domingo, 28 de julho de 2024

TABARIS, FAMOSO TEMPLO DA BOEMIA BAIANA

    Murilo Ribeiro, Baile de Gala no Tabaris Night Club, óleo s/tela
 

TABARIS, SAUDOSA GLÓRIA DAS NOITES BAIANAS

A beleza e o registro urbano e sociocultural, que ressoam, nesta pintura, com seus traços, cores e o exótico de seu figurativismo, saídos da paleta e da imaginação do pintor Murilo Ribeiro, levam-me a fruições de tempos de juventude e travessa boemia, de música e dança, cujo ardor tinha na poesia seu mais legítimo carbono. É o que também configuram os versos deste soneto, que vai abaixo. Saudades do Tabaris Night Club, de fins dos anos 50 e inícios dos 60, com seus músicos, percursionistas e bailarinas! (Muito obrigado, excelso artista plástico).

NOITE DE ESTRELAS PRATEADAS
A Nino Guimarães (boêmio), in memoriam

Noite alta, céu risonho,
A quietude é quase um sonho (,,,)
(Cândido das Neves, valsa)

Há um marulho de sombras no meu leito.
A cidade adormece (eu disse um dia...).
Onde a esquina que até me livraria
Dessas noites de chumbo em que me deito?
Hão de dizer que afundo em nostalgia,
Que não tenho durezas de homem feito.
Tenho sonhos fecundos, tenho um peito;
Só não tenho razão, filosofia.
Vou por noites maiores e menores,
Por onde transitaram meus amores,
Em praças de jardim sem flor-de-lis.
Gritam: “Para que servem as manhãs?”
Vejo na porta alguém metido em lãs,
Que me convida a entrar no Tabaris.*

Florisvaldo Mattos. Salvador/BA, manhã de 26/08/2015. In "Estuário dos dias e outros poemas", Caramurê, p. 127, 2016).
*Tabaris Night Club: casa noturna, ao estilo de cabaré com música e dança, que funcionou em Salvador, de 1933 a 1968.

Glauber Rocha (1939-1941). Foto captada por Mecenas Salles

GLAUBER ROCHA NO TABARIS

Florisvaldo Mattos

Recordo conferência que pronunciei, uma noite, no auditório da Biblioteca Pública da Bahia, no bairro dos Barris, durante seminário promovido pela Fundação Pedro Calmon, sobre o tema geral de “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, sendo moderador seu presidente, o hoje saudoso historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, que me escalou, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, para abordar “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária", que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50-60.

É desta experiência que destaco excertos, a partir da cogitação de que houve um tempo, nesta Cidade do Salvador, em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, a boemia literária e artística tornava-se um refúgio propício à fruição do intercâmbio cordial das ideias, através das quais muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Em 1958, já não mais se falava dessa espécie de convivência civilizada, com este fulcro, mas, sabe-se, que, a partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo, no Recôncavo, e a consequente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau. Nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Octávio Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes.

Nesta atmosfera de sonhos e esperanças, ingresso na Faculdade de Direito, em 1954, onde começo, pouco depois, a publicar poesia na revista Ângulos, então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, e, por aí, concidentemente, venho integrar o grupo nuclear da mais adiante chamada Geração Mapa. Jamais hei de esquecer o encontro que me lançaria nessa caudal de projetos, vistos na época como prova de audácia juvenil. Em fins de 1956, o Nº 11 da revista Ângulos estampava um poema, de minha autoria, que liricamente se resumia num hino telúrico à mítica Estrada de Ferro de Ilhéus, que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau. No início das aulas março de 1957, estava eu, certa manhã, sentado num dos bancos do hall da faculdade, quando vieram me avisar que procuravam por mim na portaria. Saio para o umbral e me deparo com alguns rostos adolescentes. Logo, um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer o autor do poema "Composição de ferrovia", para nós o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o cômico gesto. Nome do porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida a integrar o grupo que costumava reunir-se em sua casa, para discutir uma quase infinita pauta de inquietações e aspirações modernistas.

Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, em foto de 1976 (Salvador)

Com esse fraternal convite de Glauber, logo me associei ao grupo, engajando-me na saga de suas cogitações editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de projetos, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo, mas não parou aí. Em julho de 1958, faltando-me apenas cinco meses para que obter o diploma de bacharel em Direito, de novo me aparece Glauber Rocha, na faculdade, para me lançar em nova aventura. Agora, confessava que recebera a incumbência de me indicar para compor a Redação, do Jornal da Bahia, novo veículo que se lançava, com uma bateria de aspirações e inovações, para competir e sair vitorioso ante qualquer dos concorrentes, que por décadas atendiam ao mercado baiano da comunicação social. Levado por ele, fui a uma reunião com as altas chefias do novo órgão, saindo dali, mesmo formado em Direito, como para ma fatalidade, a de ser jornalista para toda a vida.

Como então tempos de franca liberdade adubavam a vida boêmia, impondo que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos, entre os quais eram então os mais frequentados: a Sorveteria Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo Azul, de moldura existencialista, o Restaurante Porto do Moreira, na Rua do Cabeça, e o Bar Brasil, na Praça da Sé. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade de um exército de boêmios, na Praça Castro Alves, a uns dez metros da estátua do poeta, junto à balaustrada sobre a Ladeira da Montanha. Nesse tempo, a noite era realmente criança e aconselhava outros pousos, desde que ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-Três”, na Ladeira da Montanha, a "Casa da China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris Night Club, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não somente as de remotos coronéis do cacau.

E é aqui que retorna a figura de Glauber Rocha, agora como protagonista de episódio, tão cômico quanto surrealista. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento aos que compunham a equipe de sua inaugural Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que cabia a nós, como atores iniciantes nas façanhas do jornalismo, então apelidados de focas: eu, ainda estudante da Faculdade de Direito, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia. Pegamos o dinheiro curto no caixa, à tardinha e à noite, alegres e felizes, marchamos todos para a realização de um sonho: estrear no Tabaris.

Cinco de Mapa: João Ubaldo, Glauber, Calá, Sante e Paulo Gil

Lá, como atração maior, na ocasião, apresentava-se um balé formado por dançarinas loiras e morenas, quase sempre argentinas, de corpo torneado, vestindo maiô e oferecendo à plateia o repertório musical da moda, que se traduzia em bolero, mambo, rumba, conga, tango e samba, ao som de uma afinada e buliçosa orquestra de sopro, a maior parte composta de músicos pertencentes à Filarmônica da Polícia Militar. Era comum nos intervalos, como parte da atração, essas bailarinas virem às mesas, conversar, beber e até dançar com frequentadores. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e todos bebendo, saímos alguns para dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, por volta da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente irrequieto, diferente do normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar contra o que considerava inaceitáveis excessos.

De cenho fechado, mais que de repente, o futuro grandioso cineasta sobe na mesa e, em pé, põe-se, de lá de cima a bradar, possesso:

“Isto é um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”

E, em tom de execração eclesiástica, repete por mais vezes a sentenciosa frase:

- Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!, com que deixa atordoados as moças bailarinas e os companheiros, em volta, para então, entre o sério e o trocista, atendendo as ponderações e os clamores e ostentando no rosto um sorriso janota, descer da mesa, sob estrondosa gargalhada, como protagonizasse uma comédia cinematográfica.

Glauber, como a enquadrar imagem, com uma câmera na mão


ODE, QUASE ELEGIA, ESCRITA EM JANEIRO DE 1982


A EDIÇÃO MATUTINA

                                            À memória de Glauber Rocha, artista,

                                            amigo e companheiro de jornal


Florisvaldo Mattos

Nada sei além do que me contam

os hebdomadários perseguidos

os diários desaparecidos

os livros burocraticamente censurados

os discursos jamais pronunciados


Muito

                        de dor enclausurada

                        de raiva contida

                        de memória desesperada

Muito

 

                        de petrificado esterco

                        de martírio indevassado

                        fel de carcomida flor


Como em toda experiência humana

Como em toda verdade proclamada

Há a marca indelével do sofrimento

nas páginas enfurecidas


Nada sei além do que me contam

relatórios

encimados por tipos de caixa negros

vomitando

pelas janelas dos escritórios

pelos pátios dos colégios

pelos verdes

gramados dos jardins municipais

pelas oficinas mecânicas

pelos bares

pelas praias e estádios superpovoados

pelos ônibus

                        pelos trens

                                         pelos aviões

e navios que levam petróleo

pelo mar                                            

por todas as estradas que começam na infância


               Tudo o que o chão calou e o ar esqueceu

                Tudo o que a água afogou e o fogo torrou

                Tudo o que o sol escondeu e a lua gelou

                Tudo o que o dia borrou e a noite ofendeu


Por esta janela escancarada diante do mar

com o horizonte lantejoulado de nuvens claras

na manhã de um dezembro moribundo

rajadas de azul me trazem a história de tudo

estampada nas páginas em fúria

onde não há nenhum signo gráfico

nenhum nome

somente linhas de sangue

                                            vergonha e desespero

                        Algo lido não sei onde

                                        mas logo esquecido

                        Algo escrito não sei onde

                                        mas logo apagado

                        Algo de ausência denunciada

                                         mas logo justificada

                        Algo de presença intolerada

                                          mas logo consentida

                        Algo de dúvida arguida

                                         mas logo desfeita

                        Algo que violou a alma

                                         mas logo com rigor apurado

                        Algo de assombro que povoa os muros

                        Algo de aceso punhal que cega as mentes

Algo catastrófico no refúgio dos mitos

que nunca veio à luz nem foi explicado

Vem-me pela porta aberta desse verão doente

ecoando na varanda das páginas desertas

das edições que sangram gota a gota

nas enfermarias do acontecer

(de ontem        

de hoje

                             de amanhã

                                   de sempre)

e adquire uma velocidade assustadora


Porque a luz é forte e ensurdece

Porque o agitado do mar escurece

Porque chega o vento e exerce

o poder de lançar a espuma

contra as estrelas adormecidas

Porque a poeira da rua enegrece

as vestes nos varais abandonados

Porque é cedo e todos sabemos que tarda


Um novo ciclope no horizonte aparece

Os corpos voam sobre os arranha-céus

      Porque a exausta carne se desprende

      dos ossos ante petardos de sal


Nada sei além do que me contam

as furiosas páginas dos diários mudos


Morreu o Chefe de Reportagem

                  E ficamos todos tristes

A penumbra da noite avança pelo amanhecer

A neblina é densa e os automóveis

entram em choque de faróis apagados

Queremos uma pauta

um roteiro qualquer

Não o que leve ao esclarecimento

de todas as culpas

Não buscamos desvendar o impossível

Queremos uma pauta

um caminho (por exemplo)


Que comece pelos itens das lojas de brinquedos

prossiga com a listagem para as horas de lazer

Que enumere os chopes de todos os botequins

Que reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano

Que forneça o mais seguro boletim meteorológico

Que informe o que se passa nos cinemas

Que esconda os dejetos lançados sobre os monumentos

Que estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras

Que abra os corações aos ritos do candomblé

Que dê verso às canções dos trios-elétricos

Que vista a mortalha dos foliões de todos os dias

Que prepare o espírito de todos para o Carnaval

 E assim seguindo apenas

o curso luminoso

de cada signo morto

perfurando o arenoso

das páginas desertas

bobinas de horror

manchas de tinta fresca

chumbo e insone rastro


Chorarei então

por entre os escombros

da edição matutina


(Salvador, 22 de janeiro de 1982. In "A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior"; Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996).


Expressionismo de Sante Scaldaferri, pintor da Geração Mapa



AS FAMOSAS NOITES BAIANAS DOS ANOS 50/60



(Memórias de Luiz Carlos Facó)

 
Dado o seu interesse em relação à vida noturna de Salvador, no meado do século passado, descrevo-a como sendo uma caixa de Pandora. Cheia de surpresas, superlotada de boêmios, notívagos, vagabundos, veados, proxenetas, cafetinas, intelectuais, aproveitadores, uma juventude ansiosa, sobretudo de mulheres-damas bonitas, bem falantes, escoladas e mercenárias. Oriundas de Sergipe, Pernambuco, Ceará, as nacionais, e de muitas estrangeiras de origem paraguaia, argentina, uruguaia, francesa e tcheca. Chamou-a, o brilhante jornalista, criminalista, escritor, antes de tudo boêmio, Jehová de Carvalho, de noite inacabada da “cidade que não dorme”, que eu arremato afirmando, que ela só descansava na semana santa, quando os homens escondiam suas vergonhas e as mulheres fechavam a tampa dos seus baús, numa atitude respeitosa ao sofrimento de Cristo, agregada ao medo de cometerem o pecado da luxúria (mais uma vez) e assim perderem o direito de desfrutarem das prometidas benesses apregoadas do reino celeste.
A esbórnia estava fincada no centro histórico da cidade. Lá sua bandeira tremulava nas instalações do Tabaris Night Club, outrora Cassino Internacional Tabaris, na Churrascaria Líder, mais conhecida por Ide, no Varandá, no 63, da Ladeira da Montanha, no Rumba Dancing, no Anjo Azul, n´O Abaixadinho, Belvedere, Galeria 33 (hoje 13), O Guaciara, Rio Verde, O Cacique, na Casa de Maria da Vovó, e em tantos outros bares, botequins, castelos (puteiros), onde a vida dava asas aos prazeres sob o lema: divirta-se à larga hoje porque amanhã pode ser tarde demais.
No Terreiro de Jesus moravam as francesas, ensinando à mocidade os prazeres do “minete” e do “cunete”, pois eram as únicas que se atreviam, naquele lapso de tempo,  praticá-los, pois as prostitutas locais abominavam tais práticas, por mero preconceito. Mesmo tendo o aval do grande professor (de Medicina Legal) Estácio de Lima, que considerava tais situações como sublimações do sexo. Dizia ele: “O passar de língua numa vagina é fazer uma oração. É reverenciar nossa origem. Homenagear o local por onde você e eu passamos ao nascer, com muito sofrimento por parte da parideira, ao mesmo tempo, num paroxismo, com imenso prazer por sabê-lo (eu e você) vivo, gozando de perfeita saúde, apto para mamar e viver.”
O Tabaris e o Anjo Azul eram redutos da classe alta. O primeiro destacava-se pelos espetáculos apresentados pelo cabaretier Mário Príncipe, como Ninon Sevilla, Maria Antonieta Pons, ambas rumbeiras, estrelas de filmes mexicanos, a orquestra de Xavier Cugat, os balés de Carlan, Evandro Castro Lima e outras atrações nacionais e internacionais, além, é claro, das prostitutas, muito bem vestidas, predadoras à procura de uma caça muito bem fornida de grana e status social. Já o Anjo, Azul distinguia-se pela fidalguia de trato dispensado aos seus frequentadores. Seus habitues eram mulheres desquitadas, homens em busca de aventuras, artistas como Carlos Bastos, que decorou o local, jornalistas, poetas, escritores ou pretensos. Lá, comia-se e bebia-se bem, sobretudo o drink Xixi de Anjo, especialidade da casa.
O Rumba, primava por oferecer dançarinas (pagas) aos que desejavam aprender a arte. Por lá fervilhavam estudantes, jogadores de futebol, pequenos lojistas, representantes comerciais. A dançarina mais famosa que por lá passou foi Maria da Vovó, que depois de curto tempo, dado o sucesso que fez, tornou-se cafetina e abriu seu “puteiro” nas imediações de São Bento. Ganhava tanto dinheiro que se dava ao luxo de sustentar Sandoval, seu amásio, e bancar suas aventuras comerciais: a compra do Tabaris e, quando esse fechou, do Varandá.
A Churrascaria Ide – cuja dona Alaíde, que, algum tempo depois, se casou com um Capitão da Polícia Militar, então ajudante de ordens do Secretário de Segurança Pública, Graça Lessa, no governo Balbino – era pura descontração. Bebia-se ali uma boa cerveja, um Cuba Libre “retado”, o drink Leite de Camelo, boas champanhas, Macieira 5 estrelas. Uísque, caipirosca e caipirinha não estavam na moda, por isso mesmo eram ignoradas. Contudo, a atração do local residia na seleção de suas frequentadoras. Eram as putas mais bem vestidas e sensuais de Salvador. Quase todas, estrangeiras ou de outros estados do Brasil.
Como os bondes só funcionavam até as vinte e três horas, todos os que estavam na baderna só a abandonavam quando o serviço de transportes era retomado, às cinco horas da manhã, ou quando acordavam felizes depois de usufruírem de uma belíssima noitada, altissimamente onerosa, dado os muitos cruzeiros despendidos, passada nos braços de uma mulher árdega e mercenária, mas gostosa e senhora de todos os segredos da libidinagem, como mandam os figurinos.
Felizes eram os que despertavam sem as demandas do pagamento. Para isso era necessário ter satisfeito a parceira nos mínimos detalhes daquele coito, àquela época, estigmatizado pela sociedade retrógada e preconceituosa.
Assim eram as noites baianas. Descompromissadas com a seriedade. Mesmo assim, propiciadoras de amizades impostergáveis. Casadas com a sacanagem, com a sensualidade, com o sexo. Elas tinham o cheiro de esperma e do nauseante odor de “xoxotas” desgastadas pelo uso intenso, continuado e recobertas de suor. Mas quem se importava com esses meros detalhes? O negócio mesmo era curtir e rezar para que não fossemos surpreendidos por uma blenorragia, sempre curadas pelo mago Dr. Venceslau Pires da Veiga.
Praça Castro Alves, nos anos 40, com o Cine Guarany e os bondes


O TABARIS NIGHT CLUB DE PRISCAS ERAS
(Ao lado do Cine Guarany, 1960) 


(Fonte: Blog do Facó)

Durante a década de 60, muitos artistas continuaram indo ao Tabaris só para curtir. É o caso de Jamelão - "Um bregueiro de primeira", afirma Grumberg - e Ângela Maria, ambos já consagrados na época. Sobre Ângela, o radialista narra um episódio que integra o rol de "causos" do cabaré. Naquela época, a cantora vinha com frequência a Salvador para participar de um programa da TV Itapoan patrocinado por uma marca de linhas de costura. "Quando dava tempo, ela, que era boêmia, vinha ao Tabaris", relata. Numa dessas noitadas, um valentão conhecido como Dilsão, famoso por suas brigas e pelo corpo avantajado que possuía, disse alguma liberdade no ouvido da cantora. "Rapaz, ela enfiou a mão na cara dele com vontade, um tapão daqueles! Aí, veio o pessoal do deixa disso e acabou com o negócio", conclui.
Mas as principais figuras do Tabaris de então eram de fato a prata da casa. Em especial, os dançarinos Vadinho Telecoteco e AE (Aderaldo, seu eterno parceiro), capazes de eletrizar a pista com seus passos suingados e precisos; a rumbeira Jambo do Norte, uma morena "cabo verde" que fazia os homens delirar; e a cantora Elisabeth Silva, que se tornou mais conhecida pelo pseudônimo, Elisabeth Al di Lá.
Ao longo de quase uma década, a regência da gandaia no cabaré ficou a cargo do novo proprietário. Desde que assumira a direção do lugar, em 1960, Sandoval Caldas imprimiu seu estilo de fazer a noite. Moreno claro, cabelos encaracolados, de baixa estatura, o que evidenciava seu tórax atarracado, Sandoval é um daqueles personagens lendários da galeria dos boêmios, um clube repleto de histórias insólitas, muitas das quais difíceis de serem provadas.
O que se sabe com certeza a seu respeito é que ele era o mais novo mestre-de-cerimônias de uma festa que durava há cerca de três décadas e que insistia em continuar. "Sandoval era o rei da noite aqui em Salvador naquele tempo", destaca o estilista e apresentador de televisão Di Paula, que também deu suas circuladas pelo cabaré e chegou a apresentar alguns espetáculos de humor e variedades na casa.
Misto de cantor, empresário e showman, sempre encalacrado em trajes cheios de extravagância, Sandoval abria a noite no cabaré usando o mesmo bordão criado por Príncipe Mário, mas omitindo a frase final: "Boate Tabaris, aqui o show começa quando você chega". "Ele era uma figuraça. Canastrão, cheio de pose, ficava mais ainda quando estava cantando, gostava de falar pelos cotovelos, tomava todas", descreve Grumberg. Foi de Sandoval a ideia de apimentar a noite na casa, trazendo algo que era novidade no circuito da boemia e acrescentando um fôlego a mais para o cabaré, que já apresentava sinais bem evidentes de declínio.

Sandoval resolveu intercalar os shows e apresentações de variedades com performances de strip-tease. "A plateia ficava enlouquecida com as mulheres nuas. Isso acabou se tornando o ponto alto na fase decadente do Tabaris", conta o diretor de teatro Manoel Lopes Pontes, freguês da casa nos anos 60. Sandoval também abriu espaço para shows de transformistas. Um deles, Carlan, é também personagem dos anais do Tabaris por suas imitações vocais e corporais de Dalva de Oliveira.
Os shows do Tabaris, sob a batuta de Sandoval, começavam por volta das 2h da madrugada...


Cine Guarany, em cujo lado esquerdo, ao fundo, ficava o Tabaris

...no Tabaris o som é que nem o Bee Gees, dancei com 

   uma dama infeliz, que tinha um vulcão nos quadris...



Por Edy Star*

(11/09/2006)


Ali na Praça Castro Alves, atrás do `Guarani´, estava o ‘Tabaris Nigth Club’!
Era maravilhoso! Era o ‘cabaret’ de Salvador... Na porta uma placa dizia: 'Rigorosamente proibido a entrada de menores de 21 anos'... Mas assisti ali vários shows e bailes, entrando pela porta lateral que dava pro Curriachito, graças aos seguranças e garçons amigos de Rui Benfica... Lá dentro a típica decoração art-decô dos anos 40: ao fundo uma grande orquestra afinada, com maestro, todos de 'smoking'... Cantores (que também atuavam nas Emissoras de Radio) e atrações, todos elegantíssimos.. Pelo salão as mesas de clientes, de paletó e gravata, com as mulheres, deusas perfumadas e arrumadas, vestidas de longo, algumas se diziam estrangeiras: polacas, argentinas, francesas... E no centro, a pista de dança, onde se apresentavam as atrações do show... Ah, o Tabaris...
No Curriachito, um beco ao lado do teatro y do Tabaris, vivia, e vive ainda, o costureiro Rui Benfica, que tinha uma 'amiga' altíssima e magrinha chamada Cuquita, engraçadíssima e sensacional, que fazia imitações de Célia Cruz, meu primeiro contato com a minha ‘reina de la salsa’.
Dos artistas dali, me lembro de Deni Moreira, Ray Miranda, e muito da Terezinha Silva, uma mulata linda, corpulenta, com uma voz imensa, extraordinária com seu vestido de veludo tomara-que-caia, e que tinha 'caso' com a porteira, uma tal de Rosa, que todas as noites punha comida pras.. baratas!... Terezinha terminou indo cantar em Marrocos e num se soube mais dela. E do Evandro de Castro Lima? Sim, aquele que veio a ser um grande carnavalesco no Rio de Janeiro... As porradas... Evandro de maiô de vidrilho e paitês, cantando, fazendo de vedete, e quando alguém o chamava de “viado” ele se aproximava da tal mesa, e de repente estava armado o auê! Dava porrada em todo mundo e acabava o show! Era um corre-corre, e não tinha 'deixa-disso' que segurasse! Ele era de família ‘bem’, daquela turminha da Barra, junto a Bolinha de Cristal e Chiquito Bengalinha, os mais chiques gays daquelas décadas em Salvador...
Ah, o Tabaris do Sandoval...
E os bailes de Carnaval no Tabaris? Uma loucura.. Muitas mulheres e algumas bichas de maiô (inclusive o Ruy..), os homens enlouquecidos, quilômetros de serpentinas, toneladas de confetes, e muita, muita, muita, lança-perfume!
Na frente do Tabaris estava o Teatro Guarani, onde assisti Dulcina, Odilon e Conchita de Morais, em ‘Chuva’, e muito teatro de revista de Walter Pinto, que virou cinema trazendo o cinemascope a Salvador (quando inaugurou, tinha no hall um painel lindo de Caribé), mas foi decaindo, o transformaram até em Cine Glauber Rocha.. Num teve jeito.. Hoje é uma das vergonhas do centro de Salvador..
Na pracinha junto ao teatro, e na frente da entrada do Tabaris instalaram o Bar e Restaurante Cacique, onde durante a tarde a juventude toma guaraná, e à noite os intelectuais bebiam cerveja ou conhaque... Também não vingou...
O Tabaris, como aconteceu em todo Brasil com as casas noturnas desse gênero, num resistiu ao avanço do progresso e da televisão, e também foi decaindo, fechou definitivamente em 1968, já num existe mais... A pena, é que eu nem sei o fazem agora naquele espaço maravilhoso, de sonhos e grandes noitadas...
Me informam que é MAIS UM espaço cultural... Enfim...


*Edivaldo Souza, conhecido pelo nome artístico de Edy Star, nascido em Juazeiro (BA), em 1938, é um cantor, compositor, ator, dançarino, produtor teatral, apresentador de televisão e artista plástico. Iniciou sua carreira na adolescência, participando do programa A Hora da Criança, na Rádio Sociedade da Bahia. Depois de adulto, trabalhou em vários setores de representação artística, sempre mantendo um estilo debochado, próximo da chanchada, do cabaré e do teatro de revista, suas maiores influências na carreira artística. 




       Walter Queiroz, cuja música já enriqueceu mais de uma novela






 

Nenhum comentário:

Postar um comentário