sábado, 10 de maio de 2025

DO BARRO VERMELHO AO AZUL DA JACUTINGA

      No Barro Vermelho, o armazém de secos e molhados, que voava

https://academiadeletrasdeitabuna.com.br/2025/05/09/a-fixacao-do-lugar-em-florisvaldo-mattos-por-heloisa-prazeres/


A FIXAÇÃO DO LUGAR EM FLORISVALDO MATTOS

                                                                                   Heloísa Prazeres        

O poeta explora o seu tema mais uma vez, referindo identidade e tradição na poesia da região da Sul da Bahia. Reflete poeticamente sobre a construção do mundo grapiúna, em sua relação com a cultura rural, que é a residência originária do escritor, natural de Água Preta do Mocambo, hoje Uruçuca.
O poema “Só para quem tem mais de 90 anos”, inédito*, resulta da fusão de uma memória lírica associada a pinceladas épicas, que narram e descrevem, com minúcia, e relatam vivências rurais.
O topônimo ‘Barro Vermelho’ é reino preservado pela potência poética. O poeta recupera, com sensibilidade e destreza de recursos, terra, ar, ares, águas fluviais, mundo rural, lugar de encantamento, nomeado, retratado e monumentalizado pela escrita poética. O autor dispõe para o leitor um mundo pleno de ações, pessoas, rituais, objetos e paisagens entronizadas e pacientemente refeitas, a modo de preservá-las. Cito:

Lanço-me para a rua, de cordames
E de moirões ausentes de alimárias
(Cadê Cuscuz, Gasosa e Fortaleza?).
Lá vem chegando a tarde e, dentro em pouco,
Com a brisa de memórias renovadas,
Um amigo, de loiras confidências
Doutros saudosos dias, o crepúsculo.
Chega a hora de voltar para Ubaitaba.

O reinado, o filtro textual é a subjetividade em perspectiva artístico literária; o eu lírico dispõe lembranças (pela determinação descritiva e detalhe construído), nas quais, tudo nos familiariza com o tempo, recuperado pela consagração da memória daquelas vivências idas e vividas.

Mas, essa matéria assim tratada não afasta o autor de sua aparelhagem teórico-crítica de leitor inscrito na tradição moderna. Estamos diante de um intelectual consciente dos seus recursos, sustentado por um edifício de leituras e contínuas apreciações e releituras de modelos da tradição clássica, bucólica, e moderna.
A exemplo de Borges, um intelectual cosmopolita, que se interessou pela poesia da fronteira, pelos gêneros literários da região dos pampas, especialmente argentinos e uruguaios: a vida do gaúcho, mediante o uso de vocabulário e ritmos próprios.

Não surpreende, assim, na poesia de Florisvaldo Mattos o ouvido do escritor. Afeito a modulações sofisticadas e a um imaginário liberto, afim de metáforas singulares, impregnadas de seiva local, em recordações amparadas pelo frescor de vivências e percepções inéditas, conforme fragmento, que exibe a inesperada personificação de acidentes botânicos e geográficos:

Hora de beber Água de Meninos,

Grindélia e Biotônico Fontoura,

Com o almanaque de Jeca Tatu,

Que sóis, frondes e riachos receitavam.

Arranjado em metro decassílabo e ritmado em rimas toantes, o poema nem necessita assinatura para quem for minimamente familiarizado com esta poética de um mestre da lírica nacional.

    Casa do Barro Vermelho, fachada e oitão; visita de 1974, manhã

* SÓ PARA QUEM TEM MAIS DE 90 ANOS

Nunca pensé, creédmelo, un instante
Volver a ver esta querida tierra,
Pero ahora que he vuelto no compreendo
Cómo pude alejarme de su puerta.
Nada ha cambiado, ni sus casas blancas
Ni sus viejos portones de madera.
*

                                                 Nicanor Parra (Chile, 1914-2018)

Ó mui risonho dia! e mais risonho

Possas tu de ano em ano alvorecer-nos (...)  

                                                 Ovídio - Os Fastos. Livro I. 

                                                 (Tradução de António Feliciano de Castilho)


Saudades, lá, do meu Barro Vermelho.
Memória é o que me prende a esta manhã.

Deixo Ubaitaba rumo à estrada rude,
De pedras e cascalho imorredouros,
E volto ao chão, que antigo sonho aduba.
Desço a ladeira que antes me levava,
Pela jindiba, à mata e ao jaqueiral,
E avisto a casa branca (a que voava),
A do armazém de secos e molhados,
Com suas quatro portas e janela,
Onde meu pai, sentado, repassava
Um borderô de muitos devedores.

À minha frente, a mesma serrania,
Os campos das alegres cavalgadas,
De caçar saracuras pelos brejos;
(Filho de um ano, junto a mim, sorri).           

Franz Marc, Cavalo Azul

Perto, o quintal de porcos e galinhas,
Da gestação de pintos e leitões,
Como também a sombra do arvoredo,
De onde cantos, em sinfonia, vinham,
De guriatãs, sabiás e bem-te-vis.
O terreiro dos gritos do tropeiro,
Arreando burros, neste tempo novo,
De levar e trazer mercadorias.

Sobre cercas de arame, enfileirados,
Postam-se curiós, pardais e anus,
Junto ao curral do gado de matança.
Preso ao guiso de alegres aventuras,
Por ali, tomo o rumo das pastagens,
De capim verde e mulas de bom passo.
Lá está o cajueiro farto de cajus,
Com os sanhaços, de pronto, a devorá-los.
Deixo de lado as canas do alambique
E sigo pelo riacho a pescar piabas.

Lembro os meus cinco irmãos, infantes todos,
(Duas irmãs), sem roupas remendadas.
As noites de São João, de muitos fogos,
E a fogueira estalando no terreiro.
Tardes sem chuva, de poentes fulvos,
Que me embeveciam, no jardim com flores;
Casas de palha e de amassado barro,
De onde a alegria nunca se ausentava;
Garotos correm, com seus alçapões,
Dentro da mata, à caça de saruês.

De noite, sobre os mudos cacaueiros,
A lua, abandonando o firmamento,
Vem segredar-se com a mamãe Gertrudes
E vai dormir no colo de Mãe-Dé.
Hora de beber Água de Meninos,
Grindélia e Biotônico Fontoura,
Com o almanaque de Jeca Tatu,
Que sóis, frondes e riachos receitavam.

Encosto numa porta e escuto o som
Do rádio, com seus sambas e emboladas.
Penetro no armazém, outrora um luxo,
Sem prateleiras nas paredes lisas.
Piso o chão de cimento envelhecido
E de couros de boi despedaçados.

Lanço-me para a rua, de cordames
E de moirões ausentes de alimárias
(Cadê Cuscuz, Gasosa e Fortaleza?).
Lá vem chegando a tarde e, dentro em pouco,
Com a brisa de memórias renovadas,
Um amigo, de loiras confidências
Doutros saudosos dias, o crepúsculo.
Chega a hora de voltar para Ubaitaba.

Paro o carro nas abas da jindiba
E miro o vasto prado verdejante.
Já disse um dia, de passar sereno:
Vindo do amanhecer, sonhar é tudo,
Sem abrir portas para o esquecimento.
Tempos de amor e de sentir vividos,
Num dilúvio de ardências e clamores,
Que me abarrota o coração de sonhos!

Obrigado, amado Barro Vermelho,
Por esse dia que me fez feliz!

(Florisvaldo Mattos. Salvador-BA, quarta-feira, manhã de 29/04/2025; inédito)

    Barro Vermelho, visita em 1974, com filho Mauro, de um ano
    (Na imagem: da esq., Luiz Matos, sua mãe Lia, Isolda, mãe de Mauro, e Raquel, 1974)

Heloísa Prazeres é poeta, ensaísta literária e professora adjunta, aposentada do Instituto de Letras, da UFBA. Ocupa a cadeira nº 26, da Academia das Letras da Bahia, e é membro titular, Cadeira n° 14, da Alita, Academia de Letras de Itabuna. Life member of the International Alumni Association. Membro da União Brasileira de Escritores, ensaísta e poeta. Obra principal: PRAZERES, Heloísa. Temas e teimas em narrativas baianas do Centro-Sul, 2000; Arcos de sentido: literatura, tradução e memória cultural, 2018. Poesia: Pequena História, 2014; Casa onde habitamos, 2016; Tenda acesa, 2020; A vigília dos Peixes, 2021; O tempo não detém a vida, 2023; Nossa casa alheia, 2024. (Foto publicada no portal da Academia de Letras de Itabuna - ALITA).











HÁ OUTRAS RONDAS LÍRICAS DO MESMO LUGAR

RASTRO DE BRISA
A mãe Gertrudes

Somente de horas alegres
São feitos os dias da infância.
(O que é duro e revés
Sai da coluna do Haver).
Há duas exceções, porém:
A fome, que é desespero,
E a morte, noturna hiena,
E também as mágoas vindas
Dos primeiros desencantos.
O resto fica escondido
Nas abas lá da jindiba
Entre os guardados da loba.
Sobram os grandes espaços, Pablo Picasso. Mãe e Filho, da Fase Azul, 1901)
Os horizontes abertos
Às primeiras cavalgadas.
Eram cavalos-de pau
Ou era a tropa de burros?
Facão no cinto e na mão,
A taca de mil estalos,
Nas dobras de alguma nuvem,
Ramiro tange escondido
Cuscuz e a Besta Melada.
E depois nos prega sustos
Saltando detrás das portas
Com a boca escancarada.
Do cume da Jacutinga
No trote da frialdade
Desce um rebanho de sonhos.
Ou são rebanhos de sombras?
Neblina fácil nas copas
Enreda-se com a folhagem.
Misturam-se aos bem-te-vis
Velhos cantares e aboios
Que os ventos levam e trazem.
“Que fazem meninos? Brinquem”,
Entoa a voz cautelosa
De quem quer filhos unidos.
Somente de alegres luzes
São feitos os dias da infância.

Florisvaldo Mattos. A caligrafia do e poesia anterior, p. 46, 1996)

O TEMPO, O LUGAR

                        A Soane Nazaré de Andrade

 

As três portas da frente onde era a venda,

guarnecida de vastas prateleiras,

e outra mais e mais outra, toda a senda

que levava ao quintal de bananeiras;

a franja da floresta, onde eu a lenda

desfiava de Anice, a que as primeiras

quimeras fez passar por uma fenda

na alma e que se ocultava dos que às feiras

de cristalinos sábados rumavam;

os cavalos de pau e as de bambu

flautas, mais a valer quando imitavam

virentes sons; e os ninhos de jacu,

      por onde começava nova história.

      Tudo isso me abre sulcos na memória.


BARRO VERMELHO, UM LUGAR

                                   A Othon Jambeiro

 

Ai! sítio que me atiça

as emoções primeiras.

Coração nas ladeiras

rasga-me. A serra: do alto

a mata avisto, a casa.

O descampado onde água

arisca (o riacho) risca-me

fervente infância – ai! asa

despedaçada; mergulho

fundo no espelho – em brasa.

 

Ai! vento que me estuma

à mente, ao rosto, aos lábios

acesos calendários.

Entro com as ferramentas

do sonho na derruba.

Dilacera-me a fúria

da lâmina nas árvores,

e mais que isto, o que avisto,

no começo das chuvas,

os horizontes graves.

 

(1988)


HORA DE JANTAR

                        A Roberto Gabriel Dias

                      

I

Não, não fale, não clame.

Ouça os lenhadores.

 

Deles nos chega vívida

– densa e temporal –

a linguagem do aço

assumida ao gume

bem no centro da mata

de árvores pernaltas.

 

II

Não, não fale, não grite.

Ouça os serradores.

 

Deles nos chega lenta

– grave e comovida –

a linguagem da fibra

(ou nervos) torturada;

instante inicial da madeira

em domação corporal.

 

III

Não, não fale, não cante.           

Cândido Portinari, Vaso de Flores, 1942

ouça os carpinteiros.

 

Deles nos chega reta

– nítida e apurada –

a linguagem do metro

antevisão do espaço

em projeto racional

a caminho da utilidade.

 

IV

Não, não fale, não xingue.

Ouça os marceneiros.

 

Deles nos chega úmido

– límpido, imperturbável –

o código do verniz

nos interiores onde

reina a superfície

muito mais que espelhos.

 

V

Não, não fale, não chore.

Ouça os familiares.

 

Deles nos chega clara

– plácida e distante –

a linguagem do uso:

modo natural de todos

calados em volta da mesa

submersa em utensílios.

 

ESPERANDO A NOITE VASTA


                    Nunca sabremos quién forjó la palavra

                    para el intervalo de sombra

                    que divide los dos crepúsculos”.

                                                 Jorge Luis Borges

 

Recordo: havia um armazém de secos e molhados.

De uma de suas quatro portas avistava ao longe,

Mudo, a curva serra de ouro-azul resplandecente.

Que sentiam esses homens, errando pelos matos,

De pés descalços, lentos, na tarde pisando espinhos?

Pisam formigas, folhas e frutos de sonoros ramos

E no intenso verde, armam laços de pueris caçadas.

Não sei como eles percorriam tantos labirintos

De turvas roças de cacau, lajedos, cegos pântanos.

Adiante o campo que se debruçava sobre cercas

E baixadas. Soavam búzios, e logo por ladeiras,

Bambeando em passos rítmicos, retornavam eles

De árduas fainas que pressuroso alfanje decifrava.

No terreiro, moreno Ramiro desarreia plácidas

Mulas (GasosaFortalezaCatitaDiamantina...).

Por entre porcos, desfilam galos madrugadores.

Busco um número no concerto vesperal do dia,

Os vinte e dois da tropa árdega encabeçada

Pelo branco-fosco Te-Aviso, que dispensava,

Na dura estrada, o peitoral de sino e guiso célere.

Ouço vozes. Está verão, despenca o dia. Cores

Misturam-se num rubro céu de lento entardecer.

Dentro, jovem negro, cearense, junto do balcão,

Após o búzio que o liberta de eito clamoroso,

Entornando feliz um rubro copo de cachaça,

Declama versos parnasianos de insepultos dias;

A mim e a todos ali, que o ouvimos mais que pasmos,

Diz que provê de mão endeusadora de mulher,

Mas se recorda apenas que de Santa a nominavam.

A noite desce como todos a pressentem, lúbrica.

Com o sentimento de auferi-la sucessivamente;

Nós, a tudo que prazerosamente nos rodeia,

Ávidos, terra, ar, água, plantas, aves, nuvens, mitos.

Noite, só uma palavra a distingue, não há outra,

Sem que se saiba quem um dia a tenha inventado,

Quando lá no alto a lua parece mesmo ser real!


(SSA/BA, 31/07/2017)

  A casa branca do Barro Vermelho, que voava, como se tivesse asa 

A CASA BRANCA QUE VOAVA

 

                     Voy al encuentro de mí mismo.
                     La hora es bola de cristal.

                                                   Octavio Paz

 

Deixo a casa que para mim voava.

Sempre fincada estava, mas tinha asa.

Saltava serras, rios navegava;

corria em trilhos, sendo sempre casa.

 

Sentado num jardim, me concentrava,

mirando as árvores; em tarde rasa

de frescor, vinha e súbito pousava.

É pelo coração que o sonho vaza.

 

Era assim, por sobre horas e distâncias,

ela vindo aliviar as minhas ânsias,

às vezes, a sentia em minhas mãos.

 

Não sei se é o destino fatal das casas.

Sei que, sempre de nervo e mente sãos,

vezes acordo sob aquelas asas. 

 

(SSA-BA. 04.01.2016)


RES DE RELICTA

                       

Entro na casa. Chão vasto de auroras,

Velho armazém de secos e molhados

repousa de silêncio fatigado.

Instrumentos ressonam; são miragens.

Moirões, mudas cancelas, arreatas

(arrochos, peitorais, bridões, cabrestos,

fivelas, argolões de Potosí),

soberanos, debaixo da ferrugem,

palpitam, pulsam, me olham e latejam

(coração a arrulhar sonhos remotos).

Restam no chão madeiras desgastadas,

sombras em trânsito e fugazes gestos.

Nelas, no que lhe doa a consistência,

rosna uma geometria de clausura.


Diálogo da terra com os sentidos

 

     ​         Fecho os olhos cansados, e descrevo         

             Das telas da memória retocadas. 

                                                         Cesário Verde​​



Acordava de ouvidos aguçados,

quando na mata ventos sobrevinham, 

e a família dos ecos se agitava;

logo que iam, pronto, retornavam.

Eram machados cortando (e ainda cortam),

sons da derruba assustando pássaros,

sob céu mais de favores que de preces.

Ninguém lia, mas aprendia, no eito,
como usar o facão libertador.

Os homens se agrupavam em simpósio,

com o sol de convidado principal,

desenfurnado desde o amanhecer.

E era assim que nascia a madrugada,
do diálogo da terra com os sentidos.

Barro Vermelho, oitão da casa, onde nasceram cinco irmãos (1974)


Tempo de águas solidárias



                   É a Natureza, sim, no seu perpétuo        

                   Desdobramento anímico e profundo. 

                                                     Teixeira de Pascoaes

 

No dia que amanhece, a mente aprumo,

passo em revista fardos de horas vãs.  

Uma brisa, uma nuvem, mesmo um trino, ​

ou voz qualquer de ramos que decreta:          

nenhum outro caminho dentre a selva.                   

O chão e as águas fremem solidários.

 

As águas, sobretudo. Na esperança

que alimenta e seduz serenos rostos, 

elas são o que a terra mais almeja.

O solo a chuva encharca suavemente.

Retumbam vozes pelos cacauais,

igualmente com sol depois da chuva.

 

Calmo verão clareia esses caminhos,

mas é o outono que devolve à terra 

o óbolo com que sonha o lavrador

e faz seus pés sentirem o alarido

da febre que se apossa das sementes,

quando o solo começa a conhecer-se.

 

A natureza torna o homem mais lúcido.

Unido à terra, ao fogo, à água, ao ar, remotas

quatro forças que regem seu destino,

espelha-se nos olhos e nos lábios

a comunhão de sonhos com sentidos,

coalhando o chão de cantos e ufanias.


De pranto na folhinha

 

I

Há um tempo para tudo. Mala pronta,

banho tomado, ajeito a calça curta.

Primeiro, era subir a serra até o alto;

depois, descê-la para o Catolé,

o rio de águas turvas e beiradas

de canoa aguardando passageiro.

Alguém me levará para a estação

da Fazenda Cascata, éden rural,

que pulsa no esplendor da luz elétrica.

O lugar tem de um tudo, minha gente!

Farmácia, posto-médico, armazém,

escola, padaria e cabaré...

Por que deste alvoroço? É o trem-de-ferro,

que chega de vagões abarrotados. 

 

II

Na manhãzinha de um verão defunto,

repisando palavras, conselheira,

a mãe urdia na hora da partida,

igualmente a um martelo na bigorna.

“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.

A luz do livro guia o pensamento”.

Os dias disparando na folhinha,

subo no trem e vou para Água Preta.

Trilhos rangem. A máquina resfolga,

bafejando fumaça nos dormentes.

Como a vida, o trem passa e passará.

Chegar, parar, partir, é o seu destino,

sem que perdure vivo nos apitos

o pranto que ele deixa para trás.

 

(Estuário dos dias e outros poemasSalvador: Caramurê, p. 59, 2016)

 

Além de risos no corredor

 

Tarde calma, no corredor da casa,

escuto de Ramiro a gargalhada.

Tropeiro não se esbalda no trabalho,

somente quando com meninos ralha...

 

No tempo não ficou somente a imagem 

de um moreno brincando com meninos;

ficou, além do som no corredor,

um sol ruidoso no clarão dos dentes.

  

“Aonde tu vais, Ramiro?”. “Vou pegar,

arrear e trazer a Besta Melada”.

De noite, estende um couro no terreiro,

sob um calor de doer, e vai dormir.

 

Hoje, acima dos vales e das serras,

tange tropas de burros sobre nuvens.

 

(2916-2024)

Florisvaldo Mattos. Estuário dos dias e outros poemas, 2016) 

    Burros com cargas, a vencerem estradas de terra, aqui, alí, acolá

Tropas de cacau

               

 Conduzindo cacau para Água Preta,

Sinto na tropa um fio de soluço;

É algo de mim que viaja em fuga, é seta,

Que aponta um tempo em que eu, pajem de buço,

Mirava o efeito que um sol exegeta

Produzia na flora, de onde um ruço

E um castanho rompiam (quanta meta,

Quanta preparação para o soluço!).

Aqueles burros hoje, aquelas cargas,

Recalcando ladeiras na memória,

Como em todas as estações amargas,

Fazem trajeto inverso de outra glória:

 

    São estrelas em tardes andarilhas,

    Remédio que à alma exausta chega em bilhas.

  

Saga de tropeiro


Vinha tangendo pela estrada azul
alimárias de lombo carregado,
metido em lona e calos, um soldado
tenso de lutas contra o vento sul.

Com ele teve o cacau sua escultura
muar. Contempla o sol do ocaso roxo.
Desce da sela, põe a mão no arrocho,
que a carga se regula pela altura.

Rudeza e valor são suas divisas:
uma, do coração; outra, do risco.
Fremem no sangue ardor e agilidade.

Acorda-o o amanhecer das notas lisas
do pássaro cantor. Com sol arisco,
coleia, galopando a claridade.




Diálogo da terra com os sentidos

 

     ​         Fecho os olhos cansados, e descrevo         

             Das telas da memória retocadas. 

                                                         Cesário Verde​​



Acordava de ouvidos aguçados,

quando na mata ventos sobrevinham, 

e a família dos ecos se agitava;

logo que iam, pronto, retornavam.

Eram machados cortando (e ainda cortam),

sons da derruba assustando pássaros,

sob céu mais de favores que de preces.

Ninguém lia, mas aprendia, no eito,
como usar o facão libertador.

Os homens se agrupavam em simpósio,

com o sol de convidado principal,

desenfurnado desde o amanhecer.

E era assim que nascia a madrugada, 

do diálogo da terra com os sentidos.


Ao som de búzios pontuais

 

Nasci e me criei em chão maduro,

eu, sonhando com roças de cacau:

a laboriosa febre das colheitas,

a cor, o mel, que escorre sobre a relva,

o aroma das amêndoas, som de rodos 

ao sol, em lastro que o calor hospeda.      

 

Minha mãe na máquina de costura,

esmerando nas roupas que eu vestia,                 Vincent van Gogh, O Semeador

cumpre sina que a salva no desterro,

se para trás ficaram mudos olhos,

a terra esturricada, a dor sem pão,

a porta a se fechar com a morte dentro.

 

O pai, tenso na ponta do passeio,

clama aos céus pelo chão que o sol oprime,                                                         

por safras que o socorram o ano inteiro

e, montes fitando de azul fatal,

verte lágrima, que lhe tinge o rosto

a esperança que desapareceu.

 

A natureza enferma insufla exílios.

Mais que sentindo, ouvindo seu perfume,

as flores de um quintal (enfim memória)

colherei hoje mesmo, inda bem cedo.

Perto da fonte de água cristalina,

moças estendem roupas nos varais.

 

Rapazes hão de vir no fim da tarde,

em tropel que desata serra abaixo, 

de quem anui com búzios vespertinos,

junto de arroios, quando o sol declina.

Sabe-se que, ao fim todos, de alma sã,

logo se vestirão de amanheceres.

    Roça de cacau, com bilros, em plena floração, rumo ao temporão

Nomes que guriatãs cantavam 

 

Por todo o bosque, as folhas estão cheias de vozes,

Em sussurros (...).

                                   Ezra Pound, Canto III)

 

                       

Onde estarão Vavá, Neném, Namir,

Wande, Miro e Carlito de Mãe-Dé?

Seus nomes ainda ecoam nas baixadas,

desafiando o azul da serrania.

Sobem e descem íngremes ladeiras,

percorrem trilhas sem nenhum cansaço. 

Filhos do mato virgem, nele somem.         

Lá, cochilam num tempo que não passa,         

estirados na relva. Os alçapões

em galhos onde pássaros gorjeiam

guardam sorrisos dentro de manhãs.

Vou pegar a capanga e vou lá dentro, 

Por aguadas e roças de cacau,

recorrer armadilhas com os amigos.

Hora de mata em festa, as flores cantam,

Com a musical orquestração dos ramos.


A besta se chamava Fortaleza

 

​​                                   A besta era serena e atendia

​​                                   Pelo suave nome de Suzana.

​​​​                                                                          Paulo Mendes Campos 

 

Se do Campos a besta era Suzana,

a minha se chamava Fortaleza.

Era nos pastos que ela obedecia,

leve e serena, quase comovida,

ao gesto só de manejar a rédea,

quando queria pássaros ouvir

ou bezerros tanger para o curral,

em conluio com aragens, logo cedo,

por descampados vastos, meu tesouro.

Quero viver de novo esta harmonia

de cores, sons, aromas e sabores,

no delírio em que a tarde se desmancha, 

com sussurros da brisa me avisando

que disso tudo a besta participa.


Recém-hoje, recém-ido

 

​​                              (...) Diz adeus à Alexandria que de ti se afasta.

​​​                                                                          (Konstantinos Kaváfis)

 

“Vás encontrar o mundo”, repetia

Um que à luz de uma lâmpada de gás

Alheava fama de sabedoria.

Se confiar nele nunca foi demais,                 

Di Cavalcanti, Baile na Roça, 1960

 

Deixo Barro Vermelho para trás

E vou com os olhos pandos de alegria,         
        
Na idade em que sonhar não é demais

(Verdade que descobrirei um dia).

 

Os dias passam. Sei que passam guerras;

Passam ódios e gulas de outras terras.

Agora, a alma de sons e aragens farta,

 

Junto ganhos e perdas, sento e busco,

Na paz imemorial do lusco-fusco, 

Barro Vermelho que de mim se aparta.

 

(Salvador, manhã de 03/07/2015)


NINFAS PELO BREJO CEGO

 

(Nunca vestem farrapos. Botticelli

jamais as olharia, de entre os ramos.

Seduzem mãos de ofício menos raro:     

purezas de Ingres, ciências de Courbet,

de Matisse, talvez de Modigliani;

o feminino abstrato de Delvaux?)

 

Desço de montes, sigo pelo vale.

Escuto um baque: rolam seixos, a água

na tarde morna em círculos se mexe.

Um bulício de folhas à distância

traz a brisa que roça meus ouvidos.

A tarde se disfarça em porcelana.

 

Serão ninfas que fogem pelo brejo

perseguidas por faunos e centauros?              

Ninfa atravessando o bosque



De onde vieram esses seres lépidos, 

tímidas fêmeas pelos arrebóis, 

que, pouco diplomáticas, se esgueiram,

a fugir de injuriosas investidas?

 

Vou por atalhos, de olho atento a trilhas.

Fátuas, ligeiras e, de pés olímpicos,

passam por mim e pelas andorinhas.

Param, como se lírios lhes acenam.

Para elas se abre o sol; a água lhes beija

o colo e os pés de nuvem. Que perscrutam?

 

A brisa é a sua aliada predileta.                       

Saracuras, sanhaços e nambus 

além se calam. Elas, ágeis, fogem

por sáfaros caminhos; ribanceiras 

galgam e somem num coral de adeuses.

Fogem, porque fugir é de sua arte.

 

Sigo seus rastros pelo brejo cego.                          

Guiam-me, mesmo após as despedidas.             

Porque tenho pés e olhos de andarilho,

persigo sendas altas de onde aviste-as,

na certeza de que para onde forem 

meus sentidos nunca estarão sem pátria.

 

Os ramos cumprimentam, quando passam;

redes de cipó e musgo, a quem, atônito,

pergunto se são ninfas, o que são.

Junto-me ao vento e subo numa encosta.

Diviso um prado. Não mais vejo-as; foram-se.

Existem mesmo ninfas neste pântano? 

                                                                               

(Musa inquietante que se foi com Zeus, 

penso que Leda me deixou sozinho). 

O vento segue vomitando ausências 

sobre abismos de insônia, sobre mim.

Logo a tarde se cobre de carvão.

Zás! Beira d´água, alguém me segura a mão.

 

(SSA-BA, dez./2014-jan./2015)

 

Ao toque de sinos

 

And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.

​​​​​​​​                                                                                                               (John Donne)

 

Procuro nos desvãos da casa morta

Vozes que um dia me chamaram Flor.

Procuro no silêncio assustador,

No vendaval de ausências, uma porta

Que me leve ao quintal, ao verde brejo,

Que repercuta a mesma cor nos campos,

No trânsito de luz dos pirilampos,

Devolva-me um dos sonhos que ainda almejo;

Os cavalos-de-pau, na tarde amena,

Sobre aguadas e pedras, paz serena

Que se esparrama sob o jaqueiral.

Oh, casa que povoa minha insônia,

Quando a noite me liga a John Donne,

A sinos repicando em vendaval!

 

(SSA/BA, 28/03/2016)

*John Donne, “Meditação 17”: “Nunca procures saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. 

    Serra do Jacutinga (a 780 m), no interior do município de Itacaré

    Foto de Vera Pessoa (2013)


SERRA DO JACUTINGA, ONDE O MUNDO DÁ UM NÓ

Como nasci lá nos cafundós da região cacaueira, interessei-me em ver, em 2025, muitos capítulos do remarque da novela intitulado Renascer, que, nos anos 1990, teve suas cenas gravadas numa fazenda perto de Castelo Novo, povoado situado bem próximo da cidade de Ilhéus (BA), nos anos gloriosos em que era ainda chamada de Princesinha do Cacau. Vi essa primeira versão, com Antônio Fagundes, como protagonista no papel principal. 

Por isso, virei-me para essa espécie de reprise, mais ainda por ter seu conteúdo referente praga da vassoura-de-bruxa, cuja tragédia devastou a economia da região, atingindo-a fundamente, em nível tamanho, desde inícios dos anos se 1990, quando se propalou, sem que, até hoje, tenha sido dominada e varrida, por total fracasso do governo federal no seu combate.

Assistindo aos primeiros capítulos, movido pelos efeitos de seu trágico conteúdo, senti-me folcloricamente surpreso, ao ver a dona do bordel, uma cópia burlesca da famosa Maria Machadão, criada por Jorge Amado ('Gabriela, cravo e canela", romance, 1958), chamar-se Jacutinga, nome coincidente com o da serra situada no interior rural do município de Itacaré, cujo poético azul me enchia de encantos, ao mirá-la, alta, cotidianamente, defronte, na infância e na adolescência.

Jacutinga, que imensa coincidência! Pois, tanto esta Serra do Jacutinga me ficou na memória, que, décadas depois, escrevi um poema, levado pela magia visual que ainda permanecia em minha mente, justamente por se situar próxima da localidade do Barro Vermelho, onde se situava a casa do armazém de secos e molhados, no qual meu pai exerceu por várias décadas atividades de comerciante rural. 

Nesta mesma casa, morava a sua família e nela nasceram cinco de seus filhos, meus irmãos. Então, como esquecer este lugar, de cujas portas e janelas se descortinava, ao longe, o azul da Serra do Jacutinga, com os 780 metros acima do nível do mar (altura superior à do Corcovado, no Rio de Janeiro)além de pastagens, brejos, matas, capoeiras e roças de cacau? Lá vivi, amei e senti, durante partes da infância, da adolescência e inícios da mocidade. Será que o autor desse replay novelístico, Bruno Luperi, algum dia, numa distração, se deparará com essas minhas nostálgicas evocações, de poesia e prosa?


SERRA DO JACUTINGA

                            Para o filho Mauro

 

Lá debaixo esta serra é tão longínqua,

Como lá de cima a água, seu espelho.

A alma infante me fala na descida,

Se de cima diviso o chão vermelho.

 

Quando lanterna do silvado trina

A lembrança – ah, que vento verdadeiro! -

Morde-me o nu do peito na corrida

Que é a alma que me abraça o sol inteiro.

 

No instante em que galopam precipícios

As nuvens sobre a terra (seu cavalo),

Uivam tardes de outrora que persigo

Presa de mim e dos anis vassalo.

 

Campo verde de malva e calumbi

Informa que da mata olhos selvagens

Nos espreitam. Logo saltam dali

Paca, teiú, quati, tatu – miragens...

 

E o mato esconde aos olhos do menino

No cenário de sonho da descida

Agudo fio do aço campesino

Que pela vida foi cortando a vida.


DE BEM COMA PECUÁRIA

 

No caminho da serra estava eu; eu,

Mirando ao longe os altos verdejantes.

À noite ali verdejam pirilampos;

De tão doce, embaixo, a água é quase mel.

Levei tempos ali, pensando grande

Em torto plantar de sonho e ilusão.

Alguém para e me diz: “Não seja insano!

Satanás só franqueia a contramão”.

Tapei ouvidos, olhos fechei, fui

Em frente, a deslumbrar-me pelos pastos

Com as fosforescências de um sol vacum,

Mais deslumbrado quanto mais sonhava.

E me perdia após na noite vária,

Encantado com a palavra Pecuária.

 

(FM. SSA, 23/03/2017) 

(Florisvaldo Mattos, "CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro". Ilhéus-BA: Mondrongo, 2022).


POETA DO DIA

 

Na Serra do Jacutinga,

onde o mundo dava o nó,

Macedônio me dizia:

“Deus que é grande ficou só”.   

Era mais pelo que via

do que pelo que não via,

um filósofo do dia.

Quase sempre me dizia

que não via o que via

aquele poeta do dia.


(1977)


À SOMBRA DA TARDE

                              Para Soane, oitentão (2011)  

 

                                   Oh, minha serra, eis a hora

                                   Do adeus vou-me embora,

Trago a luz do teu luar

                                   No meu olhar,

                                   Adeus.

                                   (“Serra  da Boa Esperança”, Lamartine Babo)

 

Eu só, em tarde de forte vento e frio,

defronte de minha deusa etrusca, ela

estirada, lassa, em dorsal decúbito,

recoberta de lanhos (verdes matas,

campos e plantações), que é a minha Serra

do Jacutinga, grávida de nuvens.

 

Nem parece que há um céu a navegá-la,

eternidade que as estrelas fitam.

 

Mirante solar de sete cidades ,

ó serra transida de chuva e sol,

para guardar um verso musical,

para chamar-se de boa esperança,

consumas-te em pincel, paleta e tinta,

festa de verde e azul, varal de infâncias.


TARDES/PARAGENS

 

                          Para o amigo Carlos Cezar de Castro Moraes,

                       em encontro fraterno da Serra da Jacutinga (Itacaré)

                       com o Morro do Camelo (Chapada Diamantina)

 

Olhar detém

a serra alta

de vasta luz

em decúbito

dorsal de deusa

lasciva curva

assemelhando

REDESENHADA

 

Advento verde

grávido em cinza

(fulvo proscênio)

ouro e vermelho

que abrem pálpebras

outro debuxo

outra sequência

ALARANJADA

 

Em tons pesados

a tarde oblíqua

a noite avança

quintais invade

onde dormita

pregressa vida

falas de infância

REFIGURADA

 

Olentes árvores

jovens correndo

ventos alísios

esfiapam nuvens

velam paisagens

cores viajadas

de uma folhinha

RECAPTURADA

 

Ímpetos de ontem

apaziguaram

as crinas de um

potro alazão

claro galope

no esmalte verde

tributo à alma

RETEMPERADA

 

E haja dor

No meu

OLHAR

E haja flor

De bom

MIRAR

E haja sonho

Para

SONHAR

E vero amor

Só 

CELEBRAR

 

(2002)


CAMINHOS


Descendo da Serra do Jacutinga,

serena, a água espelha estrelas douradas,

espelha a verdura dos cacauais,

o brilho que tem a cor da amargura.

Espelha mais: a água pura do riacho,

talvez a minha alma, talvez o que foi

um dia esfinge na curva do tempo,

de onde me vem um tropel de alimárias,

que a água replica, por entre a verdura,

abrindo-se em cor de estrelas douradas.

Para o riacho e a mata, só o dia existe,

e o peão que aguarda o sol da manhã, 

enquanto o riacho projeta nas pedras

a luz que celebra frutos dourados.


(Bahia, madrugada de 21/7/2010) 

    Praga da vassoura-de-bruxa, nos frutos do cacau, em seus inícios