MÚLTIPLO FERNANDO DA ROCHA PERES
Florisvaldo Mattos
Sou
e permaneço admirador confesso de Fernando da Rocha Peres, companheiro com quem
trilhei sendas pelos campos da poesia e da arte, sempre presente nas datas
redondas de aniversário, desde tempos inaugurais da lampejante Geração Mapa,
por força de uma frutífera e saudável relação de convivência. É assim que, em
novembro de 1986, escrevi um poema-homenagem, na data mesma de sua entrada na
curva dos cinquenta anos, em que louvava o “puro amor gregoriano”, que lhe
imprimia na alma a condição de prestigioso pesquisador da vida e obra de
Gregório de Mattos, e também a sua leal preferência por vinhos de alta cepa e
origem. Peres jamais foi, na essência, um boêmio, mas suas papilas nunca se
recusam a digladiar com frequentes desafios sensoriais, especialmente gustativos.
Neste
momento, vejo-me impelido pela vontade de transcrever adiante o aludido poema,
que imaginei e redigi na fruição de um plácido fim de semana, ao sopro de suave
brisa, na marinha e bucólica Arembepe, pérola sensorial da Costa Verde baiana,
que ainda guardava, no asfalto, praças e areias, rastros de meditativos hippies
que lhe permitiram lumes internacionais. Escrevi e fui levar o poema ao novo
cinquentão, com o privilégio de vê-lo imediatamente reproduzido pela nossa hoje
saudosa poeta Myriam Fraga, na coluna “Linha D´Água”, que mantinha semanalmente
no Caderno 2, do jornal A Tarde.
AO ÓCIO
Deus
nobis haec otia fecit.
(Virgílio,
Bucólicas)
(Libações
a Fernando da Rocha Peres)
Em Peres que na curva dos cinquenta
verdeja e, dedilhando o clavicórdio,
relumbra ao puro amor gregoriano,
não daquele inventor do calendário,
mas do nosso, mais santo e venerado,
que é como a gente trata o ser profano,
quero saudar com vinho e outros goles
a seara de estudo com que vinga
o passado de um nome tão presente
e mais do que isto esculpe pertinências
que Adão não foi capaz de nos legar.
E pelo homem devoto de outra espécie
que é das letras divino sacerdócio
mui para sempre bebamos, pelo ócio.
(Salvador,
27 nov.1986)
Em
1996, quando ele já navegava pelas águas dos 60 anos, em artigo publicado no
caderno A Tarde Cultural, pela alta
nobreza do porte e das madeixas e pelo tanto com que a altiva e serena
aparência se assemelhava, comparei-o à figura de um gentil-homem saído da
paleta maneirista de El Greco, na obra intitulada O Enterro do Conde de Orgaz (1586-88). Em 2006, passei a vislumbrar
em Peres, poeta agora setentão, caminhada de amadurecimento poético comparável
à de W. B. Yeats, cuja poesia avultava em elocução técnica e qualidade, quanto
mais o irlandês avançava na idade. Mas, antes, em 2001, aportando ele a nau de
sua odisseia literária na ilha dos 65 anos, eu, amante avulso do Jazz,
sabendo-o fã, fiel e admirador do trompetista Chet Baker, escrevi um poemeto em
versos curtos e chistosos, em saudação a esta sua surpreendente liberalidade
auditiva.
VESTÍGIOS
DO JAZZ
A
F. Peres, fã de Chet Baker
Assim: Chet
arremete
seu trompete,
som de escrete,
nem que chova
canivete.
(SSA/BA, 10 ago.2001)
Em
2011, quando completava sólidos 75 anos de idade, saudei-o com um sonetinho, de
toque burlesco, em redondilhas, que iria constar de meu novo livro (Estuário dos dias e outros poemas),
lançado em abril de 2017, p. 207.
LOAS
A FERNANDO PERES
Peres nos setenta e cinco
É só iluminação.
É vinho deixando um vinco
De afetos no coração.
“Bula Pro Nobis”
na praça
É prece bem resolvida,
Reúne verdade e graça
Com Urânia, prêmio da vida.
Filhos e netos queridos
Fazem o bardo sorrir.
Cabelos brancos descidos
E a alma predestinada
Na faina de resistir
Aos mercadores do nada.
Quando
o tempo luminosamente o assentou no mármore dos 80 anos de idade, entrevi nos
cabelos brancos do bardo Fernando da Rocha Peres o lume de um astro a derramar,
de tão veementemente clara, forte luz sobre vários campos da cultura baiana e
da atividade universitária, mesmo já aposentado, como professor, historiador,
pesquisador, administrador cultural, amoroso pater famílias, símbolo de fraternidade e um resplendente enólogo,
a quem a olímpica Hebe, lépida e risonha, a um simples sinal, seguramente o
saudava, passando-lhe fulgentes taças de branco ou tinto, oriundos do Douro ou
do Alentejo, na proa de sua nau gustativa.
A
esta altura, não poderia olvidar o momento em que o conheci, ao ver e ouvi-lo
declamar, solene, com impostada e ritmada voz, versos modernistas, creio que de
Carlos Drummond de Andrade, uma de suas maiores reverências literárias, num dos
espetáculos de poesia dramatizada sob o título de Jogralescas, no
auditório do então Colégio da Bahia (depois Central), feito que na Bahia de
hoje pode soar como arqueologia cultural, mas que eclodia, com tinturas de
escândalo, numa época ainda dominada pela renitência da cultura acadêmica e
consequente culto da poética passadista, ainda ecoando por esquinas, bares e
cafés sonetos de tintura parnasiana e simbolista, no já adiantado liberalizante
pós-guerra.
Dias
depois, estou na Gruta de Lourdes, um frequentado café-pequeno vizinho da
Livraria Civilização Brasileira, numa Rua Chile de hábitos ainda pretéritos,
dito Café de Bernadete, como era assim também chamado, passagem obrigatória de
intelectuais, políticos e profissionais liberais, entre eles jovens que
sonhavam com poesia, literatura, artes plásticas, teatro, cinema e jornalismo,
quando, me aparece o citado jovem drummondiano, interessado em que conhecesse
algumas de suas recentes criações. Lá estava, em pé junto ao balcão, Fernando
da Rocha Peres, alto, esguio, magro, de tez clara, negras e vastas melenas,
membro de uma geração, como ele costuma dizer, “criativa e briguenta”, a
mostrar-me poemas ainda inéditos, que, após escoimados do que lhe parecesse
imperfeito, iriam aparecer em seu livro de estreia, Diluviano, que ele, espontaneamente, excluiria da sua bibliografia
- de que me fico até hoje a perguntar porquê.
Mesmo
espantado com a deferência, passei a ler a série de poemas que ele oferecia à
minha frívola apreciação. E logo me pus a ler versos marcados por elocução
contida e consciente, no ensejo de articular pensamentos, palavras e imagens,
para expressar emoção que atinja o leitor do poema, através de procedimentos,
cuja entonação me fazia vislumbrar ali sinais de perspicaz adesão a princípios
estéticos que poetas da chamada Geração de 45 proclamavam e aplicavam, e muito
se aparentava com os enunciados do pernambucano João Cabral de Melo Neto, que,
na construção de objetos verbais, se tornaria estrela máxima do longínquo
Francisco de Quevedo e do já então saudoso Paul Valéry.
E
foi o que mais adiante se confirmaria, na publicação de seus primeiros livros, com
um lastro de seriedade, reflexão e estudo, que embasaria não somente a sua
bibliografia de poeta, mas também a sua longa e vasta atividade de professor,
historiador, ensaísta, articulista e conferencista, com que muito tem
contribuído para o enriquecimento da cultura baiana.
Incorreria
em redundância fixar-me na expressão de Peres apenas como um ator da cena
cultural, tão amplo é o reconhecimento do papel que desempenhou e desempenha,
mas não posso abstrair a sua importância como integrante da Geração Mapa, na
qual figurou como um de seus mais ativos protagonistas, principalmente na
criação de alguns de seus projetos, destacando-se dois no plano editorial: a
revista Mapa e o prestigioso selo das
Edições Macunaíma. Assim como não podem ser esquecidos frutuosos momentos de
convivência fraternal, em reuniões diversas, seja na casa de Glauber Rocha,
líder e guru do grupo, seja no anfiteatro de faculdades e salas de cinema, e
até mesmo na Sorveteria Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda, onde em fins
de tarde, entrando pela noite, o grupo se reunia para consumir, não apenas o
tradicional sorvete, mas também o seu milk-shake
com bolinhos, e a conversa podia varar horas até o horário do último bonde,
tendo em Vivaldo Costa Lima, então mais dentista profissional do que competente
professor e antropólogo, um aderente mais velho, por todos admirado, que se
incorporava ao grupo, dando mais direção e brilho às cordiais e venturosas
conversas.
Além
de professor, historiador e articulista das coisas da Bahia, o poeta mais
adiante escreve crônicas do cotidiano, nas quais, ácido e mordaz, semelha um
aborígene, saindo de mapas e florestas, armado de arco e flecha, contra as
mazelas de uma política sociocultural encimada por volutas burocráticas e
publica livros, desde que aqueles versos
estreantes, muitos dos quais, como já dito, dispensados, já denunciavam algo
promissor, além de fino humor, “um sorriso para dentro”, como flagrou,
aflorando uma de suas marcas, a ensaísta italiana Luciana Stegagno Picchio, no
prefácio a Mr. Lexo-Tan e outros poemas,
que será um marco no trajeto de sua poesia: o zelo e vigilância de uma
consciência poética, de corte técnico ao mesmo tempo drummondiano e cabralino,
em que se assentam a sua fatura lírica e sua inclinação para um calculado despojamento,
que higienizava poesia, varrendo-a de alaridos rítmicos e signos supérfluos.
Peres sempre foi, no exercício da arte poética, limpo, garboso, seletivo e
indiferente a quem o considerasse esnobe ou idiossincrático.
Aliás, desde principalmente esse Mr. Lexo-Tan, de 1996, o poeta Fernando
da Rocha Peres passa a merecer a atenção da crítica literária e de estudos em
laboratórios universitários, que se presumem vigilantes e de olhos sempre
voltados para a criação verbal, em poesia ou prosa, posto que observa-se, a
partir de então, flagrante transformação, em escala ascendente, da produção
desse poeta, visível no livro que se segue, Febre
Terçã, (2000), também prova incontestável de excelência editorial,
confirmada em duas pequenas obras que então trazia a lume, Arqueopoemas (Edições
Cordel) e Poemas de um Cristão (São
Paulo: Edições Rosari).
Se é notável a subida, mais ainda a
marcha do caleidoscópio. A chave da arrancada situa-se indiscutivelmente no
livro de 1996, onde o mundo dos objetos e das texturas simbólicas se entrelaça
com a memória – do corpo, da mente, da vida, da história - para se exprimir em
metáforas e metonímias, até atingir alturas e névoas na ascendência. Um
indizível traço de original pessoano (outra postura lírica e saudável filiação,
pelas identidades com a cultura portuguesa) ecoa aqui e ali, a advertir que,
por baixo da arcada das palavras, a poesia sugere um persistente trançado com o
tempo, desconhecendo regras que venham impedir o fluxo existencial.
Em sendo signos, tudo pertence a
tudo, “o fato - o fito - o mito - o rito”.
Bate no mato, bate no rato, desvenda a cidade, múltiplas gentes, e faz emergir
a memória. Ilumina os espaços distantes e opacos da infância, dialoga com os
vivos e com os mortos, com ânimo cubista traduz a aparência e perscruta o
interior dos objetos, dá vida aos animais do chão, do ar, da água, viaja pelos
mares, visita lugares, evoca idades e reverencia familiares e amigos; aponta e
exalta obras e artistas – poetas (Pessoa, Camões, Drummond, Murilo Mendes,
Godofredo Filho, amigo e parceiro de fruições gustativas, Gregório de Mattos,
este o ser primordial que alenta suas heresias), músicos (Vivaldi, Beethoven,
Chopin, e até um cult do jazz, Chet
Baker); pintores e escultores (El Greco, Van Gogh, Camille Claudel), nomes da
nacionalidade (Glauber), que bem lhe temperaram a alma e o viver; comunga com
os santos, como cristão, que não sabe se velho ou novo (“marrano, talvez”, cabe
supor). Para mim, ele próprio, um santo gauche,
de fé contemplativa, parado na abóbada de imensa catedral.
Dom Pedro Casaldáliga, que saiu da
Prelazia de São Pedro do Araguaia para prefaciar seus Poemas de um Cristão, enxerga no autor um “poeta e historiador,
culto, erudito e viajado” e penetra nesta poesia “cheia de entrelinhas”, para
descortiná-la “intensamente humana, e humanista”, e, encostando o barco no cais
de um rio próximo de veredas, ressalta virtudes intrínsecas da arte de Peres,
para ele, poeta que elabora uma poesia “com humor, sempre; de irônica
cumplicidade ou de irada sátira. Poesia enxuta, essencial, cabralina”, e até
“um pouco oleiro”, como um Deus de “Criação” – palavra de um estrangeiro,
“segundo a lei”, e de “um bispo rigorosamente ortodoxo, segundo os cânones”.
O
poeta que nunca foi modesto, diga-se, em dúvida de se reconhecer em crise
mística, não dá por menos e manifesta o desejo de ter suas cinzas lançadas “no
encontro do Rio Negro, com Solimões, na Amazônia”. Visivelmente irônico,
completa: “É preciso ser nacionalista. É bom descobrir o mistério da natureza.
Sou da floresta, sagitariano, de Oxóssi, mas necessito de água”, já anunciando
aos desinformados um outro livro, a que dá o iniludível título de Bula Pro Nobis.
De fato, despindo-se cedo das
influências de estreia, marchando sem cicatrizes de reverências e dependências,
Fernando da Rocha Peres sempre deixou sua indelével marca de poeta, expressa
por um zelo de construção, em que a forma, sempre limpa e esculpida, se
incrusta como que no peristilo de uma catedral gótica ou nas arcadas de um
palácio ducal, mas, por cujas colunas, altares, vitrais, frinchas e volutas,
sempre há como fazer passar um sopro de inovação e transgressão, avalizado com
um sinete de linguagem, que é sinônimo
de modernidade, civilização, espiritualidade e garbo. Diante disso, somos
obrigados a pedir-lhe a bênção…
Apenas
pouco mais de um ano de presentear o neto e amigos com uma plaqueta-envelope de
poemas bilíngues (português/italiano, Criancices / Bambinate, com tradução da professora Sylvia La Regina e desenhos de
Sante Scaldaferri), Fernando da Rocha Peres desembarca nas ruas centrais e
antigas de sua Salvadolores, como ironicamente passou a rotular a fundante
capital da Bahia, com mais uma de suas “estranhuras”
em letra impressa -, sobraçando um fulgente livro, tanto pelo imaginativo da
construção poética, quanto pela excelência do conteúdo editorial e gráfico.
Chamou-o
de Fantasiosa Lafímbria – Poema e soneto
onímodo, publicado pelas Edições Égua Dor, ilustrados a crayon e lápis de cor pelo gravador e
escultor Emanoel Araújo. Mais uma obra desse fecundo produtor de livros; com
este, são vinte - 12 de poesia e oito como ensaísta, se respeitarmos a sua
incontida inclinação para a facécia inofensiva e aceitarmos a nunca explicada
decisão de secretamente expurgar de sua bibliografia os dois livros de estreia,
Diluviano, que inaugura sua propensão
para os títulos caprichosos, e Rurais,
ambos de 1965.
Guardadas
as insinuações jocosas do título, montado em invencionices e travessas
peregrinações linguísticas - do clássico para o barroco e deste para o mergulho
nas modernidades do Sinhô Mário e
outras peripécias venturosas do guru de 1922 -, cuja significação, ele, viciado
em redescobertas e labirintos, de avisança
em avisança, insinua, mas não
explica; prefere sair do convívio com as aventuras de sua sábia Lafímbria - virgem e bela, seios duros/
do seu exílio voluntário, com súcubos,
criando orgasmos naturais humanos – porém, surpreendentemente infecunda,
com a sensação de que foi pajeada, em festa de idílio e sátira, como vivente de
múltiplas épocas, quadrantes e raças.
O
ritmo do galope nas andanças, ora em decassílabo, ora falseando o trote das
sílabas, para mais ou para menos, não titubeia em passar da “savorança” lírica, mergulhando no erótico, até no obsceno (“…no banho, aguasilente pura/ caía no seu
colo e vagina eterna, sim, / de penugem negra florestal, deleitosa), em
elocução que alude a desigualdades sociais, presentes nas “variegadas
epidermes” (negras/ brancas, amarelas,
vermelhas e muitas/ mulatinas, mistas, nos desertos e florestas).
Musa
ou medusa, personagem ou mito, mulher feita ou flor menina, princesa de antes e
de depois, Lafímbria é um azougue de feminilidade militante, que vem de longe,
redescobrindo, atravessando e dominando olimpos, reais e míticos, do Oriente
vasto, de contornos camonianos ou pessoanos, até o Ocidente, suplantando mapas
do Velho Mundo manchado de impérios e batalhas, montado “em
cavalos e bestas bravas/ das lonjuras de espanhas e argélias”, às vezes
metida em sedas e tules, às vezes não, até desembocar no Ocidente do Ocidente,
em Amazônias e Recôncavos, para viver, melhor contar e curtir fábulas “entremeadas de golpes hodiernos,/ rapinagens
nos cofres da res pública”. E não
precisamos mais dizer aonde chegamos, “pois
Lafímbria acena e chama das neves/ abismos e distâncias eternas, ventos/
patagônicos, lagos desbundantes, infinitus”.
Não,
não pensem que findou. O “Soneto onímodo” encerra essa primeira parte, mas logo
se abre outra cartorial, de “Apensamentos e Enquadres”, em que, como numa peça
de teatro ou num filme surrealista, de Jean Cocteau ou Buñuel, o “leitor
presumível” é convidado a ajuntar, se quiser, “ao final de alguns dos poemas”, lidos, que são 30, “versos que seguem”, a título de “boa ajuda”; e é tudo que o poeta,
espera: atrelar ao todo de antes a trepidação mordaz da crítica social com
invólucro de sátira, enfeixando a narrativa com uma pergunta:
“Onde
estão os allons enfants… de antanho?”,
para logo finalizar, respondendo: “- Atrás da cannabis, do hip, rap, help./
E tudo fica no pregão, bolsa, giros/ de
mercadistas, globalistas, istos,
istas…”. Pode-se pensar que se trata de um jogo fácil de erudição, mas, na
realidade, se trata de exercício de pessoa culta, que não se perde no vazio das
cogitações inúteis. Ironia, sim, há muita, mas estética em verso, também.
Recordo
que saudei Fernando da Rocha Peres em muitas de suas redondas celebrações de
idade, no momento em que ele engrenava marchas de lúcida maturidade “na curva
dos cinquenta”, anos depois, vislumbrava-o, sessentão, gentil-homem, postado
entre figuras consagradas pelo maneirismo de El Greco; na porta dos 70, louvei
sua decisão de comemorá-los diante das Cataratas do Iguaçu, na companhia de sua
doce Urânia, dos rebentos Daniel e Maria Fernanda e dos netos Paula e João.
Hoje, após dez anos, comparo a sua jornada com a de outro poeta, W. B. Yeats,
que, produzindo uma poesia que já o destacava entre os maiores da língua inglesa,
viu-a ganhar impressionante impulso a partir da maturidade, assomando o pódio
da poesia como um dos maiores do século XX, em 1915, já completados os 50 anos.
O
trajeto de Peres tem semelhanças com o de Yeats, ao atingir um patamar criativo
sempre ascendente, a partir de seus livros Mr.
Lexo-tan e Outros Poemas (1996), Febre
Terçã (2000) e Estranhuras
(2003), mas o baiano não precisou de um Ezra Pound a seu lado, como secretário
particular e leitor preferencial. Subiu a rampa do estrelato sozinho.
MATTOS, Florisvaldo. Academia dos Rebeldes e Outros Exercícios Redacionais. Salvador: ALBA Cultural, p. 350, 2022.
DUAS ESTAÇÕES EM RUY
ESPINHEIRA FILHO
Florisvaldo Mattos
Esses dois artigos sobre a poesia de Ruy Espinheira
Filho foram contemplados com datas e destinos de publicação diversos. O
primeiro serviu de introdução ao livro Poemas
de Amor e Morte – Antologia & Inéditos (Salvador: Assembleia
Legislativa / Academia de Letras da Bahia, 2015 – Coleção Mestres da Literatura
Baiana v. 10), enquanto o segundo funcionou como resenha publicada na revista Poesia Sempre, número 34, Ano 17 (Rio de
Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, pp. 207/215, 2010).
1 - Poeta de claridades
Contando
com mais de quatro dezenas entre livros de poesia, ficção, crônica e ensaios,
desde que começou a publicar, em 1973, Ruy Espinheira Filho é seguramente o
mais editado das recentes gerações de escritores baianos. Não me recordo de
outro nome que tenha atingido esta marca. Ampliando o raio de projeção, não me
parece que haja outro que se compare na geografia de desigualdades da
literatura brasileira. Agora vem-nos o poeta com uma antologia pessoal, que
integra a bem-sucedida Coleção Mestres da Literatura Baiana, nascida e mantida
pelo esforço conjunto da Assembleia Legislativa da Bahia e da Academia de
Letras da Bahia, sob o título de Poemas de Amor e Morte, reunindo 132 de
suas criações, inclusive inéditos.
Diferentemente
das organizadas por críticos, admiradores e outros, suponho que as antologias
pessoais de poesia preservam um toque de mistério em sua compilação, a começar
pela insondável confluência de fatores que intercedem na escolha dos poemas que
dela devem constar, em que se esgrimem as preferências do autor com as que ele
próprio sabe que perduram e seguirão perdurando. Estabelece-se então um pérfido
conflito, a acentuar em princípio essa laboriosa e prazerosa missão; para
resolvê-lo, terá de tomar um rumo espiritualmente aleatório, embora
incontornável, deixando de ser refém de suas próprias preferências e delegando
a tarefa às próprias musas que o inspiraram, enquanto o destino dos poemas
compilados prefere que passem a pertencer à consciência de seus leitores.
Semelha um pintor que faz uma retrospectiva temática de sua obra em um museu ou
galeria de arte: se o denominador estético não for pecuniário, terá que
transferir a sua escolha a deuses ou às musas que o inspiraram.
De
qualquer forma, vencido o imbróglio opcional, os temas de todos os poemas
permanecem no íntimo do poeta, porque a ele pertencem, porquanto que a ordem de
sua criação foi determinada pelo senhor da vida e da morte – o Tempo, que
soberanamente fará dessa antologia um conjunto de produção poética admirável,
desde que numa sensível carga ligeira de 90 poemas homenageia Eros, o deus do
Amor, enquanto na outra parte Tânato, que personifica a morte, presidindo a 42
poemas, mais parece um melancólico comparsa de Eros, pois, irmão do Sono, como
refere a Ilíada, sintomaticamente se mostram ambos filhos da Noite, como
sancionou Hesíodo. Em número de poemas (mais que o dobro), nem tanto por
assegurar na essência a continuidade das espécies, mas pela forma de criança
alada que a poesia lhe conferiu – e daí tantas evocações em versos à infância
–, a presença de Eros domina a maior parte do livro, não como um gênio
todo-poderoso, porém como forma que concentra indefinidamente tanto alegrias
como insatisfações, e por isso enreda sugestões que não alijam Tânato para
sempre da ordem das coisas.
Está
a compilação dos poemas, como o quiseram as Musas, ou o poeta, posto em
sossego. Saio da leitura com a mesma admiração e prazer já antes mais de uma
vez manifestados, a começar por uma quase lúdica fluência verbal, presa a uma
acentuada crença no valor e eficácia das palavras; por não se lançar o poeta em
aventuras formais, que tanto cativam o exercício da poesia desde décadas,
preferindo retirar de sua forja lírica versos ditados pela paixão, sem
rebuscamentos de linguagem e, por isso, sem jamais profanar a descrição da
beleza. Certa vez eu disse, ressoando uma opinião de Robert Frost, que Ruy
Espinheira Filho pratica uma poesia que parece emergir e se instalar quando
emoção e pensamento se encontram e ambos encontram a palavra que os expresse,
sem apelos a construtivismos ocos, a modismos e compromissos de ocasião.
Conscientemente, trava uma relação íntima com a vida e o universo, tudo pela
sutil vigência de uma índole romântica e, por causa disso, dores, mágoas,
decepções, ausências, lutos, coisas de um ontem ou um hoje desagradáveis, em
seus versos se transmutam em formas e sugestões verbais, que permanecem no
íntimo de quem o lê e prosseguem sem esgotar os efeitos da criatividade de um
lírico autêntico.
Em
seus versos, transita uma infinidade de abstrações de fundo sensível, que se
traduzem em meditações sobre a morte; amores correspondidos, sentidos e
vividos, assim como lamentos pelos não correspondidos, mas também lembrados;
amizades e perdas; suaves manhãs, lamuriosos poentes, tardes e noites
luxuriosas; agradáveis domingos, em mansas ruas e praças, melodiosos encontros
a que se associam infinitas estações, como também viagens por caminhos, mares e
ares, em que a emoção tece uma realidade de sentimentos puros que em si mesma
vibra e transcende. Em tudo, se observa um admirável construtor de versos,
tanto na entonação lírica, como na condução rítmica, na lucidez do enunciado,
qualidades que fizeram certa feita, na apreciação de livro seu, o saudoso
poeta, ensaísta e tradutor Ivan Junqueira dizer, em frase, tantas vezes
repetida, que não encontrara neste poeta “um único poema que se possa
qualificar sequer de frágil”; em verdade, pelo trajeto iluminado da técnica que
é a forma com que o poeta demonstra sinceridade em seu ofício.
Confesso
que, além das amplas e múltiplas qualidades deste poeta, dois aspectos neste
livro me incitam comentar. Ruy Espinheira Filho é um poeta de claridades,
tantas são as formas verbais, sugerindo ambientes de cores suaves e tranquilas,
que nele desfilam ao longo de grande parte dos poemas, mais incidentes no
conjunto dedicado ao Amor, fazendo supor que, nele, a sensação visual rege
todas as outras, diferentemente talvez, por ânimo estético, para ficar apenas
em dois poetas, das apoteoses óticas de um Sosígenes Costa ou das clareiras
míticas de um Jair Gramacho.
Nesse
aspecto, um poema em seguida a outro deixa essa impressão. Aqui (“Eurídice,
Orfeu”), a heroína Eurídice harmoniza-se, “numa só ternura, doce / chaga /
cintilando no peito / de Orfeu”; ali (“Cristal”), a amada que aguarda o
amado, de “olhar sereno” e “rosto de alba”, fitando-o “clara,
matinal, / de dentro do seu / intocável cristal”; acolá, em “Voo cego”, é o
pássaro que retorna “como em / outras tantas madrugadas”, trazendo em
suas asas “frágil perfil contra a aurora”; logo depois (“Campo de
Eros”), a inescapável palavra Amor “acende uma / lua no peito, e tudo mais
se esfuma” e, por fim, resta “trucidado em flor”; em um soneto, é a
amada que tem “olhos de água marinha”, de “água límpida”, /
“cintilante de tão negra”, para amanhecer o poeta “no azul do peito”;
quando não o pirata naufragado, que confere à amada, “aquele aroma / de
rosas, sorrisos e um / amplo luar”; quanto à musa, a dúvida é somente se a
ama em “seu doce perfil na tarde / ou só seu vestido branco” (“A musa”);
um nome que não diz “cintila ao sol, ao luar / e na lembrança do mar”
(“Nome”); ou é o da amada que “se dissolve numa brisa” e “ele a sonha com um
sentimento / de nuvem” (“Leveza”). Na paradigmática “Canção branca”, o
poeta começa por dizer que “era tudo luar” (…) “era tudo um brilho,
uma canção / branca / cantando a adolescência”, “que ainda canta em mim quando
a lua / me contempla”.
Em
“Mulheres”, quando pensa nelas, um redundante concerto de sugestivas palavras
se ajusta, “em sonhos matinais”, para saudar a claridade, desde
“notícias de pôr do sol”; pensa nelas, recordando “suas luzes”, mesmo como “praias,
bosques, horizontes / em dia claro e às vezes / relâmpagos”, para que delas
jamais se vá. Lá no seu Sudoeste (“Passeio”), não cai a noite, “fica
suspensa / de um último olhar do sol” e, por isso, para lá sempre volta. Em
“Até que a morte nos separe”, o riso da amada “é límpido”, o “corpo é
claro e suave”; juntos, amada e amado, caminham “pela estrada de areia
branca”, pois “em breve o sol dominará o céu, / reabrirá as praias, /
despertará a cidade dos homens”, para que ambos jamais precisem de repouso.
Em “Celebração”, “a manhã será luminosa” e “grande e belo será o dia”.
Na memória da amiga (“Rosa”), uma janela se abre e, logo, “há muita luz”,
tanta que os “olhos chegam a doer”, e, por ser rosa, no poeta ela se
abre e arde como “secreta e rubra primavera”; quando numa “Súbita
canção de névoa”, dela surge a amada e “repousa na lembrança”, como
uma dor “luminosa e quase criança”. Em um “Soneto do sonho”, é dele que
vem a amada – “clara e nua” e a lua faz vir a já “cintilante poesia” de um “corpo
em luz de lua / e calor de ternura densa / e olor de mar, e azul”, e então
amá-la, “agradecido à lua”, e “viver uma quimera / como sempre a
sonhara: clara e nua”. Mesmo numa “Antielegia de agosto” (saudosa homenagem à
memória de Drummond, em decassílabos rimados), “Era só caminhar na claridade
/ e semear a terra e ter vontade / de amanhecer no azul que amanhecia”. (…)
“Em nós, ainda, / traça seu sulco, que não finda / essa rosa, esse canto,
essa palavra”.
Ante este contínuo, vasto e luminoso varal em que o poeta estende as suas
esplendentes peripécias de amor e paixão e o abraça com emoção forte e peito
aberto, registro outro aspecto de seu rico lirismo, o do Ruy Espinheira Filho
sonetista. No que pude contar, são 28 os sonetos desta antologia, pinçados de
dezenas que compõem sua extensa obra. E, conhecendo-os, entre publicados e
inéditos, não corro nenhum risco em dizer que se trata de um de nossos poucos
poetas capazes de deslindar o que Jorge Luis Borges vislumbrava como um
mistério no soneto, seja no modelo italiano de dois quartetos e dois tercetos,
ou no inglês shakespeariano de três quartetos e dois versos parelhos. Para ele,
surpreende que uma forma poética, que pode parecer arbitrária, tenha atravessado
tantos séculos (quase dezoito) e geografias, mostrando-se “capaz de infinitas
modulações”. Não há verdade maior; e é, por isso, que o soneto impávido
sobrevive, menosprezando teorias e correntes estéticas e suplantando todas as
marés do gosto, em sua consagrada rota, e com tal personalidade que, para ficar
entre brasileiros, um soneto do parnasiano Olavo Bilac (1865-1918), lavrado no
século 19, logo identificável, nunca se parecerá com o de um árcade do século
18, como Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), assim como, entre os modernos
praticantes da forma, um soneto de Jorge de Lima (1893-1953) possa ser
confundido com um de Vinicius de Moraes (1913-1980), tanto quanto em distâncias
maiores, mesmo entre satíricos, nunca se dirá que um soneto de Sílvio Valente
(1919-1951), o famoso Pepino Longo, contém traços ou elementos de um do
setecentista Gregório de Matos (1623-1696), o mais famoso ainda Boca do
Inferno.
Pois é, quanto ao Ruy Espinheira Filho sonetista, que o exercita
preferencialmente no modelo italiano, não preciso explicar as suas sobejas
qualidades, desde que em poesia argumentos de técnica e estilística não
convencem e, neste caso, este nosso poeta por si mesmo o faz com o que cria.
Nele, tudo que se pretende encontrar num soneto, lá está, seja a intensidade da
entonação lírica, seja o diálogo que as palavras travam entre si no
fortalecimento da emoção, sem apelo a abstrações vazias ou devaneios temáticos.
Por isso, o soneto consegue o privilégio de ser a única forma poética que
obriga a ser lida de uma só vez, sem interrupção, desde que tem mais a ver com
a intensidade do que com a extensão. Ruy se situa dentro deste memorável
padrão, ao construir sonetos de enunciados verbais, claros e emotivos, que
fluem com linguagem simples e se firmam na mente e na alma do leitor como
autênticos objetos de arte, enquadrando-se perfeitamente no cerne de sua
poética, na qual tem força de presença o passado, porque nele se finca o ângulo
agudo do presente por onde enobrece e exalta as emoções e, com elas, a vida na
sua totalidade.
Em 2012, convidado a falar
em um seminário na Academia de Letras da Bahia, em que se comemoravam os seus
70 anos de idade, por feliz ideia e coordenação da escritora e professora
Evelina Hoisel, depois de realçar uma relação de amizade que supera os 40 anos,
fixei em três pontos as qualidades que justificavam a minha admiração por Ruy
Espinheira Filho: a fecundidade criativa do poeta e do escritor, aqui já
citada; seu notável amor e devoção à leitura e à escrita, que embasam a sua
vitoriosa carreira literária, destacando-se a obra poética; e o papel que
desempenham em sua poesia a memória e o tempo como potencial de criação.
Encerrava, afirmando que, ante as contradições com que o mundo de hoje nos
injuria, seguia tranquilo e confiante, como sigo, desde que continuem a
existir, escrever e publicar poetas múltiplos dessa estirpe, a mostrar que a
poesia subsiste como uma das necessidades primordiais da vida e do ser humano.
E esta antologia só faz confirmá-lo, como prêmio e homenagem a seus leitores.
E julgo que assim o será,
pois é o próprio Ruy que, sincero e esperançoso, num de seus inéditos desta
antologia, “Soneto da alma como um rio”, associado ao grego Heráclito, afirma:
Contou-se
um conto e agora já mais nada / se reflete de mim. Só há o frio / cantando uma
esperança naufragada. // Não tem culpa tua alma desse frio / lembrando-me que
sou água passada, / pois, como rio, é sempre outro rio…
2 - Paixão e prazer da poesia
Em um elegante e alusivo texto que
lhe serve de “orelha”, Marco Lucchesi sintetiza e nos apresenta Sob o céu de
Samarcanda, o novo livro de Ruy Espinheira Filho – o corpo transparente da
palavra assumida numa geografia aberta” reunindo nada menos que 73 poemas,
sobre os quais não seria demasiado dizer, mesmo com risco de pleonasmo, que,
mais do que se mantém, prossegue o autor na “linha coerente e ascendente” que
deu a Alexei Bueno o direito de considerá-lo, desde o seu primeiro livro,
Heléboro (*1974), “um dos maiores poetas líricos brasileiros da segunda metade
do século XX”.
Nada disso me surpreende, nem a
evocação de uma cidade remota, onde mergulham energias e alquimias líricas que
só a memória de um artista verdadeiro restaura, seja a Samarcanda visitada por
Ornar Khayyam, ao luzir luzente embalo de sonho e vinho, fosse “a cidade santa
de Bizâncio”, para onde velejava Yeats, mesmo que não fosse mais terra para
ancião, mas convicto de que alguém, ao despertar, poderia ouvir o seu canto “do
que passou, ou passa, ou há de vir”.
Mas, Ruy Espinheira Filho mal
completa 67 iluminados anos e, com este, soma uma dezena e meia de livros de
poesia publicados, com o espírito aceso e aberto à vida, ao tempo, aos sonhos e
a uma irrefreável força de criar, que o autoriza a professar, e legitimamente
proclamar, como o fez certa feita, a sua condição de escritor profissional:
“Literatura é, para mim, vida […] tudo que toca a minha literatura toca a minha
vida, pois é dela, da minha vida, que é feita a minha literatura.” Enfim, um
profissional de literatura que, embora sujeito à circunstância da luta pela
vida, entrega-se à atividade literária com ardor e fé.
Nada disso também me surpreende,
desde que, de muito, acompanho a sucessividade ascendente desse criador
contumaz, que o faz merecedor de apreciável fortuna crítica, a começar do seu
primeiro livro, quando Antônio Brasileiro já o tinha como seu poeta preferido,
“após Drummond e Pessoa”, o que, lógico, o põe entre grandes da primeira metade
do século passado. Na realidade, desde As sombras luminosas, com que
empalmou o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Souza (1981), não lhe têm faltado
credenciados julgamentos a cada livro que publica. Logo em seguida a esta
láurea, Antônio Carlos de Brito, o saudoso Cacaso (1944-1989). o apontava como
uma referência importante na renovação que então se vinha processando no
lirismo brasileiro, confirmada a cada obra e a cada mostra de eficaz e
requintada técnica. E se deve a Ivan Junqueira, autor do melhor ensaio sobre
sua poesia, uma frase lapidar que envaideceria poeta de qualquer latitude, ao
confessar, após a leitura de seu Julgado do vento (1979), não ter
encontrado ali “um único poema que se possa qualificar sequer de frágil”.
É justamente este consagrado poeta e
ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, que dedica um penetrante
ensaio (“O fio de Dédalo”. Rio de Janeiro: Record, 1998), de análise de toda a
poesia de Ruy Espinheira Filho, até então, em que a define como portadora, em
sua vertente primeira e mais funda, de uma espécie de lirismo elegíaco, pela
evidente atuação representada por uma “obsessiva e confessa vocação do
pretérito”, a lhe marcar o ritmo poemático, sem lhe negar, a par de uma severa
competência formal e confortável governo das estruturas rítmicas, a funda
coerência interna de toda sua obra.
Aí se encontra a pedra de toque de
quase toda a poesia de Ruy Espinheira Filho, o papel que nela desempenham a
memória e o tempo em seu trajeto criativo. A meu ver, isto se deve a uma poesia
que fala do homem e ao homem se destina. Vinda do fundo da infância e da
adolescência, em cidades vividas e sentidas, essa arqueologia da memória
configura, refigura e transfigura experiências que projetam e conformam, em
sonho ou vigília, a essência da vida do poeta. Sempre profundo, o rio
heraclitiano em que se banha lhe franqueia margens ao marulho de suas águas
jamais tranquilas.
Como neste vigoroso e latejante Sob
o céu de Samarcanda, onde já de início o aprendizado perplexo de si mesmo
se insinua pela displicente presença de um passarinho – o bem-te-vi, cujo
trinado lhe ensina de que se compõe o dia, conquanto, alerta, ele próprio
suspeite: “se o tempo passar um pouco, / nada mais que um pouco, logo / não
estarei mais aqui” (“Canção do efêmero com passarinho e brisa”).
Essa latente pulsação do tempo age
como um implacável dínamo a mover as engrenagens da memória, como forma de ver,
sentir e interpretar o mundo com todas as inexoráveis potencialidades do ser,
do ser homem estupefato com o transcorrer das horas, dias e anos, e com coisas
e pessoas, que viveram e morreram, mas que permanecem na recordação. E é a
palavra o motor que faz com que se mova esse cosmo vital.
Borges remonta a uma afirmativa de
Oscar Wilde, segundo o qual “um homem em cada instante de sua vida, é tudo o
que foi e tudo o que será, todo seu passado e todo seu futuro”. Evocando a
poesia de Ruy Espinheira Filho, digo eu, se válido esse ditame, a persistência
da memória avulta-se como fator dominante sobre a realidade. No entanto, por
maior festa e alegria que insinue o ato de recordar, não há como não perceber
nesses trânsitos do existir um travo de melancolia, ainda mais quando se impõem
as regulagens sensíveis da maturidade. Sob o céu de Samarcanda é obra de
um lirismo maduro, tanto no pensar quanto no fazer.
Paixão e prazer norteiam a reflexão
e a artesania verbal deste poeta; ambas juntam, num só amálgama, amor e
consciência de um mesmo agir. Ele mesmo, o poeta, já o dissera judiciosamente,
recordando Mário de Andrade, que “a arte vai além das técnicas empregadas, é
obra do artista, arte feita sempre com carne, sangue, espírito e tumulto de
amor”. Eu mesmo, sem possuir as agudezas críticas dos que o têm enaltecido, o
qualifiquei como um mestre em transformar o cotidiano dos homens em matéria de
eternidade e palavras em realidade. Todos reconhecem e exaltam a sua excelência
no manejo das palavras e na construção de um estilo próprio.
Apreciando seu Livro de sonetos
(2000), André Seffrin analisa percucientemente e exalta o seu processo
criativo, a propósito de seus sonetos.
“O que é o poema para este autor? É
principalmente uma iluminação, uma epifania, uma abertura da temporalidade por
meio da palavra, um túnel que interliga tempos.” Tal manejo de forma também
fascinou esse exigente crítico, como uma exuberante prova de naturalidade, a
mesma que percorre toda a gama construtiva da poesia de Ruy Espinheira Filho.
“Tudo nele é matéria, e os seus jogos inusitados, a sua habilidade técnica, não
procuram apenas atrair, mas conquistar. Conquistam e magnetizam o caminho do
leitor”, assevera Seffrin, ao defrontar-se, nessa instrumentação lúcida, com
poemas desnudados de pompas e “adereços farfalhantes”, longe de acessórios e
eventuais adornos. (SEFFRIN, 2000).
Esta forma natural de expressar o
pensamento, sem logicamente prescindir das habilidades técnicas, fez Ivan
Junqueira reportar-se à célebre definição de poesia exortada por William
Wordsworth, que via no ato poético “o transbordamento espontâneo de sentimentos
intensos, que tem sua origem na emoção recolhida num estado de tranquilidade”
(2005). Ruy é, no fundo, ideário como uma forma de libertação da alma. Assim,
Junqueira o vê como que enlaçado às reminiscências de sua infância e
adolescência – todas ainda talvez mourejando nos espaços e tempos das duas
cidades que dormitam em seu íntimo, Poções e Jequié, no sudeste baiano –, a
sentir e criar, como Wordsworth, “emotion recollected in tranquility”, aí
provavelmente flagrando “o segredo, ou o sortilégio, da grande poesia, aquela
em que fundo e forma são uma coisa só”.
O que é, de alguma maneira, para usar
uma cogitação estética de Anderson Braga Horta, pensar a poesia como a arte de
criar ou de captar a beleza por meio da palavra, expressada numa estrutura
verbal facilmente decifrável, como o faz Ruy Espinheira Filho. Sabe-se que só a
emoção permite a ocorrência de tal fenômeno, quando o poeta intencionalmente
busca ideias para suas palavras, em associação com os ritmos que elege – seus
singulares atributos de tradutor do discurso cotidiano, com isso fazendo
renascer e reconhecer-se a si próprio, como ensina Paul Valéry, tratando da
linguagem poética em estudo sobre a lírica de Virgílio (Variations sur les
Bucoliques, 1956).
Consciência idêntica se manifesta
nos versos com que Espinheira ordena este seu Sob o céu de Samarcanda,
onde não se encontram, repetindo a observação de Ivan Junqueira, rastros de
fragilidade artesanal, mesmo na lúdica experiência com a poesia de cordel,
narrando, em quadras de redondilha, um drama rural que não faria feio em
sessões de repente de qualquer feira do interior do Nordeste (“Romance do Sapo
Seco: uma história de assombros”), de que não se ausenta a agilidade da
narrativa no encadeamento rítmico, a confundir-se com os trejeitos que conduzem
ao desfecho de uma bem imaginada tragicomédia criminal.
Neste livro, todos os poemas
praticamente cumprem o papel luminar de transmitir e despertar emoção em quem
os leia, pela naturalidade com que o poeta transita por variadas estruturas
rítmicas, sejam versos medidos ou não, formas curtas ou decassilábicas, ou até
alexandrinos, reafirmando entre outras habilidades a de sonetista, que levou
André Seffrin a lhe atribuir o poder de nos colocar “novamente no esplendor do
gênero”, sempre um desafio a quem a ele se aventure. Neste item, eu próprio o
emparelho com o melhor Vinicius de Moraes, enredado nas contendas do amor ou
mesmo quando encara e decifra tramas do labirinto existencial.
E se facilmente todos projetam
estados emocionais, destaco alguns que mais de perto tocam a minha
sensibilidade, desde os que persistem na recorrência de temas em que subsistem
poderosamente a memória, os sonhos e lugares percorridos em tempos de infância
e adolescência, aos que imprimem força mítica na evocação de personagens e
geografias de passados próximos ou distantes. Seja quando maneja em tranquila transparência
lírica a técnica do soneto, como em “Soneto de uma luz” ("Foi ali que
morri, naquele dia./ Lembro que estavas, como sempre, bela, / na mesma luz de
ti, cálida, aquela/ que me acordou do que me adormecia/ a vida. […]").
Seja quando persiste em reincidências
temáticas, e a memória assume foros de metalinguagem em proposta de subjetiva
autodefinição, como em “O que somos”, tomando o verso curto (redondilha maior)
como instrumento, em dísticos ("Críticos dizem do poeta:/ um lavrador
de nós mesmos, recordamos // nosso enredo nas batalhas. / as bandeiras, as
mortalhas, // as trevas, as claridades, / os olvidos, as saudades...
[…]").
Ou na fluência do rio existencial,
heraclitiano sempre, em face a um duro escrutínio de vertiginoso passar do
tempo, porém, ante o descer da “noite absoluta”, reacende-se, para a vida logo
revigorada, a “alma nova”, que lhe desvenda outro amanhecer, como no “Soneto de
velhice e almas”, que vale transcrever de corpo inteiro:
Também no corpo, sim. Mas sobretudo
é na alma que me sinto envelhecer.
Ouço-a cantar canções de adormecer
e me parece que, por fim, já tudo
está cumprido. Em breve serei mudo,
e surdo e cego… Todo amanhecer
se foi. Não há futuros. Vai descer
logo a noite absoluta sobre tudo.
Mas, felizmente, a alma que me fala
não é a única no meu enredo.
Visto-me de outra, a anterior se cala.
E, de alma nova, sou diverso, ledo,
ouvindo a voz serena que me fala
que para adormecer ainda é cedo.
Aí,
o que se delineava senda de amargura e fatalidade, de repente ressumbra como
potência de claridade, em novo despertar para a vida.
Há
outro poema que se transluz em hino à soberania da emoção. É quando
abruptamente se põe a deslindar ou vislumbrar, em clave de sutil e comiserada
crítica, o outro lado da poética de João Cabral de Melo Neto, arrancando-o do
avesso da construção racional que atravessa o mundo refletido em seu frio
espelho. Este poema é a denúncia, em tom de sincero lamento, de uma poética
esterilizadora da expressão verbal artística, que a corrói até lhe dar uma
feição de óssea geometria. E tudo isso expondo o contrário da natureza íntima
do poeta, no caso João Cabral, como entende Ruy Espinheira Filho nos nove
quartetos em redondilha de “O avesso e o espesso”, onde começa sentenciando com
incontido amargor:
Desconforta-me o poeta
escrever em tom avesso
à vida — dizendo o sangue
ser, mais do que o sonho, espesso.
Sucedeu que preferira
pedras, coisas, linha reta,
o que o levara a exilar
de si um outro poeta,
o seu avesso: um do verso
sem pudor de ser poesia
feita de coisas do homem
além da pele do dia.
Confrontado
com esta opção-exílio em que, na sua visão, se perdera o autor de O
engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947) e O cão sem
plumas (1950) - obras que mais refletem a marca racionalista da poética do
pernambucano -, de renúncia à emoção e ao sonho, em favor de uma espécie de
mineralização do mundo real, distante da vida, em que “o processo de exigência
formal é levado ao ápice por uma lógica implacável”, onde “a forma chega a
converter-se em matéria”, obrigando o leitor a defrontar-se com uma poesia da
poesia, dominada pela técnica poética, como assinalam Ángel Crespo e Pilar
Gómez Bedate (Realidad y forma en la poesia de Cabral de Melo, Madrid,
1962), com versos lapidares, mas sentidos, Espinheira Filho deplora que ninguém
tenha vindo “para romper esse espesso/ em que se fechava o poeta/ nesse
mundo pelo avesso”.
Ou
seja, como a evocar a sólida crença de Calderón de La Barca ou de Jorge Luis
Borges na prodigiosa força dos sonhos:
Para ensinar-lhe que o sonho
é que faz o sangue espesso,
e a pedra, e a coisa, e a lâmina,
e de tudo isso o avesso;
que nada há mais do que o sonho,
até mesmo em seu avesso,
pois tudo é um sonho num sonho
que sonha - sem fim, de espesso —
sonhos do Mundo e de Vida,
e o espesso mais espesso
em que - vastos, abraçados
— sonham Deus e Seu Avesso.
Não
há confissão mais cabal e lídima por uma opção estética. Tocam-me também o
íntimo, na obra, poemas que evocam personagens, lugares e cenários de épocas
passadas, mesmo que transpirem a laboriosa quietude de uma biblioteca ou a
plácida textura das páginas de um livro, como a recuperar signos remotos, que o
poeta elege como lanternas para clarear sendas à poesia dentro de noite vasta;
ou sóis, em paraísos de manhãs e oásis. Nesta moldura, encaixa-se o poema que
dá nome ao livro, Sob o céu de Samarcanda, que, em cenário de sonho e
deleite, abre a Omar Khayyam as portas de uma antiga cidade do Uzbequistão,
erguida no século V, onde se diz estaria enterrado Tamerlão (1336-1405),
herdeiro de Gengis Khan. O autor reconhece e ouve o poeta, “embora/ nunca o
houvesse visto antes”, tampouco a invocada urbe: “O céu, sob o qual falava,
/ cintilante, só podia/ ser o céu de Samarcanda […]".
Ali,
ouviu o poeta do Rubayat, sem nada entender, porém, “de sua densa algaravia”,
ficou-lhe a saudade “daquele sagrado instante/ e a esperança de que o mundo/
dos sonhos traga outro sonho”, que lhe penetre na mente, “guardando altas
lições/ de ciência e poesia”, aquelas mesmas que na voz de Omar Khayyam
“brilhavam, luziluziam/ como a suntuosa ciranda/ de astros, estrelas,
mistérios/ no amplo céu de Samarcanda”.
Essas
imaginadas cenas e cenários de passado semelham as cogitações de outro
extraordinário, mas esquecido poeta baiano, Sosígenes Costa, quando em poemas
de alta urdidura simbolista evoca terras e personagens longínquos – o rei
Salomão, a rainha de Sabá, Salomé, São João, o imperador Tibério e o tetrarca
infeliz filho de Herodes, entre outras figuras que emergem das brumas de outras
civilizações e ficções.
Nesta
mesma diligente clave de restauração de episódios do passado, situa-se o poema
que conta a trágica história de Plínio o Velho (23-79), abatido na erupção do
Vesúvio, que sepultou Pompeia, calcada no relato com toques imaginários de uma
carta de Plínio o Moço (62-113) a Tácito, escrita 25 anos depois. Trata-se de
uma peça em que Ruy Espinheira Filho expõe toda sua capacidade e limpidez no
manejo do verso livre, explorando, em toda extensão e intensidade, o potencial
de significação e ritmo das palavras, com cativante conjunto de
versos distribuídos
por cinco capítulos, com a fluência a reger o ritmo da leitura.
É
uma laboriosa e reflexiva incursão pela seletividade do espírito e os rígidos
códigos do culto ao heroísmo que governam a moral romana. O poema narra o
insucesso de Plínio o Velho, que, vestido em sua túnica de ceticismo estoico,
parece descrente e indiferente às hecatombes do trágico, mas logo submerso pela
fúria da nubem inusitata. O poeta flagra esse heroísmo de conotações
épicas, com ressonâncias camonianas, quando “era o nono dia/ antes das
calendas de setembro” e, comandando a frota de barcos, “Plínio o Velho
apenas estava/ em Miseno/ posto em sossego.”
E
prossegue a narração, à base de relato de Plínio o Moço: o horror se instala em
cenário dominado pela misteriosa nuvem em forma de árvore, com Plínio o Velho
querendo ver de perto/ a nubem inusitata (...). Mas a
nuvem e os abalos sísmicos que se seguiram foram mais fortes.
E lá se foi
até que começaram a vir
pedras e cinzas sobre as naves
[…]
Sem nada desconfiar
do engano de sua ciência.
Sem nada pressentir
da morte à sua espera
Na praia. […]
Aquele ilustre
ali
no sono da morte
desamparado pela ciência
e pelos deuses
que nenhum deles o advertira das fúrias
da Terra […]
O insigne homem, dito o mais culto
do Império Romano, fora de repente colhido por vicissitudes que a natureza
revoltada impunha aos mortais, pavoroso mistério, assemelhado ao de cenas
representadas em um templo de Cartago, que tocaram o espírito de Eneias e o
fizeram recordar com desventura a destruição de Troia - "Sunt lacrimae
rerum, et mentem mortalia tangunt (literalmente: “São lágrimas das coisas,
que tocam ao espírito dos mortais” - Virgílio, Eneida, v. 462). A
maneira do grego Konstantinos Kaváfis e favorecido por idêntica emoção que flui
em estado de tranquilidade, e tendo como chave somente a poesia, Ruy Espinheira
Filho restaura o célebre episódio e, verso a verso, desvenda longínquo mistério
das coisas em fúria, que toda o ânimo estudioso de Plínio o Velho não
fora então capaz de decifrar.
Por fim, encerram o livro os “Sete
poemas de outra era”, que o poeta antecipa com uma nota de sincera prova de seu
respeito à técnica e de gentileza, para com o leitor, onde esclarece que os
escrevera, julgando fossem prosas, por escritas “originalmente, de margem a
margem das páginas”, mas que, ao relê-las, percebera mais se tratarem de poemas
que de prosas: “de outra era, sem dúvida, mas poemas”.
Não havia necessidade de tal zelo,
posto que basta a leitura para cimentar a convicção de que são todos realmente
poemas. Embora se conheça a sua desenvoltura e brilho no trato com a prosa, em
artigos, ensaios, crônicas, contos ou romances, sabe-se que a sua melhor e mais
confortável condição se última no próprio ato de escrever, o que ele, num poema
de raro tom que “sonha que escreve;/ escreve que sonha;/ quando sonha,
escreve”, destino e vocação, que convenceram Miguel Sanches Neto, comentando o
livro, de que “o poeta escreve com o intuito de criar um espaço linguístico
luminoso”, pelo qual Ruy Espinheira Filho, digo eu, incessante e
desenvoltamente transita.
É o que ocorre nesses sete poemas
que concluem o livro, consumando-se em todos eles as vertentes por que andeja o
seu poder criativo. Espinheira Filho não se acanha a confessar-se um
profissional da literatura, porque esta é, para ele, vida. Mesmo ante os
desvios que o árido cotidiano venha lhe impor, tudo o que este poeta escreva
terá de ser, em essência e por fatalidade, sempre forçosamente poesia, e poesia
expressa em poemas, mesmo que sob máscaras linguísticas. É ele quem afiança, no
mesmo poema citado: “quando escreve, sonha;/ tudo é o mesmo sonho/ fala em
sonho, escreve”. Não há que invocar teorias estéticas, posto que basta
estar-se atento ao ritmo das frases, isto é, à sua musicalidade, sugerido pela
própria estrutura e significado das palavras, sem mesmo descurar-se da métrica.
A leitura comprova que o encadeamento poemático norteia-se nessa direção: não é
poema em prosa nem tampouco prosa poética; é poesia mesmo, sublime e
verdadeira.
No primeiro poema (“Graal”), em que
o poeta não se furta, com presumível surrealismo de inspiração liliputiana, a
espalhar por versos e estrofes termos e formas exóticas, que fogem ao cotidiano
dialetal e ao plano da sintaxe e da semântica comuns (albiônicas, ventoim,
róridos, lúnicas, estou em ônix, sombras úmbrias, trúdinas, diamância, grusmam,
lacustram, tigrino, quelônio, diatomáceas, iguanos), estão claros a construção
e o andamento poemático da forma verbal.
Hoje, zurzindo azul,
as ondas albiônicas espumam
em meu peito. Venta
em ventoim. Rumoram
falanges, alfanges. Direi, sim,
de como e quando grusmam
palomas; decifrarei
os róridos de junho; revelarei
as dunas lúnicas. Não
me compreendem? Amanhã,
amanhã serão inconsoláveis
os que se abrigam
no opaco.
Além das intencionais asperezas e da forma intrigante,
atomizadora do real, à maneira do francês Henri Michaux, na verdade aí se
denunciam expressões forjadas na cadência das palavras, em que se podem até
perceber incursões de métrica, incluso interna. Em tom evocativo de narrativas
infantis, personagens, lugares e cenários de um tempo imaginado ou vivido,
neste e noutros poemas, a ciência do processo criativo faz supor que, embora
não intencionalmente, na concepção poética, até parecem viger lições do velho
Ezra Pound, seja por sempre se dirigir diretamente à “coisa”, subjetiva ou
objetiva; seja no uso de palavras carregadas de significação; seja pela nítida
atenção dada à cadência musical das palavras - enfim, poesia com autoridade
construtiva e sinceridade de emissão.
Do ponto de vista conceitual,
recorrendo à memória, ao tempo e aos sonhos, sente-se que o universo moral e
sentimental desses poemas trava uma guerra latente contra o niilismo e responde
por uma necessidade de reintegração total do ser humano e de luta por conter ou
eliminar a sua fragmentação numa sociedade e numa época propensas à
esterilização da vida, ao desperdício e ao vazio; enfim, um combate à passividade
e à exaltação da vida material, em detrimento das forças do espírito, um libelo
contra o fragmentário e o descontínuo. Mais uns que outros, a tônica da
expressão lírica segue por esses caminhos e propósitos restauradores da
humanidade no homem, conferindo a esses poemas a primazia de clímax inapelável
e conclusivo de todo o livro, o que corrobora o último poema do conjunto, “A
ilha Maria”, um hino ao amor total finalmente encontrado e vivido, de
humanização que se transfere de lugar para pessoa, através da mulher amada: “A
ilha Maria é a mais bela de todas./ A mulher Maria é a mais bela de todas./ Nas
areias da primeira/ e nos braços da segunda/ quero estar ainda esta noite.”
Seja em Samarcanda ou fosse em
Bizâncio, em Ítaca ou na terra dos cimérios, fosse em Pasárgada ou na
Atlântida, seja fazendo ressoar o ouro e a prata do lirismo de poetas
verdadeiros (Pessoa, John Donne, Bandeira, Drummond, Borges, Sosígenes Costa),
Ruy Espinheira Filho firmou seu posto na crista da atual poesia brasileira com
forte noção de modernidade lírica, distanciando-se das distorções e
hipertrofias que, com frequência, a assolam e rebaixam, sob múltiplas capas de
justificação estética, conseguindo-o pela imorredoura capacidade de mergulhar,
como perscrutou Cid Seixas, “nos desvãos da memória”, para de lá “retirar o
lirismo pessoal e transferível”, isto é, “o tempo morto que não se perde”,
guardado vivo no espírito.
Neste livro, assumindo e construindo
uma poesia cujo lirismo alça-se a uma altitude que a toma imune às degradações
e desumanizações do presente, Ruy Espinheira Filho prossegue no luminoso
caminho de busca e captação da beleza, montando estruturas verbais, de que
brotam o poema como expressão de vida e a poesia como trânsito de eternidade,
com que, na plenitude de suas intuições sensíveis e domínio de variados
recursos poéticos, ergue a sua própria grandeza.
Após penetrar-se no universo de sua
arte e fruir-se o que ela tem de poderoso e comunicativo, não seria exagero
dizer-se que a forma e a crença com que se devota a escrever poesia fazem de
sua obra a melhor tradutora, entre nós, do que proclama este famoso verso do
inglês John Keats: "Beauty is truth, truth is beauty— that is al”,
“Beleza é verdade, verdade é beleza — é tudo…
MATTOS, Florisvaldo. Academia dos Rebeldes e Outros Exercícios Redacionais. Salvador: ALBA Cultural, p. 360, 2022.
Versos Fortes de Myriam Fraga
Cyro de Mattos
Com obra densa, composta de doze volumes, Myriam Fraga (1937-2016) fazia sua estreia com Marinhas, em 1964 pelas Edições Macunaíma, editora especializada em publicações de tiragem limitada, confecção gráfica sob a orientação do artista plástico Calasans Neto. Desde a estreia, uma poesia substantiva de acento forte comparece com versos que cortam como lâminas afiadas, expande seu processo criativo na confirmação da presença de uma poeta valorosa, intensa e lúcida. Seu estro levará a cabo a propensão de compreender o modo de vida traçado pelo mar, de se dizer memória da cidade histórica, onde ocorre naufrágio com muitas mortes, amarugem de existências mutiladas.
A poeta viajante manterá relações com uma saga marinha munida de anzóis e redes para imaginar manhãs, que anotam muito mais com uma dicção substantiva do que qualquer descrição fisionômica, mais profunda do que qualquer tentativa de interpretação psicológica ou pieguista de versos confessionais e românticos. Os remos serão a enxada para plantar a esperança e colher o destino marcado de maresias. Nessa poeta de circunavegações com versos ríspidos, de face tatuada com peixes, sargaços, búzios, algemas, haverá a mudança de rotas na construção de uma poética com temas diversos, segura, firmada para acorrentar o tempo com ressonâncias de sonho, levado no embalo de ondas e ventos soprando sal e sombras. Ao invés de velas, cordames e mastros, a poeta pescadora de gentes e fatos históricos adiante vestirá a roupagem da mulher sincera para tecer com ternuras impossíveis o feminismo, além de recorrer na travessia versátil à mitologia com aproveitamento de figuras e temas.
Com o livro Sesmaria (1969), Myriam Fraga faz circular sua poesia no âmbito das invasões holandesas na Bahia. Sua alma romanceira e cancioneira quer falar agora dos holandeses que ocuparam a Cidade de Salvador com o objetivo de exercer o controle do negócio açucareiro. Com uma poética imantada de fúria azul e a violência com que o mar devora, a poeta de incursões na memória projeta dessa vez o olhar a cutiladas com aço na carne do tempo, marcado por personagens que se tornam heróis e vassalos no palco da pugna. O tempo agitava-se no litoral com sal e sargaço, fecundava na vigília a sombra da emboscada. Em episódios fulminantes no mapa de ciladas, no lado de cá do Atlântico, um reino poderoso preservava-se para o futuro com derrota e troféu. Dessa história formada de galeões ancestrais, ferocidades nativas, do vento e suas patas, nasce assim uma poética imperiosa e categórica construída com uma linguagem crescida em fortalezas e muralhas. Esta poesia belíssima, feita de fusões do discurso coeso, de diamante lapidado com força e vida de mãos ásperas, formado com os elementos estruturantes do lírismo, diferente, misto do dramático e épico.
Transpira nessa linguagem dotada de uma experiência poética das mais portentosas certo esclarecimento sobre dúvidas quanto à possibilidade de fundir os três padrões seculares no gênero de composição em verso, formulados agora na provável compreensão de que os tempos são outros. Assim, a distinção entre realidade individual de entonação confessional e a essência do que acontece na história onde homens são lavados com dor e espuma não tem mais razão para uma condição essencial de tríplice repartição dos gêneros, como se costumava.
Independente da temática, é visível que a poesia de Myriam Fraga transpira elevado nível de construção. Para alguns críticos atinge o auge mais elevado de criação poética em Femina (1996). Na abertura desse livro encontra-se o célebre poema Ars Poética, espécie de unidade compositiva da razão emotiva sobre as coisas que se associam aos caracteres próprios das mulheres. Porque parir é coisa de mulheres, cria-se a flor dentro ciciada. E o ser no outro ser é completo acorde até as gotas da morte. Porque a poesia é coisa de mulheres, às vezes acorda essa paixão, que se escorre com rigor e lucidez na pele para ser lambida nos profundos cortes. Porque a palavra é como brasa queima até o fim, suscita ilhas e ventos onde o poeta navega pelos labirintos que fazem a vida um usual caminho por entre os becos da morte onde o demônio habita.
Dessa poética que não pende para o confessional na vertente de uma canção antiga, do eu que recorda e lamenta, colho a ideia de uma alquimia de fetos que suscita o lento pulsar de nervos e sentimentos, o porejar de venenos sob a pele. “Poesia/ É a arte de rapina. / Não a caça propriamente, / Mas sempre nas mãos/ Um lampejo de sangue. // Em vão, / Procuro o meu destino: // No pássaro esquartejado/ A escritura das vísceras. // Poesia como antojos, / Como um ventre crescendo, / A pele esticada/ De úteros estalando. // Poesia é esta paixão / Delicada e perversa, / Esta umidade perolada / a escorrer de meu corpo, // Empapando-me as roupas/ Como uma água de febre. // Em vão, / Procuro o meu destino.
A poesia de Myriam Fraga configura a memória e o tempo em que acontecimentos e seus personagens ressoam na história desatada com as forças do dramático e do épico como determinantes da essência. O eu da razão emotiva ressignifica a mulher e suas coisas, nesses gritos que estalam e apascentam solidões em que um discurso apurado adivinha o signo feito bem e mal, se afirmando e negando o seu destino. Sempre de frente para as incoerências desenha na pele essa voragem vinda do embate das ondas nos rochedos. E assim, firme, como num roteiro de difíceis momentos, não hesitará em decifrar o mundo nestes cortes lúcidos, intensos, sem saber de sua viagem do nada rumo ao não sei onde do desconhecido. Com a palavra mítica, na arte de libertar-se das perplexidades e medos, certamente sabe do seu testemunho crítico na sagamar da existência humana, de sua importância no risco do eterno: “Onde um peixe navega/ E este peixe é meu sonho.”
Referência
FRAGA, Myriam. Poesia Reunida, Editora Alba, Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, Salvador, 2008.
POESIA COMO FATALIDADE DO EXISTIR
Florisvaldo Mattos
Recluso
em si mesmo, centrado no seu ofício, por voluntária e ascética opção, o poeta
baiano Raymundo Amado Gonçalves é praticamente um desconhecido nesta Cidade do
Salvador da Bahia, onde nasceu e para onde retornou, sem alarde, depois de três
décadas, radicado no Rio de Janeiro. No entanto, possui mais de uma dezena de
livros publicados por conceituadas editoras e outro tanto em edições
particulares por computador, que distribui com amigos e admiradores.
Em
razão de seu temperamento, protagoniza uma biografia sem os bafejos com que a
burocracia costuma premiar intelectuais de valor ou sem. Satisfaz-se com os
dons que lhe propiciam o posto intransferível de criador de poesia e arte
cinematográfica, neste último caso como celebrado documentarista de filmes sobre
poetas baianos, tais como Junqueira Freire, Pedro Kilkerry e Carvalho Filho.
Em
fins de 2006, Amado Gonçalves lançou, em Salvador, num congresso de
biblioteconomia, seu livro De todos os
títulos & De todos os poetas, cuja leitura me faculta a audácia de
defini-lo, no seu modelo estético, como exemplo de poesia em progresso, grau
avançado do exercício de uma poética, que se firma, desde seu início,
conscientemente, sobre o primado da palavra, de que o autor procura retirar
vigor e seiva germinais para infundir beleza em seres e coisas.
Em
texto confessional em prosa, que fecha o livro Restos (7Letras, 2004), agora reproduzido, como “orelha”, o próprio
poeta abona este conceito: “Escrevo para desvendar o mistério das coisas mais
simples da natureza – e da minha natureza íntima e que é uma forma de indagação
sobre o próprio ato de escrever”. E, por que em progresso, a poesia segue, sem
se perder, indefinidamente.
Embora
levado por injunções culturais de momento tenha revelado empatias para com o
movimento Neo-Concretista, ligando-se no Rio a Ferreira Gullar, Mário Pedrosa e
outros, a poesia de Amado Gonçalves busca filiar-se a esferas mais altas de
pensamento e permanência, por imposição mesma de seu próprio método
operacional, que exalta e consagra o que de fato resta – a linguagem.
E,
assim, não é sem razão que, neste seu último livro, resolveu prestar um tributo
de reconhecimento a muitos poetas aos quais a sua poesia paga boleto de
passagem no seu impulso criativo, pelo tanto que lhe significou a condição de
aprendiz em Deserto & Caminho
(1959), seu primeiro livro, citando-os nominalmente. E lá estão, desde Homero,
Virgílio, Ovídio e Dante, atestando reverência de origem, os românticos Black,
Keats, Coleridge, Leopardi, os simbolistas Rimbaud, Verlaine, Lautréamont,
Pessanha, e um pelotão de modernos, que vai de Yeats, Eliot, Pound, Emily
Dickinson, Francis Ponge, Juan Ramón Jimémez, García Lorca, Fernando Pessoa,
Ana Akmátova, a brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ferreira
Gullar e, até o nosso belmontino-ilheense, Sosígenes Costa.
Se
a poesia de Amado Gonçalves permanece pouco lida entre baianos, desde que
infenso a frequentar ambientes literários, como impõe a índole do poeta, nem
por isso está isenta de uma fortuna crítica qualificada, com opiniões de peso,
em sequência, tais como a do crítico Walmir Ayala, reconhecendo-lhe “a virtude
da concisão”, nele jamais sinônimo de usura, mas “um signo de síntese sobre a
riqueza e a esplêndida vivência”; de Theon Spanudis, a lhe acentuar a profundidade
da elocução em poemas, que “jorram e fluem do íntimo”. Otávio Mora realça “a
sua intuição poética aguçada, sem cair no sociológico”, alcançando-o, sem
negá-lo, pela dimensão biográfica, e põe em destaque a luta do poeta que se
lança “de corpo e alma, presente”, para a arte, “com seu instrumental
específico”, enquanto o baiano James Amado (1922-2013) destaca nele a força da
expressão, “no trato muito sensível com a língua e a busca de uma linguagem
própria”.
Ao
ler seus versos, o saudoso Carvalho Filho optou por uma pedagogia. Aproveitou o
ensejo para inscrever a sua condenação à aparente facilidade, então corrente,
na construção do verso livre, que leva muitos dos seus cultores a se perderem
“no poço da banalidade”, e conclamou o poeta ao exercício da sabedoria de
continuar só consigo mesmo, no intuito de “alvejar o futuro”, sem render-se ao
imediatismo.
Transcrevo
adiante trecho de carta que lhe dirige Ferreira Gullar:
“Você
escolheu um caminho muito próprio que torna sua poesia inconfundível com a de
outros poetas. É admirável a contenção com realizar poemas evitando toda e
qualquer ênfase, toda e qualquer efusão emocional”.
Esse
traço de contenção que poderia – e até pode – ligá-lo à poética de João Cabral
de Melo Neto e de outros, de pendor construtivista, em certos casos até se
avizinhando com a prosa, em face da emergência da simplicidade, por proposital
dissolução do método clássico do verso, como ele mesmo afirma, decorre de sua
crença no poder da palavra, em construções verbais aparentemente livres de
amarras estéticas.
Por
este vinco, seu parentesco mais próximo, a meu ver, se dá com poetas decididos
a captar e expressar seres e coisas, na natureza e na vida, dotando-os de um
clarão repentino que privilegia a diferença, a exemplo de Emily Dickinson (por
ele muito referida), os franceses Francis Ponge e Henri Michaux e o alemão Paul
Celan. Entre espanhóis, ele cita Jiménez e Lorca, mas, pela economia da
linguagem poética, de escassa efusão, outros podem ser evocados, como Pedro
Salinas, Jorge Guillén, Gerardo Diego e Luís Cernuda.
Sincero,
Raimundo Amado Gonçalves confessa: “Não escrevo para os livros, nem para as
letras”. Como um sol, caminha a passos curtos, mas toma como destino “invadir
um pouco as sombras”, e mais, buscando ser claro e luminoso, “dar pureza ao
charco”. Para tanto, dispõe-se a operar com combinações verbais, cuja
mobilidade se inclina para a exatidão, para a forma nada encantatória,
desinteressada de prender o leitor pelo recurso à musicalidade, embora não
deixe de trabalhar com versos curtos e, na mais das vezes, medidos. O que lhe
interessa é a percepção e o conhecimento, que, pelo sentido, as palavras
propagam. A luta aí se trava em busca de uma emoção veraz de que só a linguagem
é portadora. Eis esta voz, em jogo de rimas soantes e toantes: Falcão dourado/ que veio da China/ qual o
seu recado/ qual a sua rima // voar voar adejar/ dum país a outro/ este o meu
vadiar/ este meu tesouro (“Rimas simples”, pág, 408).
Ouso
supor: a poesia se manifesta em Amado Gonçalves como uma fatalidade
existencial, uma determinante da vida, e, quanto mais a sós consigo mesmo,
melhor - força de um canto sem canto, de um sol distante de ouvidos. Em suas
palavras, depois de citar Emily Dickinson, riacho de águas cristalinas em que
não se recusa beber, a voz confessional se alça, como exemplo de fidelidade:
“quero das palavras tratar, como mosquitos, barro, chuva, pedras, argamassa,
construções diversas que dão consistência e contenção ao verso”, que o
“solidificam criando nova forma de linguagem poética irmanada à vida”.
Não
constrói para outro mundo, mas “para este, presente, palpável, mesquinho e até
rude, mesmo que isso o lance num jogo irracional levado até a loucura”.
Vislumbro neste lance a razão por que Spanudis o comparou ao alemão Georg
Trakl, e eu, a Paul Celan: a expressão soberana da poesia não se acomoda a um
universo verbal pré construído; visa a abrir a sensibilidade do leitor para
formas não enfáticas, afugentando-o dos estereótipos magnetizadores. Talvez
Amado Gonçalves não deseje erguer um novo ideário, mas quer que o leitor seja
conduzido apenas pelo que lhe transmitem as palavras, na sua essência.
Recorrendo
a Ezra Pound, a propósito de Théophile Gautier, o poeta trava luta contra a
fácil exuberância que a tradição impôs ao verso, procurando induzir o leitor a
seguir caminhos que o levem à luz da compreensão, fugindo dos reluzentes
atrativos da mera intuição sensível. Vejo-o como poeta do pensamento,
intelectual, mergulhado no seu processo criativo, decidido a libertar o poema
do iminente e hipnótico grilhão das sensações.
Ouso
nesse ponto remontar-me à aguda percepção do argentino Jorge Luis Borges, no
prólogo a um de seus últimos livros, La
cifra (Buenos Aires, Alianza Editorial, 1981), no qual define sabiamente o
que predomina no que se possa chamar de poesia intelectual: “A palavra é quase
um oxímoro; o intelecto (a vigília) pensa por meio de abstrações; a poesia (o
sonho), por meio de imagens, de mitos ou de fábulas. A poesia intelectual deve
entrelaçar agradecida esses dois processos” (Tradução minha, livre). Quer-se
com isso dizer que, na poesia de Amado Gonçalves, os opostos – o intelectual e
o sensível – se ajustam, plenamente, podendo daí até emergir, em certos momentos,
o que não foi cogitado, com o verso a despertar um dos sentidos, tipo uma
musicalidade silenciosa.
No
seu retiro ascético de renúncia e sacrifício, indiferente a perdas, lidando com
palavras e moldes linguísticos, como diz, “rejeita o supérfluo – o prêmio
imerecido – aquilo que nada lhe acrescente em termos de escavação, de avanço,
de novas formas de linguagem”. Pensa a poesia como “uma coisa inútil, porém
buliçosa” – e o que quer para si quer para o leitor. Neste sentido, não faz por
menos, opera com guilhotinas verbais e alfanjes sintáticos, para afugentar o
óbvio que alimenta preconceitos encobertos pela magia da linguagem metafórica.
Objeto verbal sempre em progresso, a sua poesia opta por prosseguir em
trânsito, sem se deter para inopinadamente render tributo a qualquer manual de
clicheria.
E
por aí vai Raymundo Amado Gonçalves, na sua forma de conceber a beleza e a
poesia, de praticar a sua arte, pensando, agindo e compondo poemas e livros, em
que um, em síntese e progresso, é a continuação do outro. E, para isso, em
obediência a uma metodologia quase claustral, só a solidão constrói.
(Artigo
publicado em A Tarde Cultural, edição de 20 de janeiro de 2007)
POEMAS DE RAYMUNDO AMADO
POEMA EM V
Vi uma estrela
fatigada vi
vi uma praia
alongada vi
vi um vulto
apagado vi
vi um mar enfadado
vi
vi a certeza da
volta vi
vi o sonho da
revolta vi
vi o sofrer e sua
escolta
só não vi a vida
que vivi
ODE FUGAZ
Onde se estende o
amplo mar
o verde campo de
grama sintético
está o verso
trabalho contínuo
e contido quando o
ser se parte
em dois que são um
– diverso
e paralelo para
conter o nada
- a alma que
navega e a mão
que grava a
salvação e o abismo
MOMENTO
Burilam gritos
invisíveis
o que restou da
memória
a noite – diamante
bruto –
infesta a alma de fantasmas
dura aparecer
reluzente dia
A CADA HORA...
A cada hora cada
minuto
te afastas de mim
vida
e cada som do dia
minto
que existo quando
exaurida
ficou sem voz
minha algaravia
meu sonho de
abrigar como
abriga a ave em
sua alegoria
o gorjear alegre de
seu canto
RÁPIDO E ANCESTRAL
Rápido e ancestral
é o sono de quem
parte
sem rastros todo
pisar
é mudo – há muito
não falamos com
Eles
deuses que nos
deixaram
pelos caminhos
apenas
divisamos nuvens
esparsas.
DE BRAÇO DADO
De braço dado
a miséria anda
onde estou indago
tão desprevenido
tenho filhos que
racham
os pés nos
caminhos
pedindo ora aqui
ora lá – uma
esmola
ENTRE DOIS MUNDOS
Entre dois mundos
vacilo
entre duas cidades
padeço
busco em vão um
asilo
nem sequer tenho
endereço
fogem pombos foge
o dia
de tanto amar o
perdido
a morte que todos
repudiam
passou a ente
querido
UMA BRISA INOCENTE
Uma brisa inocente
me lembra Black
de onde ela vem
por que se esconde
criança na tarde
simples lembrança
trazendo de leve
saudade constante
ABEIREI-ME AO SOM
Abeirei-me ao som
desse mundo da
morte
só ouvi cadências
ocas
que não nos
libertam
nesta terra
procurei
esquecer mel e fel
a esperança do eu
de saber
envelhecer
EXISTE UMA FLAUTA
Existe uma flauta
sei que existe
criança
ou pombas a tocam
mal o dia alvorece
e antes que a
noite chegue
alçamos nossos
lábios
ao céu – antes que
negue
o anelo e riso
seque
NUM JARDIM
Um corpo pode ser
um consolo
rolar sobre maçãs
no chão
fugir de
escaramuças
imitar ator famoso
no dorso de uma
baleia
- só não se pode
amar Deus
dizendo que Adão e
Eva
estiveram num
Paraíso
NUM TÚMULO
IMAGINÁRIO
Olho nos olhos e
vejo
que estou morto e
o ramo
do salgueiro que
me deu
Sauan – o menino
monge
guardo entre secas
páginas
de um túmulo
pequeno
mas o aroma das
verdes
folhas no ar se
desprendeu
- uma glosa
ALÉM DO CORPO
É bom guardar esse
segredo
bom esse degredo
de si
entrevê-lo só
entre vidros
- que misterioso
todo risco
se esconde entre
muralhas
de limos frases
atrozes
que devoram falas
frias
- joia guardada em
segredo
OBSERVAÇÃO:
Ao redigir esse artigo, publicado em A Tarde Cultural, edição de 20 de
janeiro de 2007, o redator valeu-se das seguintes publicações de poesia, à
época disponíveis, de Raymundo Amado Gonçalves pela ordem de publicação: Trístega,
1990; Fratrias, 1991; Tharsis, 1992; Ruah, 1993; Oceano
– Ecos, 1996; Janelas – Inferno & Céu, 1999; Pequeno Roteiro
Místico, 2001; Suspíria, 2003; Restos, 2004; De todos os
títulos & De todos os poetas, 2006; Poemas do Morro do Gato,
2007; Arkhaikos, 2008; Espaço
em branco, 2010; Era uma vez, 2013.
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