quarta-feira, 31 de julho de 2024

MODERNA POESIA BAIANA, FORTUNA CRÍTICA

 MÚLTIPLO FERNANDO DA ROCHA PERES

 

Florisvaldo Mattos


Sou e permaneço admirador confesso de Fernando da Rocha Peres, companheiro com quem trilhei sendas pelos campos da poesia e da arte, sempre presente nas datas redondas de aniversário, desde tempos inaugurais da lampejante Geração Mapa, por força de uma frutífera e saudável relação de convivência. É assim que, em novembro de 1986, escrevi um poema-homenagem, na data mesma de sua entrada na curva dos cinquenta anos, em que louvava o “puro amor gregoriano”, que lhe imprimia na alma a condição de prestigioso pesquisador da vida e obra de Gregório de Mattos, e também a sua leal preferência por vinhos de alta cepa e origem. Peres jamais foi, na essência, um boêmio, mas suas papilas nunca se recusam a digladiar com frequentes desafios sensoriais, especialmente gustativos.

Neste momento, vejo-me impelido pela vontade de transcrever adiante o aludido poema, que imaginei e redigi na fruição de um plácido fim de semana, ao sopro de suave brisa, na marinha e bucólica Arembepe, pérola sensorial da Costa Verde baiana, que ainda guardava, no asfalto, praças e areias, rastros de meditativos hippies que lhe permitiram lumes internacionais. Escrevi e fui levar o poema ao novo cinquentão, com o privilégio de vê-lo imediatamente reproduzido pela nossa hoje saudosa poeta Myriam Fraga, na coluna “Linha D´Água”, que mantinha semanalmente no Caderno 2, do jornal A Tarde.

 

 AO ÓCIO

            Deus nobis haec otia fecit.

                                   (Virgílio, Bucólicas)

(Libações a Fernando da Rocha Peres)

 

Em Peres que na curva dos cinquenta

verdeja e, dedilhando o clavicórdio,

relumbra ao puro amor gregoriano,

não daquele inventor do calendário,

mas do nosso, mais santo e venerado,

que é como a gente trata o ser profano,

quero saudar com vinho e outros goles

a seara de estudo com que vinga

o passado de um nome tão presente

e mais do que isto esculpe pertinências

que Adão não foi capaz de nos legar.

E pelo homem devoto de outra espécie

que é das letras divino sacerdócio

mui para sempre bebamos, pelo ócio.

 

(Salvador, 27 nov.1986)

 

Em 1996, quando ele já navegava pelas águas dos 60 anos, em artigo publicado no caderno A Tarde Cultural, pela alta nobreza do porte e das madeixas e pelo tanto com que a altiva e serena aparência se assemelhava, comparei-o à figura de um gentil-homem saído da paleta maneirista de El Greco, na obra intitulada O Enterro do Conde de Orgaz (1586-88). Em 2006, passei a vislumbrar em Peres, poeta agora setentão, caminhada de amadurecimento poético comparável à de W. B. Yeats, cuja poesia avultava em elocução técnica e qualidade, quanto mais o irlandês avançava na idade. Mas, antes, em 2001, aportando ele a nau de sua odisseia literária na ilha dos 65 anos, eu, amante avulso do Jazz, sabendo-o fã, fiel e admirador do trompetista Chet Baker, escrevi um poemeto em versos curtos e chistosos, em saudação a esta sua surpreendente liberalidade auditiva.

 

VESTÍGIOS DO JAZZ

A F. Peres, fã de Chet Baker

Assim: Chet

arremete

seu trompete,

som de escrete,

nem que chova

canivete.

 

(SSA/BA, 10 ago.2001)

 

Em 2011, quando completava sólidos 75 anos de idade, saudei-o com um sonetinho, de toque burlesco, em redondilhas, que iria constar de meu novo livro (Estuário dos dias e outros poemas), lançado em abril de 2017, p. 207.

 

LOAS A FERNANDO PERES


Peres nos setenta e cinco

É só iluminação.

É vinho deixando um vinco

De afetos no coração.

 

Bula Pro Nobis” na praça

É prece bem resolvida,

Reúne verdade e graça

Com Urânia, prêmio da vida.

 

Filhos e netos queridos

Fazem o bardo sorrir.

Cabelos brancos descidos

 

E a alma predestinada

Na faina de resistir

Aos mercadores do nada.

 

Quando o tempo luminosamente o assentou no mármore dos 80 anos de idade, entrevi nos cabelos brancos do bardo Fernando da Rocha Peres o lume de um astro a derramar, de tão veementemente clara, forte luz sobre vários campos da cultura baiana e da atividade universitária, mesmo já aposentado, como professor, historiador, pesquisador, administrador cultural, amoroso pater famílias, símbolo de fraternidade e um resplendente enólogo, a quem a olímpica Hebe, lépida e risonha, a um simples sinal, seguramente o saudava, passando-lhe fulgentes taças de branco ou tinto, oriundos do Douro ou do Alentejo, na proa de sua nau gustativa.

A esta altura, não poderia olvidar o momento em que o conheci, ao ver e ouvi-lo declamar, solene, com impostada e ritmada voz, versos modernistas, creio que de Carlos Drummond de Andrade, uma de suas maiores reverências literárias, num dos espetáculos de poesia dramatizada sob o título de Jogralescas, no auditório do então Colégio da Bahia (depois Central), feito que na Bahia de hoje pode soar como arqueologia cultural, mas que eclodia, com tinturas de escândalo, numa época ainda dominada pela renitência da cultura acadêmica e consequente culto da poética passadista, ainda ecoando por esquinas, bares e cafés sonetos de tintura parnasiana e simbolista, no já adiantado liberalizante pós-guerra.

Dias depois, estou na Gruta de Lourdes, um frequentado café-pequeno vizinho da Livraria Civilização Brasileira, numa Rua Chile de hábitos ainda pretéritos, dito Café de Bernadete, como era assim também chamado, passagem obrigatória de intelectuais, políticos e profissionais liberais, entre eles jovens que sonhavam com poesia, literatura, artes plásticas, teatro, cinema e jornalismo, quando, me aparece o citado jovem drummondiano, interessado em que conhecesse algumas de suas recentes criações. Lá estava, em pé junto ao balcão, Fernando da Rocha Peres, alto, esguio, magro, de tez clara, negras e vastas melenas, membro de uma geração, como ele costuma dizer, “criativa e briguenta”, a mostrar-me poemas ainda inéditos, que, após escoimados do que lhe parecesse imperfeito, iriam aparecer em seu livro de estreia, Diluviano, que ele, espontaneamente, excluiria da sua bibliografia - de que me fico até hoje a perguntar porquê.

Mesmo espantado com a deferência, passei a ler a série de poemas que ele oferecia à minha frívola apreciação. E logo me pus a ler versos marcados por elocução contida e consciente, no ensejo de articular pensamentos, palavras e imagens, para expressar emoção que atinja o leitor do poema, através de procedimentos, cuja entonação me fazia vislumbrar ali sinais de perspicaz adesão a princípios estéticos que poetas da chamada Geração de 45 proclamavam e aplicavam, e muito se aparentava com os enunciados do pernambucano João Cabral de Melo Neto, que, na construção de objetos verbais, se tornaria estrela máxima do longínquo Francisco de Quevedo e do já então saudoso Paul Valéry.

E foi o que mais adiante se confirmaria, na publicação de seus primeiros livros, com um lastro de seriedade, reflexão e estudo, que embasaria não somente a sua bibliografia de poeta, mas também a sua longa e vasta atividade de professor, historiador, ensaísta, articulista e conferencista, com que muito tem contribuído para o enriquecimento da cultura baiana.

Incorreria em redundância fixar-me na expressão de Peres apenas como um ator da cena cultural, tão amplo é o reconhecimento do papel que desempenhou e desempenha, mas não posso abstrair a sua importância como integrante da Geração Mapa, na qual figurou como um de seus mais ativos protagonistas, principalmente na criação de alguns de seus projetos, destacando-se dois no plano editorial: a revista Mapa e o prestigioso selo das Edições Macunaíma. Assim como não podem ser esquecidos frutuosos momentos de convivência fraternal, em reuniões diversas, seja na casa de Glauber Rocha, líder e guru do grupo, seja no anfiteatro de faculdades e salas de cinema, e até mesmo na Sorveteria Cubana, na parte alta do Elevador Lacerda, onde em fins de tarde, entrando pela noite, o grupo se reunia para consumir, não apenas o tradicional sorvete, mas também o seu milk-shake com bolinhos, e a conversa podia varar horas até o horário do último bonde, tendo em Vivaldo Costa Lima, então mais dentista profissional do que competente professor e antropólogo, um aderente mais velho, por todos admirado, que se incorporava ao grupo, dando mais direção e brilho às cordiais e venturosas conversas.

Além de professor, historiador e articulista das coisas da Bahia, o poeta mais adiante escreve crônicas do cotidiano, nas quais, ácido e mordaz, semelha um aborígene, saindo de mapas e florestas, armado de arco e flecha, contra as mazelas de uma política sociocultural encimada por volutas burocráticas e publica livros, desde que  aqueles versos estreantes, muitos dos quais, como já dito, dispensados, já denunciavam algo promissor, além de fino humor, “um sorriso para dentro”, como flagrou, aflorando uma de suas marcas, a ensaísta italiana Luciana Stegagno Picchio, no prefácio a Mr. Lexo-Tan e outros poemas, que será um marco no trajeto de sua poesia: o zelo e vigilância de uma consciência poética, de corte técnico ao mesmo tempo drummondiano e cabralino, em que se assentam a sua fatura lírica e sua inclinação para um calculado despojamento, que higienizava poesia, varrendo-a de alaridos rítmicos e signos supérfluos. Peres sempre foi, no exercício da arte poética, limpo, garboso, seletivo e indiferente a quem o considerasse esnobe ou idiossincrático.

            Aliás, desde principalmente esse Mr. Lexo-Tan, de 1996, o poeta Fernando da Rocha Peres passa a merecer a atenção da crítica literária e de estudos em laboratórios universitários, que se presumem vigilantes e de olhos sempre voltados para a criação verbal, em poesia ou prosa, posto que observa-se, a partir de então, flagrante transformação, em escala ascendente, da produção desse poeta, visível no livro que se segue, Febre Terçã, (2000), também prova incontestável de excelência editorial, confirmada em duas pequenas obras que então trazia a lume, Arqueopoemas  (Edições Cordel) e Poemas de um Cristão (São Paulo: Edições Rosari).

            Se é notável a subida, mais ainda a marcha do caleidoscópio. A chave da arrancada situa-se indiscutivelmente no livro de 1996, onde o mundo dos objetos e das texturas simbólicas se entrelaça com a memória – do corpo, da mente, da vida, da história - para se exprimir em metáforas e metonímias, até atingir alturas e névoas na ascendência. Um indizível traço de original pessoano (outra postura lírica e saudável filiação, pelas identidades com a cultura portuguesa) ecoa aqui e ali, a advertir que, por baixo da arcada das palavras, a poesia sugere um persistente trançado com o tempo, desconhecendo regras que venham impedir o fluxo existencial.

            Em sendo signos, tudo pertence a tudo, “o fato - o fito - o mito - o rito”. Bate no mato, bate no rato, desvenda a cidade, múltiplas gentes, e faz emergir a memória. Ilumina os espaços distantes e opacos da infância, dialoga com os vivos e com os mortos, com ânimo cubista traduz a aparência e perscruta o interior dos objetos, dá vida aos animais do chão, do ar, da água, viaja pelos mares, visita lugares, evoca idades e reverencia familiares e amigos; aponta e exalta obras e artistas – poetas (Pessoa, Camões, Drummond, Murilo Mendes, Godofredo Filho, amigo e parceiro de fruições gustativas, Gregório de Mattos, este o ser primordial que alenta suas heresias), músicos (Vivaldi, Beethoven, Chopin, e até um cult do jazz, Chet Baker); pintores e escultores (El Greco, Van Gogh, Camille Claudel), nomes da nacionalidade (Glauber), que bem lhe temperaram a alma e o viver; comunga com os santos, como cristão, que não sabe se velho ou novo (“marrano, talvez”, cabe supor). Para mim, ele próprio, um santo gauche, de fé contemplativa, parado na abóbada de imensa catedral.

            Dom Pedro Casaldáliga, que saiu da Prelazia de São Pedro do Araguaia para prefaciar seus Poemas de um Cristão, enxerga no autor um “poeta e historiador, culto, erudito e viajado” e penetra nesta poesia “cheia de entrelinhas”, para descortiná-la “intensamente humana, e humanista”, e, encostando o barco no cais de um rio próximo de veredas, ressalta virtudes intrínsecas da arte de Peres, para ele, poeta que elabora uma poesia “com humor, sempre; de irônica cumplicidade ou de irada sátira. Poesia enxuta, essencial, cabralina”, e até “um pouco oleiro”, como um Deus de “Criação” – palavra de um estrangeiro, “segundo a lei”, e de “um bispo rigorosamente ortodoxo, segundo os cânones”.

O poeta que nunca foi modesto, diga-se, em dúvida de se reconhecer em crise mística, não dá por menos e manifesta o desejo de ter suas cinzas lançadas “no encontro do Rio Negro, com Solimões, na Amazônia”. Visivelmente irônico, completa: “É preciso ser nacionalista. É bom descobrir o mistério da natureza. Sou da floresta, sagitariano, de Oxóssi, mas necessito de água”, já anunciando aos desinformados um outro livro, a que dá o iniludível título de Bula Pro Nobis.

            De fato, despindo-se cedo das influências de estreia, marchando sem cicatrizes de reverências e dependências, Fernando da Rocha Peres sempre deixou sua indelével marca de poeta, expressa por um zelo de construção, em que a forma, sempre limpa e esculpida, se incrusta como que no peristilo de uma catedral gótica ou nas arcadas de um palácio ducal, mas, por cujas colunas, altares, vitrais, frinchas e volutas, sempre há como fazer passar um sopro de inovação e transgressão, avalizado com um sinete de  linguagem, que é sinônimo de modernidade, civilização, espiritualidade e garbo. Diante disso, somos obrigados a pedir-lhe a bênção…

Apenas pouco mais de um ano de presentear o neto e amigos com uma plaqueta-envelope de poemas bilíngues (português/italiano, Criancices / Bambinate, com tradução da professora Sylvia La Regina e desenhos de Sante Scaldaferri), Fernando da Rocha Peres desembarca nas ruas centrais e antigas de sua Salvadolores, como ironicamente passou a rotular a fundante capital da Bahia, com mais uma de suas “estranhuras” em letra impressa -, sobraçando um fulgente livro, tanto pelo imaginativo da construção poética, quanto pela excelência do conteúdo editorial e gráfico.

Chamou-o de Fantasiosa Lafímbria – Poema e soneto onímodo, publicado pelas Edições Égua Dor, ilustrados a crayon e lápis de cor pelo gravador e escultor Emanoel Araújo. Mais uma obra desse fecundo produtor de livros; com este, são vinte - 12 de poesia e oito como ensaísta, se respeitarmos a sua incontida inclinação para a facécia inofensiva e aceitarmos a nunca explicada decisão de secretamente expurgar de sua bibliografia os dois livros de estreia, Diluviano, que inaugura sua propensão para os títulos caprichosos, e Rurais, ambos de 1965.

Guardadas as insinuações jocosas do título, montado em invencionices e travessas peregrinações linguísticas - do clássico para o barroco e deste para o mergulho nas modernidades do Sinhô Mário e outras peripécias venturosas do guru de 1922 -, cuja significação, ele, viciado em redescobertas e labirintos, de avisança em avisança, insinua, mas não explica; prefere sair do convívio com as aventuras de sua sábia Lafímbria - virgem e bela, seios duros/ do seu exílio voluntário, com súcubos, criando orgasmos naturais humanos – porém, surpreendentemente infecunda, com a sensação de que foi pajeada, em festa de idílio e sátira, como vivente de múltiplas épocas, quadrantes e raças.

O ritmo do galope nas andanças, ora em decassílabo, ora falseando o trote das sílabas, para mais ou para menos, não titubeia em passar da “savorança lírica, mergulhando no erótico, até no obsceno (“…no banho, aguasilente pura/ caía no seu colo e vagina eterna, sim, / de penugem negra florestal, deleitosa), em elocução que alude a desigualdades sociais, presentes nas “variegadas epidermes” (negras/ brancas, amarelas, vermelhas e muitas/ mulatinas, mistas, nos desertos e florestas).

Musa ou medusa, personagem ou mito, mulher feita ou flor menina, princesa de antes e de depois, Lafímbria é um azougue de feminilidade militante, que vem de longe, redescobrindo, atravessando e dominando olimpos, reais e míticos, do Oriente vasto, de contornos camonianos ou pessoanos, até o Ocidente, suplantando mapas do Velho Mundo manchado de impérios e batalhas, montado  “em cavalos e bestas bravas/ das lonjuras de espanhas e argélias”, às vezes metida em sedas e tules, às vezes não, até desembocar no Ocidente do Ocidente, em Amazônias e Recôncavos, para viver, melhor contar e curtir fábulas “entremeadas de golpes hodiernos,/ rapinagens nos cofres da res pública”. E não precisamos mais dizer aonde chegamos, “pois Lafímbria acena e chama das neves/ abismos e distâncias eternas, ventos/ patagônicos, lagos desbundantes, infinitus”.

Não, não pensem que findou. O “Soneto onímodo” encerra essa primeira parte, mas logo se abre outra cartorial, de “Apensamentos e Enquadres”, em que, como numa peça de teatro ou num filme surrealista, de Jean Cocteau ou Buñuel, o “leitor presumível” é convidado a ajuntar, se quiser, “ao final de alguns dos poemas”, lidos, que são 30, “versos que seguem”, a título de “boa ajuda”; e é tudo que o poeta, espera: atrelar ao todo de antes a trepidação mordaz da crítica social com invólucro de sátira, enfeixando a narrativa com uma pergunta:

“Onde estão os allons enfants… de antanho?”, para logo finalizar, respondendo: “- Atrás da cannabis, do hip, rap, help./ E tudo fica no pregão, bolsa, giros/ de mercadistas, globalistas, istos, istas…”. Pode-se pensar que se trata de um jogo fácil de erudição, mas, na realidade, se trata de exercício de pessoa culta, que não se perde no vazio das cogitações inúteis. Ironia, sim, há muita, mas estética em verso, também.

Recordo que saudei Fernando da Rocha Peres em muitas de suas redondas celebrações de idade, no momento em que ele engrenava marchas de lúcida maturidade “na curva dos cinquenta”, anos depois, vislumbrava-o, sessentão, gentil-homem, postado entre figuras consagradas pelo maneirismo de El Greco; na porta dos 70, louvei sua decisão de comemorá-los diante das Cataratas do Iguaçu, na companhia de sua doce Urânia, dos rebentos Daniel e Maria Fernanda e dos netos Paula e João. Hoje, após dez anos, comparo a sua jornada com a de outro poeta, W. B. Yeats, que, produzindo uma poesia que já o destacava entre os maiores da língua inglesa, viu-a ganhar impressionante impulso a partir da maturidade, assomando o pódio da poesia como um dos maiores do século XX, em 1915, já completados os 50 anos.

O trajeto de Peres tem semelhanças com o de Yeats, ao atingir um patamar criativo sempre ascendente, a partir de seus livros Mr. Lexo-tan e Outros Poemas (1996), Febre Terçã (2000) e Estranhuras (2003), mas o baiano não precisou de um Ezra Pound a seu lado, como secretário particular e leitor preferencial. Subiu a rampa do estrelato sozinho.


MATTOS, Florisvaldo. Academia dos Rebeldes e Outros Exercícios Redacionais. Salvador: ALBA Cultural, p. 350, 2022.


DUAS ESTAÇÕES EM RUY ESPINHEIRA FILHO


Florisvaldo Mattos

 

Esses dois artigos sobre a poesia de Ruy Espinheira Filho foram contemplados com datas e destinos de publicação diversos. O primeiro serviu de introdução ao livro Poemas de Amor e Morte – Antologia & Inéditos (Salvador: Assembleia Legislativa / Academia de Letras da Bahia, 2015 – Coleção Mestres da Literatura Baiana v. 10), enquanto o segundo funcionou como resenha publicada na revista Poesia Sempre, número 34, Ano 17 (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, pp. 207/215, 2010).

 

1 - Poeta de claridades


Contando com mais de quatro dezenas entre livros de poesia, ficção, crônica e ensaios, desde que começou a publicar, em 1973, Ruy Espinheira Filho é seguramente o mais editado das recentes gerações de escritores baianos. Não me recordo de outro nome que tenha atingido esta marca. Ampliando o raio de projeção, não me parece que haja outro que se compare na geografia de desigualdades da literatura brasileira. Agora vem-nos o poeta com uma antologia pessoal, que integra a bem-sucedida Coleção Mestres da Literatura Baiana, nascida e mantida pelo esforço conjunto da Assembleia Legislativa da Bahia e da Academia de Letras da Bahia, sob o título de Poemas de Amor e Morte, reunindo 132 de suas criações, inclusive inéditos.

Diferentemente das organizadas por críticos, admiradores e outros, suponho que as antologias pessoais de poesia preservam um toque de mistério em sua compilação, a começar pela insondável confluência de fatores que intercedem na escolha dos poemas que dela devem constar, em que se esgrimem as preferências do autor com as que ele próprio sabe que perduram e seguirão perdurando. Estabelece-se então um pérfido conflito, a acentuar em princípio essa laboriosa e prazerosa missão; para resolvê-lo, terá de tomar um rumo espiritualmente aleatório, embora incontornável, deixando de ser refém de suas próprias preferências e delegando a tarefa às próprias musas que o inspiraram, enquanto o destino dos poemas compilados prefere que passem a pertencer à consciência de seus leitores. Semelha um pintor que faz uma retrospectiva temática de sua obra em um museu ou galeria de arte: se o denominador estético não for pecuniário, terá que transferir a sua escolha a deuses ou às musas que o inspiraram.

De qualquer forma, vencido o imbróglio opcional, os temas de todos os poemas permanecem no íntimo do poeta, porque a ele pertencem, porquanto que a ordem de sua criação foi determinada pelo senhor da vida e da morte – o Tempo, que soberanamente fará dessa antologia um conjunto de produção poética admirável, desde que numa sensível carga ligeira de 90 poemas homenageia Eros, o deus do Amor, enquanto na outra parte Tânato, que personifica a morte, presidindo a 42 poemas, mais parece um melancólico comparsa de Eros, pois, irmão do Sono, como refere a Ilíada, sintomaticamente se mostram ambos filhos da Noite, como sancionou Hesíodo. Em número de poemas (mais que o dobro), nem tanto por assegurar na essência a continuidade das espécies, mas pela forma de criança alada que a poesia lhe conferiu – e daí tantas evocações em versos à infância –, a presença de Eros domina a maior parte do livro, não como um gênio todo-poderoso, porém como forma que concentra indefinidamente tanto alegrias como insatisfações, e por isso enreda sugestões que não alijam Tânato para sempre da ordem das coisas.

Está a compilação dos poemas, como o quiseram as Musas, ou o poeta, posto em sossego. Saio da leitura com a mesma admiração e prazer já antes mais de uma vez manifestados, a começar por uma quase lúdica fluência verbal, presa a uma acentuada crença no valor e eficácia das palavras; por não se lançar o poeta em aventuras formais, que tanto cativam o exercício da poesia desde décadas, preferindo retirar de sua forja lírica versos ditados pela paixão, sem rebuscamentos de linguagem e, por isso, sem jamais profanar a descrição da beleza. Certa vez eu disse, ressoando uma opinião de Robert Frost, que Ruy Espinheira Filho pratica uma poesia que parece emergir e se instalar quando emoção e pensamento se encontram e ambos encontram a palavra que os expresse, sem apelos a construtivismos ocos, a modismos e compromissos de ocasião. Conscientemente, trava uma relação íntima com a vida e o universo, tudo pela sutil vigência de uma índole romântica e, por causa disso, dores, mágoas, decepções, ausências, lutos, coisas de um ontem ou um hoje desagradáveis, em seus versos se transmutam em formas e sugestões verbais, que permanecem no íntimo de quem o lê e prosseguem sem esgotar os efeitos da criatividade de um lírico autêntico.

Em seus versos, transita uma infinidade de abstrações de fundo sensível, que se traduzem em meditações sobre a morte; amores correspondidos, sentidos e vividos, assim como lamentos pelos não correspondidos, mas também lembrados; amizades e perdas; suaves manhãs, lamuriosos poentes, tardes e noites luxuriosas; agradáveis domingos, em mansas ruas e praças, melodiosos encontros a que se associam infinitas estações, como também viagens por caminhos, mares e ares, em que a emoção tece uma realidade de sentimentos puros que em si mesma vibra e transcende. Em tudo, se observa um admirável construtor de versos, tanto na entonação lírica, como na condução rítmica, na lucidez do enunciado, qualidades que fizeram certa feita, na apreciação de livro seu, o saudoso poeta, ensaísta e tradutor Ivan Junqueira dizer, em frase, tantas vezes repetida, que não encontrara neste poeta “um único poema que se possa qualificar sequer de frágil”; em verdade, pelo trajeto iluminado da técnica que é a forma com que o poeta demonstra sinceridade em seu ofício.

Confesso que, além das amplas e múltiplas qualidades deste poeta, dois aspectos neste livro me incitam comentar. Ruy Espinheira Filho é um poeta de claridades, tantas são as formas verbais, sugerindo ambientes de cores suaves e tranquilas, que nele desfilam ao longo de grande parte dos poemas, mais incidentes no conjunto dedicado ao Amor, fazendo supor que, nele, a sensação visual rege todas as outras, diferentemente talvez, por ânimo estético, para ficar apenas em dois poetas, das apoteoses óticas de um Sosígenes Costa ou das clareiras míticas de um Jair Gramacho.

Nesse aspecto, um poema em seguida a outro deixa essa impressão. Aqui (“Eurídice, Orfeu”), a heroína Eurídice harmoniza-se, “numa só ternura, doce / chaga / cintilando no peito / de Orfeu”; ali (“Cristal”), a amada que aguarda o amado, de “olhar sereno” e “rosto de alba”, fitando-o “clara, matinal, / de dentro do seu / intocável cristal”; acolá, em “Voo cego”, é o pássaro que retorna “como em / outras tantas madrugadas”, trazendo em suas asas “frágil perfil contra a aurora”; logo depois (“Campo de Eros”), a inescapável palavra Amor “acende uma / lua no peito, e tudo mais se esfuma” e, por fim, resta “trucidado em flor”; em um soneto, é a amada que tem “olhos de água marinha”, de “água límpida”, / “cintilante de tão negra”, para amanhecer o poeta “no azul do peito”; quando não o pirata naufragado, que confere à amada, “aquele aroma / de rosas, sorrisos e um / amplo luar”; quanto à musa, a dúvida é somente se a ama em “seu doce perfil na tarde / ou só seu vestido branco” (“A musa”); um nome que não diz “cintila ao sol, ao luar / e na lembrança do mar” (“Nome”); ou é o da amada que “se dissolve numa brisa” e “ele a sonha com um sentimento / de nuvem” (“Leveza”). Na paradigmática “Canção branca”, o poeta começa por dizer que “era tudo luar” (…) “era tudo um brilho, uma canção / branca / cantando a adolescência”, “que ainda canta em mim quando a lua / me contempla”.

Em “Mulheres”, quando pensa nelas, um redundante concerto de sugestivas palavras se ajusta, “em sonhos matinais”, para saudar a claridade, desde “notícias de pôr do sol”; pensa nelas, recordando “suas luzes”, mesmo como “praias, bosques, horizontes / em dia claro e às vezes / relâmpagos”, para que delas jamais se vá. Lá no seu Sudoeste (“Passeio”), não cai a noite, “fica suspensa / de um último olhar do sol” e, por isso, para lá sempre volta. Em “Até que a morte nos separe”, o riso da amada “é límpido”, o “corpo é claro e suave”; juntos, amada e amado, caminham “pela estrada de areia branca”, pois “em breve o sol dominará o céu, / reabrirá as praias, / despertará a cidade dos homens”, para que ambos jamais precisem de repouso. Em “Celebração”, “a manhã será luminosa” e “grande e belo será o dia”. Na memória da amiga (“Rosa”), uma janela se abre e, logo, “há muita luz”, tanta que os “olhos chegam a doer”, e, por ser rosa, no poeta ela se abre e arde como “secreta e rubra primavera”; quando numa “Súbita canção de névoa”, dela surge a amada e “repousa na lembrança”, como uma dor “luminosa e quase criança”. Em um “Soneto do sonho”, é dele que vem a amada – “clara e nua” e a lua faz vir a já “cintilante poesia” de um “corpo em luz de lua / e calor de ternura densa / e olor de mar, e azul”, e então amá-la, “agradecido à lua”, e “viver uma quimera / como sempre a sonhara: clara e nua”. Mesmo numa “Antielegia de agosto” (saudosa homenagem à memória de Drummond, em decassílabos rimados), “Era só caminhar na claridade / e semear a terra e ter vontade / de amanhecer no azul que amanhecia”. (…) “Em nós, ainda, / traça seu sulco, que não finda / essa rosa, esse canto, essa palavra”.

Ante este contínuo, vasto e luminoso varal em que o poeta estende as suas esplendentes peripécias de amor e paixão e o abraça com emoção forte e peito aberto, registro outro aspecto de seu rico lirismo, o do Ruy Espinheira Filho sonetista. No que pude contar, são 28 os sonetos desta antologia, pinçados de dezenas que compõem sua extensa obra. E, conhecendo-os, entre publicados e inéditos, não corro nenhum risco em dizer que se trata de um de nossos poucos poetas capazes de deslindar o que Jorge Luis Borges vislumbrava como um mistério no soneto, seja no modelo italiano de dois quartetos e dois tercetos, ou no inglês shakespeariano de três quartetos e dois versos parelhos. Para ele, surpreende que uma forma poética, que pode parecer arbitrária, tenha atravessado tantos séculos (quase dezoito) e geografias, mostrando-se “capaz de infinitas modulações”. Não há verdade maior; e é, por isso, que o soneto impávido sobrevive, menosprezando teorias e correntes estéticas e suplantando todas as marés do gosto, em sua consagrada rota, e com tal personalidade que, para ficar entre brasileiros, um soneto do parnasiano Olavo Bilac (1865-1918), lavrado no século 19, logo identificável, nunca se parecerá com o de um árcade do século 18, como Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), assim como, entre os modernos praticantes da forma, um soneto de Jorge de Lima (1893-1953) possa ser confundido com um de Vinicius de Moraes (1913-1980), tanto quanto em distâncias maiores, mesmo entre satíricos, nunca se dirá que um soneto de Sílvio Valente (1919-1951), o famoso Pepino Longo, contém traços ou elementos de um do setecentista Gregório de Matos (1623-1696), o mais famoso ainda Boca do Inferno.

Pois é, quanto ao Ruy Espinheira Filho sonetista, que o exercita preferencialmente no modelo italiano, não preciso explicar as suas sobejas qualidades, desde que em poesia argumentos de técnica e estilística não convencem e, neste caso, este nosso poeta por si mesmo o faz com o que cria. Nele, tudo que se pretende encontrar num soneto, lá está, seja a intensidade da entonação lírica, seja o diálogo que as palavras travam entre si no fortalecimento da emoção, sem apelo a abstrações vazias ou devaneios temáticos. Por isso, o soneto consegue o privilégio de ser a única forma poética que obriga a ser lida de uma só vez, sem interrupção, desde que tem mais a ver com a intensidade do que com a extensão. Ruy se situa dentro deste memorável padrão, ao construir sonetos de enunciados verbais, claros e emotivos, que fluem com linguagem simples e se firmam na mente e na alma do leitor como autênticos objetos de arte, enquadrando-se perfeitamente no cerne de sua poética, na qual tem força de presença o passado, porque nele se finca o ângulo agudo do presente por onde enobrece e exalta as emoções e, com elas, a vida na sua totalidade.

Em 2012, convidado a falar em um seminário na Academia de Letras da Bahia, em que se comemoravam os seus 70 anos de idade, por feliz ideia e coordenação da escritora e professora Evelina Hoisel, depois de realçar uma relação de amizade que supera os 40 anos, fixei em três pontos as qualidades que justificavam a minha admiração por Ruy Espinheira Filho: a fecundidade criativa do poeta e do escritor, aqui já citada; seu notável amor e devoção à leitura e à escrita, que embasam a sua vitoriosa carreira literária, destacando-se a obra poética; e o papel que desempenham em sua poesia a memória e o tempo como potencial de criação. Encerrava, afirmando que, ante as contradições com que o mundo de hoje nos injuria, seguia tranquilo e confiante, como sigo, desde que continuem a existir, escrever e publicar poetas múltiplos dessa estirpe, a mostrar que a poesia subsiste como uma das necessidades primordiais da vida e do ser humano. E esta antologia só faz confirmá-lo, como prêmio e homenagem a seus leitores.

E julgo que assim o será, pois é o próprio Ruy que, sincero e esperançoso, num de seus inéditos desta antologia, “Soneto da alma como um rio”, associado ao grego Heráclito, afirma:

Contou-se um conto e agora já mais nada / se reflete de mim. Só há o frio / cantando uma esperança naufragada. // Não tem culpa tua alma desse frio / lembrando-me que sou água passada, / pois, como rio, é sempre outro rio…

 

2 - Paixão e prazer da poesia


Em um elegante e alusivo texto que lhe serve de “orelha”, Marco Lucchesi sintetiza e nos apresenta Sob o céu de Samarcanda, o novo livro de Ruy Espinheira Filho – o corpo transparente da palavra assumida numa geografia aberta” reunindo nada menos que 73 poemas, sobre os quais não seria demasiado dizer, mesmo com risco de pleonasmo, que, mais do que se mantém, prossegue o autor na “linha coerente e ascendente” que deu a Alexei Bueno o direito de considerá-lo, desde o seu primeiro livro, Heléboro (*1974), “um dos maiores poetas líricos brasileiros da segunda metade do século XX”.

Nada disso me surpreende, nem a evocação de uma cidade remota, onde mergulham energias e alquimias líricas que só a memória de um artista verdadeiro restaura, seja a Samarcanda visitada por Ornar Khayyam, ao luzir luzente embalo de sonho e vinho, fosse “a cidade santa de Bizâncio”, para onde velejava Yeats, mesmo que não fosse mais terra para ancião, mas convicto de que alguém, ao despertar, poderia ouvir o seu canto “do que passou, ou passa, ou há de vir”.

Mas, Ruy Espinheira Filho mal completa 67 iluminados anos e, com este, soma uma dezena e meia de livros de poesia publicados, com o espírito aceso e aberto à vida, ao tempo, aos sonhos e a uma irrefreável força de criar, que o autoriza a professar, e legitimamente proclamar, como o fez certa feita, a sua condição de escritor profissional: “Literatura é, para mim, vida […] tudo que toca a minha literatura toca a minha vida, pois é dela, da minha vida, que é feita a minha literatura.” Enfim, um profissional de literatura que, embora sujeito à circunstância da luta pela vida, entrega-se à atividade literária com ardor e fé.

Nada disso também me surpreende, desde que, de muito, acompanho a sucessividade ascendente desse criador contumaz, que o faz merecedor de apreciável fortuna crítica, a começar do seu primeiro livro, quando Antônio Brasileiro já o tinha como seu poeta preferido, “após Drummond e Pessoa”, o que, lógico, o põe entre grandes da primeira metade do século passado. Na realidade, desde As sombras luminosas, com que empalmou o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Souza (1981), não lhe têm faltado credenciados julgamentos a cada livro que publica. Logo em seguida a esta láurea, Antônio Carlos de Brito, o saudoso Cacaso (1944-1989). o apontava como uma referência importante na renovação que então se vinha processando no lirismo brasileiro, confirmada a cada obra e a cada mostra de eficaz e requintada técnica. E se deve a Ivan Junqueira, autor do melhor ensaio sobre sua poesia, uma frase lapidar que envaideceria poeta de qualquer latitude, ao confessar, após a leitura de seu Julgado do vento (1979), não ter encontrado ali “um único poema que se possa qualificar sequer de frágil”.

É justamente este consagrado poeta e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, que dedica um penetrante ensaio (“O fio de Dédalo”. Rio de Janeiro: Record, 1998), de análise de toda a poesia de Ruy Espinheira Filho, até então, em que a define como portadora, em sua vertente primeira e mais funda, de uma espécie de lirismo elegíaco, pela evidente atuação representada por uma “obsessiva e confessa vocação do pretérito”, a lhe marcar o ritmo poemático, sem lhe negar, a par de uma severa competência formal e confortável governo das estruturas rítmicas, a funda coerência interna de toda sua obra.

Aí se encontra a pedra de toque de quase toda a poesia de Ruy Espinheira Filho, o papel que nela desempenham a memória e o tempo em seu trajeto criativo. A meu ver, isto se deve a uma poesia que fala do homem e ao homem se destina. Vinda do fundo da infância e da adolescência, em cidades vividas e sentidas, essa arqueologia da memória configura, refigura e transfigura experiências que projetam e conformam, em sonho ou vigília, a essência da vida do poeta. Sempre profundo, o rio heraclitiano em que se banha lhe franqueia margens ao marulho de suas águas jamais tranquilas.

Como neste vigoroso e latejante Sob o céu de Samarcanda, onde já de início o aprendizado perplexo de si mesmo se insinua pela displicente presença de um passarinho – o bem-te-vi, cujo trinado lhe ensina de que se compõe o dia, conquanto, alerta, ele próprio suspeite: “se o tempo passar um pouco, / nada mais que um pouco, logo / não estarei mais aqui” (“Canção do efêmero com passarinho e brisa”).

Essa latente pulsação do tempo age como um implacável dínamo a mover as engrenagens da memória, como forma de ver, sentir e interpretar o mundo com todas as inexoráveis potencialidades do ser, do ser homem estupefato com o transcorrer das horas, dias e anos, e com coisas e pessoas, que viveram e morreram, mas que permanecem na recordação. E é a palavra o motor que faz com que se mova esse cosmo vital.

Borges remonta a uma afirmativa de Oscar Wilde, segundo o qual “um homem em cada instante de sua vida, é tudo o que foi e tudo o que será, todo seu passado e todo seu futuro”. Evocando a poesia de Ruy Espinheira Filho, digo eu, se válido esse ditame, a persistência da memória avulta-se como fator dominante sobre a realidade. No entanto, por maior festa e alegria que insinue o ato de recordar, não há como não perceber nesses trânsitos do existir um travo de melancolia, ainda mais quando se impõem as regulagens sensíveis da maturidade. Sob o céu de Samarcanda é obra de um lirismo maduro, tanto no pensar quanto no fazer.

Paixão e prazer norteiam a reflexão e a artesania verbal deste poeta; ambas juntam, num só amálgama, amor e consciência de um mesmo agir. Ele mesmo, o poeta, já o dissera judiciosamente, recordando Mário de Andrade, que “a arte vai além das técnicas empregadas, é obra do artista, arte feita sempre com carne, sangue, espírito e tumulto de amor”. Eu mesmo, sem possuir as agudezas críticas dos que o têm enaltecido, o qualifiquei como um mestre em transformar o cotidiano dos homens em matéria de eternidade e palavras em realidade. Todos reconhecem e exaltam a sua excelência no manejo das palavras e na construção de um estilo próprio.

Apreciando seu Livro de sonetos (2000), André Seffrin analisa percucientemente e exalta o seu processo criativo, a propósito de seus sonetos.

“O que é o poema para este autor? É principalmente uma iluminação, uma epifania, uma abertura da temporalidade por meio da palavra, um túnel que interliga tempos.” Tal manejo de forma também fascinou esse exigente crítico, como uma exuberante prova de naturalidade, a mesma que percorre toda a gama construtiva da poesia de Ruy Espinheira Filho. “Tudo nele é matéria, e os seus jogos inusitados, a sua habilidade técnica, não procuram apenas atrair, mas conquistar. Conquistam e magnetizam o caminho do leitor”, assevera Seffrin, ao defrontar-se, nessa instrumentação lúcida, com poemas desnudados de pompas e “adereços farfalhantes”, longe de acessórios e eventuais adornos. (SEFFRIN, 2000).

Esta forma natural de expressar o pensamento, sem logicamente prescindir das habilidades técnicas, fez Ivan Junqueira reportar-se à célebre definição de poesia exortada por William Wordsworth, que via no ato poético “o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos, que tem sua origem na emoção recolhida num estado de tranquilidade” (2005). Ruy é, no fundo, ideário como uma forma de libertação da alma. Assim, Junqueira o vê como que enlaçado às reminiscências de sua infância e adolescência – todas ainda talvez mourejando nos espaços e tempos das duas cidades que dormitam em seu íntimo, Poções e Jequié, no sudeste baiano –, a sentir e criar, como Wordsworth, “emotion recollected in tranquility”, aí provavelmente flagrando “o segredo, ou o sortilégio, da grande poesia, aquela em que fundo e forma são uma coisa só”.

O que é, de alguma maneira, para usar uma cogitação estética de Anderson Braga Horta, pensar a poesia como a arte de criar ou de captar a beleza por meio da palavra, expressada numa estrutura verbal facilmente decifrável, como o faz Ruy Espinheira Filho. Sabe-se que só a emoção permite a ocorrência de tal fenômeno, quando o poeta intencionalmente busca ideias para suas palavras, em associação com os ritmos que elege – seus singulares atributos de tradutor do discurso cotidiano, com isso fazendo renascer e reconhecer-se a si próprio, como ensina Paul Valéry, tratando da linguagem poética em estudo sobre a lírica de Virgílio (Variations sur les Bucoliques, 1956).

Consciência idêntica se manifesta nos versos com que Espinheira ordena este seu Sob o céu de Samarcanda, onde não se encontram, repetindo a observação de Ivan Junqueira, rastros de fragilidade artesanal, mesmo na lúdica experiência com a poesia de cordel, narrando, em quadras de redondilha, um drama rural que não faria feio em sessões de repente de qualquer feira do interior do Nordeste (“Romance do Sapo Seco: uma história de assombros”), de que não se ausenta a agilidade da narrativa no encadeamento rítmico, a confundir-se com os trejeitos que conduzem ao desfecho de uma bem imaginada tragicomédia criminal.

Neste livro, todos os poemas praticamente cumprem o papel luminar de transmitir e despertar emoção em quem os leia, pela naturalidade com que o poeta transita por variadas estruturas rítmicas, sejam versos medidos ou não, formas curtas ou decassilábicas, ou até alexandrinos, reafirmando entre outras habilidades a de sonetista, que levou André Seffrin a lhe atribuir o poder de nos colocar “novamente no esplendor do gênero”, sempre um desafio a quem a ele se aventure. Neste item, eu próprio o emparelho com o melhor Vinicius de Moraes, enredado nas contendas do amor ou mesmo quando encara e decifra tramas do labirinto existencial.

E se facilmente todos projetam estados emocionais, destaco alguns que mais de perto tocam a minha sensibilidade, desde os que persistem na recorrência de temas em que subsistem poderosamente a memória, os sonhos e lugares percorridos em tempos de infância e adolescência, aos que imprimem força mítica na evocação de personagens e geografias de passados próximos ou distantes. Seja quando maneja em tranquila transparência lírica a técnica do soneto, como em “Soneto de uma luz” ("Foi ali que morri, naquele dia./ Lembro que estavas, como sempre, bela, / na mesma luz de ti, cálida, aquela/ que me acordou do que me adormecia/ a vida. […]").

Seja quando persiste em reincidências temáticas, e a memória assume foros de metalinguagem em proposta de subjetiva autodefinição, como em “O que somos”, tomando o verso curto (redondilha maior) como instrumento, em dísticos ("Críticos dizem do poeta:/ um lavrador de nós mesmos, recordamos // nosso enredo nas batalhas. / as bandeiras, as mortalhas, // as trevas, as claridades, / os olvidos, as saudades... […]").

Ou na fluência do rio existencial, heraclitiano sempre, em face a um duro escrutínio de vertiginoso passar do tempo, porém, ante o descer da “noite absoluta”, reacende-se, para a vida logo revigorada, a “alma nova”, que lhe desvenda outro amanhecer, como no “Soneto de velhice e almas”, que vale transcrever de corpo inteiro:

Também no corpo, sim. Mas sobretudo

é na alma que me sinto envelhecer.
Ouço-a cantar canções de adormecer
e me parece que, por fim, já tudo

está cumprido. Em breve serei mudo,
e surdo e cego… Todo amanhecer
se foi. Não há futuros. Vai descer
logo a noite absoluta sobre tudo.

Mas, felizmente, a alma que me fala
não é a única no meu enredo.
Visto-me de outra, a anterior se cala.

E, de alma nova, sou diverso, ledo,
ouvindo a voz serena que me fala
que para adormecer ainda é cedo.

 

Aí, o que se delineava senda de amargura e fatalidade, de repente ressumbra como potência de claridade, em novo despertar para a vida.

Há outro poema que se transluz em hino à soberania da emoção. É quando abruptamente se põe a deslindar ou vislumbrar, em clave de sutil e comiserada crítica, o outro lado da poética de João Cabral de Melo Neto, arrancando-o do avesso da construção racional que atravessa o mundo refletido em seu frio espelho. Este poema é a denúncia, em tom de sincero lamento, de uma poética esterilizadora da expressão verbal artística, que a corrói até lhe dar uma feição de óssea geometria. E tudo isso expondo o contrário da natureza íntima do poeta, no caso João Cabral, como entende Ruy Espinheira Filho nos nove quartetos em redondilha de “O avesso e o espesso”, onde começa sentenciando com incontido amargor:

Desconforta-me o poeta
escrever em tom avesso
à vida — dizendo o sangue
ser, mais do que o sonho, espesso.

Sucedeu que preferira
pedras, coisas, linha reta,
o que o levara a exilar
de si um outro poeta,

o seu avesso: um do verso
sem pudor de ser poesia
feita de coisas do homem
além da pele do dia.

Confrontado com esta opção-exílio em que, na sua visão, se perdera o autor de O engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947) e O cão sem plumas (1950) - obras que mais refletem a marca racionalista da poética do pernambucano -, de renúncia à emoção e ao sonho, em favor de uma espécie de mineralização do mundo real, distante da vida, em que “o processo de exigência formal é levado ao ápice por uma lógica implacável”, onde “a forma chega a converter-se em matéria”, obrigando o leitor a defrontar-se com uma poesia da poesia, dominada pela técnica poética, como assinalam Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate (Realidad y forma en la poesia de Cabral de Melo, Madrid, 1962), com versos lapidares, mas sentidos, Espinheira Filho deplora que ninguém tenha vindo “para romper esse espesso/ em que se fechava o poeta/ nesse mundo pelo avesso”.

Ou seja, como a evocar a sólida crença de Calderón de La Barca ou de Jorge Luis Borges na prodigiosa força dos sonhos:

Para ensinar-lhe que o sonho
é que faz o sangue espesso,
e a pedra, e a coisa, e a lâmina,
e de tudo isso o avesso;

que nada há mais do que o sonho,
até mesmo em seu avesso,
pois tudo é um sonho num sonho
que sonha - sem fim, de espesso —

sonhos do Mundo e de Vida,
e o espesso mais espesso
em que - vastos, abraçados
— sonham Deus e Seu Avesso.

Não há confissão mais cabal e lídima por uma opção estética. Tocam-me também o íntimo, na obra, poemas que evocam personagens, lugares e cenários de épocas passadas, mesmo que transpirem a laboriosa quietude de uma biblioteca ou a plácida textura das páginas de um livro, como a recuperar signos remotos, que o poeta elege como lanternas para clarear sendas à poesia dentro de noite vasta; ou sóis, em paraísos de manhãs e oásis. Nesta moldura, encaixa-se o poema que dá nome ao livro, Sob o céu de Samarcanda, que, em cenário de sonho e deleite, abre a Omar Khayyam as portas de uma antiga cidade do Uzbequistão, erguida no século V, onde se diz estaria enterrado Tamerlão (1336-1405), herdeiro de Gengis Khan. O autor reconhece e ouve o poeta, “embora/ nunca o houvesse visto antes”, tampouco a invocada urbe: “O céu, sob o qual falava, / cintilante, só podia/ ser o céu de Samarcanda […]".

Ali, ouviu o poeta do Rubayat, sem nada entender, porém, “de sua densa algaravia”, ficou-lhe a saudade “daquele sagrado instante/ e a esperança de que o mundo/ dos sonhos traga outro sonho”, que lhe penetre na mente, “guardando altas lições/ de ciência e poesia”, aquelas mesmas que na voz de Omar Khayyam “brilhavam, luziluziam/ como a suntuosa ciranda/ de astros, estrelas, mistérios/ no amplo céu de Samarcanda”.

Essas imaginadas cenas e cenários de passado semelham as cogitações de outro extraordinário, mas esquecido poeta baiano, Sosígenes Costa, quando em poemas de alta urdidura simbolista evoca terras e personagens longínquos – o rei Salomão, a rainha de Sabá, Salomé, São João, o imperador Tibério e o tetrarca infeliz filho de Herodes, entre outras figuras que emergem das brumas de outras civilizações e ficções.

Nesta mesma diligente clave de restauração de episódios do passado, situa-se o poema que conta a trágica história de Plínio o Velho (23-79), abatido na erupção do Vesúvio, que sepultou Pompeia, calcada no relato com toques imaginários de uma carta de Plínio o Moço (62-113) a Tácito, escrita 25 anos depois. Trata-se de uma peça em que Ruy Espinheira Filho expõe toda sua capacidade e limpidez no manejo do verso livre, explorando, em toda extensão e intensidade, o potencial de significação e ritmo das palavras, com cativante conjunto de versos distribuídos por cinco capítulos, com a fluência a reger o ritmo da leitura.

É uma laboriosa e reflexiva incursão pela seletividade do espírito e os rígidos códigos do culto ao heroísmo que governam a moral romana. O poema narra o insucesso de Plínio o Velho, que, vestido em sua túnica de ceticismo estoico, parece descrente e indiferente às hecatombes do trágico, mas logo submerso pela fúria da nubem inusitata. O poeta flagra esse heroísmo de conotações épicas, com ressonâncias camonianas, quando “era o nono dia/ antes das calendas de setembro” e, comandando a frota de barcos, “Plínio o Velho apenas estava/ em Miseno/ posto em sossego.”

E prossegue a narração, à base de relato de Plínio o Moço: o horror se instala em cenário dominado pela misteriosa nuvem em forma de árvore, com Plínio o Velho querendo ver de perto/ a nubem inusitata (...). Mas a nuvem e os abalos sísmicos que se seguiram foram mais fortes.

 

E lá se foi

até que começaram a vir

pedras e cinzas sobre as naves

[…]

Sem nada desconfiar

do engano de sua ciência.

Sem nada pressentir

da morte à sua espera

Na praia. […]

 

Aquele ilustre

ali

no sono da morte

desamparado pela ciência

e pelos deuses
que nenhum deles o advertira das fúrias
da Terra […]

 

O insigne homem, dito o mais culto do Império Romano, fora de repente colhido por vicissitudes que a natureza revoltada impunha aos mortais, pavoroso mistério, assemelhado ao de cenas representadas em um templo de Cartago, que tocaram o espírito de Eneias e o fizeram recordar com desventura a destruição de Troia - "Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt (literalmente: “São lágrimas das coisas, que tocam ao espírito dos mortais” - Virgílio, Eneida, v. 462). A maneira do grego Konstantinos Kaváfis e favorecido por idêntica emoção que flui em estado de tranquilidade, e tendo como chave somente a poesia, Ruy Espinheira Filho restaura o célebre episódio e, verso a verso, desvenda longínquo mistério das coisas em fúria, que toda o ânimo estudioso de Plínio o Velho não fora então capaz de decifrar.

Por fim, encerram o livro os “Sete poemas de outra era”, que o poeta antecipa com uma nota de sincera prova de seu respeito à técnica e de gentileza, para com o leitor, onde esclarece que os escrevera, julgando fossem prosas, por escritas “originalmente, de margem a margem das páginas”, mas que, ao relê-las, percebera mais se tratarem de poemas que de prosas: “de outra era, sem dúvida, mas poemas”.

Não havia necessidade de tal zelo, posto que basta a leitura para cimentar a convicção de que são todos realmente poemas. Embora se conheça a sua desenvoltura e brilho no trato com a prosa, em artigos, ensaios, crônicas, contos ou romances, sabe-se que a sua melhor e mais confortável condição se última no próprio ato de escrever, o que ele, num poema de raro tom que “sonha que escreve;/ escreve que sonha;/ quando sonha, escreve”, destino e vocação, que convenceram Miguel Sanches Neto, comentando o livro, de que “o poeta escreve com o intuito de criar um espaço linguístico luminoso”, pelo qual Ruy Espinheira Filho, digo eu, incessante e desenvoltamente transita.

É o que ocorre nesses sete poemas que concluem o livro, consumando-se em todos eles as vertentes por que andeja o seu poder criativo. Espinheira Filho não se acanha a confessar-se um profissional da literatura, porque esta é, para ele, vida. Mesmo ante os desvios que o árido cotidiano venha lhe impor, tudo o que este poeta escreva terá de ser, em essência e por fatalidade, sempre forçosamente poesia, e poesia expressa em poemas, mesmo que sob máscaras linguísticas. É ele quem afiança, no mesmo poema citado: “quando escreve, sonha;/ tudo é o mesmo sonho/ fala em sonho, escreve”. Não há que invocar teorias estéticas, posto que basta estar-se atento ao ritmo das frases, isto é, à sua musicalidade, sugerido pela própria estrutura e significado das palavras, sem mesmo descurar-se da métrica. A leitura comprova que o encadeamento poemático norteia-se nessa direção: não é poema em prosa nem tampouco prosa poética; é poesia mesmo, sublime e verdadeira.

No primeiro poema (“Graal”), em que o poeta não se furta, com presumível surrealismo de inspiração liliputiana, a espalhar por versos e estrofes termos e formas exóticas, que fogem ao cotidiano dialetal e ao plano da sintaxe e da semântica comuns (albiônicas, ventoim, róridos, lúnicas, estou em ônix, sombras úmbrias, trúdinas, diamância, grusmam, lacustram, tigrino, quelônio, diatomáceas, iguanos), estão claros a construção e o andamento poemático da forma verbal.

 

Hoje, zurzindo azul,
as ondas albiônicas espumam
em meu peito. Venta
em ventoim. Rumoram
falanges, alfanges. Direi, sim,
de como e quando grusmam
palomas; decifrarei
os róridos de junho; revelarei
as dunas lúnicas. Não
me compreendem? Amanhã,
amanhã serão inconsoláveis
os que se abrigam
no opaco.

 

Além das intencionais asperezas e da forma intrigante, atomizadora do real, à maneira do francês Henri Michaux, na verdade aí se denunciam expressões forjadas na cadência das palavras, em que se podem até perceber incursões de métrica, incluso interna. Em tom evocativo de narrativas infantis, personagens, lugares e cenários de um tempo imaginado ou vivido, neste e noutros poemas, a ciência do processo criativo faz supor que, embora não intencionalmente, na concepção poética, até parecem viger lições do velho Ezra Pound, seja por sempre se dirigir diretamente à “coisa”, subjetiva ou objetiva; seja no uso de palavras carregadas de significação; seja pela nítida atenção dada à cadência musical das palavras - enfim, poesia com autoridade construtiva e sinceridade de emissão.

Do ponto de vista conceitual, recorrendo à memória, ao tempo e aos sonhos, sente-se que o universo moral e sentimental desses poemas trava uma guerra latente contra o niilismo e responde por uma necessidade de reintegração total do ser humano e de luta por conter ou eliminar a sua fragmentação numa sociedade e numa época propensas à esterilização da vida, ao desperdício e ao vazio; enfim, um combate à passividade e à exaltação da vida material, em detrimento das forças do espírito, um libelo contra o fragmentário e o descontínuo. Mais uns que outros, a tônica da expressão lírica segue por esses caminhos e propósitos restauradores da humanidade no homem, conferindo a esses poemas a primazia de clímax inapelável e conclusivo de todo o livro, o que corrobora o último poema do conjunto, “A ilha Maria”, um hino ao amor total finalmente encontrado e vivido, de humanização que se transfere de lugar para pessoa, através da mulher amada: “A ilha Maria é a mais bela de todas./ A mulher Maria é a mais bela de todas./ Nas areias da primeira/ e nos braços da segunda/ quero estar ainda esta noite.”

Seja em Samarcanda ou fosse em Bizâncio, em Ítaca ou na terra dos cimérios, fosse em Pasárgada ou na Atlântida, seja fazendo ressoar o ouro e a prata do lirismo de poetas verdadeiros (Pessoa, John Donne, Bandeira, Drummond, Borges, Sosígenes Costa), Ruy Espinheira Filho firmou seu posto na crista da atual poesia brasileira com forte noção de modernidade lírica, distanciando-se das distorções e hipertrofias que, com frequência, a assolam e rebaixam, sob múltiplas capas de justificação estética, conseguindo-o pela imorredoura capacidade de mergulhar, como perscrutou Cid Seixas, “nos desvãos da memória”, para de lá “retirar o lirismo pessoal e transferível”, isto é, “o tempo morto que não se perde”, guardado vivo no espírito.

Neste livro, assumindo e construindo uma poesia cujo lirismo alça-se a uma altitude que a toma imune às degradações e desumanizações do presente, Ruy Espinheira Filho prossegue no luminoso caminho de busca e captação da beleza, montando estruturas verbais, de que brotam o poema como expressão de vida e a poesia como trânsito de eternidade, com que, na plenitude de suas intuições sensíveis e domínio de variados recursos poéticos, ergue a sua própria grandeza.

Após penetrar-se no universo de sua arte e fruir-se o que ela tem de poderoso e comunicativo, não seria exagero dizer-se que a forma e a crença com que se devota a escrever poesia fazem de sua obra a melhor tradutora, entre nós, do que proclama este famoso verso do inglês John Keats: "Beauty is truth, truth is beauty— that is al”, “Beleza é verdade, verdade é beleza — é tudo… 


MATTOS, Florisvaldo. Academia dos Rebeldes e Outros Exercícios Redacionais. Salvador: ALBA Cultural, p. 360, 2022.


Versos Fortes de Myriam Fraga


Cyro de Mattos 


Com obra densa, composta de doze volumes, Myriam Fraga (1937-2016) fazia sua estreia com Marinhas, em 1964 pelas Edições Macunaíma, editora especializada em publicações de tiragem limitada, confecção  gráfica sob a orientação do artista plástico Calasans Neto. Desde a estreia, uma poesia substantiva de acento forte comparece com versos que cortam como lâminas afiadas, expande seu processo criativo na confirmação da presença de uma poeta valorosa, intensa e lúcida. Seu estro levará a cabo a propensão de compreender o modo de vida traçado pelo mar, de se dizer memória da cidade histórica, onde  ocorre naufrágio com muitas mortes, amarugem de existências mutiladas. 

  A poeta viajante manterá relações com uma saga marinha munida de  anzóis e redes para imaginar manhãs, que anotam muito mais com uma dicção   substantiva do que qualquer descrição fisionômica, mais profunda do que qualquer tentativa  de interpretação psicológica ou pieguista de versos confessionais e românticos.  Os remos serão  a enxada para plantar a esperança e colher  o destino marcado de maresias. Nessa poeta de circunavegações com versos ríspidos, de face tatuada com  peixes, sargaços, búzios, algemas,  haverá a mudança de rotas na construção de uma poética com temas diversos, segura, firmada para acorrentar o tempo com ressonâncias de sonho, levado no embalo de ondas e ventos soprando sal e sombras. Ao invés de velas, cordames e mastros, a poeta pescadora de gentes e fatos históricos adiante vestirá a roupagem da mulher sincera  para tecer com ternuras impossíveis o feminismo, além de recorrer na travessia versátil à mitologia com aproveitamento de figuras e temas.

         Com o livro Sesmaria (1969), Myriam Fraga faz circular sua poesia no âmbito das invasões holandesas na Bahia. Sua alma romanceira e cancioneira quer falar agora dos holandeses que ocuparam a Cidade de Salvador com o objetivo de exercer o controle do negócio açucareiro. Com uma poética imantada de fúria azul e a violência com que o mar devora,  a poeta de incursões na memória projeta dessa vez o  olhar a cutiladas com aço na carne do tempo, marcado por personagens  que se tornam heróis e vassalos no palco da pugna. O tempo agitava-se no litoral com sal e sargaço, fecundava na  vigília a sombra da emboscada. Em episódios fulminantes no mapa de ciladas, no lado de cá do Atlântico, um reino poderoso preservava-se para o futuro com derrota e troféu. Dessa história formada de galeões ancestrais, ferocidades nativas, do vento e suas patas, nasce assim uma poética imperiosa e categórica construída com uma linguagem crescida em fortalezas e muralhas. Esta poesia belíssima, feita de fusões do discurso coeso, de diamante lapidado  com força e vida de mãos ásperas,  formado com os elementos estruturantes do lírismo, diferente, misto do dramático e épico.   

        Transpira nessa linguagem dotada de uma experiência poética das mais portentosas certo esclarecimento sobre dúvidas quanto à possibilidade de fundir os três padrões seculares no gênero de composição em verso, formulados agora na provável compreensão de que os tempos são outros. Assim, a distinção entre realidade individual de entonação confessional e a essência do que acontece na história onde homens são lavados com dor e espuma não tem mais razão para uma condição essencial de tríplice repartição dos gêneros, como se costumava.  

        Independente da temática, é visível que a poesia de Myriam Fraga transpira elevado nível de construção. Para alguns críticos atinge o auge mais elevado de criação poética em Femina (1996).  Na abertura desse livro encontra-se o célebre poema Ars Poética, espécie de unidade compositiva da razão emotiva sobre as coisas que se associam aos caracteres próprios das mulheres.  Porque parir é coisa de mulheres, cria-se a flor dentro ciciada. E o ser no outro ser é completo acorde até as gotas da morte. Porque a poesia é coisa de mulheres, às vezes acorda essa paixão, que se escorre com rigor e lucidez na pele para ser lambida nos profundos cortes.  Porque a palavra é como brasa queima até o fim, suscita ilhas e ventos onde o poeta navega pelos labirintos que fazem a vida um usual caminho por entre os becos da morte onde o demônio habita. 

  Dessa poética que não pende para o confessional na vertente de uma canção antiga, do eu que recorda e lamenta, colho a ideia de uma alquimia de fetos que suscita o lento pulsar de nervos e sentimentos, o porejar de venenos sob a pele. “Poesia/ É a arte de rapina. / Não a caça propriamente, / Mas sempre nas mãos/ Um lampejo de sangue. // Em vão, / Procuro o meu destino: // No pássaro esquartejado/ A escritura das vísceras. // Poesia como antojos, / Como um ventre crescendo, / A pele esticada/ De úteros estalando. // Poesia é esta paixão / Delicada e perversa, / Esta umidade perolada / a escorrer de meu corpo, // Empapando-me as roupas/ Como uma água de febre. // Em vão, / Procuro o meu destino.

           A poesia de Myriam Fraga configura a memória e o tempo em que acontecimentos e seus personagens ressoam na história desatada com as forças do dramático e do épico como determinantes da essência. O eu da razão emotiva ressignifica a mulher e suas coisas, nesses gritos que estalam e   apascentam solidões em que um discurso apurado adivinha o signo feito bem e mal, se afirmando e negando o seu destino. Sempre de frente para as incoerências desenha na pele essa voragem vinda do embate das ondas nos rochedos.  E assim, firme, como num roteiro de difíceis momentos, não hesitará em decifrar o mundo nestes cortes lúcidos, intensos, sem saber de sua viagem do nada rumo ao não sei onde do desconhecido.  Com a palavra mítica, na arte de libertar-se das perplexidades e medos, certamente sabe do seu testemunho crítico na sagamar da existência humana, de sua importância no risco do eterno: “Onde um peixe navega/ E este peixe é meu sonho.”


Referência

FRAGA, Myriam. Poesia Reunida, Editora Alba, Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, Salvador, 2008.


POESIA COMO FATALIDADE DO EXISTIR


Florisvaldo Mattos

 

Recluso em si mesmo, centrado no seu ofício, por voluntária e ascética opção, o poeta baiano Raymundo Amado Gonçalves é praticamente um desconhecido nesta Cidade do Salvador da Bahia, onde nasceu e para onde retornou, sem alarde, depois de três décadas, radicado no Rio de Janeiro. No entanto, possui mais de uma dezena de livros publicados por conceituadas editoras e outro tanto em edições particulares por computador, que distribui com amigos e admiradores.

Em razão de seu temperamento, protagoniza uma biografia sem os bafejos com que a burocracia costuma premiar intelectuais de valor ou sem. Satisfaz-se com os dons que lhe propiciam o posto intransferível de criador de poesia e arte cinematográfica, neste último caso como celebrado documentarista de filmes sobre poetas baianos, tais como Junqueira Freire, Pedro Kilkerry e Carvalho Filho.

Em fins de 2006, Amado Gonçalves lançou, em Salvador, num congresso de biblioteconomia, seu livro De todos os títulos & De todos os poetas, cuja leitura me faculta a audácia de defini-lo, no seu modelo estético, como exemplo de poesia em progresso, grau avançado do exercício de uma poética, que se firma, desde seu início, conscientemente, sobre o primado da palavra, de que o autor procura retirar vigor e seiva germinais para infundir beleza em seres e coisas.

Em texto confessional em prosa, que fecha o livro Restos (7Letras, 2004), agora reproduzido, como “orelha”, o próprio poeta abona este conceito: “Escrevo para desvendar o mistério das coisas mais simples da natureza – e da minha natureza íntima e que é uma forma de indagação sobre o próprio ato de escrever”. E, por que em progresso, a poesia segue, sem se perder, indefinidamente.

Embora levado por injunções culturais de momento tenha revelado empatias para com o movimento Neo-Concretista, ligando-se no Rio a Ferreira Gullar, Mário Pedrosa e outros, a poesia de Amado Gonçalves busca filiar-se a esferas mais altas de pensamento e permanência, por imposição mesma de seu próprio método operacional, que exalta e consagra o que de fato resta – a linguagem.

E, assim, não é sem razão que, neste seu último livro, resolveu prestar um tributo de reconhecimento a muitos poetas aos quais a sua poesia paga boleto de passagem no seu impulso criativo, pelo tanto que lhe significou a condição de aprendiz em Deserto & Caminho (1959), seu primeiro livro, citando-os nominalmente. E lá estão, desde Homero, Virgílio, Ovídio e Dante, atestando reverência de origem, os românticos Black, Keats, Coleridge, Leopardi, os simbolistas Rimbaud, Verlaine, Lautréamont, Pessanha, e um pelotão de modernos, que vai de Yeats, Eliot, Pound, Emily Dickinson, Francis Ponge, Juan Ramón Jimémez, García Lorca, Fernando Pessoa, Ana Akmátova, a brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ferreira Gullar e, até o nosso belmontino-ilheense, Sosígenes Costa.

Se a poesia de Amado Gonçalves permanece pouco lida entre baianos, desde que infenso a frequentar ambientes literários, como impõe a índole do poeta, nem por isso está isenta de uma fortuna crítica qualificada, com opiniões de peso, em sequência, tais como a do crítico Walmir Ayala, reconhecendo-lhe “a virtude da concisão”, nele jamais sinônimo de usura, mas “um signo de síntese sobre a riqueza e a esplêndida vivência”; de Theon Spanudis, a lhe acentuar a profundidade da elocução em poemas, que “jorram e fluem do íntimo”. Otávio Mora realça “a sua intuição poética aguçada, sem cair no sociológico”, alcançando-o, sem negá-lo, pela dimensão biográfica, e põe em destaque a luta do poeta que se lança “de corpo e alma, presente”, para a arte, “com seu instrumental específico”, enquanto o baiano James Amado (1922-2013) destaca nele a força da expressão, “no trato muito sensível com a língua e a busca de uma linguagem própria”.

Ao ler seus versos, o saudoso Carvalho Filho optou por uma pedagogia. Aproveitou o ensejo para inscrever a sua condenação à aparente facilidade, então corrente, na construção do verso livre, que leva muitos dos seus cultores a se perderem “no poço da banalidade”, e conclamou o poeta ao exercício da sabedoria de continuar só consigo mesmo, no intuito de “alvejar o futuro”, sem render-se ao imediatismo.

Transcrevo adiante trecho de carta que lhe dirige Ferreira Gullar:

“Você escolheu um caminho muito próprio que torna sua poesia inconfundível com a de outros poetas. É admirável a contenção com realizar poemas evitando toda e qualquer ênfase, toda e qualquer efusão emocional”.

Esse traço de contenção que poderia – e até pode – ligá-lo à poética de João Cabral de Melo Neto e de outros, de pendor construtivista, em certos casos até se avizinhando com a prosa, em face da emergência da simplicidade, por proposital dissolução do método clássico do verso, como ele mesmo afirma, decorre de sua crença no poder da palavra, em construções verbais aparentemente livres de amarras estéticas.

Por este vinco, seu parentesco mais próximo, a meu ver, se dá com poetas decididos a captar e expressar seres e coisas, na natureza e na vida, dotando-os de um clarão repentino que privilegia a diferença, a exemplo de Emily Dickinson (por ele muito referida), os franceses Francis Ponge e Henri Michaux e o alemão Paul Celan. Entre espanhóis, ele cita Jiménez e Lorca, mas, pela economia da linguagem poética, de escassa efusão, outros podem ser evocados, como Pedro Salinas, Jorge Guillén, Gerardo Diego e Luís Cernuda.

Sincero, Raimundo Amado Gonçalves confessa: “Não escrevo para os livros, nem para as letras”. Como um sol, caminha a passos curtos, mas toma como destino “invadir um pouco as sombras”, e mais, buscando ser claro e luminoso, “dar pureza ao charco”. Para tanto, dispõe-se a operar com combinações verbais, cuja mobilidade se inclina para a exatidão, para a forma nada encantatória, desinteressada de prender o leitor pelo recurso à musicalidade, embora não deixe de trabalhar com versos curtos e, na mais das vezes, medidos. O que lhe interessa é a percepção e o conhecimento, que, pelo sentido, as palavras propagam. A luta aí se trava em busca de uma emoção veraz de que só a linguagem é portadora. Eis esta voz, em jogo de rimas soantes e toantes: Falcão dourado/ que veio da China/ qual o seu recado/ qual a sua rima // voar voar adejar/ dum país a outro/ este o meu vadiar/ este meu tesouro (“Rimas simples”, pág, 408).

Ouso supor: a poesia se manifesta em Amado Gonçalves como uma fatalidade existencial, uma determinante da vida, e, quanto mais a sós consigo mesmo, melhor - força de um canto sem canto, de um sol distante de ouvidos. Em suas palavras, depois de citar Emily Dickinson, riacho de águas cristalinas em que não se recusa beber, a voz confessional se alça, como exemplo de fidelidade: “quero das palavras tratar, como mosquitos, barro, chuva, pedras, argamassa, construções diversas que dão consistência e contenção ao verso”, que o “solidificam criando nova forma de linguagem poética irmanada à vida”.

Não constrói para outro mundo, mas “para este, presente, palpável, mesquinho e até rude, mesmo que isso o lance num jogo irracional levado até a loucura”. Vislumbro neste lance a razão por que Spanudis o comparou ao alemão Georg Trakl, e eu, a Paul Celan: a expressão soberana da poesia não se acomoda a um universo verbal pré construído; visa a abrir a sensibilidade do leitor para formas não enfáticas, afugentando-o dos estereótipos magnetizadores. Talvez Amado Gonçalves não deseje erguer um novo ideário, mas quer que o leitor seja conduzido apenas pelo que lhe transmitem as palavras, na sua essência.

Recorrendo a Ezra Pound, a propósito de Théophile Gautier, o poeta trava luta contra a fácil exuberância que a tradição impôs ao verso, procurando induzir o leitor a seguir caminhos que o levem à luz da compreensão, fugindo dos reluzentes atrativos da mera intuição sensível. Vejo-o como poeta do pensamento, intelectual, mergulhado no seu processo criativo, decidido a libertar o poema do iminente e hipnótico grilhão das sensações.

Ouso nesse ponto remontar-me à aguda percepção do argentino Jorge Luis Borges, no prólogo a um de seus últimos livros, La cifra (Buenos Aires, Alianza Editorial, 1981), no qual define sabiamente o que predomina no que se possa chamar de poesia intelectual: “A palavra é quase um oxímoro; o intelecto (a vigília) pensa por meio de abstrações; a poesia (o sonho), por meio de imagens, de mitos ou de fábulas. A poesia intelectual deve entrelaçar agradecida esses dois processos” (Tradução minha, livre). Quer-se com isso dizer que, na poesia de Amado Gonçalves, os opostos – o intelectual e o sensível – se ajustam, plenamente, podendo daí até emergir, em certos momentos, o que não foi cogitado, com o verso a despertar um dos sentidos, tipo uma musicalidade silenciosa.

No seu retiro ascético de renúncia e sacrifício, indiferente a perdas, lidando com palavras e moldes linguísticos, como diz, “rejeita o supérfluo – o prêmio imerecido – aquilo que nada lhe acrescente em termos de escavação, de avanço, de novas formas de linguagem”. Pensa a poesia como “uma coisa inútil, porém buliçosa” – e o que quer para si quer para o leitor. Neste sentido, não faz por menos, opera com guilhotinas verbais e alfanjes sintáticos, para afugentar o óbvio que alimenta preconceitos encobertos pela magia da linguagem metafórica. Objeto verbal sempre em progresso, a sua poesia opta por prosseguir em trânsito, sem se deter para inopinadamente render tributo a qualquer manual de clicheria.

E por aí vai Raymundo Amado Gonçalves, na sua forma de conceber a beleza e a poesia, de praticar a sua arte, pensando, agindo e compondo poemas e livros, em que um, em síntese e progresso, é a continuação do outro. E, para isso, em obediência a uma metodologia quase claustral, só a solidão constrói.

(Artigo publicado em A Tarde Cultural, edição de 20 de janeiro de 2007)

 

POEMAS DE RAYMUNDO AMADO


POEMA EM V


Vi uma estrela fatigada vi

vi uma praia alongada vi

vi um vulto apagado vi

vi um mar enfadado vi

 

vi a certeza da volta vi

vi o sonho da revolta vi

vi o sofrer e sua escolta

só não vi a vida que vivi

 

ODE FUGAZ

 

Onde se estende o amplo mar

o verde campo de grama sintético

está o verso trabalho contínuo

e contido quando o ser se parte

 

em dois que são um – diverso

e paralelo para conter o nada

- a alma que navega e a mão

que grava a salvação e o abismo

 

MOMENTO

 

Burilam gritos invisíveis

o que restou da memória

a noite – diamante bruto –

infesta a alma de fantasmas

dura aparecer reluzente dia

 

A CADA HORA...

 

A cada hora cada minuto

te afastas de mim vida

e cada som do dia minto

que existo quando exaurida

 

ficou sem voz minha algaravia

meu sonho de abrigar como

abriga a ave em sua alegoria

o gorjear alegre de seu canto

 

 

RÁPIDO E ANCESTRAL

 

Rápido e ancestral

é o sono de quem parte

sem rastros todo pisar

é mudo – há muito

 

não falamos com Eles

deuses que nos deixaram

pelos caminhos apenas

divisamos nuvens esparsas.

 

DE BRAÇO DADO

 

De braço dado

a miséria anda

onde estou indago

tão desprevenido

 

tenho filhos que racham

os pés nos caminhos

pedindo ora aqui

ora lá – uma esmola

 

ENTRE DOIS MUNDOS

Entre dois mundos vacilo

entre duas cidades padeço

busco em vão um asilo

nem sequer tenho endereço

 

fogem pombos foge o dia

de tanto amar o perdido

a morte que todos repudiam

passou a ente querido

 

UMA BRISA INOCENTE

 

Uma brisa inocente

me lembra Black

de onde ela vem

por que se esconde

 

criança na tarde

simples lembrança

trazendo de leve

saudade constante

 

ABEIREI-ME AO SOM

 

Abeirei-me ao som

desse mundo da morte

só ouvi cadências ocas

que não nos libertam

 

nesta terra procurei

esquecer mel e fel

a esperança do eu

de saber envelhecer

 

EXISTE UMA FLAUTA

 

Existe uma flauta

sei que existe criança

ou pombas a tocam

mal o dia alvorece

 

e antes que a noite chegue

alçamos nossos lábios

ao céu – antes que negue

o anelo e riso seque

 

NUM JARDIM

 

Um corpo pode ser um consolo

rolar sobre maçãs no chão

fugir de escaramuças

imitar ator famoso

 

no dorso de uma baleia

- só não se pode amar Deus

dizendo que Adão e Eva

estiveram num Paraíso

 

NUM TÚMULO IMAGINÁRIO

 

Olho nos olhos e vejo

que estou morto e o ramo

do salgueiro que me deu

Sauan – o menino monge

 

guardo entre secas páginas

de um túmulo pequeno

mas o aroma das verdes

folhas no ar se desprendeu

- uma glosa

 

ALÉM DO CORPO

 

É bom guardar esse segredo

bom esse degredo de si

entrevê-lo só entre vidros

- que misterioso todo risco

 

se esconde entre muralhas

de limos frases atrozes

que devoram falas frias

- joia guardada em segredo

 

OBSERVAÇÃO: Ao redigir esse artigo, publicado em A Tarde Cultural, edição de 20 de janeiro de 2007, o redator valeu-se das seguintes publicações de poesia, à época disponíveis, de Raymundo Amado Gonçalves pela ordem de publicação: Trístega, 1990; Fratrias, 1991; Tharsis, 1992; Ruah, 1993; Oceano – Ecos, 1996; Janelas – Inferno & Céu, 1999; Pequeno Roteiro Místico, 2001; Suspíria, 2003; Restos, 2004; De todos os títulos & De todos os poetas, 2006; Poemas do Morro do Gato, 2007; Arkhaikos, 2008;  Espaço em branco, 2010; Era uma vez, 2013.


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