Santos Dumont pilota o 14-Bis, no histórico voo, com que a aviação inaugurou o século XX: Paris, Campo de Bagatelle, em 07.09.1906 |
(Elogio de três artes coletivas: Cinema, Jazz, Futebol)
“(...) não surpreende que... uma das contribuições... mais importantes
para a alta costura do nosso século tenha suas origens
no entretenimento popular e... comercial:
o cinema e a música moldada pelo jazz.”
(Eric Hobsbawm, Alexandria, 1917-Londres, 2012)
“(...) a ti, Indústria de Cinema/ é que eu amo//Em épocas de crise,
devemos todos decidir uma e outra vez a quem amamos./
e dar crédito a quem mereça”(...)
Frank O’Hara (EUA, 1926-1966)
I – Labores de vista e ouvido
Tarde de sol de um dia indecifrável,
entro na biblioteca inexorável,
descarto enciclopédias e alfarrábios,
as diretrizes e as lições dos sábios.
E me afundo em periódicos antigos,
absorvo o ambiente morno dos abrigos
que cada um me dá, decênio a decênio.
em busca de um conforto, um pouso, um prêmio.
Leio e releio; valho-me de outros ativos.
Projeto vídeos e diapositivos;
um filme aqui, outro ali, acesso a internet.
Folheio álbuns, memórias, pinto o sete.
Súbito de dentro de uma revista
emerge uma voz que me aponta a lista
Nela me inscrevo e desde já concordo;
algo mais robustece o meu acordo.
Foi-se o século que nos deu três artes,
a rolar imunes sobre as cinco partes
do mundo – fulgor que gira, canta e rola,
aceso em fotogramas, sons e bola.
Pois esta é a súmula dos dias vários
que gastaram bobinas, calendários:
foi somente o cinema, o jazz e o esporte
o que restou, amigos. Muita sorte!
Cada um por si representou um cismo,
áureas aves na borda de um abismo;
estrelas e nuvens, rostos em bando,
a esperar que se acertem o onde e o quando.
Ellington a reger a soma de quantos
foram Ben, Cootie foram, foram Blanton;
o olhar de Ford vagando em pradarias,
Welles a roer impérios, burguesias.
Leio o roteiro das últimas cenas;
sim, digamos, sem palavras amenas;
só comparável ao Portal de Rodes
foi o que vibrou em som e celuloide.
A esse afoito julgado a que me atrevo
logo acrescento a folha outra do trevo.
Que mais fulge no chão que a luz do sol
senão a arte que cifra o futebol?
É este que sobressai entre os esportes,
une dor e sonho à paixão dos fortes,
a semblantes longínquos de heróis trácios,
que acabaram estátuas em palácios.
Duke Ellington e orquestra, um dos marcos criativos do Jazz |
II- Indícios de ouro, acordes na jângal
Mais que o tango, mais que o samba-canção,
mais que a rumba, mais que o fado e o baião
o jazz produz fagulhas de luas em céus
de memórias de que só restam uns véus,
em lúgubres paisagens,
e precipita imagens
de bares e bordéis
da meia-noite às seis.
Faz girar tambores, metais e cordas,
emitindo notas para despertas hordas,
que atravessaram águas e desertos,
com a mente mergulhada em sonhos certos.
Desde que Buddy Bolden expedia
flechas de som da noite para o dia,
Nova Orleans era só fardo e barril,
irrompeu lá outra guerra civil,
sustentada em acordes e gemidos,
paixão, dor, consciência, duplos sentidos,
que proferem metais, tambores, cordas,
e deste vasto porto partem hordas,
aquilo que foi sopro, ritmo e canto,
de mistura com suor, lamento e pranto.
O do algodão e escravos Mississipi
é testemunha e, antes que se dissipe
essa remota história do fervor,
urdo um rol à memória do langor.
Começo por lembrar Louis Armstrong,
King Oliver, Sidney Bechet e o gong
De Big Sid Catlett; sigo um fundo vale
(de lá a Nova York, nada que me cale):
Hawkins Body and Soul arrebentando,
nos criativos trinta do suingue, quando
reinam Flecther e Jimmie Lunceford,
a nova ordem do bom para o melhor.
Invoco Hodges, Bigard, repito Blanton,
o trombone vodu de Trick Sam Nanton,
no rastro de Bix, Basie, algo que fungue
o pescoço da aurora, até Lester Young,
príncipe do langor; alas ao bebop
e a quem que na caudal surja alto e tope
com Dizzy, Parker, Monk, Powell, Mingus,
que ao jazz raspam a face de domingos,
ou reste apenas nos flancos dessa grei
espaço à prata e o ouro de Billie Holiday:
corça, escapa entre dédalos de pedra,
tênue haste, mais Ofélia do que Fedra.
John Wayne, John Ford e James Stewart, o cinema como arte
III – Tela de prata e sonhos
Qual a Roma de célebres intrigas,
onde trafegam príncipes em bigas,
mãos da manhã que doura o tempo lesto
da loura intrepidez de Charlton Heston,
como na dor que Oliver deu a Hamleto,
ou na em cor do latino à Capuleto;
beijando Ingrid Bergman em Casablanca,
a classe de Bogart, sua voz franca
de Sam Spade, com a relíquia macabra
desmontando severo abracadabra;
John Wayne lá caçando Natalie Wood,
noutro momento maior de Hollywood;
Chaplin sagrando um tempo de heróis rotos,
mundos tristes de pobres e garotos;
o claro grito de Tarzan na selva,
Sheeta, atrás dele, no cipó, na relva;
Boris Karloff, Lon Chaney, Bella Lugosi,
dando ao terror espasmos de quem goze
o bailado na chuva de Gene Kelly,
e os de Charisse dotes – pernas, pele;
jeito de unir ali todos os mares,
Gilda tirando a luva em Buenos Aires
(grande Rita Hayworth, hás de voltar,
rebolando e fumando, ao meu altar);
curvas de Marilyn Monroe (uma tarde),
ao bafio do metrô, que celebra e arde;
venham o Gordo e o Magro, os irmãos Marx,
e toda a rija grei que em potros marche:
Jack Palance no alpendre aguardando
destrezas de Allan Ladd herói chegando.
Tecnicolor de grandes que não cito
me trouxe, ainda guri, Cleópatra e o Egito.
Na Itália de Visconti, Fellini e Zampa,
Rosselini e Monicelli, a clara rampa
do neo-realismo: por onde os Rocco
irmãos desciam trafegavam outros,
como De Sica, doutos exegetas,
construindo heróis ladrões de bicicletas;
e os franceses em pleno rififi,
regendo sinfonias do ir e vir
nos gestos de Deneuve e Ives Montand,
de Bardot, nova estrela da manhã;
como a doirada face mexicana,
da bela Maria Félix e toda a gana,
em paisagem brumosa e cena boa,
que uniu Armendáriz e Figueroa;
e as joias do Japão, os samurais,
de que Mifune e Akira foram pais.
De não dizer que não falei de flores,
aqui um jarro, aqui nossos amores:
as diabruras de Otelo e de Oscarito,
a mostrar como o riso molda um mito;
a terra de crendice e cangaceiro,
na qual o sol de Glauber luz primeiro.
Seleção brasileira, campeã da Copa do Mundo de 1958, na Suécia |
IV – Luzes no éden das quatro linhas
A outra alma, a que palpita nos estádios
aqui, ali, acolá, a dos ruidosos gládios,
que abrasam corações, em rubras tardes,
estrépitos de passos, e os alardes
de alegrias que vêm às toneladas,
a rasgos de bandeiras desfraldadas.
O passe de Didi para Garrincha,
que Vinicius notou por uma frincha
do céu, aquele espaço, aquele porto
de cristal, onde reinava o anjo torto;
soberano Pelé e outros de Setenta,
gols, passes, dribles, gingas da opulenta
legião que ilustrou este e outros pagos,
quebrando a morbidez de dias vagos,
como estirpes de vinhos capitosos,
fecundam tempo e saga generosos,
desde os coroados a quem foi à lona:
Di Stefano, Puskas, Cruyff, Maradona.
Mas antes, bem antes, pois há quem ache,
as artes de Zizinho e Friendereich.
E as do naufrágio no Maracanã,
ídolos caídos em tarde dura e malsã,
quando conhecemos por voz agreste
o outro sabor da palavra Celeste
Em movimentos de fugazes luas,
enunciações de quanto perpetuas,
ó futebol, idioma corporal,
oculto em peripécias de jogral.
V – Ao fim do dia, sob refletores
E outros maiores e, entre estes, mais outros
e, no fundo do horizonte, aqueloutros,
que habitaram a fímbria dos instantes –
extras, tribos de naipes, coadjuvantes –
gratos, que agora são em sonho acenos
de luz, em trânsitos jamais pequenos.
Girai, rolai, soai bobinas, bolas
e metais, bem além de metro e rima,
bem mais além de estilos e de escolas,
de todo o melhor que um século prima
e por artes expõe a face boa,
não a uma só que já de si merece,
grande terra que gira, rola e soa,
é as três que humildemente ela agradece.
Deixo aqui o veredicto desse obscuro
meu narrar para que os poetas do futuro,
desenredando som, letra e bobina,
não cantem só do passar dor e ruína
mas dele guardem o outro lado, o sério
– o humano fluir, sua arte, seu mistério.
RODA-GIGANTE DO SÉCULO QUE NÃO TERMINOU
Florisvaldo Mattos
Se houve um “século de ouro” assim chamado pela força e vigor das criações de artistas que nele viveram – o XVII –, este que há poucos anos se findou, junto com o milênio, apesar das cicatrizes de duas guerras mundiais e dezenas de outras regionais, que interesses econômicos, políticos e culturais espalharam pelo planeta (russo-japonesa, civil espanhola, Coreia, Indochina, as múltiplas de libertação colonial, Vietnã, Golfo Pérsico, e tantas mais), poderá muito bem ficar na história, em definitivo, sem nenhum exagero, mesmo com a fulgurância da música e dos esportes, como Século das Artes Plásticas.
Se não superou aquele paradigmático do barroco e do mercantilismo na qualidade de seus poetas, homens de letras, músicos, pintores e dramaturgos (Cervantes, Shakespeare, Milton, Calderón, Quevedo, Padre Antonio Vieira, El Greco, Velásquez, Vermeer, Rembrandt, Rubens, Caravaggio, entre outros), superou-o em pelo menos dois aspectos: pelas três novas artes que surgiram em seu decurso – o cinema, o jazz e o futebol (este, ao deixar de ser apenas uma modalidade esportiva, entre tantas, para ganhar contornos de forma de arte) – e na quantidade de movimentos estéticos e escolas, que sucederam (até mais de um, em cada década, significativo) – e, entre os artistas, pelos menos alguns nomes podem se emparelhar com os gigantes dourados do outro, nas artes como na ciência: Cézanne, Matisse, Picasso, Kandinsky, Duchamps, De Chirico, Magritte, Dalí, Miró, Ernst, Klee, Mondrian, Pollock, Kirchner, Marconi, Santos Dumont, Freud, Alexander Flemming, Max Planck, Einstein, e tantos mais, na ciência, nas artes plásticas, e fora delas.
A Dança, 1910; fauvismo, de Henri Matisse, faz escola em Paris |
1901-1910: Fauvismo, Cubismo, Futurismo. No campo das artes plásticas, talvez embalado pelo estrondoso sucesso em 1900 da Exposição Universal de Paris (50 milhões de visitantes em seus 200 dias de funcionamento), metrópole que já há muitas décadas ostentava o título de “capital mundial da cultura”, mantendo-o pelo menos até os fins dos anos 1940, quando o galardão se transfere para Nova York, logo na primeira delas (1901-1910), o século irrompe com pelo menos três escândalos nas artes: o fauvismo (1905), o cubismo (1908) e o futurismo (1909). Já em 1904, dois marcos seminais: o triunfo tardio, mas consagrador do grande mestre francês Paul Cézanne, ocupando o espaço mais prestigiado do Salão de Outono, no Grand Palais, onde os jovens pintores assentam acampamento, extasiados com as “audácias inauditas”, que sobressaíam de suas garrafas inclinadas, seus frutos côncavos, suas banhistas atarracadas, de linhas apenas sugeridas, expostos pela arte de quem um crítico dissera que parecia ter “um defeito no olho”; no outro, Picasso, com apenas 23 anos (nascera em 1881, em Málaga, Espanha) se estabelece definitivamente em Paris, fixando seu ateliê no famoso endereço de Bateau-Lavoir, para onde acorre toda a então chamada avant-garde (de pintores e críticos a curiosos) e do qual um cronista oferece esse primor de descrição, que poderia induzir muitos de nossos artistas a uma grata reflexão: “Uma única torneira, comida pela ferrugem e coberta de azinhavre, para uso de quase trinta ateliês, nada de gás, nada de eletricidade, fachadas de tábuas desconjuntadas, por onde o vento do inverno facilmente penetrava, uma escada que range, exalando odores de um eterno bolor e de cocô de gatos”. Um modelo, se me recordo, que, nos anos 60, costumava distinguir ateliês de artistas baianos, que posteriormente ganhariam fama e espaços em museus, alguns com simplicidade de clausura, mas nenhum deles capaz de competir com tal cenário.
O mesmo crítico de arte (Louis Vauxcelles), que depois lançaria o termo cubismo, tornou-se criador de palavra fauvismo (var. fovismo), ao descrever no periódico Gil Blas a exposição que estava levando numa galeria um conjunto de pintores, envolvidos pela personalidade dominante de Henri Matisse. Tomando como referência um pequeno bronze de inspiração florentina, situado no meio da sala, Vauxcelles cunhou a frase de onde sairia a palavra para correr mundo: Donatello parmi les fauves (“Donatello entre as feras”). Era novembro e ali se descobrira um covil de jovens revoltados contra os mestres da arte acadêmica, de que William Bouguereau, morto três meses antes, fora o mais laureado – aqueles mesmos renitentes lumes do desenho e da cor, com quem os pintores baianos iam estudar no começo do século, conforme revela o estudo de Sante Scaldaferri sobre o pintor José Guimarães, o primeiro modernista a aparecer na Bahia.
Estavam lá rotulados de fauvistas (fovistas), entre outros, além de Matisse, André Derain, Maurice Vlaminck, Georges Braque (depois o homem do cubismo), Raoul Dufy, Kees Van Dongen e até o naïf Henri Douanier Rousseau, com o quadro O Leão faminto se lança sobre um antílope, tomado por uns como origem talvez da expressão de Vauxcelles. Com suas fontes centradas nos pintores Delacroix, Manet, Van Gogh e Gauguin (da fase Tahiti), e apoiados por colecionadores do porte da escritora Gertrude Stein, as cores puras, os arabescos e a simplificação de meios pictóricos dos fovistas logo se tornam uma paixão nos salões e nas galerias, para entrar em declínio, marcados pela repetição ou por novas opções estéticas, por volta de 1908, superados justamente pelo movimento de pintores que eles próprios influenciaram – o cubismo, surgido no luminoso rastro deixado por Cézanne, que morrera em 1906.
Pablo Picasso, Les Demoiselles d'Avignon, 1907: Cubismo já
Augusto dos Anjos
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Augusto dos Anjos, 1884-1914 |
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Surgindo em 1909 pela voz do poeta e panfletário italiano
Filippo Tommaso Marinetti e concorrendo com o cubismo, o futurismo é o último
movimento da década, que também teve o expressionismo, surgido também em 1905, na
Alemanha e França, embora então sem o fulgor dos outros. Durou até 1914, mas,
por força talvez de uma avidez cultural periférica, obteve prolongamentos em
vários países, ao longo de alguns anos, inclusive no Brasil (Semana da Arte
Moderna de São Paulo, em 1922), Uruguai e Argentina. Quatro grandes pintores
(Luciano Balla, Carlo Carrá, Luigi Russolo e Gino Severini) e um importante
escultor (Umberto Boccioni) sustentaram a escola futurista com teorias e obras.
Lançado com estardalhaço em Paris, o Manifesto Futurista introduz a provocação e o deboche na arte,
precedendo neste particular o dadaísmo, que irá aparecer em 1916. O futurismo
quer abarcar todo os segmentos criativos e propagandísticos – literatura,
música, arquitetura, sistema social, política, enfim o que fosse atividade
humana, onde se deveria ferir a luta contra o academismo e o passadismo, instâncias
aos olhos dos futuristas dedicadas a travar qualquer criação artística.
Endeusando a máquina e a velocidade, no dinamismo da vida urbana moderna,
acabaram se tornando exemplo de chauvinismo e nacionalismo exacerbados que, na
Itália, se associaria ao fascismo de Mussolini, de quem Marinetti era um
ardente seguidor. E nesta senda agra o futurismo fará escola depois da Primeira
Grande Guerra (1914-1918) e, mais talvez por sua vertente pragmática e
amplitude de programa, ganhará adeptos nos quatro cantos do mundo, até mesmo na
comunista União Soviética, de Maiacovski; na Grã-Bretanha, com os vorticistas (entre
os quais o poeta americano Ezra Pound, quando vivia na Inglaterra); no México,
com os chamados estridentistas, artistas seguidores do movimento (estridentismo)
criado por Manuel Maples Arce (1898-1981), na Cidade do México.
Pintura de estilo cubista, do francês Fernand Léger
EM BUSCA DA BELEZA
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria ideia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.
1911-1920: expressionismo, suprematismo, dadaísmo. Embora já se viesse gestando desde 1905 como reação aos seguidores do impressionismo, o movimento expressionista irrompe na Alemanha pela ação de dois grupos representativos: Die Brücke (A Ponte), em Dresde, e Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), em Munique, aos quais se vinculara uma plêiade de grandes pintores, entre eles Vladimir Kandinsky, Ernst Ludwig Kirchner, Oskar Kokoschka, Emil Nolde, Edvard Munch, Egon Schiele, James Ensor, cuja pintura explora o mundo interior do indivíduo, em claves de paroxismo e violência, impulsionados pela psicanálise de Sigmund Freud, percorrendo os abismos do inconsciente, com o desespero e o sentimento da morte a ocuparem em alguns o primeiro plano, e procurando traduzir o que chamavam “as terríveis paixões humanas”, em obras cujas cores acentuadas e traços fortes no contorno das figuras não buscavam expressar senão dissonâncias, dilaceração e exacerbação formal. Foi o movimento que mais refletiu o clima de desespero e incerteza pré-guerreiro que envolvia a Europa, na época, e de sofrimento, no curso da primeira grande guerra (1914-1918).
É ainda o clima de torpor e insatisfação do estado de beligerância em marcha e seus efeitos que insuflam a tendência à desordem formal nas artes e nos artistas. Em 1915, na cauda do escândalo que provocou seu famoso quadro intitulado Quadrado negro sobre fundo branco, o russo Kasemir Malevitch (1878-1935) lança o movimento suprematista, cujas ideias vão resumidas em livro de sua autoria intitulado Do cubismo ao suprematismo, sustentando que o pintor não deve se interessar senão por pintura e rejeitar qualquer motivação que lhe seja estranha. Nos fundamentos dessa arte radicalmente não figurativa se apoia uma das prescrições de Malevitch: “Toda a pintura do passado e a atual de antes do suprematismo (escultura, arte verbal, música) têm-se servido da forma da natureza e está à espera de sua libertação para falar na sua própria língua e não mais depender da razão, do sentido, da lógica, da filosofia, da psicologia, de diferentes leis de causalidade e das alterações técnicas da vida”.
Mais tarde, recomendará que os artistas rejeitem temas e objetos, em busca de se tornarem “pintores puros” e virá dele próprio o exemplo, ao não dar guarida em suas telas senão a figuras geométricas em duas dimensões. O ponto máximo do suprematismo foi alcançado com a pintura de Malevitch Quadrado branco sobre fundo branco, seu quadro mais famoso, de 1919, ano da Bauhaus, cujas ideias influenciou. Reconhece a crítica que, para além dos aspectos um tanto anarquistas que animavam os seguidores do suprematismo, eles deram prova de um senso raro de penetração da obra de arte no espaço do absoluto. Mesmo com sua afrontosa intransigência e fazendo tábula rasa do passado, nenhum outro movimento tentou fundar a arte do século XX em bases inteiramente novas como o suprematismo; a ele muito devem os abstracionismos que sobrevieram.
Intelectuais de várias nacionalidades refugiados de guerra fundaram em Zurique, na Suiça, em 1916, num lugar que chamavam de cabaré literário e artístico – o a partir daí famoso Cabaret Voltaire – deflagraram o movimento das vanguardas mais devotado ao escândalo, o dadaísmo, ou Movimento Dadá, que tinha como principal teórico e animador o poeta romeno Tristan Tzara, chefiando uma fileira de espíritos irrequietos que dariam que falar quando suas ideias invadiram logo em seguida a França, onde repercute influenciando na gestação de outro movimento mais duradouro, porém inspirado em suas ideias centrais, o surrealismo, corrente estética que dominará as duas décadas seguintes. A arte passou a ser domínio de vândalos da estética; provocação e escândalos eram sua diretriz de trabalho, sob o mandado da negação total, agindo contra a tradição, contra as instituições, contra o que estivesse pela frente. Foram os grandes da arte dadaísta, além de Tzara, seu principal articulador teórico (muitos deles se tornariam depois surrealistas), entre outros, os alemães Max Ernst e Hans Arp, os franceses Marcel Duchamp, criador dos célebres ready-mades, e Raoul Hausmann, especialista em fotomontagem, o romeno Marcel Janco e o espanhol Francis Picabia.
Três Mulheres, do expressionista alemão Egon Schiele
Caligrama de Guillaume Apollinaire
BLUSA FÁTUA
Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.
Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"
Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!
Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!
(Tradução: Augusto de Campos)
1921-1940: construtivismo, neoplasticismo, surrealismo, muralismo. Como filho dileto do dadaísmo e no rastro da influência das ideias de Sigmund Freud, o surrealismo serve de traço de união a tudo que diga respeito a um estado de revolução e rebeldia, mas quer-se, no geral, um movimento de conquista e de aprofundamento do inconsciente. Se o dadaísmo era a negação de tudo, o surrealismo pensa ser o aplicador das descobertas de Freud no campo da psicanálise e erigirá o automatismo psíquico como princípio criador, quando o francês André Breton, que tinha a seu lado ainda Louis Aragon, Philippe Soupault e Paul Éluard, lançou em 1924 o famoso Manifesto do Surrealismo, para cujo coreto atraiu logo os dadaístas Duchamp, Arp, Picabia, Max Ernst, André Masson e Man Ray. Automatismo e ausência de qualquer intervenção do pensamento crítico na criação artística, heranças aprofundadas do dadaísmo, dão as cartas, e logo, simultaneamente, com a adoção de técnicas novas diversas (desenho automático, encaixe, colagem, ranhuras, decalcomania, papel rompido e machucado etc.) surgem os grandes pintores do movimento: Max Ernst, Salvador Dalí, Joan Miró, Oscar Dominguez, Ives Tanguy, e dá-se força a precursores (Giorgio De Chirico). Abre-se o caminho a grupos em outros lugares, sendo o mais importante o surgido na Bélgica, em que se destacam René Magritte e Paul Delvaux, sem esquecer Alberto Giacometti, na Suíça. O surrealismo vai repercutir adiante no grupo Cobra, formado em Paris, nos finais dos anos 1940, e na arte bruta de Jean Dubuffet, nos anos 1950.
Os ventos da Revolução russa (1917) sopram e propagam as
ideias do construtivismo; primeiro, com o poeta Vladimir Maiacovski, para quem
cessara o tempo de sustentar “um mausoléu da arte para nele adorar obras
mortas”, desde que mais se estava então necessitando de “usinas vivas do
espírito humano: nas ruas, nos transvias, nas usinas, nos ateliês e nas
habitações dos trabalhadores”. A arte devia ter em mira o benefício de um maior
número de pessoas. Surgem logo a seguir outros dois russos, Antoine Pevsner e Naum
Gabo, que pregam o afastamento da arte de tudo que tenha a ver com a fantasia,
o automatismo e o inconsciente, em proveito da razão e do cálculo. Prega-se o
fim da distinção entre arte pura e arte aplicada. Diziam que o artista deve proceder
tal como “um engenheiro estivesse construindo uma ponte”, com espírito exato
como se usasse um compasso. O movimento se espalha com publicações periódicas
por toda a Europa e prospera.
Ainda nos anos 1920, aparece Piet Mondrian com a teoria
que deu contornos ao movimento que ele próprio intitulou neoplasticismo,
proclamando as evidências de uma vontade geométrica e insistindo num rigoroso
traçado de horizontais e verticais que se cortam em ângulo reto e
compartimentam a superfície branca do quadro, ao tempo em que se estabelecem
variadas relações entre quadrados de cores puras – vermelho, amarelo, azul.
Onde mais repercutiram os princípios estéticos de Mondrian, um discípulo do
cubismo, foi na arquitetura, que incorpora uma sensação de ordem, claridade e
despojamento. A simplicidade construtiva dos quadros de Mondrian se torna paradigmática,
dentro de um sistema que não cede espaço à improvisação e à fantasia. O artista
chegaria a tal rigor que passa a ter horror à cor verde e às linhas curvas,
chegando a eliminá-las de seus quadros, porque, na medida em que evocavam a
natureza, lhe pareciam incompatíveis com a ordem absoluta que buscava, a de um
mundo em que as relações entre os homens se tornariam elas próprias obras de
arte. Seu grande opositor será um compatriota, o holandês Kees Van Dongen, que
propunha um dinamismo de formas, pela introdução de superfícies inclinadas e
dissonantes, em oposição à gravidade e à estrutura arquitetônica estática que,
segundo ele, resultavam das propostas de Mondrian. Mas Piet Mondrian, com
Malevitch, será uma das principais fontes do abstracionismo geométrico.
O muralismo se desenvolveu no México a partir de 1921,
pela mão do pintor Diego Rivera (1886-1957), atendendo ao desejo de um ministro
de cobrir com afrescos as paredes dos edifícios públicos, em seguida à
revolução mexicana. Por isso, o movimento ficou restrito a esse país. Rivera
dirigiu e executou o projeto e a ele incorporou outros artistas, em geral
mexicanos, entre os quais os mais importantes seriam José Clemente Orozco (1883-1949)
e David Alfaro Siqueiros (1896-1974).
Diego Rivera, ilustração para Canto General, de Pablo Neruda
LIBERDADE
Paul Éluard
1942
Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome
Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome
Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome
Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome
Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome
Nas maravilhas das noites
No pão branco de cada dia
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome
Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome
Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome
Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome
Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome
Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome
Paul Éluard, por Françoise Gilot |
No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome
Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome
No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome
Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome
Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome
Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome
E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar
L i b e r d a d e
(Tradução de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade)
1941-1980: expressionismo abstrato, Grupo Cobra, pop-art. O mais importante movimento plástico depois das vanguardas, ocorre nos Estados Unidos entre fins dos anos 1940 e começos dos anos 1950, em Nova York, como ressonância das medidas adotadas pelo governo Roosevelt com o objetivo de enfrentar o desemprego durante a grande depressão, mas foram os anos da Segunda Grande Guerra (1939-1945) que criaram as condições propícias para um avanço cultural autônomo no terreno das artes plásticas, desbancando a força propagadora e o prestígio de Paris.
O conflito que devastava a Europa fez com que muitos
artistas, que viviam em Paris e outras grandes cidades, temendo bombardeios e
perseguições, rumassem para os Estados Unidos. Entre eles, estavam figuras do
porte de André Masson, Max Ernst, Arshile Gorky, Salvador Dalí e Piet Mondrian,
que, como refugiados estabelecidos, passaram a influenciar a nova geração de
pintores americanos, especialmente Jackson Pollock, Robert Motherwell, Willen
De Kooning, Adolph Gottlieb, Mark Rothko, Franz Kline, Barnett Newman, Philip
Guston, Clyfford Still, entre outros. Sem ser um grupo estruturado como o
cubismo ou o futurismo, o movimento teve uma grande penetração, chegando a
influenciar a geração seguinte de artistas, que se destacaram com o movimento
da pop art.
O expressionismo abstrato se subdividiu em duas grandes
tendências: a chamada action painting
(pintura de ação), também dita pintura gestual, da qual Jackson Pollock foi o criador
mais importante, seguido por De Kooning e Motherwell. Na outra tendência, a
chamada color field painting (pintura
de campo colorido), de inspiração mais lírica e mais meditativa, a cor aparece
carregada de emoção, segundo historiadores da arte. Produzindo telas de um
extremo rigor plástico, embora de grande simplicidade, destacam-se nesta
corrente os pintores Rothko, Barnett Newman, Clyfford Still e Ad Reinhardt.
Depois de Pollock, restou De Kooning, como grande nome do movimento, produzindo
uma pintura figurativa com tão clara marca de agressividade, que parece atacar
a tela, e como um extraordinário colorista.
Nos anos 1950, elementos decorativos propagados pelas
imagens oriundas da indústria cultural (meios de comunicação de massa) – cinema,
televisão, publicidade, histórias em quadrinhos e produtos outros destinados às
massas consumidoras – passam a influenciar as novas gerações de artistas. Nasce
a pop art, primeiro na Inglaterra e, depois, nos Estados Unidos, aparecendo inicialmente
na Califórnia. O movimento acompanha outro grande fenômeno: a difusão da música
popular em escala mundial, que começa com o triunfo do rock de Bill Halley, em
1955, seguindo-se outros até os Beatles em 1963. Certas personalidades da
música, do cinema, da política, dos esportes e do mundo vip passam a ser emblemas na obra de pintores, como o foram o
cantor Elvis Presley, a atriz Marilyn Monroe, Michael Jackson, Mao Tse Tung e
Jaqueline Kennedy (depois Onassis), na obra de Andy Warhol, embora o
surrealismo tenha aberto um precedente, quando Salvador Dalí pintou retratos da
atriz Mae West e da produtora de cosméticos Helena Rubinstein. O objetivo pop
maior é introduzir na obra de arte os objetos de uma realidade manufaturada,
industrializada, tais como garrafas ou latas de Coca-Cola, Sopa Campbell etc.
Além de Warhol, pode-se dizer que a pop art teve seus
nomes mais representativos num punhado de pintores, em que figuram Robert
Rauschenberg, Jasper Johns, Claes Oldenburg, Roy Lichtenstein, James Rosenquist,
Patrick Caulfield e David Hockney. Disseminando sua influência pela Inglaterra
e vários países da Europa e de outras partes, a pop art vai provocar nos anos 1970
na sua pátria adotiva, os Estados Unidos, dois movimentos até certo ponto
contraditórios: o minimalismo (minimal art) e o hiper-realismo. O primeiro
baseou seus princípios no uso apenas das formas geométricas mais elementares. O
segundo, surgido em Nova York, nasceu como reação ao expressionismo abstrato e
à arte conceitual (aquela segundo a qual a ideia da obra é mais importante que
o produto acabado), buscando reproduzir a realidade com extrema fidelidade e,
com isso, provocar no espectador uma sensação nova. São obras que revelam a
precisão de instantâneos fotográficos; enfim, a realidade com o máximo de
objetividade.
Formado pelas primeiras letras das palavras Copenhague,
Bruxelas e Amsterdã, Cobra deu nome à atividade de um grupo de artistas e a um
movimento nascido no período de 1948 a 1951, cujas obras eram marcadas por uma
pintura agressiva, selvagem, desordenada e de cores violentas, herdeira de
artes primitivas e populares, mas com pés também fincados no expressionismo e
no dadaísmo. O principal nome do grupo é o dinamarquês Asgar Jorn, seguido do
holandês Karel Appel e do belga Corneille (Cornelis van Baverloo).
O Canto Agônico
O Canto Agônico, transvanguardismo de Sante Scaldaferri
GALOPE AMARELO
A
Waltinho Queiroz
Quando ele voltou
a moça do portão estava casada
o prefeito era uma cruz e uma placa
as aves mudaram de itinerário
como os ônibus
o irmão mais moço tomava ópio
para esquecer.
Quando ele voltou
o empregado da esquina respondera
a um processo
onde perdeu a esperança e os dedos
o pai fuzilara um estudante
a mãe fugira com um mascate.
Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais
os campos de begônia floresciam
o gado esturrava nos currais
a terra desafiada vicejava como
uma égua na véspera do galope.
Quando ele partiu
o alimento dos olhos era verdura
de paisagem além da cerca
as goiabas enchiam os cestos
as mulheres voltavam com os meninos
os velhos falavam de assombração
a lua espreitava o pátio e o quintal.
Quando ele voltou
o ministro citava o arquiteto
com a pretensão de restaurar
o tempo à revelia dos relógios
o muro substituía o
horizonte
autoridades sonolentas distribuíam
o passaporte dos homens para o sanatório.
Quando ele voltou
as leis se haviam tornado ainda mais fósseis
as oligarquias muito mais poderosas
os poderosos mais astutos
o ministro lembrava “a pá sob os escombros”
o menino relia as manchetes da guerra
os preconceitos rimavam com a economia.
Quando ele voltou
havia uma encruzilhada e um alto-falante
a moça do portão estava casada
o irmão caçula era um soldado velho.
Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais.
Quando ele voltou
O céu era só um galope amarelo.
(1967)
(Florisvaldo Mattos. Poesia Reunida e Inéditos, p. 91, 2011)
Vaca Abstrata, forma arte bruta do francês Jean Dubufett
1971-2000: arte
pobre (arte povera), transvanguarda. Sob o rótulo de um termo vago,
impreciso e oportunista, pós-modernidade, a partir de finais da década de 1960,
começam a surgir movimentos que dão expressão à arte contemporânea. Assim como
nos anos 1940 e 1950, a arte bruta, de Jean Dubuffet, e a arte informal, do
mesmo Dubuffet e Henri Mathieu, movimento também chamado tachismo, com os
mesmos recursos técnicos da action
painting, de Pollock, a arte conceitual, o minimalismo e o hiper-realismo, surgem
dois movimentos que vão prevalecer nas décadas seguintes: a arte pobre, nascida
na Itália com o nome de arte povera,
sem dissimular os empréstimos tomados ao dadaísmo e à pop art, e a
transvanguarda. Trata-se de elevar a banalidade ao nível de arte, como disse um
crítico, um culto à pobreza, de efeito efêmero, suscitando a participação do
espectador, cuja intervenção até para proceder a mutações na própria obra é
encorajada. Mesmo assim, a arte pobre chegou a ultrapassar as fronteiras da
Itália, alcançando exposições internacionais, como a Documenta Kassel, que passou
a se realizar de cinco em cinco anos na Alemanha.
Nascida em 1979, mas com seus efeitos chegando ao público
no ano seguinte, na Bienal de Veneza, pela participação de três de seus
representantes – Sandro Chia, Enzo Cucchi e Francesco Clemente – impõe-se a
arte do movimento com o nome de
transvanguarda. Seus adeptos ganharam audiência internacional com uma
exposição em Roma, em 1982. Adotam princípios de reafirmação dos poderes da
subjetividade, fincados nos valores e raízes nacionais, rejeitando formulações
estéticas que se liguem a ideologias políticas, de esquerda ou de direita.
Preferem renovar laços com o expressionismo do início do século e aproximar-se
de artistas como Marc Chagall, De Chirico, Picabia, André Masson, o Malevitch
figurativo e os fauvistas.
Com esse fôlego, e trabalhando signos paradigmáticos, a
transvanguarda não se restringiu à Itália e se espalhou por vários países, com
importantes adeptos na Alemanha (Anselm Kiefer e Georg Baselitz), Gérard Garouste,
na França, e Julian Schnabel, nos Estados Unidos. Em todos vigora a sensação de
que o melhor caminho tem sido retornar às qualidades tradicionais da obra de
arte: a universalidade e a autenticidade, como se depreende de palavras do
crítico italiano Achille Bonito-Oliva, criador e defensor do movimento, que
permanece ainda atuante.
Se nas últimas décadas um movimento significativo ainda
evoca princípios estéticos dos seus inícios, como retorno a uma beleza maior,
resta a evidência de que o século XX não se deu por terminado, com a voz do
passado recusando-se a calar, na aurora de um novo século e de um novo milênio.
(Artigo revisto, com
pequenos acréscimos, publicado no caderno A Tarde Cultural, em 30/12/2000).
MINHA HISTÓRIA DA ARTE, OH!
Anulo distâncias, mármores, mosaicos, bronzes.
Forjo elipses, salto abóbadas, naves, peristilos.
Banho-me de espanto no Pórtico de Compostela.
Adejo sobre românico de mudos capitéis
E súbito me descubro idoso na Idade Média
Com Giotto. As formas do sonho em perspectiva,
Logo o espírito se propaga em luz e músculos,
A fé adquire corpo, anatomia: São Michelangelo,
Leonardo da Vinci e Rafael Sânzio, cor;
Logo sensoriais Bronzino e Pontecorvo.
Baco jovem, vou-me embriagar com Caravaggio.
Enfim, outro tumulto: colossal Velásquez,
A sublimação da forma, razão, refinamentos.
Goya, Delacroix, audazes cores da liberdade,
Na batalha das luzes contra a sombra.
Enfim, única veraz paisagem – sol a pino –
na mão impressionista, restauradora.
Avisto flamejantes painéis: Renoir, Manet,
E já me ofusca a luz dos campos de Van Gogh.
Simbolista de olhos fechados? Odilon Redon.
Lúbrico Moreau. De repente entre nabis,
Indômito Gauguin, fé selvagem e destino.
Salve Cézanne, agudo olho que abarca o cosmo
E tudo que, em íris, revira e torce a natureza –
Nova geometria, novo código, novo cânone.
Falam cilindros, cubos, esferas, falam cones.
Fauvisme
– Rouault, Dufy;
Rousseau – naïfs,
Enfim, Matisse, o domínio de cores vastas,
Puro império de amarelo, azul e vermelho,
Severo rastro que não engana nem empana!
Múltiplas faces da dor, a fé do expressionismo,
Quatro ali me bastam, Munch, Kirchner, Enson,
Schiele (e a ciência de Kandinsky). Franz Marc:
Plácidos cavalos de crina azul e ancas amarelas.
Ariadne e Teseu ocultos, avança o Minotauro:
Espáduas de Cézanne, faces virão da África,
Cubismo. Braque faz o corpo; Picasso, o rosto.
Que inventam no Bateau-Lavoir? Deliqüescências.
Deformar é preciso. “É demais, tenham juízo!
Chamem Freud, por favor; ele há de pô-los no divã.”
Tzara se casa com Dada, na hora. Oh, torvelinho!
Breton abre o guarda-chuva do inconsciente;
Apollinaire, o baú de inventos – e tudo é surreal!
Ernst,
Dalí, Magritte, Man Ray, Delvaux
Travam batalhas por becos, praças e mulheres,
Lavam o que sobrou da paleta de De Chirico.
Aperto a mão de Mondrian, aceno para Duchamp,
Arte no urinol, vamos por bigodes na Monalisa?
Cada esquina, um sonho; cada instante, uma guerra.
Paris de luto; o Sena, fluir de sangue e sombras.
Nova York, agora rota de luz, um novo palco:
Há bom ponto de fuga, salvação como destino.
Não à figura, arte no indivíduo; ferro e cimento,
Chão como suporte; o abstrato renasce, vive, e convivem
Pollock, De
Kooning, Gorky, Motherwell, Kline,
O espaço como convém onde time is Money.
Como tudo ao redor, arte é coisa, está à venda.
O povo na obra, com 15 minutos de fama, Warhol
Vende latas de sopa, Marylin Monroe e Jaqueline.
Doravante menta e tomilho a reger, a recender
Por aleias e jardins iluminados, enquanto
O Super-homem sobre pontes e arranha-céus
Rompe alturas, liberto de sombras e pincéis.
(Florisvaldo Mattos, 2009, in Poesia Reunida e Inéditos, p. 294, 2011)
Salvador Dalí (1904-1989, A Persistência da Memória, 1931 |
ODE AO TEMPO SUCESSIVO
Eunt
anni more fluentis aquae.
(“Os anos se vão como a água que flui”)
Ovídio,
Ars amatoria (3.62)
Omnia fert aetas, animum quoque.
(A
idade leva tudo, até a memória)
Virgílio,
Bucólicas (9,51)
Muitos disseram, outros quiseram dizer, mas não disseram.
Talvez. Digo eu, então, olhando o mar de azul sonoro e
vário,
Em frente, ou ao sol, revisitando árvores e caminhos
de antes,
Imperecíveis. Tempo, senhor do mundo, varando luzes e
trevas,
Nunca haverás de parar, nunca?
Mudo, disparas bola a rolar com o volume das noites e
dos dias,
Que à frente navegam céleres, sem travas, nem
conhecidas leis.
Tempo, senhor do mundo, de onde vens e aonde irá a tua
máquina
De fomes insaciáveis, em teu infinito vai-e-vem de
ausências?
Na varanda, sorvendo uma taça reluzente, miro o ignoto
mar, o mar
De azul ora maciço; miro a rua de tráfego nervoso,
envelhecendo
Meu duro chão que faísca.
Tempo, senhor do mundo, que sepulta meus sonhos, cala
meus
Íntimos brados e longas vigílias, de onde vens e para
onde vás?
Subindo e descendo solos íngremes, fazes de mim o que
serei:
Somente esvoaçante pó.
Observo teus afiados dentes sobre mim, logo sobre
todas as coisas.
Se até a memória levas-me, diz-me para onde levarás a
minha alma.
Por que não me fazes feliz, antes de minha morte, por
que?
Devoras a luz que nos espera na noite funda, lá onde
ambos dormimos.
Por que disseram que foges?
Quantas verdades disseram outros: bem mais depressa
que o vento, foges.
Doem-me os braços, minhas pernas cedem; já não mais
seguro os remos.
O jequitibá de ontem pereceu; sapucaias e louros são
hoje turva cinza.
Por serranias, céu claro, nuvens negras, fluentes
águas, sem que ninguém
Te veja, nem eu, escapas.
Segues, absoluto e irrefreável, por vazios de
infinitas errâncias,
Sem nenhuma força capaz de mudar ou apagar o que
deixaste para trás.
Oh, Tempo, que posso fazer de ti, se marchas, veloz e
irrecuperável,
Forjando idades, se não sei o que me trarás ao fim da
brônzea tarde?
Se vais, corres, nadas, voas, sobre o leito onde fluis,
sem voltar jamais,
Montado em tuas águas remotas, seja hoje ou amanhã,
seja depois,
Não importa, irei contigo.
Florisvaldo Mattos
(Salvador, dezembro/2018, inédito)
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