopp (publicado em 1931), e Iararana, de Sosígenes Costa, escrito
por volta de 1933 e publicado postumamente em 1979, com introdução, apuração do texto e glossário de José Paulo Paes. 
Iararana documenta os resultados do contato de Sosígenes Costa com as ideias estéticas que constituíram a espinha dorsal da revolução modernista, iniciada em 1922. Mas, ao mesmo tempo, marca os pontos de diferenciação entre o seu programa e o do grupo paulista, numa frutífera e personalíssima independência. Iararana é a grande epopeia do modernismo grapiúna, contando a história da raça brasileira a partir da imposição dos valores civilizatórios greco-romanos às culturas nativas do país.
O texto de Sosígenes revela a compreensão de que à arte moderna cabe realizar a tarefa de digerir os conceitos do mundo clássico, depois de destruí-los e devorá-los, 
antropofagicamente. A proposta cultural da nossa Antropofagia não é uma simples formulação teórica do manifesto oswaldiano, mas a tradução de uma prática elaborada pelo processo criador de escritores brasileiros; ou de qualquer escritor comprometido com o amanhã da sua arte.
Depois dessa geração de precursores do modernismo e de modernistas baianos, os anos cinquenta trouxeram algumas vozes expressivas, vozes destiladas pelo rigoroso engenho da poesia de 45. Entre esses poetas podemos citar, entre outros, os nomes de Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Carlos Anísio Melhor, João Carlos Teixeira Gomes e José Carlos Capinan. Os primeiros poemas de Florisvaldo Mattos que ganharam audiência e notoriedade são de 1953. Esse autor da Geração Mapa foi cooptado por Glauber Rocha para o núcleo do que viria a ser um dos movimentos culturais mais frutíferos da Bahia. Glauber e outros jovens, quando leram os textos de Florisvaldo Mattos, identificaram no companheiro, alguns anos mais velho do que eles, o tradutor das suas aspirações intelectuais pela voz da poesia. Foi com entusiasmo e admiração que a
troupe glauberiana conquistou o novo aliado. Mesmo assim, ele só veio a publicar o seu primeiro livro, Reverdor, em 1965. Depois, no ano de 1996, a Fundação Casa de Jorge Amado publicou, de Florisvaldo Mattos, A Caligrafia do soluço & Poesia anterior, reunindo a sua produção poética.
Outros dois integrantes da geração Mapa, que só vieram a ser publicados em livro muitos anos mais tarde, são Carlos Anísio Melhor e João Carlos Teixeira Gomes. Anísio viveu como boêmio e deixou seus poemas perdidos nas mãos das muitas amadas. Parte da sua vida foi vivida em mesas de bar, nos velhos tempos da boemia, e outra parte em sanatórios psiquiátricos, onde, em meio aos loucos, tratava-se do vício da bebida. Anísio gastou toda a sua fortuna, herança deixada pelo pai, em viagens a cassinos e em orgias que duravam semanas. Ele costumava fechar as boates exclusivamente para sua roda de amigos, que eram muitos. Acabada a fortuna, passou a viver nos hospícios psiquiátricos, chegando a ser interno como indigente. Recuperado da bebida, terminou os seus dias numa casinha humilde e com um emprego de funcionário público. Somente em 1982, por iniciativa dos amigos, foi publicado o seu único livro,
Canto Agônico, embora figure com destaque em várias revistas e antologias.
O velho Anísio, na época das Jogralescas, criadas por Glauber Rocha nos tempos do Colégio Central, tinha a preferência do público como declamador de poemas. Para quem não sabe, nos anos cinquenta, as Jogralescas eram verdadeiros espetáculos teatrais, onde os jovens estudantes construíam os cenários, as situações dramáticas, enfim, toda uma
movimentação cênica, interpretando seus sentimentos, suas ideias – seus poemas.
João Carlos Teixeira Gomes – hoje jornalista e professor aposentado, crítico literário, estudioso da obra de Gregório de Matos, sobre a qual escreveu um dos livros essenciais – João Carlos Teixeira Gomes também teve o seu primeiro livro publicado tardiamente, por iniciativa de Carlos Cunha e minha. Quando ocupei a direção do Teatro Castro Alves, promovemos o lançamento do livro no
foyer do teatro. Ciclo Imaginário é de 1975, mais de vinte anos depois das Jogralescas e dezoito anos depois de ter se iniciado na literatura através da revista Mapa, a mesma revista de Glauber Rocha, Florisvaldo Mattos, Paulo Gil Soares, Calasans Neto e tantos outros. Em 1987 a Editora Nova Fronteira publicou, no Rio de Janeiro, A esfinge contemplada, o mais importante livro de Teixeira Gomes.
                  Grupo da Geração Mapa, por volta
                 de 1960, vendo-se Joca, Guerrinha,
                 Florisvaldo, Calá e Hélio Oliveira.
              
             .
        
Por fim, quando terminavam os anos cinquenta, isto é, em 1959, surge a poesia de José Carlos Capinan. Ele marca o limite entre a geração dos anos cinquenta e a chamada geração de sessenta. Poeta engajado, produziu uma obra vigorosa e altamente expressiva, uma obra comprometida com o homem, com a luta política pela emancipação social. Seus primeiro e mais importante livro, Inquisitorialpublicado na Bahia, em 1966, e relançado, trinta anos depois, no Rio de Janeiro, pela editora Civilização Brasileira.
Capinan levou muitos anos distanciado da poesia escrita. Tornou-se conhecido como compositor de música popular, parceiro de Gilberto Gil e Caetano Veloso, na época revolucionária do Tropicalismo. Anos depois, retornou ao livro, publicando algumas obras. Mas a poesia engajada de
Inquisitorial constitui-se o marco da sua expressão. Chegamos então aos anos sessenta, quando a poesia baiana é enriquecida por vozes múltiplas e expressivas. Cito apenas alguns nomes, outros são igualmente dignos de destaque. Myriam Fraga, autora de Sesmaria, Marinhas, Femina tantos outros livros. Ildásio Tavares, autor de Canto do homem cotidiano, Tapete do tempo, Ditado e, além de poeta, romancista expressivo com Roda de fogo, romance que marca as angústias humanas e os equívocos da ditadura instaurada em 1964.
Da região de Feira de Santana surge Antonio Brasileiro, uma das grandes vozes da moderna poesia baiana. Ele começa a ser notado a partir de 1967, quando criou a revista
Serial, de poesia. Nos meus tempos de estudante, Antonio Brasileiro foi uma referência importante. Brasileiro publicou Estudos, Fragmentos de Agapanto, Os três movimentos da sonata, A pura mentira e outros. Em 1996, a Fundação Casa de Jorge Amado editou a sua Antologia poética; reunião dos textos mais expressivos de Antonio Brasileiro.
Maria da Conceição Paranhos é outra voz feminina da geração de sessenta, autora de
Abc-reobtido, de Chão circular e de outros livros. No ano da graça de 1996, quando a Fundação Casa de Jorge Amado mantinha uma importante coleção de escritores baianos, a autora publicou As esporas do tempo
.

E encerrando esta referência incompleta aos poetas surgidos na segunda metade do Século XX, voltamos a Ruy Espinheira Filho. Trata-se do poeta baiano da sua geração com maior audiência local e em nível nacional. Notem que Ruy começou a publicar relativamente tarde. Nascido em 1942, somente em 1979, aos trinta e sete anos, com Julgado do vento, mostrou seu trabalho ao país. E em 1981, com suas Sombras luminosas, recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Souza, instituído pelo Governo do Paraná.
É verdade que as Edições Cordel, mantidas em Feira de Santana pelo amor à poesia, publicaram o pequeno volume 
Heléboro, nos idos de 1974. Nesse livrinho, em formato de cordel, estão reunidos os poemas com os quais o então estudante universitário Ruy Espinheira Filho ganhou por anos consecutivos todos os concursos literários promovidos pela Universidade Federal da Bahia, deixando nos estudantes da época, concorrentes de Ruy, a imagem do imbatível lutador de palavras. No mais, conforme os versos do velho Gregório de Mattos, nosso poeta primeiro: “Isto sois, minha Bahia, isto passa em vosso burgo”.


SEIXAS, Cid. Nós, por exemplo, atores da Poesia. Texto apresentado à mesa redonda sobre Poesia Baiana, no I Seminário de Estudos Literários. Universidade Estadual de Feira de Santana, 1996.


Grupo do movimento Caderno da Bahia (1948-1955). Reúnem-se aí, da esquerda para a direita, o pintor Caribé, o jornalista Odorico Tavares, seu irmão Cláudio Tavares e o escultor Mário Cravo Jr.


A INTERRELAÇÃO DE MOVIMENTOS

LITERÁRIOS NA BAHIA MODERNISTA


Florisvaldo Mattos


Em um parcimonioso inventário do desempenho dos Rebeldes – aqueles, segundo Cid Seixas, “bem-humorados mosqueteiros, que combateram o bom combate dos fins dos anos vinte aos princípios dos anos trinta” (SEIXAS, 1996), em 1992, Jorge Amado produz o que o crítico considera apenas uma “avaliação sentimental”, sob a forma de sucinto inventário.
Único vivo do grupo que compôs a Academia, no exercício da saudade, faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Édison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico literário, o grande Édison; os Sonetos do malquerer e Os Sonetos do bem-querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Chão de Massapê; o romance de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título para Corja; as coletâneas de poemas de Àydano do Couto Ferraz, a de sonetos de Da Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema — some-se com meus livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo. (AMADO, 1992).

Nas palavras de Amado, embora não tenham varrido a literatura dos movimentos do passado – “não enterramos no esquecimento os autores que eram os alvos prediletos de nossa virulência [...], em geral todos os que precederam o modernismo” (AMADO, 1992) -, os Rebeldes concorreram, “de forma decisiva, para afastar as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros”. “Fomos além do xingamento e da molecagem, sentíamo-nos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade, com ele construímos, jovens e libérrimos nas ruas pobres da Bahia” (AMADO, 1992), sublinha o autor de Navegação de Cabotagem.

Abstraindo-se o movimento de Ala das Letras e das Artes (ALA), que vigorou a partir de 1936, sob o comando intelectual de Carlos Chiacchio e, por isso mesmo, uma continuidade da pauta de ideias pregadas e defendidas pelo grupo de Arco & Flexa, persistindo no receituário de seu “Tradicionismo Dinâmico”, que defendia um modernismo respeitador da tradição e duraria até o final da Segunda Grande Guerra (1945), visto à distância de hoje, percebe-se que o legado da Academia dos Rebeldes estará sutilmente presente nos dois movimentos baianos que se seguiram ao fim do conflito mundial: o de Caderno da Bahia, que se inicia por volta de 1947, e o da chamada Geração Mapa, como sequência deste, a partir de 1955/56.



        Escultura de Mário Cravo Jr., em frente ao Elevador Lacerda

NA ESTRADA DA LIBERTAÇÃO



Caderno da Bahia veio com uma novidade, a presença forte das artes plásticas, segmento estético em tudo ausente em movimentos anteriores, embora fosse predominante o objetivo das letras. Vale lembrar que, estranhamente, em nenhum dos movimentos anteriores (Samba, Arco & Flexa e Academia dos Rebeldes) havia participação clara das linguagens plásticas. A mais razoável explicação para tanto deve-se à predominância da arte acadêmica, presente em instituições de prestígio, como a Escola de Belas Artes, e representada por artistas do porte e prestígio de Presciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho. As novas ideias germinaram fora desse circuito tradicionalista, a partir dos artistas plásticos Mário Cravo Jr. e Carlos Bastos, na volta de viagens e cursos realizados nos Estados Unidos, na França e no Rio de Janeiro, onde tomaram conhecimento das revoluções estéticas. 
Além desses, o grupo se constituiu de outros artistas plásticos, entre os quais Jenner Augusto, Rubem Valentim, Lígia Sampaio e Mota e Silva, mantendo-se à distância o tapeceiro Genaro de Carvalho, embora da mesma geração e desígnio; dos ficcionistas Vasconcelos Maia, José Pedreira e Nelson de Araújo; dos poetas Wilson Rocha, Cláudio Tuiuti Tavares, Camilo de Jesus Lima e Jair Gramacho e dos jornalistas Heron de Alencar e Darwin Brandão, e intelectuais outros como Luís Henrique Dias Tavares, Adalmir da Cunha Miranda, Machado Neto e Pedro Moacir Maia, mas o movimento consagrado com o epíteto de Caderno da Bahia adquire visibilidade a partir de 1948, com a primeira exposição baiana de arte moderna em que figuram artistas da geração. Abriu-se também para a fotografia e o cinema, para adquirir corpo com a publicação da revista que lhe daria nome, cujo primeiro número é deste mesmo ano, conseguindo somar seis números, até encerrar-se em setembro de 1951. A ela assim se refere o escritor Vasconcelos Maia:
O Caderno da Bahia começou sem muitas pretensões, mas, como se a nossa geração estivesse aguardando um veículo com que antes não contava, as adesões se precipitaram. Suas atividades ganharam fôlego. E logo relativo prestígio o cercou, não só aqui, como nos outros estados, onde se processava luta mais ou menos igual: a da afirmação dos talentos jovens na província eminentemente dominada pelo gosto acadêmico. (SANTANA, 1981)
É justamente no editorial inserido na edição de 17 de abril de 1950, no qual se percebem ressonâncias de ideias proclamadas pelos Rebeldes, agora estimuladas pela avalancha libertária do pós-guerra e centradas em fortes aspirações de paz que se alastravam. O pensamento de esquerda responsável pela opção comunista de influentes rebeldes, açulado pela propaganda internacional de princípios marxistas difundidos a partir do sucesso da Revolução de 1917 e a instalação do comunismo na Rússia, a postura de rejeição a todas as formas de idealismo político, que desaguassem em regimes ditatoriais, e o claro propósito de abraçar tudo o que representasse fortalecimento do humanismo, eram visivelmente os esteios ideológicos em que repousava a disposição de Caderno da Bahia.
O editorial aponta como destino preferencial do grupo a “ampla e larga estrada da libertação, na qual marcha uma nova humanidade, na busca de um mundo de tranquilidade e de trabalho, de paz e de amor entre os povos”, reconhecendo este como seu roteiro, “a serviço da paz e da defesa e enriquecimento da cultura”, em contraposição ao outro, “o caminho sangrento e tortuoso do desespero, no qual as formas sociais historicamente decadentes, e mesmo superadas, tentam conservar seus privilégios de exploração e de injustiça”. Vasconcelos Maia diria, alguns decênios depois, que Caderno da Bahia era “um boletim literário e artístico, mas, como a situação política exigia, também político” (SANTANA, 1981). Ao definir as características do movimento, como a consciência do que buscavam, Maia informa, de forma clara o essencial, o que lhe deu suporte: “Tínhamos tido e aprendido as lições da Semana de Arte Moderna de 22 e do movimento aqui liderado por Pinheiro Viegas” (SANTANA, 1981).



       Pescadores, pintura do sergipano Jenner Augusto da Silveira

Não havia por que negar, pois lá estava Walter da Silveira, da linha de frente da Academia dos Rebeldes, que se incorporara ao grupo de Caderno da Bahia. Era a projeção do que, entre os Rebeldes, se constituiu em ponto de coesão para a atividade criadora. “A militância serviu de régua e compasso aos escritores que levantaram um projeto de modernidade – visceral e epidermicamente – afinado com a realidade de seu povo”, infere com percuciência o ensaísta Cid Seixas (2004). De hábitos presumivelmente herdados dos Rebeldes, podem-se alinhar alguns, tais como um semelhante desejo de maior fruição da cidade, no dizer de Vasconcelos Maia (19-?]), “ideal para se viver - tranquila e pacata, sem assaltos”, onde “pouca gente tinha automóvel e a grande maioria das pessoas andava de bonde”. Em timbre que repetia Jorge Amado (1992), Maia testemunhava: “Os grandes vales, que foram utilizados como avenidas e se incorporaram ao processo de urbanização, eram hortas e pomares. O clima era agradabilíssimo, ameno”. Por suas palavras, deduz-se que o grupo vivenciava melhorias no setor de transportes urbanos, com as mudanças que se operaram no serviço de bondes elétricos, a partir da aquisição de unidades mais modernas – agora todos iguais e abertos, amarelos, com os números pretos, com capacidade cada para 50 passageiros, surgindo logo a seguir os bondes fechados de 46 passageiros sentados, que o povo apelidou de “Sossega Leão”, em alusão ao samba de sucesso do compositor baiano Assis Valente, “Camisa Listrada”.

A boemia também tinha seu lugar. Além de alguns espaços sobreviventes, como o Café das Meninas, os componentes de Caderno da Bahia se reuniam preferencialmente na Pastelaria Triunfo, misto de bar e mercearia, na Praça Municipal, mas, para dar um toque especial de fruição hedonista, criaram seu próprio espaço, o Bar Anjo Azul, um ambiente decorado em tons barrocos, que se tornaria um ícone local de sofisticações boêmias, situado na Rua do Cabeça (Centro). O ambiente refletia a atmosfera de doutrinas estéticas e comportamentais em moda na época, como o surrealismo e o existencialismo, refletindo-se na postura dos frequentadores. O interior imitava um bistrô parisiense, onde a música de preferência era o Jazz, na voz de Billie Holiday. Bebia-se pernod ou xi-xi de anjo, este uma especialidade da casa, à base de aguardente, de fórmula secreta, guardada a sete chaves.

Tal como os Rebeldes, a frequência nos bordéis e cassinos figurava naturalmente na agenda do grupo. Relembra Vasconcelos Maia:

Íamos muito em grupo aos cabarés. Não tanto ao Tabaris, porque não tínhamos grana. Íamos mais aos rumbas, aos boleros. Apesar de moços, éramos muito conhecidos. Quando chegávamos nesses dancings, dominávamos o ambiente. Os donos e as dançarinas nos tratavam otimamente, era formidável. Jenner Augusto se arvorava a cantor, Mário Cravo a mágico, nosso amigo Jairo Saback fazia um número de música, ficávamos donos dos salões. (SANTANA, 1981).


AMPLITUDE DO RAIO CULTURAL


O movimento que se seguiu, o da chamada Geração Mapa, tinha igualmente como proposta básica romper com a inércia cultural, a dominação academicista, que ainda alimentava o preconceito contra a arte moderna; mas a realidade era inteiramente outra. Já se haviam esmaecido os fortes reflexos do pós-segunda guerra, embora tivesse irrompido a guerra da Coreia, mas de curta duração e menor repercussão no noticiário, e popocassem outras insufladas pelo capitalismo na luta por sua hegemonia internacional. O mundo se pautava agora pela Guerra Fria, no confronto de Estados Unidos e União Soviética (URSS). Há uma novidade cultural: a partir de 1952, como instrumento de divulgação cultural, Caderno da Bahia seria substituída pela revista Ângulos, criada por Adalmir da Cunha Miranda e outros acadêmicos de Direito, como Machado Neto, sob a direção do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, que advogava a mesma postura de luta contra o conservadorismo renitente e o conformismo intelectual, encerrando esta sua fase em 1961, após 17 edições.
O grupo de Mapa começou a aparecer nas páginas de Ângulos, antes da criação de sua própria revista, que iria dar rótulo à geração, circulando em três edições, nos anos de 1957 e 1958, para o que contou com substancial apoio de Zittelmann de Oliva, então um dos sócios da empresa Artes Gráficas, situada na Rua do Saldanha (Centro), para ser depois superintendente do recém-lançado Jornal da Bahia. Era a forma de se afirmarem talentos do nível de Glauber Rocha (praticamente o líder do grupo, apesar de ser o mais jovem), Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Fred de Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando Rocha, Carlos Anysio Melhor, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, e outros, entre os quais este redator. A eles se agregariam, algum tempo depois, a poeta Myriam Fraga e os então contistas João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles e Noênio Spínola.
No grupo Mapa se integravam várias linguagens artísticas. Além de literatura (ficção e poesia), lá estavam criadores das áreas de artes plásticas, teatro, cinema e jornalismo, utilizando como meios de difusão, além da revista Ângulos, primeiramente, a página literária do Jornal da Bahia, então editada por Luís Henrique Dias Tavares, um dos nomes de Caderno da Bahia, e, depois, o suplemento dominical do jornal Diário de Notícias, da cadeia dos Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, que se celebrizaria sob a sigla SDN, criado a editado pelo jornalista Inácio de Alencar, tendo como coadjuvantes Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, este redator e, às vezes, Sylvio Lamenha, então colunista social, mas de espírito voltado para a literatura. Concomitantemente, com a revista Mapa, o grupo atuava em várias frentes. Criou seu próprio selo editorial, as Edições Macunaíma, que editou os primeiros livros de membros do grupo; fundou uma empresa cinematográfica, a Iemanjá Filmes, e, a partir da aproximação com Walter da Silveira, através do Ciclo de Cinema da Bahia, tendo à frente Glauber Rocha, iniciou o processo que desaguaria na realização de filmes paradigmáticos, como Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro, ambos de Glauber, que antes realizara o longa Barravento e o curta O Pátio; Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, que escreveu também uma peça de teatro, Evangelho de Couro, versando sobre a tragédia de Canudos, levada pela pioneira Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em seu palco. Patrocinou ainda exposições de Calasans Neto e Sante Scaldaferri, em galerias de arte de Salvador, além de lançamentos de álbuns de gravuras.
          Cabras e Baleia, em Itapuã, xilogravura de Calasans Neto

A geração Mapa vivenciou, e a ele se incorporou, o rico momento de reforma da então Universidade da Bahia (só se tornaria Federal, em 1977), empreendido pelo reitor Edgard Santos, com a criação das escolas de arte (Música, Dança e Teatro), reestruturação da Escola de Belas Artes, fundação de institutos culturais, entre os quais se destacava o Centro de Cultura Afro-Oriental (CEAO), além dos de ciências exatas e, mais adiante, novas unidades de ensino, como o Curso de Jornalismo, inicialmente integrante da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Participou da criação e funcionamento do Museu de Arte Moderna, inaugurado pela arquiteta Lina Bo Bardi, em 1960, e na programação avançada de teatro, sob o comando de Martim Gonçalves, então diretor da pioneira Escola de Teatro.

Quanto à fruição hedonista, os integrantes do grupo seguiram, com variações, o roteiro das duas gerações anteriores (Academia dos Rebeldes e Caderno da Bahia): bares, restaurantes, bordeis, cassinos, dancings, recém-surgidas boates, mas, para encontros, tinham como suas preferências a Sorveteria Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda, e os restaurantes Cacique, na Praça Castro Alves, e Porto do Moreira, então na Rua do Cabeça. Até hoje pergunta-se por que a preferência do grupo, de fins de tarde à meia-noite, cotidianamente, pela Sorveteria Cubana, que não servia bebida alcoólica, mas somente sorvetes, milk-shakes e bolinhos. Simples: a inocência também leva ao Paraíso.

*Mattos, Florisvaldo. Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais. Salvador: ALBA Cultural, págs. 38 a 44, 2022.

MAGIAS E ARTE DE CALASANS NETO

 

Florisvaldo Mattos

 

Artista consciente e predestinado, como o definiu o também hoje saudoso poeta e crítico de arte Wilson Rocha, recordo Calasans Neto na figura pertencente à irrequieta e sedutora malta de jovens que, na segunda metade dos anos 1950, deixava os bancos do curso secundário, para decididamente participar e influir no vertiginoso processo cultural de que a Bahia se mostrava em trepidante cenário. Vinham eles das chamadas Jogralescas, febris e depois afamadas apresentações de poesia teatralizada, levadas então ao palco, no auditório do ainda Colégio da Bahia (hoje Central), em que Calá, além de autor da cenografia, desempenhava também função de ator.

Com Glauber Rocha à frente, compunham esse grupo cavaleiros andantes, tomados de igual fervor, Fernando da Rocha Peres, Paulo Gil Soares, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando Rocha, Ângelo Roberto, Antônio Guerra Lima, entre outros, ao lado de louçãs demoiselles que infundiam, a um só tempo, ardor, beleza e inspiração àqueles rumorosos dias. Estavam resolvidos a subjugar e varrer do ambiente cultural a esclerose decadentista que ainda o corroía, lançando luzes sobre o opaco horizonte à sua frente, não obstante os novos rumos descortinados por Edgar Santos, reitor da então Universidade da Bahia, com seu vitorioso projeto de reformas estruturais. 

A eles me incorporei, em inícios de 1957, a convite de Glauber, que se entusiasmara com um poema de minha autoria, intitulado “Composição de ferrovia” e publicado no número 11, da revista Ângulos, então prestigioso ícone editorial da Bahia, que acabara de circular. Calasans Neto era um desses quixotes, montado em seu rocinante, cujo peitoral de sonhos varava o vasto e sensível campo das artes plásticas, um dos poucos redutos que a geração anterior, a dos cavaleiros da cruzada vitoriosa de Caderno da Bahia (1948-1955), conseguira desbravar, abrindo fendas na resistente muralha do academicismo dominante, acolhidos pela sensibilidade modernista do educador Anísio Teixeira, à frente da Secretaria da Educação e Cultura, no governo Octávio Mangabeira (1947-1951).

Nas artes plásticas, irrompia com ânimo forte e aspirações a que mais adiante seria rotulada de Geração Mapa, por contar em seu pelotão com quatro varões de indiscutível talento artístico: Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto e Hélio Oliveira, a que depois se juntaria José Maria Rodrigues. Realce neste leque de criadores, já mestre em muitas artes, inclusive na da conversa alegre, informal, bem-humorada e envolvente, Calá logo revelaria excepcional vocação para a gravura em madeira e na ilustração de livros e álbuns constantes de obras publicadas pelas Edições Macunaíma e revista Mapa, duas iniciativas editoriais que se tornariam carros-chefes para afirmação e prestígio literário e artístico do grupo.

Eu próprio, não tenho por que negar, me considero um dos beneficiários das  habilidades e magias visuais da goiva de Calasans Neto, desde que, tendo sido o ilustrador de meu primeiro livro, Reverdor, de 1965, o seria de outros que se seguiriam, tais como Fábula Civil (1975) e A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior (1996), além de uma plaqueta de poemas com que eu e Fernando da Rocha Peres, em 1985, (Dois poemas para Glauber Rocha), homenageamos a memória deste glorioso companheiro de geração. Em todas essas obras, a arte de Calá destacava-se como forte elemento, capaz de impulsionar as sugestões estéticas que o enunciado de versos e estrofes buscava transmitir, podendo-se afirmar mesmo que eram as imagens das gravuras o seu visual condutor.

Trabalhadas em madeira, no primeiro caso, as gravuras de Calá agregavam feição gráfica aos poemas do livro, conferindo energia e vigor a seu enunciado telúrico, tanto no que respeita às alusões épicas, quanto ao lirismo nas partes marcadas por separatrizes, desde a capa até a contracapa, cujas imagens se articulavam com o universo rural ou mecânico, por onde se insinuava o seu conteúdo.



No livro Reverdor (Salvador: Edições Macunaíma, 1965), desenhos de cavaleiros vestidos em armaduras, em cenário de cavalaria medieval, precediam os poemas dos cinco monólogos de Garcia d´Ávila; a seguir, figuras de cabras placidamente pastando, em encostas (mais adiante, esses animais se tornariam signos definidores de uma das fases da arte de Calá, incutindo nas telas, e também em gravuras, dimensão mitológica de conotação campestre), advertiam para o fundamento agrário da seção “Agrotempo” e, por fim, uma locomotiva, arrastando um comboio de vagões, anunciava os poemas da seção final denominada “Composição de ferrovia”. Havia imaginação, com figuração modernista, evocação e bucolismo, a refletir o objeto verbal que os versos adiante cogitavam expressar.

Houve depois nova colaboração deste mágico artista, na edição de outro livro de minha autoria, Fábula Civil (pelo mesmo selo editorial, em 1975), cujas elocuções abandonavam o ambiente rústico e o chão bucólico da região cacaueira, para centrar-se na trepidação de um universo urbano conturbado, prenunciando horrores, que ameaçavam, desafiavam e violavam as serenas estivas do humanismo. A poesia agora se voltava para uma ordem de fatores pulsantes, em cenário marcado por violência, ditadura, opressão e medo.

Neste denso circuito imaginativo, as xilogravuras irão imprimir especial figuração, traduzindo verbal expressão de denúncia, assombro e terror, presente na linguagem dos poemas, e agigantando a edição, desde o vermelho da capa, com título em baixo relevo. Letras fortes e cruamente esculpidas compõem a página de rosto e se embrenham pelas três seções divisórias que se seguem, em sugestiva dança de imagens e títulos também gravados. Agora tensos e meditativos rostos defrontam-se com enigmas, seres humanos em célere fuga sobre chão de caveiras e ossos; bocas escancaradas sob açoites sugerem espanto e dor, invocando urgências num trançado de tragédia, como viventes solitários de uma noite que não passa, submersa em sentimentos de piedade e compaixão. 

Calá também iria participar da homenagem conjunta, em forma de plaqueta de poemas, que eu e Fernando da Rocha Peres prestamos à memória de Glauber Rocha, em 1985, agora com um conjunto de monotipias alusivas à obra do saudoso amigo e já famoso cineasta. Na edição de A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, obra editada pela Fundação Casa de Jorge Amado (Prêmio Copene de Cultura e Arte, 1996), Calasans Neto comparece com oito gravuras que integram capa e separatrizes da coletânea de poemas.

Nesta memória, apenas assinalo parte atomizada da significativa obra gráfica de Calasans Neto, que, para ficar apenas no campo da poesia, conferiu qualidade visual, artística e de fidelidade a edições de obras de outros poetas, a começar por Samba de Roda, de Fred Souza Castro, de 1957, livro com que o selo Edições Macunaíma inaugurava sua aventura editorial (suponho ter sido também o primeiro livro ilustrado por Calá). Seguiram-se, entre livros e plaquetas, os de Fernando da Rocha Peres (Diluviano, Rurais, Tempo Objeto), Paulo Gil Soares (Mirante dos Aflitos), os muitos de Myriam Fraga, Alberto Luiz Baraúna, Humberto Fialho Guedes, José Carlos Capinan, e de outros nomes consagrados, como Jorge Amado, Godofredo Filho e Carvalho Filho, entre outros baianos, nas áreas de poesia e ficção, como o livro de contos, também inaugural, de Sonia Coutinho, Do herói inútil (1964), sem esquecer monumental edição com poemas de Vinicius de Moraes e Pablo Neruda, um primor de criatividade, em matéria de conteúdo editorial e gráfico.

Na Bahia, pertence à esfera da alta cordialidade estética esta aliança fraternal entre as artes plásticas, a poesia e a literatura, cooperação que faz parte da história da civilização ocidental, desde o Renascimento, porém acentuada a partir dos movimentos literários e artísticos do século XIX e incrementada com as vanguardas de início do século XX, quando se consagrou e se tornou uma saudável referência na produção de livros e álbuns, muitos destes apenas de arte.

Quanto a mim, esse intercâmbio de minha poesia com a linguagem plástica de Calasans Neto teve um significado de diálogo afetivo e congraçamento de ideias, que coincidiam com aspirações estéticas de uma geração, em que palavras e imagens, traços e cores se harmonizavam, sob os signos da colaboração e dos afetos, unificando propostas e ânimos, desde que a gravura desse artista, sendo ela própria também um processo poético, em escala visual, pressupõe entrelaçamento de identidades que se situam na raiz dos temas abordados, como no caso de meu livro Reverdor, em que suas gravuras, funcionando como separatrizes, procuravam realçar o núcleo de poemas que cantavam o labor dos campos e heróis do passado, desbravadores da terra descoberta, a partir da ocupação, a fincarem as raízes da nação brasileira. Nele, uma dinâmica visual trespassada por um sopro de inocência juvenil; em mim, um estado mental de aventuras verbais, que buscava transmitir pureza de origens, com chão e gentes, a sancionarem pensamento, palavras e imagens; enfim, uma relação que se traduzia e se justificava pela confluência de sentimentos e aspirações geracionais, fortemente alojados num cosmo íntimo de amizade.

Aproveito para manifestar o meu eterno agradecimento a José Júlio Calasans Neto, ou simples e familiarmente Calá, que nos deixou num dia frio de outono, em 2006, por sua desprendida solidariedade e generosidade, e também para anunciar novidade, que demonstra permanecerem saudavelmente vivas a magia e a arte desse notável baiano. Trata-se de atitude tão digna quanto rara, no atual panorama cultural da Bahia, a de um empresário da construção civil, Denis Guimarães, que me foi apresentado pela jornalista Elane Varjão, certa manhã, em razão de que ele resolvera pôr em prática projeto inteiramente pessoal, que, segundo me confessou, se destinava a coletar e preservar o acervo artístico de Calasans Neto, representado por gravuras, pinturas, esculturas, assim como documentos, e mais o que fosse e onde estivesse, para tanto não medindo esforços em consegui-lo. Pediu-me então que lhe indicasse um contato; sugeri que procurasse Auta Rosa, hoje também saudosa viúva desse memorável artista plástico; porém não tive conhecimento do que ocorreu posteriormente. Espero que tenha obtido merecido sucesso, para que a obra de um artista de tão alto nível criativo não mergulhe no esquecimento, como tem sido comum nesta Bahia.


 

CANTEIRO DE OBRAS

                        A Calasans Neto

 

Triste nada mais triste

nas torrentes urbanas

são passos insones sombras

entre automóveis e hábitos.

 

Marulho de pés e pedra

escuro clamor de buzinas

deslizamos sobre leito

de ritos – sulcos na face.

 

Os engenheiros rasgam

o ventre da cidade

mar de mitos represado

o fel da impotência

escorre ladeira abaixo.

 

Tudo resplandece em luxo visual

no cotidiano das paredes claras.

 

Dentadura gretada de edifícios

engole projeta miragens

morno hálito de sangue

sobre todos – por ali sai

um odor antigo um bafio

rude muito sem disfarces.

 

Lábios e mãos se apagam

em escrita de muros – implacável

olhos ouvidos rostos numerados

mansamente nos consumimos

em surdo medo e azinhavre.

 

(Florisvaldo Mattos, Fábula civil. Salvador: Edições Macunaíma, 1975). Ilustração: xilogravuras de Calasans Neto, para o livro REVERDOR, de Florisvaldo Mattos. Salvador: Edições Macunaíma, 1965)

 

       Expressionismo rural (óleo sobre tela) de Sante Scaldaferri 

TRANSVANGUARDISTA SANTE SCALDAFERRI


Florisvaldo Mattos

Seja por impulso afetivo e geracional, seja por juízo crítico quanto à obra do artista, a personalidade de Sante Scaldaferri sempre suscitou definições. Atado por laços de cotidiana e sincera amizade, Paulo Gil Soares viu no moço quieto, franco, prestativo e sorridente um “coração aberto a todas as dores do mundo que não deviam ser suas”. Com olhar ativo e perscrutante de cineasta ainda por estrear, Glauber Rocha percebeu na linguagem plástica de sua pintura uma “cor Bahia”, que a um só tempo concentrava atmosfera, luz e “pathos bahianos”, a denotar um fundamento de raízes distante do figurativismo decorativo de fácil transposição, síntese que, à época, de tão precisa e inventiva, para o crítico Clarival do Prado Valladares, dispensava explicações.

Em mais de uma apreciação, Wilson Rocha vislumbrou na aparência fantástica e na visão dramática do mundo biomórfico de Sante uma prova de “honradez pictórica”, de visão poderosa de artista maior “que acompanha a aventura do homem no mundo e observa os absurdos da existência humana”, cuja deformação se impunha pela dura verdade do conteúdo, expressa por “uma dramaticidade de acentos irônicos e brutais”. Para Ferreira Gullar, pela “atitude irreverente e corajosa”, Sante era “o boca do inferno da pintura baiana”, fiel a uma arte de desmistificação que punha “a nu todas as hipocrisias e pretensões, tanto sociais, quanto artísticas”, enquanto José Roberto Teixeira Leite reconhecia, na “dura realidade” geográfica que seus quadros espelhavam, “o severo cotidiano de muitos milhões de brasileiros”. Além de perceber “um modo próprio de organizar o universo visual”, a um mesmo tempo carregado de significações, Gullar encara os personagens de Scaldaferri como “saídos de uma iconografia que a cultura urbana submete e marginaliza”; contrariamente ao belo, refinado e transcendente, apontam para baixo, para o popular, que, na obra do artista, “se identifica com a feiura e a rudeza das figuras e das cenas”. (apud MATTOS, 2006).

Já numa clave que o desvia dos acenos da circunstância, Walmir Ayala não titubeia em descrevê-lo como “um pintor próximo da massa, do sofrimento indefeso dos desfavorecidos”, refletindo o universo cultural de um povo, mas, consciente das suas contradições, “onde a pobreza canta e dança nas ruas”, optando por “uma pintura que contesta a diluição provocada pelo consumo turístico”.

Eu próprio, ao deparar-me com seus vaqueiros e cangaceiros de fundas e vastas olheiras, seus rebanhos bucólicos de bois e trânsitos de contritos beatos - signos que chamaria de cor-Nordeste, projetando intenso verde, vermelho, ocre e sépia -, recriados e tratados com humanidade sobre tela ou madeira, tomei-os em lavra poética como “cintilação campestre” de um universo patriarcal, que aprisionava o tempo e colhia “a rosa alvaçã”, na “pelagem do incontemplado”. (“Aura alvaçã”, poema, in MATTOS, Florisvaldo Fábula civil. 1975. p. 33).

 

      Homem descansando. Arte expressionista de Sante Scaldaferri

Foi justamente esta predominante fixação na figura humana, já agora construída com elementos de deformação, decomposição e desarticulação, segundo Teixeira Leite, “com evidentes intenções expressivas”, que irá representar um salto na arte de Sante Scaldaferri. Embora confesse, por mais de uma vez, em depoimentos e entrevistas à imprensa, ter evitado vincular-se a escolas ou correntes pictóricas, não resta dúvida de que o impulso e a espontaneidade com que desde jovem abraçou a arte moderna, livrando-se das peias do receituário acadêmico, levaram-no a descobrir a fecunda trilha da cultura popular.

Aferra-se de início com seriedade e responsabilidade à essência de signos populares e, daí, a uma nova atitude artística em relação à figura - principalmente a figura humana -, que abre seu espírito à estética do expressionismo, tantas são as identidades com as suas propostas e intenção revolucionária de olhar o mundo “por trás da aparência das cores” - um de seus ditames. Assim, opta por uma gramática plástica de deliberada simplificação, formas reduzidas ao essencial, corpos distorcidos, até se confrontar com certa obsessão pelo grotesco, o satírico e o caricatural, sem com isso estar traindo – muito pelo contrário - aquela representação do pathos baiano que Glauber Rocha de início nele identificou.

Quanto a isto, anota Teixeira Leite (apud MATTOS, 2006): “essa tendência a pintar o ser humano como é por dentro não permite dúvidas: Sante é um expressionista e, sua arte, como toda arte expressionista, resvala para a sátira e para a farsa, para a caricatura e a imprecação”. E, pela perspectiva do não convencional e do grotesco, não se recusa a suscitar um parentesco com o alemão Hieronymus Bosch (1450-1516), a que se poderia acrescentar o Goya dos Caprichos (1799), a série de 82 gravuras que retrata um universo de pesadelos e ferozes ataques aos costumes, isto é, à hipocrisia da circunstância. O crítico descreve-o como um “pessimista incorrigível”, descrente da nobreza do homem, encarando-o “como um animal depravado e imperfeito”, cujo exterior grotesco apenas reflete o seu interior deformado pelas paixões, os vícios e a ânsia de prazer e poder. Por isso, o artista vê o ser humano no seu trânsito social.

Nesse aspecto, há clara similitude entre o baiano e personagens de proa do expressionismo alemão, a exemplo de Franz Marc, na sua opção conceitual por uma pintura animalista, sob o argumento de que a impureza dos homens que o rodeavam não lhe despertava os verdadeiros sentimentos, pois, enquanto via só feiura nas pessoas, os animais lhe pareciam mais belos e mais puros, como diz numa carta à mulher (1915), enviada do teatro da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), na qual veio a morrer. Embora suponha que nenhum deles “importou vanguardas estrangeiras”, nem se submeteu a modismos internacionais, não há como negar que é também pelo visor expressionista que o poeta e crítico de arte Theon Spanudis mira Scaldaferri, ao unir sua arte, pela originalidade e autenticidade temáticas, à de dois outros baianos, Rubem Valentim e Raimundo de Oliveira. No primeiro, o misticismo e o simbolismo religioso de fundo afro-brasileiro; no segundo, o catolicismo popular, bíblico, enfocado na ingenuidade.

“Sante se interessa pelo povo nordestino, seus dramas, paixões e vitalidade”, sublinha Spanudis (apud MATTOS, 2006), agarrando-o pelas dobras da fatalidade geográfica. Com variações de temas – no caso de Valentim, o construtivismo simbólico das crenças de origem afro - arrisco-me a dizer que os três são tributários daquele despojamento rude e elementar de cores fortes e saturadas, aplicadas com pincel grosso, para sugerir ou definir figuras num espaço repleto de vibração interior, marca do expressionismo -, lógico que mais acentuado no caso de Scaldaferri, cujo parentesco artístico na Bahia, a meu ver, o alinha com Mário Cravo e, no Brasil, com Iberê Camargo.

        Fatalidade geográfica do Nordeste, presente na arte de Sante

Sem ser um especialista, mas insistindo na tecla da codificação pictórica do expressionismo, que, pela violenta deformação da figura, o elemento fisiológico, o corporal e a obsessão pelo corpo humano - e, porque não dizer, por um ainda persistente vínculo com a cultura europeia -, o aproxima da arte de Edward Munch, Kirchner, Egon Schiele, Erich Heckel, James Ensor e, mais recentemente, Francis Bacon, sou tentado a divisar em Sante, principalmente no que construiu desde a segunda metade dos anos 1980, culminando em obras expostas na Galeria Paulo Darzé, em novembro de 2006, e a buscar inter-relação de sua arte com a representativa dos movimentos de pós-vanguarda ou transvanguarda, que vicejaram, persistiram e se desdobraram na Alemanha, Itália, Estados Unidos e outros países, nos últimos decênios do século XX.

Não tenho dúvidas de que é nesta saga estética de ousadias figurativas que se encaixa confortavelmente Sante Scaldaferri. A refinada afetação (roçando no excessivo e no vulgar), o gosto por efeitos espaciais desconcertantes, a intensidade emocional derivada das formas distorcidas, as desproporções, a maestria no manejo das técnicas da pintura, as excitantes e eróticas alusões, a tendência à exuberância e ao monumental, a marca de desespero e manifesto horror, a secreta irracionalidade - enfim, toda uma arqueologia visual da transvanguarda, que, segundo a crítica, evoca o maneirismo de Pontormo, Parmigianino, Bronzino e El Greco, sendas do barroco, e, cogito – porque não? -, do romantismo libertário de Goya e do visionário, de William Blake.

Pela tendência à narração insubmissa e satírica, pejada de ironia, a habilidade e variação no uso das técnicas da pintura, recorrendo, entre outras, até à quase pré-histórica encáustica, de suportes e materiais (madeira, borracha, pano, plástico), além da vitalidade e independência do vigoroso desenho – com a propositada malícia que levou Umberto Eco a vislumbrar em quadros seus “uma sombra pop” –, descortino em Sante um artista mais identificado com a rebeldia estética de alemães, como Georg Baselitz, Anselm Kiefer, Jörg Immendorff, A. R. Penck, Sigmar Polke, Walter Dahn; os italianos Sandro Chia, Francesco Clemente, Enzo Cucchi, Mimmo Paladino; os americanos Julian Schnabel, David Salle, Cindy Sherman e, em certo sentido, por múltiplos indícios de avanços em sua caminhada, com a rudeza de desenho e grafismo de Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, e de outros mais, todos legítimos representantes do que desde os anos 1980 se passou a chamar de transvanguarda (HONNEF, 1994), pelos laços com as vanguardas de inícios do século passado e suplantação de seus processos e desdobramentos. 

Como eles, sem se recusar até mesmo ao apelo à caricatura (afinidade possível com o traço satírico de George Grosz), em essência, Scaldaferri pinta visões (as suas) de um mundo torto, execrável, no seu secreto horror ou exposto clamor. Gostaria de reformar este mundo cruel, mas, não podendo, escarmenta-o, denuncia, ironiza, satiriza. Como? Pela distorção, pela vigorosa e contundente expressão do grotesco, contra o totalitarismo subliminar da sociedade em que vive, a alimentada e ancestral desigualdade, a sua miséria explícita e invencível. Muitos se recusariam a pôr um quadro dele na parede da sala de estar, não pela fácil alegação de fealdade das figuras, mas por outras obsessões, uma delas a hipocrisia.


    Verão 70, alegrias do Carnaval, na arte de Sante Scaldaferri

Conheci Sante Scaldaferri por volta de 1956 (não sou forte em datas), pela mão de Glauber Rocha, no instante mesmo em que um punhado de jovens de mente lúcida e febril começava a agitar o meio cultural baiano (entre os quais, além dele e GR, Paulo Gil Soares, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto, Fred Souza Castro, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Ângelo Roberto, Antônio Guerra Lima), a partir das sessões de poesia dramatizada, levadas no auditório do então Colégio da Bahia (depois Central), sob o mítico e lúdico nome de Jogralescas, no movimento que depois desembocaria em ações mais avançadas e ousadas, projetando-se sob o vago rótulo de Geração Mapa, a inserir-se na história cultural da Bahia.

Acostumei-me, a partir daí, a conviver com esse monumento de fraternidade, posto que Sante já ostentava, na aparência, por onde circulasse, largo sorriso e bigode mexicano, à Pedro Armendáriz, barba à época acastanhada e a luminosa e irrefreável calvície. Passei também a admirar, no cotidiano de encontros do grupo, em reuniões, exposições de arte, peças de teatro e salas de cinema, um artista cuja obra se afirmava na busca de horizontes mais amplos, de essência perdurável, em conteúdo e forma, rumo à universalidade que lhe suscitavam inquietações interiores e dúvidas, sua visão de mundo e, em tudo, suas emoções. Acompanhei essa árdua prova de fidelidade a um sacerdócio incontestável, transpirando amor à arte como uma fatalidade.

Por isso, mesmo ante uma crítica mais purista, higiênica, depilada e zarolha, atuante no Rio e São Paulo, que, no dizer do crítico Frederico Morais, exerce uma ditadura no país, a torcer o nariz para exemplos de férrea sinceridade e ousada imaginação, Scaldaferri prosseguiu impávido, no seu caminho e na sua devoção. E, ante tais evidentes mostras de soberba ou intencional descaso, a cada exposição que fazia, catálogo ou livro de arte que publicava, esse grande artista baiano sempre ostentou no rosto e no riso uma expressão de radiante e sonora felicidade, mas também uma lição de bravura, para a arte e para os artistas, e de vida, para todos os que o conheceram, cuja obra não se desmerece, nem se desmerecerá ante a de qualquer grande pintor brasileiro.

REFERÊNCIAS

 HONNEF, Klaus. Arte Contemporânea. Tradução: Casa das Línguas. Colonia (Alemanha): Benedikt Taschen, 1994.

MATTOS, Florisvaldo. Artigo. “Cogitações de uma narrativa plástica”. Salvador: Paulo Darzé, Galeria de Arte, Catálogo, 2006.

SCALDAFERRI, Sante. Pinturas Recentes. Salvador: Paulo Darzé, Galeria de Arte. Exposição: de 10 a 30 de novembro de 2006.

Sante Scaldaferri (1928-2015) foi dos destaques da Geração Mapa

POESIA

Sante, no silêncio das pastagens

             AURA ALVAÇÃ

                        A Sante Scaldaferri


Florisvaldo Mattos

 

Ó cintilação campestre

remanescente cerâmica

de universo patriarcal!

 

Contemplo claro rebanho    

de reses lentas ganhando

o silêncio das pastagens.

Explode pelos currais                                           

sinuoso berro de espuma,

drapejam vozes de aboio

sobre capim outonal,

verde produção de esterco        

consagra o chão mineral.

 

Ó perene geografia

de homens e naves, sistema    

do couro, campo domado!

 

Andejo rechã buscando

germinais rastos de reses.

Ao sol da manhã prefiro 

curar sofridas corolas

ou laçar chifres em fuga

– arisca abóboda, ogiva

do tempo aprisionado –,

colher a rosa alvaçã,

pelagem do incontemplado.


(Florisvaldo Mattos. Fábula civil. Salvador: Edições Macunaíma, 1975).
















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