TABARIS, SAUDOSA GLÓRIA DAS NOITES BAIANAS
Recordo conferência que pronunciei, uma noite, no auditório da Biblioteca Pública da Bahia, no bairro dos Barris, durante seminário promovido pela Fundação Pedro Calmon, sobre o tema geral de “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, sendo moderador seu presidente, o hoje saudoso historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, que me escalou, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, para abordar “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária", que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50-60.
É desta experiência que destaco excertos, a partir da cogitação de que houve um tempo, nesta Cidade do Salvador, em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, a boemia literária e artística tornava-se um refúgio propício à fruição do intercâmbio cordial das ideias, através das quais muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Em 1958, já não mais se falava dessa espécie de convivência civilizada, com este fulcro, mas, sabe-se, que, a partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo, no Recôncavo, e a consequente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau. Nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Octávio Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes.
Nesta atmosfera de sonhos e esperanças, ingresso na Faculdade de Direito, em 1954, onde começo, pouco depois, a publicar poesia na revista Ângulos, então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, e, por aí, concidentemente, venho integrar o grupo nuclear da mais adiante chamada Geração Mapa. Jamais hei de esquecer o encontro que me lançaria nessa caudal de projetos, vistos na época como prova de audácia juvenil. Em fins de 1956, o Nº 11 da revista Ângulos estampava um poema, de minha autoria, que liricamente se resumia num hino telúrico à mítica Estrada de Ferro de Ilhéus, que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau. No início das aulas março de 1957, estava eu, certa manhã, sentado num dos bancos do hall da faculdade, quando vieram me avisar que procuravam por mim na portaria. Saio para o umbral e me deparo com alguns rostos adolescentes. Logo, um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer o autor do poema "Composição de ferrovia", para nós o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o cômico gesto. Nome do porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida a integrar o grupo que costumava reunir-se em sua casa, para discutir uma quase infinita pauta de inquietações e aspirações modernistas.
Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, em foto de 1976 (Salvador)Com esse fraternal convite de Glauber, logo me associei ao grupo, engajando-me na saga de suas cogitações editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de projetos, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo, mas não parou aí. Em julho de 1958, faltando-me apenas cinco meses para que obter o diploma de bacharel em Direito, de novo me aparece Glauber Rocha, na faculdade, para me lançar em nova aventura. Agora, confessava que recebera a incumbência de me indicar para compor a Redação, do Jornal da Bahia, novo veículo que se lançava, com uma bateria de aspirações e inovações, para competir e sair vitorioso ante qualquer dos concorrentes, que por décadas atendiam ao mercado baiano da comunicação social. Levado por ele, fui a uma reunião com as altas chefias do novo órgão, saindo dali, mesmo formado em Direito, como para ma fatalidade, a de ser jornalista para toda a vida.
Como então tempos de franca liberdade adubavam a vida boêmia, impondo que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos, entre os quais eram então os mais frequentados: a Sorveteria Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo Azul, de moldura existencialista, o Restaurante Porto do Moreira, na Rua do Cabeça, e o Bar Brasil, na Praça da Sé. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade de um exército de boêmios, na Praça Castro Alves, a uns dez metros da estátua do poeta, junto à balaustrada sobre a Ladeira da Montanha. Nesse tempo, a noite era realmente criança e aconselhava outros pousos, desde que ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-Três”, na Ladeira da Montanha, a "Casa da China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris Night Club, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não somente as de remotos coronéis do cacau.
E é aqui que retorna a figura de Glauber Rocha, agora como protagonista de episódio, tão cômico quanto surrealista. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento aos que compunham a equipe de sua inaugural Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que cabia a nós, como atores iniciantes nas façanhas do jornalismo, então apelidados de focas: eu, ainda estudante da Faculdade de Direito, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia. Pegamos o dinheiro curto no caixa, à tardinha e à noite, alegres e felizes, marchamos todos para a realização de um sonho: estrear no Tabaris.
Cinco de Mapa: João Ubaldo, Glauber, Calá, Sante e Paulo GilLá, como atração maior, na ocasião, apresentava-se um balé formado por dançarinas loiras e morenas, quase sempre argentinas, de corpo torneado, vestindo maiô e oferecendo à plateia o repertório musical da moda, que se traduzia em bolero, mambo, rumba, conga, tango e samba, ao som de uma afinada e buliçosa orquestra de sopro, a maior parte composta de músicos pertencentes à Filarmônica da Polícia Militar. Era comum nos intervalos, como parte da atração, essas bailarinas virem às mesas, conversar, beber e até dançar com frequentadores. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e todos bebendo, saímos alguns para dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, por volta da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente irrequieto, diferente do normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar contra o que considerava inaceitáveis excessos.
De cenho fechado, mais que de repente, o futuro grandioso cineasta sobe na mesa e, em pé, põe-se, de lá de cima a bradar, possesso:
“Isto é um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”
E, em tom de execração eclesiástica, repete por mais vezes a sentenciosa frase:
- Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!, com que deixa atordoados as moças bailarinas e os companheiros, em volta, para então, entre o sério e o trocista, atendendo as ponderações e os clamores e ostentando no rosto um sorriso janota, descer da mesa, sob estrondosa gargalhada, como protagonizasse uma comédia cinematográfica.
Glauber, como a enquadrar imagem, com uma câmera na mãoODE, QUASE ELEGIA, ESCRITA EM JANEIRO DE 1982
A EDIÇÃO MATUTINA
À memória de Glauber Rocha, artista,
amigo e companheiro de jornal
Florisvaldo Mattos
Nada sei além do que me contam
os hebdomadários perseguidos
os diários desaparecidos
os livros burocraticamente censurados
os discursos jamais pronunciados
Muito
de dor enclausurada
de raiva contida
de memória desesperada
Muito
de petrificado esterco
de martírio indevassado
fel de carcomida flor
Como em toda experiência humana
Como em toda verdade proclamada
Há a marca indelével do sofrimento
nas páginas enfurecidas
Nada sei além do que me contam
relatórios
encimados por tipos de caixa negros
vomitando
pelas janelas dos escritórios
pelos pátios dos colégios
pelos verdes
gramados dos jardins municipais
pelas oficinas mecânicas
pelos bares
pelas praias e estádios superpovoados
pelos ônibus
pelos trens
pelos aviões
e navios que levam petróleo
pelo mar
por todas as estradas que começam na infância
Tudo o que o chão calou e o ar esqueceu
Tudo o que a água afogou e o fogo torrou
Tudo o que o sol escondeu e a lua gelou
Tudo o que o dia borrou e a noite ofendeu
Por esta janela escancarada diante do mar
com o horizonte lantejoulado de nuvens claras
na manhã de um dezembro moribundo
rajadas de azul me trazem a história de tudo
estampada nas páginas em fúria
onde não há nenhum signo gráfico
nenhum nome
somente linhas de sangue
vergonha e desespero
Algo lido não sei onde
mas logo esquecido
Algo escrito não sei onde
mas logo apagado
Algo de ausência denunciada
mas logo justificada
Algo de presença intolerada
mas logo consentida
Algo de dúvida arguida
mas logo desfeita
Algo que violou a alma
mas logo com rigor apurado
Algo de assombro que povoa os muros
Algo de aceso punhal que cega as mentes
Algo catastrófico no refúgio dos mitos
que nunca veio à luz nem foi explicado
Vem-me pela porta aberta desse verão doente
ecoando na varanda das páginas desertas
das edições que sangram gota a gota
nas enfermarias do acontecer
(de ontem
de hoje
de amanhã
de sempre)
e adquire uma velocidade assustadora
Porque a luz é forte e ensurdece
Porque o agitado do mar escurece
Porque chega o vento e exerce
o poder de lançar a espuma
contra as estrelas adormecidas
Porque a poeira da rua enegrece
as vestes nos varais abandonados
Porque é cedo e todos sabemos que tarda
Um novo ciclope no horizonte aparece
Os corpos voam sobre os arranha-céus
Porque a exausta carne se desprende
dos ossos ante petardos de sal
Nada sei além do que me contam
as furiosas páginas dos diários mudos
Morreu o Chefe de Reportagem
E ficamos todos tristes
A penumbra da noite avança pelo amanhecer
A neblina é densa e os automóveis
entram em choque de faróis apagados
Queremos uma pauta
um roteiro qualquer
Não o que leve ao esclarecimento
de todas as culpas
Não buscamos desvendar o impossível
Queremos uma pauta
um caminho (por exemplo)
Que comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga com a listagem para as horas de lazer
Que enumere os chopes de todos os botequins
Que reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano
Que forneça o mais seguro boletim meteorológico
Que informe o que se passa nos cinemas
Que esconda os dejetos lançados sobre os monumentos
Que estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras
Que abra os corações aos ritos do candomblé
Que dê verso às canções dos trios-elétricos
Que vista a mortalha dos foliões de todos os dias
Que prepare o espírito de todos para o Carnaval
o curso luminoso
de cada signo morto
perfurando o arenoso
das páginas desertas
bobinas de horror
manchas de tinta fresca
chumbo e insone rastro
Chorarei então
por entre os escombros
da edição matutina
(Salvador, 22 de janeiro de 1982. In "A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior"; Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996).
Expressionismo de Sante Scaldaferri, pintor da Geração Mapa |
AS FAMOSAS NOITES BAIANAS DOS ANOS 50/60
(Memórias de Luiz Carlos Facó)
Sandoval resolveu intercalar os shows e apresentações de variedades com performances de strip-tease. "A plateia ficava enlouquecida com as mulheres nuas. Isso acabou se tornando o ponto alto na fase decadente do Tabaris", conta o diretor de teatro Manoel Lopes Pontes, freguês da casa nos anos 60. Sandoval também abriu espaço para shows de transformistas. Um deles, Carlan, é também personagem dos anais do Tabaris por suas imitações vocais e corporais de Dalva de Oliveira.
Cine Guarany, em cujo lado esquerdo, ao fundo, ficava o Tabaris...no Tabaris o som é que nem o Bee Gees, dancei comuma dama infeliz, que tinha um vulcão nos quadris...Por Edy Star* (11/09/2006) Ali na Praça Castro Alves, atrás do `Guarani´, estava o ‘Tabaris Nigth Club’! Era maravilhoso! Era o ‘cabaret’ de Salvador... Na porta uma placa dizia: 'Rigorosamente proibido a entrada de menores de 21 anos'... Mas assisti ali vários shows e bailes, entrando pela porta lateral que dava pro Curriachito, graças aos seguranças e garçons amigos de Rui Benfica... Lá dentro a típica decoração art-decô dos anos 40: ao fundo uma grande orquestra afinada, com maestro, todos de 'smoking'... Cantores (que também atuavam nas Emissoras de Radio) e atrações, todos elegantíssimos.. Pelo salão as mesas de clientes, de paletó e gravata, com as mulheres, deusas perfumadas e arrumadas, vestidas de longo, algumas se diziam estrangeiras: polacas, argentinas, francesas... E no centro, a pista de dança, onde se apresentavam as atrações do show... Ah, o Tabaris... No Curriachito, um beco ao lado do teatro y do Tabaris, vivia, e vive ainda, o costureiro Rui Benfica, que tinha uma 'amiga' altíssima e magrinha chamada Cuquita, engraçadíssima e sensacional, que fazia imitações de Célia Cruz, meu primeiro contato com a minha ‘reina de la salsa’. Dos artistas dali, me lembro de Deni Moreira, Ray Miranda, e muito da Terezinha Silva, uma mulata linda, corpulenta, com uma voz imensa, extraordinária com seu vestido de veludo tomara-que-caia, e que tinha 'caso' com a porteira, uma tal de Rosa, que todas as noites punha comida pras.. baratas!... Terezinha terminou indo cantar em Marrocos e num se soube mais dela. E do Evandro de Castro Lima? Sim, aquele que veio a ser um grande carnavalesco no Rio de Janeiro... As porradas... Evandro de maiô de vidrilho e paitês, cantando, fazendo de vedete, e quando alguém o chamava de “viado” ele se aproximava da tal mesa, e de repente estava armado o auê! Dava porrada em todo mundo e acabava o show! Era um corre-corre, e não tinha 'deixa-disso' que segurasse! Ele era de família ‘bem’, daquela turminha da Barra, junto a Bolinha de Cristal e Chiquito Bengalinha, os mais chiques gays daquelas décadas em Salvador... Ah, o Tabaris do Sandoval... E os bailes de Carnaval no Tabaris? Uma loucura.. Muitas mulheres e algumas bichas de maiô (inclusive o Ruy..), os homens enlouquecidos, quilômetros de serpentinas, toneladas de confetes, e muita, muita, muita, lança-perfume! Na frente do Tabaris estava o Teatro Guarani, onde assisti Dulcina, Odilon e Conchita de Morais, em ‘Chuva’, e muito teatro de revista de Walter Pinto, que virou cinema trazendo o cinemascope a Salvador (quando inaugurou, tinha no hall um painel lindo de Caribé), mas foi decaindo, o transformaram até em Cine Glauber Rocha.. Num teve jeito.. Hoje é uma das vergonhas do centro de Salvador.. Na pracinha junto ao teatro, e na frente da entrada do Tabaris instalaram o Bar e Restaurante Cacique, onde durante a tarde a juventude toma guaraná, e à noite os intelectuais bebiam cerveja ou conhaque... Também não vingou... O Tabaris, como aconteceu em todo Brasil com as casas noturnas desse gênero, num resistiu ao avanço do progresso e da televisão, e também foi decaindo, fechou definitivamente em 1968, já num existe mais... A pena, é que eu nem sei o fazem agora naquele espaço maravilhoso, de sonhos e grandes noitadas... Me informam que é MAIS UM espaço cultural... Enfim... *Edivaldo Souza, conhecido pelo nome artístico de Edy Star, nascido em Juazeiro (BA), em 1938, é um cantor, compositor, ator, dançarino, produtor teatral, apresentador de televisão e artista plástico. Iniciou sua carreira na adolescência, participando do programa A Hora da Criança, na Rádio Sociedade da Bahia. Depois de adulto, trabalhou em vários setores de representação artística, sempre mantendo um estilo debochado, próximo da chanchada, do cabaré e do teatro de revista, suas maiores influências na carreira artística. |
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