Figuras da Idade Média, às vezes, acoimada de período obscuro
OS TERMOS "IDADE MÉDIA", "HUMANISMO", "RENASCIMENTO" E "REFORMA"
Atualmente, a palavra "medieval' com o uso alternativo da
palavra "feudal", quase sempre significa
atraso e barbárie*
A Idade Média é vista como um período obscuro (a Idade das Trevas), em contraste com período anteriores e posteriores, considerados muito mais brilhantes. Como surgiu este ponto de vista? Durante o século XIV na Itália, poetas e eruditos que se diziam humanistas acreditavam que estavam no limiar de uma nova era de brilho intelectual que contrastaria nitidamente com a obscuridade dos séculos precedentes.
A palavra tenebrae (nevoeiro) surgiu da pena de Francesco Petrarca (1304-1374), o famoso poeta que inspirou uma admiração apaixonada para a Roma antiga; ele usou a palavra para referir-se ao período subsequente ao da Antiguidade. Depois de Petrarca, outros falaram de media tempestas, media aetas, media tempora.
Todas essas expressões tinham uma conotação pejorativa. Para eles, a Idade Média não passava de um período infeliz e desinteressante de decadência entre a Antiguidade e a nova era de ouro sintetizada pelos eruditos humanistas. A expressão medium aevum recebeu status oficial em 1678 quando Du Cange publicou seu Glossarium de palavras latinas usadas na Idade Média em dois volumes, que divergiam do significado clássico. Dez anos depois Christophorus Cellarius escreveu a primeira história da Idade Média, sob o título Historia Medii Aevi, que abrangia o período do imperador Constantino, o Grande (306-337) até a queda de Constantinopla (1453).
Visto que "Idade Média" é um constructo humanista, o sucesso
do conceito deve-se, sem dúvida, ao vigoroso desenvolvimento do latim e da
gramática nas escolas secundárias. Nessas escolas as ideias humanísticas
floresceram, porque o estudo de línguas clássicas constituía a base do
currículo. Havia a expectativa de que com o estudo das biografias de homens
famosos e da história de antigas culturas, inclusive poesia e retórica, as
novas gerações se elevariam à imagem idealizada dos heróis da Antiguidade.
Até o século XIX o latim continuou a ser a língua da educação
universitária, para que todos os intelectuais ficassem imersos no banho da
Antiguidade. Nos países católicos, em especial, houve um interesse renovado
pela Idade Média do século XVII, em diante o que se refletiu em instituições
criadas especificamente para estudar esse período. No entanto, no mundo
protestante o estudo da Idade Média era visto como um tema acadêmico e,
portanto, a ênfase recaiu nos resultados positivos alcançados desde a Re-
forma. As divergências religiosas entre pensadores, que se perpetuaram por
razões ideológicas, constituíram a linha divisória da história definida pelos
humanistas por motivos acadêmicos. Durante o século XIX as ideologias mais uma
vez exerceram um papel importante na visão do passado.
No período do Classicismo as igrejas medievais e os mosteiros foram
relegados ao segundo plano ou destruídos propositalmente, como aconteceu na
Revolução Francesa, mas a partir da década de 1820 surgiu de novo o modismo de
construir edificações no estilo gótico, e a inspirar-se em construtores
medievais. Na literatura, autores românticos como Sir Walter Scott, Heinrich
Heine e Victor Hugo inspiraram-se em histórias medievais para descrever a
grandeza do passado medieval, em contraste com o racionalismo do Iluminismo e
dos revolucionários franceses.
Nesse passado projetaram-se valores conservadores como a monarquia, a
Igreja e a nobreza, ou a liberdade civil e o caráter nacional, de acordo com as
necessidades. As torres altas de pedra construídas na Europa no século XIX eram
réplicas das torres das catedrais góticas de Ulm e Colônia. Os prédios dos
parlamentos em Londres e em Budapeste têm um estilo neogótico, assim como a
prefeitura de Munique. O passado adaptou-se às preferências dos séculos
seguintes. Após ter sido difamada, a Idade Média, ou a imagem construída dela,
agora era elogiada.
Ao longo do século XIX os estudos históricos tornaram-se uma disciplina
acadêmica.
À medida que mais cadeiras eram criadas nas universidades, que aceitavam
as linhas de demarcação entre o Humanismo, o Renascimento e a Reforma, e à
medida que sociedades mais cultas, publicações e periódicos focalizaram épocas
anteriores ou posteriores a esses períodos, essa divisão do processo histórico
foi aceita por toda parte como um fato comprovado.
O livro Die Kultur der Renaissance
in Italien, de Jacob Burckhardt, publicado em 1860, exerceu um papel-chave
nessa questão. O sucesso espetacular deste livro pode ser explicado pela elegância
com a qual o autor elaborou o mito histórico imposto em todas as pessoas que
tinham mais que uma educação elementar: o mito que, por meio de uma verdadeira
revolução cultural, algumas gerações de intelectuais e artistas italianos
haviam libertado a Europa dos vínculos repressores de uma sociedade
coletivamente condicionada, e que em todos os aspectos da vida enfocava a vida
após a morte.
O sentido literal das palavras "Renascimento" e
"renascença", e essa ideia de renovação e restauração, refere-se ao
ressurgimento de antigas concepções e ideais. Em seu uso moderno concerne ao
ressurgimento de qualquer elemento, desde novos estudos de textos antigos ou a
recuperação da linguagem das formas clássicas na arquitetura e nas artes
visuais. Comparado a esse conceito parcial de "Renascimento", o
"Humanismo" parece mais neutro e, portanto, mais fácil de abordar.
Em um sentido estrito, o Humanismo refere-se a um procedimento
filológico que consiste em duas partes: tentativas de resgatar mais textos
antigos por meio da pesquisa intensa em bibliotecas e pela tradução de autores
gregos para o latim e, por outro lado, de esforços filológicos a fim de criar
versões desses textos mais fiéis possíveis aos textos originais. Além disso, o
Humanismo tem um sentido mais geral e com certeza mais vago, o da busca
intelectual visando à humanidade e de um interesse maior na individualidade do
homem e em suas intenções e emoções.
Burckhardt concentrou-se nesse segundo sentido do Humanismo e fez uma
observação subjetiva sobre a cultura italiana na alta Idade Média, o interesse
crescente pelas realizações individuais do homem, tornando-o um elemento-chave
no processo revolucionário de mudança que percebera. O renomado historiador
holandês Johan Huizinga já escrevera em seu livro O Outono da Idade Média (1919) como essa tendência era perigosa. Ele
não teve dificuldade em pesquisar diversas expressões culturais "tipicamente
medievais" do século XV. Segundo sua opinião, elas revelaram uma nostalgia
do passado, em vez de uma aversão.
A natureza singular e revolucionária do Renascimento italiano foi
enfraquecida por críticas que apontaram vários "renascimentos antes do
Renascimento" Os mais importantes foram o Renascimento Carolíngio e o
Renascimento do século XII. Como conceitos de periodização do estudo medieval
eles foram amplamente aceitos, assim como a visão do Renascimento italiano de
Burckhardt.
No tocante à Reforma religiosa, iremos mostrar que, de acordo com uma
perspectiva teológica e institucional, a Reforma da primeira metade do século
XVI foi o prosseguimento de uma longa série de movimentos de reforma que
começou no século XI. Sua função definidora é tão discutível como as palavras
"Renascimento" e "Humanismo". Entretanto, o sistema
educacional nos países protestantes mais tarde estimulou o estudo da Idade
Média, em um contraste gritante com os períodos anteriores, a fim de enfatizar
sua singularidade.
Fonte:
Introdução à Europa
Medieval: 300-1550,
Peter Hoppenbrouwers& Wim Blockmans.
*Postagem de Sergio Maraccini, Perito Criminal, (Facebook, 04.08.2024).
LATIM, AMOR DA JUVENTUDE
Uruçuca, Rua do Cruzeiro, com a Igreja de São José, ao fundo
UMA DIGRESSÃO NARCÍSICA
Florisvaldo Mattos
Confesso que tenho uma antiga e inocente afeição pelo Latim. Às vezes, paro, na tentativa de descobrir a origem e explicar a razão, já que jamais me empenhei em estudar a finco e praticar a língua que educou e civilizou o Ocidente; mas tento, para ver se vislumbro algo; e começo lembrando ter sido por meses, ainda criança, sacristão em distantes noites de novena conduzidas pelo padre Luís San Juan, na Igreja de São José, na então Água Preta do Mocambo, hoje Uruçuca, que eram professadas em Latim (de tal sagrada e inocente função acabei alijado por rir e macaquear durante os sermões do saudoso pároco).
Alguns anos depois, no ginásio em Itabuna, terei como professor de Latim outro padre, Nestor Passos, cuja técnica de exposição didática despertaria meu interesse em saber tudo de declinações, substantivos, adjetivos, verbos e pronomes, mas essa curiosidade iria aumentar, quando, concluso o ginásio, fui ter como professor de Latim, em Ilhéus, justamente outro religioso, o cônego Mário, surpreendentemente autor de uma Gramática do Latim, que costumava fazer sessões especiais com alunos escolhidos para despertar interesse por seu livro.
Em Salvador, no Colégio da Bahia, tive a sorte de cair numa sala em que as aulas de Latim eram ministradas por uma jovem professora, que iria se afirmar dedicada mestra, dona Yvette Lemos (depois Amaral, posteriormente aposentada e articulista de jornal), que muito me acrescentou de conhecimentos da língua, ao ponto de, para o vestibular da Faculdade de Direito, só ter precisado de curso para discutir e analisar as famosas Catilinárias, de Cícero, de que eu nunca ouvira falar. Parei aí, pois, formado em Direito, optei, certo ou errado, pela fatalidade de ser jornalista por toda a vida; mas não esqueço o Latim, tanto assim que em novo livro, que garatujo imaginando lançá-lo até o fim deste ano, 2016, (se Júpiter permitir), há um poema intitulado simplesmente "Nostalgia do Latim", título que tomei emprestado de uma conferência pronunciada por Jorge Luis Borges, em setembro de 1980, na Escola Freudiana da Argentina, sobre o tema de "Poesia e Tradição", onde sustentava que toda a cultura ocidental, cujas línguas procedem do Latim, permanece em débito com o idioma de Virgílio, até mesmo em países de raízes não latinas, como a Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha.
Pois é; no citado poema, com tal título, enveredo numa prospecção lúdica, para descobrir a redação em latim de um ditame de Horácio, que um dia li ter sido a fonte subliminar dos versos de uma estrofe de "Desencanto", poema que Manuel Bandeira escreveu em 1912. Não me fixei nesses versos, mas numa tradução literal ("Se queres me ver chorar, será preciso que estejas triste"). E parti na aflição de descobrir os versos em latim autêntico, indo a várias fontes, inclusive a do Saraiva (o Santos, do famoso dicionário) e a Paulo Ronai, num delirante percurso de composição do poema, que vocês poderão ler, quando o livro sair, se sair...). Mas, toda essa digressão sinônima de vaidade, de delírio narcísico, tem por fim somente postar uma crônica que Carlos Heitor Cony publicou, hoje, na Folha de S. Paulo, versando justamente o tema da permanência do Latim, que a muitos desgosta e até incomoda. Vai abaixo o link.
http://www1.folha.uol.com.br/…/1630723-sub-tegmine-fagi.sht…
Carlos Heitor Cony: "Sub tegmine fagi"
RIO DE JANEIRO - Leitor indignado reprovou o título em latim de minha
crônica no último domingo. Não foi a primeira vez que cometi o mesmo crime:
apelar para uma língua morta para lamentar a miséria...
(POSTAGEM NO FACEBOOK E INTERNET, EM 19/05/2015)
O menino, o padre e o sermão
Ao pé do padre, visto-me de rei,
pouco menos talvez que sacristão.
O padre olha-me. Sou um rude, sei,
incapaz de encantar-me com o sermão.
Muito mais me embevecem as ladainhas
das novenas de maio, a voz das moças.
Eu queria que todas fossem minhas
(o macaco que é bom não quebra louças).
Padre Luís San Juan do alto me olhava,
sem saber de que era que mais eu ria.
O moderado tom com que falava
ao coração, sem vã filosofia?
Era o som das palavras, cristalino,
que fascinava os olhos do menino.
(Florisvaldo Mattos. SSA/BA, 30/11/2015; in Estuário dos dias e outros poemas, p. 69, 2016).
Há momentos em que a criação poética salta de um trampolim de signos, mergulha no vasto lago da memória e, subitamente, surge o latim, a intrometer-se na onda sonora dos versos de um poema, parecendo que a competição, de rimas emparelhadas, recorre a braçadas por águas de prélios verbais distantes, como no caso deste soneto, que parece retornar até às prescrições denunciativas do romano Cícero, nas suas famosas Catilinárias. Veja-se o que mostra deste o segundo quarteto:
SONETO ROMANO
A
Valdomiro Santana
Quin etiam, Polypheme, fera Galatea sub
Aetna
Ad tua
rorantis carmina flexit equos.
Sexto
Propércio (Elegia III, 2)*
Não sou Orfeu, não sei deter os rios,
Nem toco flauta no portão do Inferno,
Para tirar do Amor grilhões sombrios
E postá-lo na margem em que aderno.
Não sou Camões; Calíope não me ensina
Os caminhos do mar. Vou para o bosque.
Sei que irão perguntar-me adiante quousque
Tandem há de durar
a minha sina.
Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,
Guarde-os perto do campo de azaleia.
Se mais seguros, lá, mais bem guardados.
Oh, Propércio, avise aí a Polifemo
E me deixe no Etna com Galateia
Montada em seus cavalos orvalhados.
(Florisvaldo Mattos. SSA/BA, manhã de 14/10/2018, inédito)
*”E mais ainda,
Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,
Aos teus cantos
desviou os cavalos orvalhados”.
(Sexto Propércio, Elegias, trad. Maria da Glória Novak, em Poesia Lírica Latina; São Paulo: Martins Fontes, 1992).
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