ESTRADA DE FERRO ILHÉUS – CONQUISTA
Desde o tempo do império o poder público estadual já tinha a intenção de construir uma estrada de ferro na região. Em 1892, no tempo do Encilhamento*, o governo do Estado fez um projeto ligando as cidades de Ilhéus a Canavieiras, projeto este que não obteve sucesso.
Em 1899, o governo do Estado fez concessão pelo prazo de 50 anos da Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista aos engenheiros Frederic William Cox e a José Correia de Lacerda, com o prazo de um ano para ser começada a construção, novamente não se concretizando o projeto.
Em 1904, tendo sido concluído os estudos definitivos da construção da ferrovia, o governo do Estado, na administração de Severino Vieira, concedeu a Bento Berilo de Oliveira a concessão para construir a referida ferrovia, não conseguindo iniciar o projeto, Bento Berilo de Oliveira concedeu a concessão à firma Oliveira, Carvalho & Companhia em 1905, dois anos depois houve um aditamento ao contrato. Em 1909 foram transferidos os direitos da concessão à firma inglesa The State of Bahia South Westem Railway Company Limited, que enviou o engenheiro Francis Reginald Hull para ser o seu Superintendente Geral.
Em 1913, foi inaugurado o primeiro trecho da linha com extensão de 59 km até Itabuna, trecho este que já estava sendo usado desde 1911.
Em 1914, iniciou-se a construção do primeiro ramal, o de Água Preta (Uruçuca), que partia da estação do Rio do Braço, com extensão de 35 km, ramal que depois foi prolongado até a Estação de Santa Cruz, em Itapira, que em 1940 passou a chamar-se Poiri, com uma extensão de 42 km. Neste local em 1930 existia uma fazenda de cacau pertencente a Ramiro Teixeira, com a chegada da ferrovia foi criado em torno da mesma o povoado de São Miguel que em 1961 passou a chamar-se Aurelino Leal. Por este ramal era transportado o cacau produzido nos municípios de Itacaré, Maraú, Camamu e Jequié.
Em 1918, foi iniciada a construção do ramal de Sequeiro do Espinho, que depois passou a chamar-se Pirangy, hoje acidade de Itajuípe, concluído em 1934.
Foram as máximas extensões que a ferrovia alcançou, pois nunca chegou a sua ideia principal, que era de chegar a Conquista (Vitória da Conquista).
A estação central da Estrada de Ferro situava-se na Praça Cairu, onde hoje está instalado o terminal urbano e o escritório da Ceplac, o seu percurso começava na Rua Tiradentes, seguia pela Visconde de Mauá, passando em frente ao Estádio Mário Pessoa, Maternidade Santa Isabel até a Praça do Cacau, continuava pela Avenida ACM , em frente à antiga Petrobras. No Malhado, na primeira curva entre o Colégio Estadual e o Parque Infantil existia uma estação, depois do Parque Infantil seguia pela Avenida Vereador Amilton de Castro, antiga Rua da Linha, na Barra, até o canal do Rio Itaípe, no Jardim Savoia seguia pela Avenida Raymundo Sá Barreto, antiga Av. Proclamação, até o bairro do Iguape, no local denominado de “Pêra”, que era a denominação de uma caixa d’água usada para abastecer a caldeira dos trens, onde também ficavam as oficinas da estrada de ferro, hoje, neste local, está instalada a fábrica da INCON. Seguia margeando o rio Almada, em frente da Fazenda Rosário até Aritaguá, Sambaituba, Lava Pés, seguindo para o distrito do Rio do Braço, de onde se bifurcava para as demais estações.
Os seus funcionários tinham moradias na Avenida Antonio Carlos Magalhães, em frente à Petrobras; no Bairro da Barra, em frente ao 2º BPM, e no Bairro do Iguape, logo após o anel rodoviário.
Em 1950, os ingleses repassaram a estrada ao Governo Federal, Rede Ferroviária Federal, RFFSA, que mudou o seu nome para “Estrada de Ferro de Ilhéus”. A ferrovia nunca chegou a Conquista, pelo fato de os ingleses já estarem satisfeitos com o que arrecadavam com as linhas já existentes.
Nos seus dias finais, teve muita importância na construção do Porto do Malhado, transportando as pedras que construíram o seu espigão.
Em 1963, a ferrovia encontrava-se em plena decadência, parando de funcionar definitivamente em 1965.
(*O Encilhamento foi um período em que Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda, permitiu que certos Bancos emitissem títulos de crédito não cobertos por depósitos em dinheiro.)
Alfredo Amorim da Silveira (1950) é ilheense, pertencente a família, de forte presença, social, econômica e política, centrada na história da região cacaueira, é pesquisado, historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Ilhéus.
OBS.- Com a abreviatura E.F.I.C., até fixada em classes e vagões, a ferrovia do cacau, por não se ter completado o previsto no projeto, de chegar até a cidade de Vitória da Conquista, sempre foi comumente conhecida e tratada como Estrada de Ferro de Ilhéus, mas esta nomenclatura só se oficializou em 1950, com a sua transferência para o governo federal. (Acréscimo de FM).
ESTRADA DE FERRO DE ILHÉUS
Alexandre Santurian* - 1991
Com 132 km de extensão, foi inicialmente denominada EF Ilhéus - Conquista.
Situava-se no sul da Bahia, ligando as cidades de
Itabuna, Itajuípe e Poiri ao porto de Ilhéus.
Sua construção acompanhou o desenvolvimento das
fazendas de cacau, que suas linhas atravessavam, e resultou da concessão dada
em 1907 a uma empresa de capital inglês — The State of Bahia South Western
Railway Company Limited.
Construída com muita lentidão, somente 26 anos mais
tarde foi totalmente concluída. O retorno financeiro era muito baixo e
acentuava a falta de interesse dos proprietários em novos investimentos.
Como consequência de todo um processo de decadência, o
governo federal encampou a ferrovia, através dos saldos que o Brasil possuía
congelados na Inglaterra, durante a II Guerra Mundial, resultado de nossa
balança superavitária, na época.
O processo de compra provocou ações de interdição
movidas pelos proprietários ingleses e só foi concluído em 1959, em acordo
firmado entre os tribunais de ambos os países.
Ao ser incorporada à RFFSA, poucos meses depois, a EF
Ilhéus transportava basicamente cacau, e estava em péssimo estado de
conservação. Foi também absorvida pela Leste Brasileiro e, posteriormente,
erradicada.
*Paulista, Alexandre Santurian é um profissional de Comércio Exterior, no momento aposentado e aberto a novos projetos em Salvador ou São Paulo.
COMPOSIÇÃO DE FERROVIA
Florisvaldo Mattos
I - Galope sangrento
Sobre campos de sol fotografados de fome
de manhã surpreendo-me entre maquinistas.
guarda-freios, foguistas, agulheiros
colecionam tristezas numa ferrovia.
Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,
exiladas faces como nuvens atônitas,
contra pontilhões investem, contra água pesada.
Sucedo de rotas e destinatários,
de mercadorias emerjo, melancólico.
Experiências metálicas de locomotivas
trituram músculos, afogada energia
de trabalhos humanos e apitos agudos,
trilhos que sulcam horizonte sem âncora;
me alimento de fogo, velocidades sofridas
de vagões conduzindo cacau e sombra
sobre cidades e montes, sobre latifúndio:
negro mar se agacha, silencioso salta,
come homens e meninos que choram sonhando.
Entre estações que gritam impossível atraso,
sonolentos comboios avançam na noite.
Desenvolvem sem termo choro agressivo,
um choro duro de homens e fornalhas
devorando madeiras e carne em lamento.
Lento uivo de rodas que se multiplicam
com substância noturna de salários
acumula vegetação nos eixos aluídos,
esperança consome na carreira profunda
sobre ilhas de acaso engrossando velho
patrimônio de mortes alugadas.
Rápidos horários com palavras de fumo
seu voo de espuma e lâminas corroídas
e matérias subjugadas anoitece
no sangue roxo operário com ferrugem,
elabora sentidos e desgraças na fronte
espessa. Na garganta incendiada cresce
gemido áspero de peito mutilado,
com umidades ocultas, com soluço.
II - Inclinação do touro
Abandona-se à agonia das campinas
vencidas, idêntico de origens, branco touro.
Bruscamente desperta das árvores em fuga,
da massa dos dias. De repente, das raízes
do pranto inclina-se operoso, agrupa-se
a um barulho de ferros e caldeiras,
a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.
Do sentimento comum de águas em arranco,
súbito levanta-se, acorda ferroviárias
perspectivas amarradas ao volume do sono.
De aurora que lhe umedece cascos e chifres
baixa uma luz influente de conquista;
do seu dorso de argila ao meu rosto chega
uma luz que me alcança cruza-me os nervos
ampla de rumos mergulha na carne de todos
resistente caindo sem parar nas cabeças.
De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso
crepúsculo, evoluindo em cada elemento,
sua construção permanece de touro veloz
em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.
Estação da estrada de ferro de Ilhéus, depois de extinta, em 1965 |
APOGEU DOS VAGÕES
Florisvaldo Mattos
Noturnos vagões carregados de amargura,
de empilhados produtos e origens,
correi, correi sobre horizontes dos dias!
acerca-se de mim, vai penetrando
com violência em meus olhos. Vence-me
a carne e os nervos, minha voz,
meu desesperado sangue e cansaço, como
fantasma criminoso que, alta noite,
entrasse em minha casa fortemente
nutrido de perigos e desastres.
Negros, armados de geometria difícil,
rota economia de outonos ressentidos,
duram interiores funerários
sobre sacos sombrios e carregadores.
Barris de angústia, lento soluço,
arrastado gemido sobre trilhos,
correi, sempre correi, sombra
afogada na sombra de sangrento galope.
Confuso grito e fúria registrando
velocidades e pressentimentos,
avançai contra noites, contra os dias,
noturnos vagões, consistência
de amarguras espessas e ferragens,
cruel fome de rodas gira-mundo.
Estação da estrada de ferro de Ilhéus, nos tempos áureos do cacau |
FERROVIAURA
Florisvaldo Mattos
I – Caminhos profundos
Tão nascida do homem como o homem
artefato da vida como a vida
de repente apagou-se fumo
Flora
sobrevinda outorgou-se aura de espanto
sob frio apenas ululante rastro
de universo roubado à geometria
Pena que teve origem que sofrido
foi-lhe o passo de rio ossificado
comércio e fábrica foi
Oceano útil
onde massas de fel tiveram porto
polígino conúbio do trabalho
com lavouras nutrindo-se em neblina
durou flecha de sol e foi perpétuo
vento esculpindo solo atormentado
Como oferta de assombro como silvo
indecifrado agreste nascimento
algo rompeu da selva taciturna
holocausto a cipoal empedernido
despontou nos vales de secreto fausto
súbita mãe gestando moitas
Deus
ex machina em seu tempo/movimento
senda de lavra e sangue
Ferrovia
estrela agrimensora no deserto
pesquisando rochedos serras altas
teodolito assentado sobre a carne
mirando grotas pássaros em coma
arrosta-se à navegação de precipícios
célere mordendo manhãs desperta
chão de lágrimas águas ofendidas
floresta /brenha folhas
E ao fundo nuvens
Garra amputada à fauna de felinos
carapaça equipada de luz rude
para oferenda a deificado fruto
O verbo no princípio era de ferro
de fogo
de fumaça mensageira
Lábaro sobrevoando paralelas
ou trilhos no úmido chão laborado
ou metal fugidio cravado em som
ou claro gesto na cor liberado
aeroplano espectral fotografando
tumba ou leito da State of Bahia
South Western Railway Company
de estio agulha para sempre cose
minério pedras troncos
Labareda
língua incessante touro arremetendo
ao descampado o cosmo em disparada
Está morta
Sumiram-lhe os ouvidos
Foi-se o grito alvoroçador do verde
os olhos de esperança se apagaram
O dorso
O peito
O império mineral
Hoje está morta
E era maciço ferro
Era madeira forte
Tudo muito real
Serpente de fumo ou cão ígneo
rojado contra um milhão de relógios
Inauguração da linha férrea, ligando Itabuna a Ilhéus, em 1911 |
II - A navegação dos horários
Conscientemente
instalo-me sobre mudos
pontilhões e repasso calendários
de vapor o marulho transeunte
é das locomotivas ofegantes
rodas e trilhos no asilo da ferrugem
abalando dormentes na lembrança
ensaiam no ar nostálgico de ruídos
brados
Ancoram em terminais de sono
onde tudo é memória luto sombra
Congelados nos postes de telégrafo
espectros de mensagens desgarradas
soterrando-se em Morse de azinhavre
cifram em sinais de brumoso código
a solidão das estações em ruína
duelam contra ventos redundantes
funcionários dementes engenheiros
severos cabos-de-turmas
Oligarcas
que à mesa pela noite jogam cartas
bebem uísque, soda e vinho do Porto
pantagruelicamente comem lauto
repasto convertido em florilégio
peões da estrada a martelar o sexo
regressando de abismos petrificam
desolado tributo que persegue
Mutuns Rio do Braço Água Preta
Santa Cruz Serra Verde Catolé
Cascata Pedras Pretas Poiri
Os atletas do trem soprando búzios
voam no pelo de cavalos doidos
Ante brasa e aço a dança dos foguistas
desperta cogumelos que deslizam
lentos por corredores de resina
Guarda-freios e maquinistas bêbados
escapando de sujos botequins
entoam sobre plataformas ermas
velhas canções de esperma itinerante
A fome lhes comeu o olhar de espanto
comeu-lhes rosto braços pensamento
e agora por entre aldeias sanatórios
praças com animais mumificados
acena-lhes com moedas de crepúsculo
misturadas a ânsias confissões gemidos
que viajam na mala dos correios
pelos desvios despachando brisas
que sobressaltam como os telegramas
O maquinista da 15 era Paizinho
só ele percebe o que lhe dizem toros
estalando como ossos na fornalha
Paiva ia na 12 engolindo rampas
A 13 parecia o Cabeçorra
sacolejando-se em Banco do Pedro
Rude pandeiro é a terra quando a máquina
14 galgando Corte Obrigado
corta nervos na pedra com seu berro
Papa terra Come trilho
Sobe serra Salta rio
Bebe fonte Torra folha
Empurra nuvem Arrasta safra
Açoita vento Acolhe pranto
Fruto acende Usura afaga
Conta mortos Canta a vida
Entrista casa Espanta as aves
Rompe manhã Acorda as águas
Afia a tarde O sangue queima
Aclara a noite O sonho alegra
E ferro fere o ar ferido
a máquina
A máquina quando geme
é a centelha sentindo a cento e vinte
a bandeira vermelha nas tangentes
era de fato um sinal de perigo
que ninguém viu descendo para Ilhéus
Árvore rio nuvem recolheram
espetáculos de roupas suarentas
e teceram no espaço dos horários
biografias murais de óleo e carvão
Dos trens de carga aqueles vagões negros
levam sonhos de infância em feixe e fardo
cabedais de família minhas queixas
rolam por ribanceiras vêm como águas
de cheia
Torturadas torturando
As armações dos verdes armazéns
delegam ao ferro forças irreais
para guardar sob zinco a sacaria
Safras de cacau
Vidas em coágulo
Mercadorias fremem ao som distante
de um telefone negro endoidecido
O velho Barros chefe-da-estação
polindo estrelas sobre o guarda-sol
distribui caracóis aos passageiros
ou desvendando leis no roto clima
sujeita o tempo a seu apito mágico
A máquina parece assombração
quando parte espantando as alimárias
Te-Aviso Gasosa Telefone
Fortaleza Cuscuz Besta Melada
curvos às cargas longe grimpam montes
doando seu trunfo ao infinito
sobre verde que espelho a tarde sangra
III – Cemitério de esperança
a)
Nem mesmo estavas preparada
estavas como caça fatigada
quando de ti veio se acercando
por entre ramos cedros sapucaias
desavindo rumor
Severidades
ensombrecendo leito matutino
Era preciso que o céu baixasse rápido
que tudo se cobrisse de argamassa
e se desse ao ferro cemitério
Tudo era preciso no momento
Era preciso que se abatesse a caça
e se fizesse sombra onde era sol
se apagasse o caminho de alegrias
por onde seguiam os que voltavam
b)
olhos mergulho agudos na folhagem
perfuro frondes de onde saltam rostos
Estação que foi de Sambaituba |
cavados dentes olhos do barranco
aparições enfermas se debruçam
sobre desfiladeiro imaginário
que persigo em desembestada fúria
vozerio que se arma me acompanha
eleva-se como corpo trespassado
veloz dardo que passa e me detém
Gritam choram tremem dentes olhos
EFIC, estação da antiga Pirangy |
rostos qual pensa esteira de gemidos
lua despedaçada em mar distante
relâmpagos amargos que me fendem
o coração
a boca paralisa
c)
Eu sei
Tens até mágoa
Quando vens
Espetas teu apito verdejante
no céu na flora de abundante mel
madeira mineral que te rodeia
– e o louro e o fel e a mão oculta
sobre a roxa amêndoa de cacau
que anuncia o verão
Vens e despejas
EFIC morta, estação de Aritaguá |
tua usina de aromas
teu calor
Eu sei
Tens vontade até de recuar
para o seio absoluto da manhã
e lá polir a crosta de ferrugem
arrancar-se depois do inanimado
chão da morte
como ave ou como estrela
súbito em voo raso sobre os campos
E a mim vens com teu peso
teu galope
animal de pelagem coruscante
rolas sobre meu peito
meu semblante
sobre meus olhos hóspedes do vento
a de ontem vida tua enfermidade
Vens como se rompesse a noite em febre
açulando os outeiros acordando
pássaros empalhados nas ramagens
malgrado tudo
Sonho capturado
vens banhada de luz e tempestade
tua massa colora os ambientes
embriaga o instante avança e nos eriça
cadáver hoje que se inventou bandeira
ao roçar de teu sopro
teu convívio
IV – Expectante reflexão
O trem
verde e vermelho como a vida
mas pode-se agregar ocre e amarelo
se é de homens e coisas que se fala
O trem
ânsias de infância/arrimo de velhice
O trem
rebanho de acenos/rama flamejante
O trem
ágil pesadelo/viação da aurora
O trem
transido soluço/bandeira de sorrisos
O trem
flauta de vidro/vertebrado canto
O trem
centopeia de nuvem/potro de esmeralda
O trem
O trem de Água Preta
Dardo de som lançado ao infinitivo
rajada de luz atravessando o paraíso
me aduba o coração o sonho acorda
o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.
Florisvaldo Mattos. Poesia Reunida e Inéditos, 2011)
A HORA DO TREM DE CARGA
Florisvaldo Mattos
Súbito um ruído: em madrugada fria,
Vozes arrastam sacos transitando.
Zonzo, acordo, na rede em que dormia,
Lá fora, a noite, mas ninguém passando.
Pela casa só via gente andando.
Ainda na escuridão, já vindo o dia,
alguém com um saco de caroços pando,
e eu sem decifrar o que acontecia.
Sei agora. Essa de cacau trazer
Em tropa de burro para Água Preta
É coisa que não dá para entender.
Melhor nem perguntar, parece treta.
Quando, apitando, aponta o trem-de-carga
E para na estação da rua larga.
Trem de passageiros, na linha que liga Ilhéus a Itabuna
DE PRANTOS NA FOLHINHA
Florisvaldo Mattos
I
Há um tempo para tudo. Mala pronta,
banho tomado, ajeito a calça curta.
Primeiro, era subir a serra até o alto;
depois, descê-la para o Catolé,
o rio de águas turvas e beiradas
de canoa aguardando passageiro.
Alguém me levará para a estação
da Fazenda Cascata, éden rural,
que pulsa no esplendor da luz elétrica.
O lugar tem de um tudo, minha gente!
Farmácia, posto-médico, armazém,
escola, padaria e cabaré...
Por que deste alvoroço? É o trem-de-ferro,
que chega de vagões abarrotados.
II
Na manhãzinha de um verão defunto,
repisando palavras, conselheira,
a mãe urdia na hora da partida,
igualmente a um martelo na bigorna.
“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.
A luz do livro guia o pensamento”.
Os dias disparando na folhinha,
subo no trem e vou para Água Preta.
Trilhos rangem. A máquina resfolga,
bafejando fumaça nos dormentes.
Como a vida, o trem passa e passará.
Chegar, parar, partir, é o seu destino,
sem que perdure vivo nos apitos
o pranto que ele deixa para trás.
NO TREM, COM CENTURIÕES
O trem-de-ferro para na estação.
Dentro da classe de janelas muitas,
sento-me na cadeira de palhinha.
Tez denunciando terras e distâncias,
fazendeiros de bota e paletó
penetram no vagão suando auroras.
De cenho carregado, dependuram,
no alto, o chapéu, esporas e o revólver.
As mulheres destrincham seus rosários.
Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.
Compadres são de justas e conquistas
(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).
Colecionando safras e plantios,
transpiram suor e orvalho. Nas capangas,
dormem papéis e ganhos, calendários.
Nunca delas sairá a última moeda.
Confiam num outono redentor,
em dias mergulhados na lavoura.
Pacíficos, serenos e domésticos,
não bebem aguardente, nem sorriem.
Sonharam, não mais sonham, esses machos.
Em tardes mansas de remotos sítios,
sem traficar afagos e carícias,
encharcaram de filhos castos ventres.
Logo velhas histórias de jagunços
desfilam entre gáudios outonais:
de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,
do que morreu de tiro noutro rio
(quietos Mocambo, Almada. Catolé).
Logo se dá notícia alvissareira:
cacaueiros esplendem de fartura,
com fruto encachoeirando pelo tronco.
Fugindo de centelhas e fuligem,
em meu traje de seda cintilante,
abro a janela e me debruço. Sopro
minha flauta vermelha de metal,
com que costumo celebrar instantes
em que o dia derrama suavidades
e saúdo os guriatãs e os curiós,
que se abancam nos postes de telégrafo.
A manhã solidária me convoca
a mirar a beleza das campinas,
na luz que pauta a música do dia.
A máquina suspira, o trem esbarra.
Guardo a flauta no bolso da camisa.
Súbito casas, uma praça, letras.
No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:
a vida é bela, há mais que desfrutar.
(Florisvaldo Mattos, Estuário dos Dias e outros poemas, 2016)
Cacau Sonhado, arte de Jane Hilda Badaró (que feneceu)
Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.
Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.
Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.
Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.
(Salvador, manhãzinha de 09/10/2015. Estuário dos dias e outros poemas, 2016)
Nenhum comentário:
Postar um comentário