quinta-feira, 8 de agosto de 2024

SAUDADES DO LATIM: OBRA DO HUMANISMO


Figuras da Idade Média, às vezes, acoimada de período obscuro 


OS TERMOS "IDADE MÉDIA", "HUMANISMO", "RENASCIMENTO" E "REFORMA"

 

Atualmente, a palavra "medieval' com o uso alternativo da

palavra "feudal", quase sempre significa atraso e barbárie*

 

A Idade Média é vista como um período obscuro (a Idade das Trevas), em contraste com período anteriores e posteriores, considerados muito mais brilhantes. Como surgiu este ponto de vista? Durante o século XIV na Itália, poetas e eruditos que se diziam humanistas acreditavam que estavam no limiar de uma nova era de brilho intelectual que contrastaria nitidamente com a obscuridade dos séculos precedentes.

A palavra tenebrae (nevoeiro) surgiu da pena de Francesco Petrarca (1304-1374), o famoso poeta que inspirou uma admiração apaixonada para a Roma antiga; ele usou a palavra para referir-se ao período subsequente ao da Antiguidade. Depois de Petrarca, outros falaram de media tempestas, media aetas, media tempora.

Todas essas expressões tinham uma conotação pejorativa. Para eles, a Idade Média não passava de um período infeliz e desinteressante de decadência entre a Antiguidade e a nova era de ouro sintetizada pelos eruditos humanistas. A expressão medium aevum recebeu status oficial em 1678 quando Du Cange publicou seu Glossarium de palavras latinas usadas na Idade Média em dois volumes, que divergiam do significado clássico. Dez anos depois Christophorus Cellarius escreveu a primeira história da Idade Média, sob o título Historia Medii Aevi, que abrangia o período do imperador Constantino, o Grande (306-337) até a queda de Constantinopla (1453).

Visto que "Idade Média" é um constructo humanista, o sucesso do conceito deve-se, sem dúvida, ao vigoroso desenvolvimento do latim e da gramática nas escolas secundárias. Nessas escolas as ideias humanísticas floresceram, porque o estudo de línguas clássicas constituía a base do currículo. Havia a expectativa de que com o estudo das biografias de homens famosos e da história de antigas culturas, inclusive poesia e retórica, as novas gerações se elevariam à imagem idealizada dos heróis da Antiguidade.

Até o século XIX o latim continuou a ser a língua da educação universitária, para que todos os intelectuais ficassem imersos no banho da Antiguidade. Nos países católicos, em especial, houve um interesse renovado pela Idade Média do século XVII, em diante o que se refletiu em instituições criadas especificamente para estudar esse período. No entanto, no mundo protestante o estudo da Idade Média era visto como um tema acadêmico e, portanto, a ênfase recaiu nos resultados positivos alcançados desde a Re- forma. As divergências religiosas entre pensadores, que se perpetuaram por razões ideológicas, constituíram a linha divisória da história definida pelos humanistas por motivos acadêmicos. Durante o século XIX as ideologias mais uma vez exerceram um papel importante na visão do passado.

No período do Classicismo as igrejas medievais e os mosteiros foram relegados ao segundo plano ou destruídos propositalmente, como aconteceu na Revolução Francesa, mas a partir da década de 1820 surgiu de novo o modismo de construir edificações no estilo gótico, e a inspirar-se em construtores medievais. Na literatura, autores românticos como Sir Walter Scott, Heinrich Heine e Victor Hugo inspiraram-se em histórias medievais para descrever a grandeza do passado medieval, em contraste com o racionalismo do Iluminismo e dos revolucionários franceses.

Nesse passado projetaram-se valores conservadores como a monarquia, a Igreja e a nobreza, ou a liberdade civil e o caráter nacional, de acordo com as necessidades. As torres altas de pedra construídas na Europa no século XIX eram réplicas das torres das catedrais góticas de Ulm e Colônia. Os prédios dos parlamentos em Londres e em Budapeste têm um estilo neogótico, assim como a prefeitura de Munique. O passado adaptou-se às preferências dos séculos seguintes. Após ter sido difamada, a Idade Média, ou a imagem construída dela, agora era elogiada.

Ao longo do século XIX os estudos históricos tornaram-se uma disciplina acadêmica.

À medida que mais cadeiras eram criadas nas universidades, que aceitavam as linhas de demarcação entre o Humanismo, o Renascimento e a Reforma, e à medida que sociedades mais cultas, publicações e periódicos focalizaram épocas anteriores ou posteriores a esses períodos, essa divisão do processo histórico foi aceita por toda parte como um fato comprovado.

O livro Die Kultur der Renaissance in Italien, de Jacob Burckhardt, publicado em 1860, exerceu um papel-chave nessa questão. O sucesso espetacular deste livro pode ser explicado pela elegância com a qual o autor elaborou o mito histórico imposto em todas as pessoas que tinham mais que uma educação elementar: o mito que, por meio de uma verdadeira revolução cultural, algumas gerações de intelectuais e artistas italianos haviam libertado a Europa dos vínculos repressores de uma sociedade coletivamente condicionada, e que em todos os aspectos da vida enfocava a vida após a morte.

O sentido literal das palavras "Renascimento" e "renascença", e essa ideia de renovação e restauração, refere-se ao ressurgimento de antigas concepções e ideais. Em seu uso moderno concerne ao ressurgimento de qualquer elemento, desde novos estudos de textos antigos ou a recuperação da linguagem das formas clássicas na arquitetura e nas artes visuais. Comparado a esse conceito parcial de "Renascimento", o "Humanismo" parece mais neutro e, portanto, mais fácil de abordar.

Em um sentido estrito, o Humanismo refere-se a um procedimento filológico que consiste em duas partes: tentativas de resgatar mais textos antigos por meio da pesquisa intensa em bibliotecas e pela tradução de autores gregos para o latim e, por outro lado, de esforços filológicos a fim de criar versões desses textos mais fiéis possíveis aos textos originais. Além disso, o Humanismo tem um sentido mais geral e com certeza mais vago, o da busca intelectual visando à humanidade e de um interesse maior na individualidade do homem e em suas intenções e emoções.

Burckhardt concentrou-se nesse segundo sentido do Humanismo e fez uma observação subjetiva sobre a cultura italiana na alta Idade Média, o interesse crescente pelas realizações individuais do homem, tornando-o um elemento-chave no processo revolucionário de mudança que percebera. O renomado historiador holandês Johan Huizinga já escrevera em seu livro O Outono da Idade Média (1919) como essa tendência era perigosa. Ele não teve dificuldade em pesquisar diversas expressões culturais "tipicamente medievais" do século XV. Segundo sua opinião, elas revelaram uma nostalgia do passado, em vez de uma aversão.

A natureza singular e revolucionária do Renascimento italiano foi enfraquecida por críticas que apontaram vários "renascimentos antes do Renascimento" Os mais importantes foram o Renascimento Carolíngio e o Renascimento do século XII. Como conceitos de periodização do estudo medieval eles foram amplamente aceitos, assim como a visão do Renascimento italiano de Burckhardt.

No tocante à Reforma religiosa, iremos mostrar que, de acordo com uma perspectiva teológica e institucional, a Reforma da primeira metade do século XVI foi o prosseguimento de uma longa série de movimentos de reforma que começou no século XI. Sua função definidora é tão discutível como as palavras "Renascimento" e "Humanismo". Entretanto, o sistema educacional nos países protestantes mais tarde estimulou o estudo da Idade Média, em um contraste gritante com os períodos anteriores, a fim de enfatizar sua singularidade.

 

Fonte:

Introdução à Europa Medieval: 300-1550,

Peter Hoppenbrouwers& Wim Blockmans.


*Postagem de Sergio Maraccini, Perito Criminal, (Facebook, 04.08.2024)


LATIM, AMOR DA JUVENTUDE


Até me confrange e me assombra a retirada do Latim dos currículos, nos cursos secundários, se a mente não me trai, tomada por integrantes da ditadura, que assolou o país, durando de 1964 a 1985. Essa tristeza se apossa de mim, quando recordo saudosos professores de Latim, que tive, em Itabuna, Ilhéus e Salvador (Colégio da Bahia) e pré-vestibular (Figueredão).
Foi esta saudade, talvez de tempos ainda juvenis, que me impeliu a compartilhar esta postagem, ao tempo em que me vejo também levado a transcrever poema, que escrevi e publiquei, muitas décadas depois, uma espécie de canto da existência. Aqui, vai, perdoem a imodéstia.

NOSTALGIA DO LATIM

Florisvaldo Mattos (in Estuário dos dias e outros poemas, p. 145, 2016).

“Hás de também estar triste,
se queres me ver chorar”*.
Dizem-me que esse preceito
veio da pena de Horácio.
Virei páginas de livros,
ternas letras que me acalmam.
Será fogo de artifício
esse ditame de Horácio?
Mergulhei no bom latim,
fui a Rónai, a Saraiva;
entre estantes me perdi,
sem me bater com este Horácio.
Até Cortázar (disseram)
se preocupou com este fado.
Corre mentes, vara mundos
esta sentença de Horácio.
Renovo a taça de vinho,
imerso no que me falta.
Vou em frente, não desisto
sempre no rastro de Horácio.
Si vis me flere, dolendum
est primum ipsi tibi. Lá,
com a cabeça já me ardendo,
enfim esbarro em Horácio.
Lição por fim aprendida,
posso dizer a verdade:
muitas sendas se me abriu
esta máxima de Horácio.
Haverão de me ver triste,
quase perto de chorar.
Perguntem por que, lhes digo:
não é por culpa de Horácio.

*Si vis me flere, dolendum est primum ipsi tibi; tunc tua me infortunia laedent.
Horácio, Ars Poetica, 102.

(Se queres que eu chore, é preciso que sofras; só então é que os teus infortúnios me tocarão). 


    Uruçuca, Rua do Cruzeiro, com a Igreja de São José, ao fundo


UMA DIGRESSÃO NARCÍSICA

 

Florisvaldo Mattos

 

Confesso que tenho uma antiga e inocente afeição pelo Latim. Às vezes, paro, na tentativa de descobrir a origem e explicar a razão, já que jamais me empenhei em estudar a finco e praticar a língua que educou e civilizou o Ocidente; mas tento, para ver se vislumbro algo; e começo lembrando ter sido por meses, ainda criança, sacristão em distantes noites de novena conduzidas pelo padre Luís San Juan, na Igreja de São José, na então Água Preta do Mocambo, hoje Uruçuca, que eram professadas em Latim (de tal sagrada e inocente função acabei alijado por rir e macaquear durante os sermões do saudoso pároco). 

Alguns anos depois, no ginásio em Itabuna, terei como professor de Latim outro padre,  Nestor Passos, cuja técnica de exposição didática despertaria meu interesse em saber tudo de declinações, substantivos, adjetivos, verbos e pronomes, mas essa curiosidade iria aumentar, quando, concluso o ginásio, fui ter como professor de Latim, em Ilhéus, justamente outro religioso, o cônego Mário, surpreendentemente autor de uma Gramática do Latim, que costumava fazer sessões especiais com alunos escolhidos para despertar interesse por seu livro. 

Em Salvador, no Colégio da Bahia, tive a sorte de cair numa sala em que as aulas de Latim eram ministradas por uma jovem professora, que iria se afirmar dedicada mestra, dona Yvette Lemos (depois Amaral, posteriormente aposentada e articulista de jornal), que muito me acrescentou de conhecimentos da língua, ao ponto de, para o vestibular da Faculdade de Direito, só ter precisado de curso para discutir e analisar as famosas Catilinárias, de Cícero, de que eu nunca ouvira falar. Parei aí, pois, formado em Direito, optei, certo ou errado, pela fatalidade de ser jornalista por toda a vida; mas não esqueço o Latim, tanto assim que em novo livro, que garatujo imaginando lançá-lo até o fim deste ano, 2016, (se Júpiter permitir), há um poema intitulado simplesmente "Nostalgia do Latim", título que tomei emprestado de uma conferência pronunciada por Jorge Luis Borges, em setembro de 1980, na Escola Freudiana da Argentina, sobre o tema de "Poesia e Tradição", onde sustentava que toda a cultura ocidental, cujas línguas procedem do Latim, permanece em débito com o idioma de Virgílio, até mesmo em países de raízes não latinas, como a Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha. 

Pois é; no citado poema, com tal título, enveredo numa prospecção lúdica, para descobrir a redação em latim de um ditame de Horácio, que um dia li ter sido a fonte subliminar dos versos de uma estrofe de "Desencanto", poema que Manuel Bandeira escreveu em 1912. Não me fixei nesses versos, mas numa tradução literal ("Se queres me ver chorar, será preciso que estejas triste"). E parti na aflição de descobrir os versos em latim autêntico, indo a várias fontes, inclusive a do Saraiva (o Santos, do famoso dicionário) e a Paulo Ronai, num delirante percurso de composição do poema, que vocês poderão ler, quando o livro sair, se sair...). Mas, toda essa digressão sinônima de vaidade, de delírio narcísico, tem por fim somente postar uma crônica que Carlos Heitor Cony publicou, hoje, na Folha de S. Paulo, versando justamente o tema da permanência do Latim, que a muitos desgosta e até incomoda. Vai abaixo o link. 

http://www1.folha.uol.com.br/…/1630723-sub-tegmine-fagi.sht…

 

Carlos Heitor Cony: "Sub tegmine fagi"


RIO DE JANEIRO - Leitor indignado reprovou o título em latim de minha crônica no último domingo. Não foi a primeira vez que cometi o mesmo crime: apelar para uma língua morta para lamentar a miséria...

(POSTAGEM NO FACEBOOK E INTERNET, EM 19/05/2015)


O menino, o padre e o sermão 

 

Ao pé do padre, visto-me de rei,

pouco menos talvez que sacristão.

O padre olha-me. Sou um rude, sei,

incapaz de encantar-me com o sermão.

 

Muito mais me embevecem as ladainhas

das novenas de maio, a voz das moças.

Eu queria que todas fossem minhas

(o macaco que é bom não quebra louças).

 

Padre Luís San Juan do alto me olhava,

sem saber de que era que mais eu ria. 

O moderado tom com que falava

ao coração, sem vã filosofia?

 

Era o som das palavras, cristalino,

que fascinava os olhos do menino.    

 

 (Florisvaldo Mattos. SSA/BA, 30/11/2015; in Estuário dos dias e outros poemas, p. 69, 2016).


Há momentos em que a criação poética salta de um trampolim de signos, mergulha no vasto lago da memória e, subitamente, surge o latim, a intrometer-se na onda sonora dos versos de um poema, parecendo que a competição, de rimas emparelhadas, recorre a braçadas por águas de prélios verbais distantes, como no caso deste soneto, que parece retornar até às prescrições denunciativas do romano Cícero, nas suas famosas Catilinárias. Veja-se o que mostra deste o segundo quarteto:


SONETO ROMANO

                              A Valdomiro Santana

 

                                   Quin etiam, Polypheme, fera Galatea sub Aetna

                                   Ad tua rorantis carmina flexit equos.

                                                           Sexto Propércio (Elegia III, 2)*

 

Não sou Orfeu, não sei deter os rios,

Nem toco flauta no portão do Inferno,

Para tirar do Amor grilhões sombrios

E postá-lo na margem em que aderno.

 

Não sou Camões; Calíope não me ensina

Os caminhos do mar. Vou para o bosque.

Sei que irão perguntar-me adiante quousque

Tandem há de durar a minha sina.

 

Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,

Guarde-os perto do campo de azaleia.

Se mais seguros, lá, mais bem guardados.

 

Oh, Propércio, avise aí a Polifemo

E me deixe no Etna com Galateia

Montada em seus cavalos orvalhados.

 

(Florisvaldo Mattos. SSA/BA, manhã de 14/10/2018, inédito)

 

*”E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,

Aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados”.

(Sexto Propércio, Elegias, trad. Maria da Glória Novak, em Poesia Lírica Latina; São Paulo: Martins Fontes, 1992).

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