segunda-feira, 5 de agosto de 2024

RIMBAUD E VERLAINE, A RELAÇÃO BOMBÁSTICA

 



A nossa moral vai de encontro à natureza humana, ela foi criada pelo homem para administrar o caos em que ele vive, mas a serviço da tirania. Ela é um instrumento de poder. A moral é transcendental, a ética é imanente; a moral é salto alto, a ética é pé no chão.
O Homem ético é mais feliz, respeita às diferenças, às singularidades, respeita a sua própria natureza e a dos outros, o homem ético é potente; o moralista é fraco; o moralista julga o tempo todo; o ético seleciona as potencialidades baseado em relação de forças.
O moralista dá esmola; o ético presenteia. O moralista abdica da Vida; o ético é pulsão vital; o moralista é efêmero, o ético é eterno, o homem ético não é normal.
Arthur Rimbaud


QUANDO A POESIA É ESSENCIAL


Arthur Rimbaud (1854-1891) assombrou o mundo com a poesia, que escreveu ainda adolescente, envolvendo em sua vida outro altíssimo simbolista, que teve com ele uma relação bombástica, Paul Verlaine (1844-1896), atingindo-o com um tiro, numa estação de Londres, quase fatal episódio que o fez abandonar a poesia, antes mesmo de completar 20 anos de idade, quando partiu para a África, vivendo em Harar, na região da Abissínia, para envolver-se com o tráfico de drogas e de armas, de prata, ouro, marfim, incenso e pedras preciosas, de lá saindo lesionado, por outro acidente, para morrer, aos 37 anos, num hospital de Marselha, com a perna direita gangrenada, sob os cuidados, choros e lamentos de sua pobre irmã Isabelle, e com um enterro sem velório e quase ninguém presente, para chorar com ela a tristeza dessa imensa perda.
Quando li essa triste e dolorosa história, escrevi um poema de conotação elegíaca, que saiu publicado em meu livro "A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior" (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, p. 32, 1996). Tal recordação me faz reproduzir essa aventura verbal, em respeito á memória desse gênio do Simbolismo francês. Vai abaixo.

RIMBAUD LÁ-BAS

Florisvaldo Mattos

Rimbaud e Verlaine
corpos e mentes
macerados no álcool
lá vivem
convivem
De haxixe e absinto
inflados dopados
por bares e ruas
revivem
convivem
Pode ser se apague
na gare longínqua
o risco de sangue
do amor
desamor
Num beco de Londres
hotel de Bruxelas
o que resta é a sobra
de um hino
destino
Pego-o pelo rastro
pelo fumo da arma
no lixo do quarto
os gritos
dois mitos
Viajante da sombra
devora futuros
a face dos mares
incerto
deserto
Escaldante Oriente
Rimbaud traficante, em Harar, na África

prata ouro marfim
o outro lado o risco
ao azar
lá-bas!
África de chumbo
caravana e lama
a moeda da escrita
que parte
reparte
Ó mar de Áden – turvo
Ó chão de Harar – fétido

Ó meiga Isabelle
que pena
gangrena
Da perna direita
o coto que resta
o sol de muletas
lá fora
a aurora
As juntas da noite
arrastam por fim
imóvel trambolho
fastio
e frio
Choro e desespero
ao céu de Marselha
“E é assim todo dia,”
ma belle
Isabelle
Bêbado Verlaine
o amigo está morto
mas é sol e brilha
ausente
presente
O santo estendido
no lar do cansaço
capela vazia
jaz seco
no beco
Ó precioso âmbar,
tráfico de incenso
nostálgica areia
mais pura
depura
Montanhas e vales
passado revisto
esconde-se a parte
vivida
da vida

Arthur Rimbaud, num hospital, enfermo, pelos tiros de Verlaine


VERLAINE, 1891

Florisvaldo Mattos


Verlaine está bêbado

no quarto sombrio

tremendo de frio

sua alma de estio

acende o pavio

de seu peito, um rio.

Verlaine está bêbado

parece que chora

Rimbaud foi embora

sua alma de flora

tem algo de aurora

que chega e demora.

Verlaine está bêbado

com um livro na mão

Que está vendo então

no céu da estação?

Sinais de aflição

à espera do irmão?

Verlaine está bêbado

e sua miséria

parece pilhéria

não é coisa séria

o dia sem féria

na cidade etérea.

Verlaine está bêbado

O tempo a escoar

todo fel no quarto

já de haxixe farto

cada verso um parto

de luz um enfarto.

Verlaine está bêbado

de enfados ao léu

do amargo comeu

apenas gemeu

do quarto fez céu

e lá se escondeu.

NOTA

Dois poemas constantes de A Caligrafia do Soluço Poesia Anterior. Salvador Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, págs. 32 e 35, 1996.

À volta da mesa, por Henri Fantin-Latour, 1872, Rimbaud é o 
     segundo à esquerda, tendo ao seu lado direito Paul Verlaine

ARTHUR RIMBAUD

Por Felipe Araújo*

Nascido no dia 20 de outubro de 1854, em Charleville, comuna francesa, Jean-Nicolas Arthur Rimbaud foi um poeta influente que escreveu praticamente todas as suas obras primas entre os 15 e os 18 anos. Segundo a opinião de críticos literários, o poeta francês é considerado precursor do surrealismo e também um pós-romântico.

Começou a revelar seu talento para a poesia durante a adolescência e, devido a seu temperamento rebelde, acabou fugindo de casa várias vezes durante a juventude. Ao completar 17 anos, muda-se para Paris com o apoio do poeta Paul Verlaine. Rimbaud tinha enviado sua obra “Soneto de Vogais” para Verlaine, que, um ano depois, deixa a família e começa a viver junto de Rimbaud em Londres. A relação de amor e ódio entre os dois chega ao fim quando Rimbaud é ferido por Verlaine com uma bala no pulso.

Rimbaud, talvez, tenha sido um dos primeiros poetas a viver sua própria poesia. Influenciou autores da geração perdida (Ernest Hemingway, F. Scott FitzgeraldEzra Pound, Sherwood Anderson) e os beatniks dos anos 50 (Jack Kerouac, Allen GinsbergWilliam Burroughs). Um dos apreciadores da obra de Rimbaud foi Henry Miller, escritor americano subversivo dos anos 30 que também viveu em Paris. “Até que o velho mundo morra de vez, o indivíduo 'anormal' será cada vez mais a norma. O novo homem se encontrará quando a guerra e a coletividade entre o indivíduo cessar. Veremos então o tipo de homem em sua plenitude e esplendor", disse Miller sobre Rimbaud.

Outro apreciador da poesia de Rimbaud foi Paulo Leminski, para ele, o jovem francês Rimbaud "pasmou os contemporâneos com sua precocidade poética". O escritor francês Georges Duhamel compartilha da opinião de Leminski e analisa a imagem de “enfant terrible” de Rimbaud dizendo: “O que Mallarmé não parece ter adivinhado é que o 'Viajante notável' voltaria, que ia ficar, que não pararia de crescer, que sua influência se estenderia sobre todas as gerações e que aquele garoto seria no século novo não o mestre, e sim, melhor ainda, o mensageiro, o profeta de toda uma juventude febril, entusiasta, rebelde".

Entre suas principais obras estão “Uma Estação no Inferno”, de 1873 e “Iluminações”, de 1886. As duas abrangem novidades estéticas na maneira de escrever literatura com uma linguagem mais libertária, sendo que as idéias, nas obras de Rimbaud, nasciam da sinergia entre o verbo e tudo que os sentidos interpretavam. Aos 20 anos de idade, Rimbaud abandona a literatura e retoma a vida sem rumo que levava quando adolescente.

Começa a trabalhar com comércio de café na Etiópia, chega a fazer parte do Exército das colônias holandesas e faz tráfico de armas em Ogaden. Ainda visita o Chipre e Alexandria. Sua caminhada termina quando tem a perna amputada devido a um câncer no joelho. Após este episódio, morre no dia 10 de novembro de 1891 em Marselha, após anos de agonia.

Fontes:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Arthur_Rimbaud

http://poetas.mortos.sites.uol.com.br/rimbaud.htm


*Felipe Araújo possui pós-graduação em Teorias da Comunicação e da Imagem. Atuou como repórter, editor e colunista nos principais jornais de Fortaleza. Foi diretor de audiência no Grupo de Comunicação O POVO.


POEMAS DE ARTHUR RIMBAUD


Minha boêmia
(Fantasia) 


Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;
Meu paletó também tornava-se ideal;
Sob o céu, Musa, eu fui teu súdito leal,
Puxa vida! a sonhar amores destemidos! 

O meu único par de calças tinha furos.
– Pequeno Polegar do sonho ao meu redor
Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.
– Os meus astros no céu rangem frêmitos puros. 

Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,
Nas noites de setembro, onde senti qual vinho
O orvalho a rorejar-me a fronte em comoção; 

Onde, rimando em meio a imensidões fantásticas,
Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas
E tangia um dos pés junto ao meu coração!

Romance

I

Não se pode ser sério aos dezessete anos.
– Um dia, dá-se adeus ao chope e à limonada,
À bulha dos cafés de lustres suburbanos!
– E vai-se sob a verde aléia de uma estrada.

O quente odor da tília a tarde quente invade!
Tão puro e doce é o ar, que a pálpebra se arqueja;
De vozes prenhe, o vento – ao pé vê-se a cidade, –
Tem perfumes de vinha e cheiros de cerveja…

II

– Eis que então se percebe uma pequena tira
De azul escuro, em meio à ramaria franca,
Picotada por uma estrela má, que expira
Em doce tremular, muito pequena e branca.

Noite estival! A idade! – A gente se inebria;
A seiva sobe em nós como um champanhe inquieto…
Divaga-se; e no lábio um beijo se anuncia,
A palpitar ali como um pequeno inseto…

III

O peito Robinsona em clima de romance,
Quando – na palidez da luz de um poste, vai
Passando uma gentil mocinha, mas no alcance
Do colarinho duro e assustador do pai…

E como está te achando imensamente alheio,
Fazendo estrepitar as pequenas botinas,
Ela se vira, alerta, em rápido meneio…
– Em teus lábios então soluçam cavatinas…

IV

Estás apaixonado. Até o mês de agosto.
Fisgado. – Ela com teus sonetos se diverte.
Os amigos se vão: és tipo de mau gosto.
– Um dia, a amada enfim se digna de escrever-te!…

Nesse dia, ah! meu Deus… – com teus ares ufanos,
Regressas aos cafés, ao chope, à limonada…
– Não se pode ser sério aos dezessete anos
Quando a tília perfuma as aléias da estrada.

 

A eternidade

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

Alma sentinela
Murmura teu rogo
De noite tão nula
E um dia de fogo.

A humanos sufrágios,
E impulsos comuns
Que então te avantajes
E voes segundo…

Pois que apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
Sem dizer-se: enfim.

Nada de esperança,
E nenhum oriétur.
Ciência em paciência,
Só o suplício é certo.

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

 

Manhã

Não tive eu uma vez uma juventude amável, heróica, fabulosa, para ser escrita em fôlhas de ouro, – sorte a valer! Por que crime, por que êrro, mereci a fraqueza atual? Vós que achais que animais dão soluços de dor, que doentes desesperam, que mortos tem pesadelos, tratai de narrar minha queda e meu sono. Quanto a mim, posso explicar-me tanto quanto o mendigo com os seus contínuos Pater e Ave Maria. Não sei mais falar!

Contudo, creio ter terminado hoje a narração de minha temporada no inferno. Era realmente o inferno: o antigo aquêle cujas portas o filho do homem abriu.

No mesmo deserto, à mesma noite, meus olhos cansados sempre despertam sob a estrela de prata, sempre, sem que se emocionem os Reis da vida, os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, a sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demônios, o fim da superstição, adorar – os primeiros! – os primeiros! – o Natal sôbre a terra?

O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida.

(tradução de Lêdo Ivo)

Canção da Mais Alta Torre

Inútil beleza
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah! que venha o instante
Que as almas encante.

Eu me digo: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
Do que quer que seja.
Não te impeça nada,
Excelsa morada.

De tanta paciência
Para sempre esqueço:
Temor e dolência
Aos céus ofereço,
E a sede sem peias
Me escurece as veias.

Assim esquecidas
Vão-se as Primaveras
Plenas e floridas
De incenso e de heras
Sob as notas foscas
De cem feias moscas

Ah! Mil viuvezas
Da alma que chora
E só tem tristezas
De Nossa Senhora!
Alguém oraria
À Virgem Maria?

Inútil beleza
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.

Ah! que venha o instante
Que as almas encante!

Vênus Anadiômene

Como de um verde túmulo em latão o vulto
De uma mulher, cabelos brunos empastados,
De uma velha banheira emerge, lento e estulto,
Com déficits bastante mal dissimulados;

Do colo graxo e gris saltam as omoplatas
Amplas, o dorso curto que entra e sai no ar;
Sob a pele a gordura cai em folhas chatas,
E o redondo dos rins como a querer voar…

O dorso é avermelhado e em tudo há um sabor
Estranhamente horrível; notam-se, a rigor,
Particularidades que demandam lupa…

Nos rins dois nomes só gravados: CLARA VENUS;
– E todo o corpo move e estende a ampla garupa
Bela horrorosamente, uma úlcera no ânus.

27 de julho de 1870

Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncio assombrados de anjos e universos;
– Ó! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!

Os Corvos

Senhor, quando os campos são frios
E nos povoados desnudos
Os longos ângelus são mudos…
Sobre os arvoredos vazios
Fazei descer dos céus preciosos
Os caros corvos deliciosos.

Hoste estranha de gritos secos
Ventos frios varrem nossos ninhos!
Vós, ao longo dos rios maninhos,
Sobre os calvários e seus becos,
Sobre as fossas, sobre os canais,
Dispersai-vos e ali restais.

Aos milhares, nos campos ermos,
Onde há mortos recém-sepultos,
Girai, no inverno, vossos vultos
Para cada um de nós vos vermos,
Sede a consciência que nos leva,
Ó funerais aves das trevas!

Mas, anjos do ar, no alto da fronde,
Mastros sem fim que os céus encantam,
Deixai os pássaros que cantam
Aos que no breu do bosque esconde,
Lá, onde o escuro é mais escuro,
Uma derrota sem futuro.

A Estrela Chorou Rosa
A estrela chorou rosa ao céu de tua orelha.
O infinito rolou branco, da nuca aos rins.
O mar perolou ruivo em tua teta vermelha.
E o Homem sangrou negro o altar dos teus quadris.

No Cabaré Verde – Às Cinco da Tarde

Oito dias de estrada, as botas esfoladas
De tanto caminhar. Em Charleroi, desvio:
– Entro no Cabaré Verde: peço torradas
Na manteiga e presunto; que não seja frio.

Despreocupado estiro as pernas sobre a mesa
Verde e me esqueço a olhar os temas primitivos
Sobre a tapeçaria. – Adorável surpresa,
A garota de enormes tetas, olhos vivos,

– Essa, não há de ser um beijo que a afugente! –
Rindo, vem me trazer meu pedido numa
Bandeja multicor: pão com presunto quente,

Presunto rosa e branco aromado de um dente
De alho, e o chope bem gelado, boa espuma,
Que uma réstea de sol doura tardiamente.

Outubro de 1870

Fome

Meu gosto, agora se encerra
Em comer pedras e terra.
Só me alimento de ar,
de rochas, de carvão, de ferro.

Pastai o prado de feno,
Ó fomes minhas.
Chamai o gaio veneno
Das campainhas.

Comei o cascalho que seja
Das velhas pedras de igreja;
Seixos de antigos dilúvios,
Pão semeado em vales turvos.

Uiva o lobo na folhagem,
Cuspindo a bela plumagem
Das aves de seu repasto :
É assim que me desgasto.

As hortaliças, as frutas
Esperam só a colheita.
Mas o aranhão da hera
Não come senão violetas.

Que eu adormeça, que eu arda
Nas aras de Salomão.
Na ferrugem escorre a calda
E se mistura ao Cedrão.

Enfim, ó ventura, ó razão, afastei do céu o azul,
que é negro, e vivi, centelha de ouro, dessa
luz natureza. De alegria, adotava a expres-
são mais ridícula e desvairada possível :

Achada, é verdade ?!
Quem ? A eternidade.
É o mar que o sol
Invade

Observa, minh´alma
Eterna, o teu voto
Seja noite só,
Torre o dia em chama.

Que então te avantajes
A humanos sufrágios,
A impulsos comuns !
Tu voas como os…

– Esperança ausente,
Nada de oriétur
Ciência paciência,
Só o suplício é certo.

O amanhã não vem,
Brasas de cetim.
Deves o ardor
Ao dever doar.

Achada, é verdade ?!
– Quem ? – A Eternidade.
É o amor que o sol
Invade.

 

Adormecido no Vale
Tradução: Ferreira Gullar

É um vão de verdura onde um riacho canta
A espalhar pelas ervas farrapos de prata
Como se delirasse, e o sol da montanha
Num espumar de raios seu clarão desata.

Jovem soldado, boca aberta, a testa nua,
Banhando a nuca em frescas águas azuis,
Dorme estendido e ali sobre a relva flutua,
Frágil, no leito verde onde chove luz.

Com os pés entre os lírios, sorri mansamente
Como sorri no sono um menino doente.
Embala-o, natureza, aquece-o, ele tem frio.

E já não sente o odor das flores, o macio
Da relva. Adormecido, a mão sobre o peito,
Tem dois furos vermelhos do lado direito.

Fontes:
https://escamandro.wordpress.com/tag/rimbaud/
https://www.escritas.org/pt/arthur-rimbaud

Poemas do livro Poesia Completa, de Arthur Rimbaud (tradução de Ivo Barroso), editora Topbooks.
http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet091.htm


A FRONTEIRA


Otto Maria Carpeaux


Pelo cinquentenário de Arthur Rimbaud, 10 de novembro de 1891


“A poesia é incomunicável.
Fique quieto aí no seu canto.
Não ame.”

Assim fala o poeta brasileiro; e o outro poeta brasileiro responde:

“Sei que fora de mim há um clima diferente
Sei que há céu azul, supremas claridades.
Sinto-me capaz de amar o ambiente
de incompreensão que me cerca.”


Estes versos descrevem toda a região da poesia, a tensão entre a personalidade fechada e o cosmos aberto. Entre uma e outro há uma fronteira, cortante como a navalha dos suicidas, ou como a crista sobre o abismo, numa atmosfera onde já não se pode respirar. O homem desta fronteira é Arthur Rimbaud.

Tenho medo de falar da sua vida, que, felizmente, não se tornou ainda proeza dos biógrafos profissionais, mas que se prestaria facilmente a isso. Pois essa vida é uma série de aventuras, antes uma série de tentativas de fuga, uma série de evasões que levam sempre até à fronteira extrema. Não há acontecimento mais simbólico do que o nascimento de Rimbaud, filho póstumo, como se o mundo tivesse sido morto antes dele; e nasceu em Charleville, cidade de fronteira, fronteira belgo-francesa, lá onde a fronteira é sempre trágica. Depois que o puritanismo pétreo da mãe-viúva o afugentou, ele está em Paris, onde Victor Hugo descobre o gênio nesse menino maligno de 17 anos. Na fronteira da velha poesia moribunda e de novas experiências poéticas, Rimbaud conhece o seu primeiro e último dia de glória; a catástrofe de 1870, fronteira entre duas épocas, destrói tudo, as chamas devoram Paris. Segue-se a segunda evasão, evasão dessa fugitiva glória literária a que ele chamou, mais tarde, “une saison en enfer”. Vagabundagens, em companhia de Verlaine, que por amor do estranho menino abandona mulher e filhos. Noites sob o céu, que Rimbaud descreveu inesquecivelmente:

“La douceur fleurie des étoiles et du ciel, et du reste descend en face du talus, comme un panier, contre notre face et fait l’abîme fleurant et bleu là-dessous.”

Será o abismo, essa vagabundagem nas fronteiras da sociedade, até o crime. — Tiros, prisão, fuga. Então, a abundância verbal do Bâteau ivre converte-se em mutismo, numa afasia metafísica. “Je ne sais plus parler” — diz ele. Queima e destrói toda a sua poesia. Foge da poesia. Sucedem-se as evasões, sempre em busca do sonho:

“Ô saisons, ô châteaux!”

— quatro palavras mágicas que exprimem perfeitamente a nostalgia do Nada fantástico ao ar livre do vagabundo. Duas vezes a fuga fracassa, e a organização policial do mundo reconduz o náufrago a Charleville. Enfim, é o Oriente, onde os achou — achou-os? —, aos seus “saisons et châteaux”, o mercador fantástico dos mares e dos desertos, na Arábia, na Abissínia, nas fronteiras do mundo civilizado — achou-os?

“Par délicatesse
J’ai perdu ma vie”


— diz um dos seus últimos poemas, e a “délicatesse” parece estranha na boca desse niilista brutal, ressoa quase como remorsos. Dizem que houve remorsos no hospital de Marselha, onde o fracassado sucumbe, onde atravessa a fronteira do país do qual não se volta.

O que é que ele deixou? De modo nenhum os tesouros orientais de Mil e Uma Noites. Apenas uma obra esparsa, e dificilmente acessível.

A obra continua dificilmente acessível. Há muitas interpretações, e há uma explicação histórica, por Marcel Raymond, que traça a filiação, de Rimbaud até o super-realismo, contrastando-a com a outra filiação, de Mallarmé até Valéry, e onde Baudelaire representa o progenitor comum. Mas Thibaudet contradiria, e com razões suficientes. Enfim, não há senão um verdadeiro crítico de Rimbaud: o próprio Rimbaud, que julgou toda a sua obra, queimando-a. Era um ato, o ato mais definitivo da sua vida. Para explicar a sua obra, precisa-se interrogar a sua vida, mas num sentido diferente do que era habitual a Sainte-Beuve. É uma explicação por contradições, por dois enigmas contraditórios, pois a vida de Rimbaud é também enigmática: essa vida de evasão, vida antiliterária e anti-social, caso único na literatura francesa, a mais social das literaturas. Representa mais do que a erupção duma adolescência en détresse. Representa, para dizer a verdade, uma vida incompreensível, como a sua obra permanece incompreensível ao burguês. Mas esta é, exatamente como convém, a posição do poeta.

Há nisso um paradoxo. “Os poetas” — disse Wilhelm Dilthey — “constituem os nossos órgãos de compreensão do mundo.” O poeta diz o que os outros não sabem dizer; mas recusa comunicar-se numa língua que seja a nossa língua. Aos não-poetas a poesia mantém-se essencialmente incompreensível, a aparente compreensão não passando dum acaso ou dum mal-entendido. E é muito bom que assim seja: pois a poesia, não sendo deste mundo, é o julgamento do mundo; se o mundo compreendesse a poesia, estaria já julgado. Neste sentido, Dante é o padrão, Dante que se recusou ao seu século e a todos os séculos. A recusa cria a reação: Dante foi exilado, e a canonização posterior, por todas as espécies de mal-entendidos astutos, não conseguiu revocá-lo do túmulo solitário de Ravena. Hoje, a vingança é mais incisiva: o poeta parece um vagabundo inadaptado ou um ridículo. E isto constitui o julgamento da poesia pelo mundo.

Só um poeta consentiu nesse julgamento: Rimbaud. Queimou os seus poemas. Por isto a sua vida é a fronteira da literatura e a sua obra é a fronteira da poesia. Non plus ultra.

Onde fica esta fronteira? Conta uma velha lenda hindu que os discípulos do sábio Sânkara pediram a este que lhes comunicasse o “Grande Brama”, a última sabedoria. O sábio permaneceu silencioso. Por duas vezes os discípulos repetiram o pedido, e por duas vezes o sábio permaneceu silencioso. Mas como eles pediram ainda uma vez, o sábio abriu a boca: “Já vos comuniquei o mistério: o Grande Brama, a última sabedoria, é o silêncio.” O mistério do mundo é indizível, fica fora do nosso mundo das coisas dizíveis. A fronteira entre o dizível e o indizível, esta linha cortante como a crista sobre o abismo, é o lugar da poesia.

A poesia quer explicar o indizível: por isso, ela choca-se com a língua. A língua é, ao mesmo tempo, o meio de expressão da poesia e o instrumento da vida quotidiana: “meaning” e “semantic”, para aplicar uma terminologia nova (Kenneth Burke, Philosophy of Literary Form: Studies in Symbolic Action, Louisiana State Univ., 1941). Para escapar aos equívocos da língua convencional, os poetas criam uma língua artificial, que está sempre ameaçada de tornar-se, por sua vez, uma língua convencional da poesia; então ela cede a novos artifícios, que constituem a face exterior das “novas sensibilidades” de todas as “poesias modernas”. Tal evolução indica sempre uma conquista: os poetas conseguiram deslocar a fronteira do dizível na direção mais perto do indizível, mais perto do mistério, que continua silêncio. Mas a língua do “mundo” segue a direção oposta: tende a afastar o mistério, a tornar-se cada vez mais convencional, eliminar os restos irredutíveis da personalidade e do cosmos e substituí-los pelos lugares-comuns fixados. Os dois pólos da língua, língua poética e língua “mundana”, afastam-se, cada vez mais, um do outro. A poesia torna-se o “paradoxo” no mundo, “paradoxo” no sentido de Kierkegaard. Cada refinamento do instrumento poético torna o paradoxo mais agudo, cava mais profundamente o abismo entre a poesia e o mundo. Já não se compreendem. Kierkegaard conta que, outro dia, irrompeu num circo um incêndio, e o diretor o fez comunicar ao público pelo clown; mas o público, acostumado a rir-se das palavras do clown, riu-se, ficou e perdeu-se nas chamas. É o julgamento do mundo pela poesia.

Esta tragédia tem uma outra face também. A língua é, ao mesmo tempo, a expressão mais individual da personalidade e o dicionário mais universal do cosmos. Nas suas origens, a poesia é a voz pessoal do cosmos. Porém depois o mundo apoético se intercala e interrompe, pelos convencionalismos, a comunicação entre a personalidade e o cosmos. Precisa-se do artifício para se manter penosamente o sentimento pessoal do mundo. Os artifícios do instrumento poético tornam a língua da poesia cada vez mais pessoal, afastando-a do mundo “civil”, mas afastando-a também do mundo “cósmico”. O “dicionário do universo” transforma-se em língua privada, em línguas individuais, afastadas das raízes tradicionais, línguas verdadeiramente “modernas”. Essa evolução acompanha, como se vê, a evolução do mundo moderno.

Que é que é moderno? O afastamento do universo é moderno. O afastamento do “mundo”, civil ou burguês, é antimoderno. Rimbaud, o enigmático, percorreu os dois caminhos, ao mesmo tempo. É, ao mesmo tempo, o poeta mais moderno e o poeta mais antimoderno.

Pela sua poesia, que já não conhece a “vida moderna” do mundo e que já não é compreendida por ela, ele é o poeta mais antimoderno. Pela sua vida, de individualista o mais radical, é o homem mais moderno. Enfim, queimou a sua poesia: a sua vida era mais forte do que a sua poesia. É a sua vida que mais importa na evolução da poesia.

A vida de Arthur Rimbaud é uma série de evasões. De que é que ele foge? Foge da sua poesia. Isto parece incompreensível aos burgueses incapazes de tomar a sério uma vagabundagem voluntária. Porque são incapazes de tomar a sério a poesia. Mas ninguém tomou jamais a poesia tanto a sério como Rimbaud, que a queimou e destruiu. Isto é, por sua vez, um escândalo para os poetas, incapazes de tomar a sério, como ele, a vida. Deste modo, Rimbaud é “um escândalo para os gentios e uma estupidez para os judeus”. Coloca-se do lado da poesia contra a vida, e do lado da vida contra a poesia. Abandonou a poesia ao perceber que ela é necessariamente um artifício. Rimbaud é um revoltado contra todos os artifícios. As suas cartas manifestam o niilista mais completo que jamais tenha existido, revoltado contra a família e contra a literatura, contra a fé e contra o Estado, contra a ciência e contra todo bonheur établi. O seu ocultismo, a sua submersão no sonho, que desfaz todas as coerências da razão e todos os obstáculos da moralidade, representam caminhos para conseguir o poder mágico de destruir o mundo. Para falar com os teólogos: Rimbaud, revoltando-se contra a criação, revolta-se contra Aquele “per quem omnia facta sunt”, contra o criador a que a fé cristã chama, tão profundamente, o “Verbo”. O sentido do mundo está atacado por essa rebelião luciférica.

Os românticos conheciam isto também, é verdade; mas era uma fraca coquetterie, um flirt com o Nada; e a forma estritamente disciplinada, arquitetônica, de Baudelaire, desmente o seu satanismo e trai o sentido hierárquico do seu catolicismo secreto. Rimbaud não é romântico nem baudelairiano; é conseqüente: se não há sentido no mundo, então a expressão verbal deste sentido, a língua, perdeu a sua razão de ser. À revolução contra o Verbo segue-se a revolução contra a Palavra. A revolução contra a língua é a mais radical das revoluções; então, já não há poesia; e a vida está vingada. Rimbaud lembra-me um aforismo diabólico de Franz Kafka: “Na luta entre ti e o mundo, apóia ao mundo; não se deve lesar a ninguém, nem sequer frustrar o mundo da sua vitória.” Rimbaud vivia este conselho. Tomou o partido do mundo, queimou a sua poesia. É o fim da poesia. O mundo volta ao silêncio.

Depois de Rimbaud, o grito está justificado: a poesia morreu. Sem dúvida, havia poetas incomparavelmente maiores do que ele, que não se realizou. Mas, após uma leitura de Rimbaud, todos parecem prosaicos. Lembra o verso de Corneille:

“Cette obscure clarté qui tombe des étoiles.”

A claridade escura de Rimbaud escurece todas as claridades. Lamartine parece um classicista enfadonho, Musset um rimailleur, Verlaine um gago, Hugo um ancião mítico. Só Baudelaire resiste.

Rimbaud não é um começo, mas um fim. A sua vida confere-lhe o direito de declarar “la séance close”. Não há caminho para trás de Rimbaud. Após ele, há somente duas alternativas: a convenção eterna, o plágio convencional, a queixa da poesia sobre o mundo; ou a queixa do mundo sobre a poesia, o desespero metafísico da criação caída, a poesia da suprema consciência humana. Baudelaire é o padrão desta poesia. Eis porque a poesia de Baudelaire resiste: é a voz autorizada da humanidade presente e da sua condição eterna. Eis porque esta poesia autorizada persiste em vozes autorizadas: Manuel Bandeira é a voz autorizada da poesia brasileira, a qual conseguiu, com ele, o seu lugar na literatura universal.

A poesia baudelairiana, bandeiriana, salva a poesia. Abre-lhe o caminho que só foi possível depois de Rimbaud: o caminho às origens. Mas como a poesia nasce da comunhão entre a personalidade e o cosmos, a poesia moderna, pós-baudelairiana, pós-bandeiriana, ensaia dois caminhos diferentes — o da poesia mais pessoal e o da poesia mais universal — na esperança de reencontrar o sentido: a Palavra e o Verbo.

Correspondem a esses dois caminhos duas correntes da poesia contemporânea. Abstraindo das “mensagens poéticas”, aliás indefiníveis, prefiro designar essas correntes, mais tecnicamente: o epigrama e a ode. A poesia “epigramática”, carregada de sentido, fechada e amarga, é a expressão mais densa da personalidade. Poder-se-iam inscrever-lhe as palavras de Santo Agostinho: “Noli foras ire; in interiore homine habitat veritas.” A poesia “ódica”, abundante de coração, aberta e de simplicidade humana, é a expressão mais larga do sentimento cósmico. Poder-se-ia inscrever-lhe as palavras do apóstolo: “Si linguis hominum loquar, et angelorum, charitatem autem non habeam, factus sum velut aes sonans, aut cymbalum tinniens.” Há a verdade da Palavra naqueles epigramas, e há a caridade do Verbo nestas odes. Estabelecida a árvore genealógica da “poesia do mundo caído”, de Baudelaire a Bandeira, poderia estabelecer-se a árvore genealógica da poesia epigramática e da poesia ódica, da sua origem comum, no Rimbaud das llluminations e do “Bâteau ivre”. Bem entendido, não se trata de “influências”. Manuel Bandeira, um dos poetas mais pessoais do mundo, não é um “Baudelaire brasileiro”; mas ele tem, isto sim, na poesia brasileira, a função de Baudelaire na poesia francesa. Do mesmo modo, não há influência visível, mas sim filiações invisíveis, “correntes sublunares” (em analogia com “subconsciente”), entre Rimbaud e os dois grandes poetas com que principiei: entre o Rimbaud epigramático da “verdade interior” e o Carlos Drummond de Andrade da “poesia incomunicável”; e entre o Rimbaud “ódico” da caridade cósmica e o Augusto Frederico Schmidt do Sinto-me capaz de amar.

É grande a tentação de estabelecer um panorama da poesia contemporânea sob o aspecto rimbaudiano. Jules Supervielle, Stephen Spender, Gottfried Benn, Jorge Guillén, Lionello Fiumi, Vladislav Chodassevitch, H. Marsman, duma parte; e de outra parte Pierre-Jean Jouve, Hugh Auden, Franz Werfel, Rafael Alberti, Giuseppe Ungaretti, Boris Pasternak, Jan Slauerhoff.

Há uma contradição, decerto, mas a identidade dialética também. O poeta, cujo “sentimento do mundo” chega ao dever de “anunciar o Fim do Mundo”, confessa também:

“Estou preso à vida...
O presente é tão grande, não nos afastemos.”


E o poeta que cantou o “desejo de sol e de um tempo novo”, professa o:

“Seremos simples como a noite, a grande noite resinosa e infinita.”

O caminho desta dialética, que não pode ser pensada senão em poesia, é o caminho de Une saison en enfer até às llluminations: o caminho que Rimbaud percorreu, e ao fim do qual achou o mágico poema que, agora, já não será misterioso:

“Elle est retrouvée!
Quoi? l’éternité.
C’est la mer mêlée
Au soleil.
Mon âme éternelle,
Observe ton voeu
Malgré la nuit seule
Et le jour en feu.”


Há nesta poesia um fim e um começo. O espírito da fronteira nela está, da fronteira entre o dizível e o indizível; entre a vida e a morte. Só um atravessou essa fronteira, a fronteira do país donde não se volta: Arthur Rimbaud.


Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos 1942-1978, Volume I, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 1999. (p. 147-153). Editado por: Pedro G. Segato.


Arthur Rimbaud: o arauto da modernidade


Maria Joana Cantinho


Visionário, rebelde, provocador, iconoclasta, Arthur Rimbaud foi considerado o expoente máximo da poesia do simbolismo. É dele a frase, em Une Saison en Enfer, «il faut être absolument moderne», abrindo assim o caminho para a modernidade, por volta de 1873. Figura cultuada pelos maiores poetas da nossa modernidade, Rimbaud foi um génio que, muito jovem, se revelou na poesia e também demasiado cedo acabou para ela, transformando-se num viajante aventureiro em busca de fortuna.

Para Rimbaud, a arte não se distinguia da vida e viveu-a de forma excessiva, como muito bem o retrata Ana Cristina Silva, neste que é já o seu décimo quarto livro, denotando uma carreira literária auspiciosa, ao longo de dezoito anos. Com a sua obra «A Noite não é Eterna», recebeu o prémio Fernando Namora. Este é o terceiro livro que a autora escreve sobre a vida de um poeta, tendo sido os anteriores sobre Florbela Espanca e sobre o rei-poeta de Sevilha, al-Mu ‘tamid. E está sempre à altura da ousadia com que se lança nestas obras. É sabido que nenhum deles foi um poeta fácil, marcados, cada um, pela tragédia da sua vida. Penso ser essa dimensão trágica o que mais atrai Ana Cristina Silva, para além da sua aura enquanto figuras da história da literatura.

Entre todas as figuras retratadas pela autora, a de Rimbaud é a mais complexa e densa, pela sua personalidade imprevisível e também pela sua vida conturbada. Muito cedo, Rimbaud vincou a sua personalidade com os aspectos que Ana Cristina Silva lhe notou: um carácter irrascível, comportando-se de forma inaceitável para os padrões da sociedade burguesa e, até, entre os artistas, que o ostracizaram em vida, devido ao escândalo da sua relação com o poeta Verlaine. Não é que, nessa época, não houvesse homossexualidade, mas essas relações eram vividas em segredo numa sociedade ainda muito conservadora, daí que o caso entre Verlaine e Rimbaud tivessem chocado o meio literário parisiense. As viagens de Rimbaud e Verlaine, vivendo durante largos períodos fora de Paris constituíam uma forma de libertação dos constrangimentos a que se encontravam sujeitos.

Estruturando a sua narração de forma polifónica, cada capítulo do livro Rimbaud, o viajante e o seu infernopublicado pela editora Exclamação, dá voz a uma das personagens, narrando os acontecimentos do seu ponto de vista. Ainda que esta fórmula não seja original, no entanto, ela confere à narração uma dinâmica e uma mudança constante entre as personagens que falam, o que torna a leitura muito mais apelativa para o leitor. E o livro começa exactamente com a voz de Madame Rimbaud, aquando da partida definitiva do pai, abandonando a família. Este é um ponto marcante da narração, pois aqui se poderão encontrar algumas das explicações para os traços da personalidade de Rimbaud. Um pai ausente e uma mãe demasiado austera: «Os gritos de Madame Rimbaud ocupavam toda a casa e eram sempre excessivos. Os ruídos da infância de Arthur foram os da gritaria da mãe. Não havia abraços nem beijos, apenas ordens secas e rugidos de repreensão.» (p. 17).

O irrepreensível recorte das personagens e a sua construção, de grande densidade psicológica, aplicando-se a todas as figuras que aqui se apresentam, mas essencialmente a Arthur Rimbaud, é uma das grandes virtudes deste livro, aliado ao rigor dos factos. Desde a criança que escreve os seus primeiros poemas até ao jovem indomável que foge permanentemente de casa, em busca de liberdade e de oportunidades para a sua poesia, às suas estadias em Paris, com uma vida de vagabundo permanentemente dependente de outros poetas e artistas, e ainda às várias peripécias em que se viu sempre envolvido e à sua vida posterior ao abandono da poesia, como as suas longas viagens pelo deserto, tudo isso, Ana Cristina nos narra com precisão e particular cuidado. Por detrás desta obra esconde-se um trabalho de investigação minucioso sobre Rimbaud. O modo como a autora nos oferece um retrato fiel da época e dos seus contemporâneos é sempre colorido e sedutor.

Central na obra é a história amorosa e turbulenta de Rimbaud com o poeta Paul Verlaine, o autor de Poemas Saturnianos, que o apresenta em Paris aos amigos e contribui para que o poeta dê a conhecer a sua obra aos mesmos. No entanto, a chegada de Arthur Rimbaud a Paris e à vida de Verlaine corresponde também à destruição da sua família, pois Verlaine apaixona-se perdidamente por Rimbaud. Mathilde Verlaine, esposa de Verlaine diz na página 53: «Se pudesse alterar o estado do mundo, estalaria os dedos no rosto do destino para que Arthur Rimbaud desaparecesse da minha existência. O infortúnio começou no momento em que aquele campónio das Ardenas deu com a minha casa(…)».

Assim que se aproximou de Verlaine, Rimbaud logo se apercebe da ambivalência da relação do poeta Verlaine com Mathilde. Recriminava-lhe o facto de o prender e não o deixar livre para a criação literária. Verlaine, nas suas saídas com Rimbaud, era tomado pelos excessos alcoólicos e era precisamente nessas alturas que maltratava Mathilde, cheio de ira: «Soube que estava apaixonado por Arthur na noite em que atirei Mathilde ao chão. Eu que escrevo poemas sobre lagos onde as andorinhas molham as asas, eu que versejo sobre campos que imaginam as próprias flores, fui capaz de bater numa mulher.»

Rimbaud libertava-o, enquanto Mathilde o mantinha enredado nos laços burgueses. Sobre essa personagem de Paul Verlaine, Ana Cristina Silva dá-nos um retrato fiel à história, consubstanciando este uma densidade psicológica notável, o de um homem dividido entre as suas paixões e o medo da ruína da sua reputação, consequências funestas que frequentemente imputava a Rimbaud. Por isso, a sua relação foi tão tumultuosa e atormentada, ao ponto de enlouquecer Verlaine, que lhe deu um tiro, quando Rimbaud ameaçou deixá-lo. Por causa disso, Verlaine esteve dois anos na prisão, altura em que achou que poderia libertar-se finalmente do jovem poeta: «Preso iria finalmente ter a liberdade de esquecer Arthur.»

Foi depois disso que Rimbaud escreveu Une Saison en Enfer, como Ana Cristina nos descreve, num sótão em la Roche: «As palavras tornavam-se vozes que me sussurravam, um coro de vozes que entoavam em diversos tons. A poesia voltava para mim como a aurora ou o acaso.» (p. 104). Sempre que o narrador entra na personagem de Arthur Rimbaud, a escrita de A.C.S. atinge alta voltagem poética, destacando-se das demais personagens e revelando aqui uma mestria na construção psicológica das personagens. A autora capta bem, sem que a sua escrita se perca em exercícios de retórica, o universo poético de Rimbaud e, sobretudo, a sua «ferocidade» e aversão aos costumes burgueses e acomodados: «Dizia a mim próprio que era mais forte do que todos eles, mas, secretamente, sentia vontade de chorar.» (p. 105). Se o universo da poesia, em Rimbaud aparece sempre ligado à ambivalência entre a violência e o sublime, essa linha ténue é também a que separa a vida da arte. Digo ténue porque, em Rimbaud, a sua vida é continuamente metamorfoseada em poesia e não pode falar-se de uma separação, mas antes de uma teia, na qual o poeta se vê envolvido. Como diz ACS: «Transformava-me no que escrevia» (p. 104).

A segunda parte do livro corresponde à fase em que Rimbaud decide abandonar a poesia. Porém, se abandona a escrita, a sua paixão absorve-o de outros modos, pois decide ser viajante. Os arroubos da paixão poética dão lugar às grandes viagens através das florestas, do mar e do deserto. E encontramo-lo aqui na sua vida adulta, já longe dos tempos de boémia parisiense e londrina. Aventureiro como sempre, nómada, o poeta decide fazer fortuna com as suas viagens, que hão-de conduzi-lo aos mais recônditos lugares do mundo. E aqui, mais uma vez, o rigor de Ana Cristina Silva é notável, acompanhando-lhe o percurso, numa escrita ágil, depurada e conhecedora dos costumes. Com ela, sonhamos as vastidões de Rimbaud e viajamos com ele, «vivemos» a tragédia que ensombrou a sua vida até à sua morte, aos 37 anos.

Apesar de, durante a última fase da sua vida, após os 21 anos, Rimbaud ter abandonado a poesia, esse sopro magnífico e arrojado da paixão que o atravessava jamais o deixou. Ficou-nos para sempre, e agora, graças a esta obra de Ana Cristina Silva, a memória da sua poesia grandiosa e a certeza de que o seu mundo antecipava já o que viria a ser a modernidade. Rimbaud esteve muito para lá do seu próprio tempo e foi essa despedida fulgurante de uma época — e o surgimento da modernidade — que Ana Cristina Silva tão bem soube captar.


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Maria João de Oliveira Sequeira Cantinho (Lisboa1963) é uma autora portuguesa. É poeta, crítica literária e ensaísta. Defendeu tese de doutoramento em Filosofia Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa. É investigadora do Centro de Filosofia[1] da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e colaboradora do Collège d'Études Juives[2] da Universidade da Sorbonne. É professora do Ensino Secundário e foi professora do IADE (Creative University of Lisbon) entre 2011 e 2016. É colaboradora na Revista Colóquio-Letras[3], colaborou com a Revista Relâmpago, Mea Libra, Golpe d'Asa, PensamentoDiverso, Philosophica, Revista de História das Ideias (Universidade de Coimbra) e em diversas revistas literárias e académicas e membro do Conselho Editorial do Caderno do Grupo de Estudos Walter Benjamin.(Texto de apresentação do livro de Ana Cristina Silva)

   Arthur Rimbaud, por Ramon Muniz
      

A compreensão do gênio


Ensaios sobre Rimbaud e Kafka apresentam escritores por trás das obras e dos mitos

RASCUNHO - 


Arthur Rimbaud (1854-1891) e Franz Kafka (1883-1924), cada um ao seu modo, personificaram a figura romântica do gênio. Inaptos à realidade familiar, social e histórica em que viviam, consumiram-se para pagar o tributo por terem compactuado em abrir a caixa de Pandora da modernidade.

Em dois ensaios biográficos lançados pela Companhia das Letras — Rimbaud: a vida dupla de um rebelde, de Edmund White, e O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka: um ensaio biográfico, de Louis Begley —, os escritores atormentados que viraram cânones após a morte são apresentados ao público não especializado em relatos breves, mas bem documentados. A proposta é da editora americana Atlas & Co., especializada em obras de não-ficção, que originalmente publicou os livros.

Se os ensaios não acrescentam novidades às biografias e incontáveis estudos e comentários feitos a respeito do poeta francês e do escritor de língua alemã, também evitam os reducionismos que buscam nas histórias pessoais dos autores chaves interpretativas para sua produção literária. Sedução maior no caso de escritos cheios de camadas de significados como os poemas de Rimbaud, repletos de sutilezas técnicas, e os assustadores romances e contos de Kafka. E ainda, que convidam a leituras psicologizantes de artistas castrados pela mãe (no caso de Rimbaud) ou pelo pai (Kafka), com sexualidade ambivalente (Rimbaud) ou possíveis disfunções físicas (Kafka).

Pelo contrário, as biografias de White e Begley cumprem a tarefa mais simples de remeter o leitor aos clássicos e inserir releituras em contextos mais amplos, justificando-se, assim, como boas referências no lucrativo mercado das biografias.

Paixão indiscreta


Rimbaud, de Edmund White, tem a leveza de uma crônica e o ritmo de um romance popular. A história do adolescente rebelde que no século 19 transformou a poesia francesa em algo novo, moderno, e que depois rejeitou a criação, é um estímulo a searas ficcionais. O “mistério Rimbaud”, que dos 14 aos 19 anos reinventou a linguagem poética para depois passar o resto da vida como comerciante de marfim, armas e especiarias na África Oriental, é um dos mais fascinantes e discutidos da literatura ocidental. É usual um adolescente problemático se tornar um adulto responsável e mesmo conservador. Porém, não é o caso de uma mente tão criativa e singular de repente, na maturidade, abraçar uma existência medíocre e relegar o talento. Pelo menos não com a intensidade com que Rimbaud o fez.

White, que também escreveu biografias dos franceses Marcel Proust (1871-1922) e Jean Genet (1910- 1986), enfatiza a relação homossexual entre Rimbaud e o poeta Paul Verlaine (1844-1896), que se tornou um escândalo nos círculos artísticos de Paris. A publicidade do romance, segundo o autor, teria motivado o abandono por completo da literatura por Rimbaud.

Segundo White, o comportamento antissocial do poeta e a “sedução” de Verlaine — dez anos mais velho, casado e, já à época, um poeta reconhecido — bloquearam as oportunidades para o reconhecimento nas letras. Para Rimbaud, a opção foi aceitar o fracasso como poeta e partir ao encontro de ocupações que atendessem a seu ímpeto aventureiro e a inquietude intelectual que alimentava desde a infância:

Talvez Rimbaud soubesse que as pessoas aqui e ali ainda se referiam a eles como amantes. Sem dúvida, o caso deles tinha sido notório, sobretudo depois que Verlaine foi condenado por atirar em Rimbaud. Se Rimbaud tinha vergonha desse episódio de sua vida (a bebedeira, a imoralidade, sua própria delinqüência), não admira então que não quisesse falar disso com os europeus com quem se relacionava na África. Queria provar a eles que era digno de confiança, uma pessoa respeitável.

Rebelde


Rimbaud nasceu e passou a infância em uma cidade do interior da França, filho de um capitão do Exército, que abandonou a família quando ele tinha seis anos, e de uma campesina instruída, mas carola e rigorosa (“Ninguém jamais a vira sorrir”). Foi um aluno talentoso, que demonstrava facilidade para aprender línguas estrangeiras e que ganhou concursos com versos em latim. Entretanto, foi o adolescente rebelde que virou mito.

As fugas para Paris começaram em 1870, quando o país entrou em guerra contra a Prússia e, na seqüência, o Estado francês foi derrubado pela Comuna e Paris (1871), considerada o primeiro governo comunista da história. Sem ter nenhum ofício ou como se sustentar, Rimbaud sempre retornava para casa, ciclo rompido apenas quando deixou o país definitivamente, em 1880.

Manteve também um relacionamento atribulado com a mãe e mais afetivo com a irmã Isabelle (para as quais escrevia cartas da África) até morrer mutilado devido a um câncer, aos 37 anos de idade.

Sobre os “anos selvagens” de Rimbaud em Paris, Londres e Bruxelas, na companhia de Verlaine, White conta detalhes e relatos curiosos que dão maior fôlego à sua narrativa. Sujo, magro, bêbado e coberto de piolhos, Rimbaud era uma companhia obscena e um hóspede inconveniente para amigos e familiares de Verlaine. Na casa de um poeta, usou uma revista literária como papel higiênico. Na de outro, ficou nu na janela e atirou as roupas imundas na rua. Era especialmente encantado com escatologias e palavrões, e dado a atitudes grosseiras e zombarias.

De acordo com White, essa imagem, que conferiu a Rimbaud a ancestralidade dos beatniks, hippies e punks no século 20, era condizente com a transformação alquímica que ele operava na poesia. De Vogais, poema sinestésico escrito em 1871, até a invenção do poema em prosa e o primeiro registro do verso livre nas obras Uma temporada no inferno e Iluminações, ambos de 1873, o adolescente reviu toda a poesia francesa e antecipou os movimentos simbolistas e surrealistas.

Um dos maiores exemplos de seu caráter inventivo são os cem versos de O barco bêbado (Le bateau ivre), que tem uma forma aparentemente tradicional, de sonetos alexandrinos, mas é radical nas cesuras (pausas entre os versos). Não é a toa que simbolistas e mesmo os poetas concretistas brasileiros tenham se deliciado com a contemporaneidade de uma construção como a do divertido Cocheiro bêbado (Cocher ivre, na tradução de Augusto de Campos):

Álacre
Vai:
Nacre
Rei;
Acre
Lei,
Fiacre
Cai!
Dama:
Tombo.
Lombo
Dói.
Clama:
Ai!

Tiro em Bruxelas


Verlaine, ao contrário, é o escritor sem a explosão criativa de Rimbaud, apesar do talento como poeta respeitado pelos seus conterrâneos. Ele é descrito no livro como um bêbado, viciado em absinto, violento com a mulher (que sustentava sua vida boêmia) e o filho recém-nascido, além de submisso aos caprichos e chantagens do amante mais jovem. Segundo White, um homem feio (o ensaio peca pela falta de imagens dos poetas) e dividido entre os desejos homossexuais e a fé católica.

White não se exime de expor os detalhes mais íntimos, com um exame médico ao qual Verlaine se submete depois de preso. A inspeção teria como objetivo atestar se ele era ou não homossexual:

Os médicos se detiveram sobre o pênis diminuto, com sua cabeça particularmente pequena e afilada. Mais importante para eles foi o ânus. Inseriram-lhe um instrumento e descobriram que sua ‘contratibilidade’ era quase normal e que não havia ferimentos.

A relação proibida entre os poetas terminaria com Verlaine preso após atirar contra Rimbaud e o ferir no pulso, em um hotel em Bruxelas. No entanto, isso não arrefeceria a lealdade de Verlaine, que teve carreira mais longa e foi o principal responsável pelo reconhecimento do amante como gênio da literatura após 1880. Condição, aliás, que Rimbaud desprezava depois de se tornar um venerável comerciante no Iêmen.

Do período africano, restaram cartas nas quais Rimbaud se queixava constantemente do calor no deserto, dos árabes e do tédio, mas que, mesmo assim, não foi o suficiente para avivar planos de retorno à pátria. Somente um câncer, que o obrigaria a amputar a perna direita na altura do joelho, suspenderia sonhos prosaicos de ficar rico com o comércio e ter uma família. No final da vida, de muletas, infeliz e com a mãe interessada em herdar sua pequena fortuna conseguida no deserto, pouco restava daquele jovem anárquico de olhos de Husky siberiano que desconcertou os parisienses.



Franz Kafka, por Ramon Muniz

Pesadelos


O mundo prodigioso que tenho na cabeça, do romancista Louis Begley, é mais rigoroso nas referências e na análise das obras do escritor checo. O livro é dividido em quatro partes distintas, em que explora o judaísmo, o convívio (ao menos platônico, na maior parte das vezes) de Kafka com as mulheres, a doença e, por último, a ficção. Begley faz uma reconstrução apurada do ambiente anti-semita da Europa pré-Hitler e presta um importante serviço apontando as interpretações forçadas da obra com base na vida do autor.

Franz Kafka criou uma das mais belas e ao mesmo tempo incômodas prosas do século 20, em romances como A metamorfoseO processo e o inacabado O castelo. Das situações opressoras vivenciadas por Josef K., protagonista de O processo, surgiu o termo kafkiano, usado para designar um sujeito massacrado pelo Estado. O romance ficou célebre, ainda, ao antecipar abusos trazidos pelos regimes nazi-fascistas e comunistas no século 20.

Qual é o segredo da ficção de Kafka, que se esquiva de exegeses e toca nervos que o leitor sequer imaginaria possuir? Entre 1912, quando escreve O veredictoA metamorfose e O foguista (que viria a ser o primeiro capítulo de Amerika), e 1914, ano em que redige A colônia penal e inicia a escrita de O processo, Kafka tem o seu período mais produtivo como ficcionista.

Culpa, punição e crueldade, além da figura recorrente do pai colérico, são temas recorrentes em sua obra. Entretanto, o que prende o leitor da primeira à última página é um elemento de estranhamento (como a mutação de Gregor Samsa em A Metamorfose) diluído num ambiente descritivo e realista, onde os personagens seguem ritos normais diante daquilo que seria um pesadelo. O ponto alto do livro de Begley é o exame lúcido de eventos da época (como o caso Dreyfus) e da vida de Kafka que compõe o repertório e serve de moldura para os romances.

Devemos entender a obra como ela é (Na colônia penal): a tentativa desesperadamente corajosa do autor de digerir pesadelos dos quais não conseguia acordar — com a aura de todas as possíveis associações e referências em torno da história servindo para intensificar nossa experiência e não para ditar nossa interpretação. A verdade é que os ficcionistas raramente — talvez nunca — pensam em apenas uma experiência, ou um conceito, ou uma única pessoa ou grupo de pessoas quando criam uma obra de ficção, mesmo que seja um roman à clef, o que não é o caso de nenhum texto escrito por Kafka. Quando uma obra está em gestação, seu criador é assediado por uma multidão de possibilidades incipientes, a maioria das quais ele não desenvolve. Lampejos inesperados, alguns muito úteis, tornam-se milagrosamente disponíveis.

“Molenga”


Kafka era tímido, reservado, hipocondríaco (e depois doente de tuberculose), retraído e sexualmente frustrado. Passou quase toda a vida no apartamento dos pais em Praga e empregado numa firma de seguros, da qual se aposentou por invalidez após uma crise nervosa. Crítico severo dos próprios escritos, mandou o amigo Max Brod (1884-1968), biógrafo e responsável pela publicação da obra póstuma, queimar livros inacabados, cartas e diários.

Caso Brod tivesse cumprido o último desejo do amigo, o melhor da ficção de Kafka, incluindo O processoO castelo e Carta ao pai, bem como detalhes de sua vida, jamais seriam conhecidos pelo público. Além disso, as cartas que escreveu — era um missivista compulsivo — e os diários que deixou são hoje as principais fontes para os biógrafos e estudiosos.

Sobre os ombros de Kafka pesava a atmosfera tirânica de dois guetos. Um deles físico e cultural, no qual os judeus eram alvos de conflitos racistas que culminaram no Holocausto (Kafka teve três irmãs que morreram em campos de concentração nazistas). Outro, familiar e emocional, marcado pela presença despótica do pai, um homem tacanho que não via valor em seus livros e cuja índole é descrita, sem concessões, em Carta ao pai.

O misantropo que se revela em cartas e diários (“A vida é meramente terrível; sinto isso como poucos […]. Duvido que eu seja um ser humano”) ansiava por se desfazer ao máximo de compromissos para se dedicar integralmente à literatura. O incomodava o trabalho burocrático e a agitada rotina doméstica dos pais e irmãs. Ao mesmo tempo, era fraco para largar o emprego, sair da casa dos pais e arriscar-se na carreira de escritor. Quando finalmente conseguiu aposentadoria compulsória e foi morar com a amante, em 1922, era tarde demais. Doente, só sobreviveria por mais dois anos.

Segundo Begley, as lamúrias eram desculpas para bloqueios criativos:

Poder culpar o Instituto (seguradora) e as condições do apartamento dos pais pelos longos períodos de latência em que não conseguia escrever dava cobertura a Kafka, permitindo-lhe preservar parte da auto-estima. A necessidade de preservá-la era real: em comparação com seus amigos, ele era um molenga,

diz, referindo-se aos amigos escritores Max Brod, Oskar Baum (1883-1941), que era cego, e Franz Werfel (1890-1945). Eles publicavam enquanto Kafka reclamava. Ficar diante da página em branco sem outros afazeres, afirma Begley, seria insuportável para o espírito angustiado de Kafka.

Amores


Com a mesma indecisão existencial o escritor torturou suas amantes, sobretudo Felice Bauer (1887-1960), a quem infernizou por meio de cartas por cinco anos, ao longo dos quais ficou noivo — e rompeu a relação — por duas vezes. As cartas, que devem ter deixado a noiva em desespero, são em alguns momentos hilárias, como quando descreve para uma amiga, com uma indiscrição surpreendente, a visão que os dentes banhados a ouro de Felice lhe provocaram quando os dois se conheceram:

Para dizer a verdade, esse ouro reluzente (um brilho realmente diabólico para esse local impróprio) assustou-me tanto de início que tive de baixar os olhos à vista dos dentes de F. e da porcelana cinza-amarelada. Depois de algum tempo, sempre que podia, relanceava os olhos para eles de propósito a fim de não os esquecer, para atormentar-me, e finalmente para me convencer de que tudo é mesmo verdade.

Em outros trechos, Kafka soava como uma simples criatura inconveniente ou um indivíduo de caráter frouxo, que usava toda sua eloqüência para conquistar e impingir sofrimento às amantes. Nada disso, todavia, o impediu de ter o trabalho no escritório estimado pelos colegas e de desfrutar uma vida social com seus amigos, um restrito círculo de intelectuais judeus de Praga. Eles admiravam seu talento como escritor e acompanhavam Kafka em bordéis, cabarés e cafés da cidade.

Por outra perspectiva, como não se emocionar com esse homem que, no leito de morte, sofrendo dores pungentes causadas por tuberculose na laringe e sem poder falar, deixa registrado em um bilhete escrito no hospital frases como “Põe a mão na minha testa por um momento para me dar coragem”?

Ao morrer, em 3 de junho de 1924, um mês antes de completar 41 anos, estava só, como Rimbaud no exílio e, no hospital, amparado apenas pela irmã Isabelle. O que ambos perseguiam estava além do alcance dos versos e fábulas que criaram, e que somente o outro (que repeliram) poderia lhes dar: o reconhecimento ou, quem sabe, a mera compreensão do gênio que foram na literatura. Isso, apenas a posteridade teve paciência e discernimento suficientes para fazer por eles, de forma plena e à altura de sua arte.

José Renato Salatiel é jornalista e professor universitário.








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