sexta-feira, 28 de junho de 2024

ILHÉUS, BÚFALO DE FOGO, 490 ANOS (2024)

    
 

Com esta belíssima imagem da venerável cidade de Ilhéus, pondo em destaque a sua magnífica catedral, a nova ponte ligando-a a Pontal e ao Morro de Pernambuco, Pedro Muller reverencia os 490 anos, desta que já foi apelidada de Princesinha do Cacau.
Como civilmente sou ilheense, desde que nasci nos arredores da hoje cidade de Uruçuca, então seu distrito com o nome de Vila de Água Preta, não poderia deixar de me juntar a esta grandiosa evocação, transcrevendo belíssimo poema em sua homenagem, da lavra do belmontino Sosígenes Costa (1901-1968), que lá viveu de 1926 a 1954, como funcionário dos Correios e secretário da Associação Comercial de Ilhéus. (FM)

BÚFALO DE FOGO
Para Jorge Amado

Anoiteceu. Roxa mantilha
suspende o céu do seu zimbório.
Que noite azul! que maravilha!
Sinto-me, entanto, merencório.
Dentro da noite, Ilhéus rebrilha
qual grande búfalo fosfóreo,
enquanto as flores da baunilha
são como um cândido incensório.
Estão as casas figurando
como que um bando de camelas
a descansar sob as estrelas
em sideral reclinatório.
Longe, o farol de quando em quando
luze no plano das estrelas
como uma opala num zimbório.
Quem foi que trouxe os dromedários
para este vale que se encanta?
Foram decerto os visionários;
aqueles homens legendários,
trouxeram, pois, os dromedários.
Não foram, pois, esses sicários
e nem tampouco o sicofanta.
Anoiteceu. Roxa mantilha
suspende o céu do seu zimbório.
Que noite azul! que maravilha!
Sinto-me entanto, merencório.
Envenenou-me a mancenilha.
Ah! porque sei que o ideal é inglório,
tenho a tristeza de uma ilha
perdida em pélago hiperbóreo.
Dentro da noite, Ilhéus rebrilha
Qual grande búfalo fosfóreo,
caído em rútila armadilha
como um tesouro venatório.
Andam no mar os ceroferários
com as cerofalas dos Templários
como no enterro de uma infanta.
O mar se encheu de lampadários
e brilha com os hostiários
e os mais preciosos relicários
e um colossal fogo de planta.
Oh! este mar dos lampadários
não brilha como os serpentários
e as pedrarias dos corsários
nem como as roupas do hierofanta.
Nem como o anel dos argentários
e os ouropéis do sacripanta.
E a onda glauco Stradivarius,
forma um violino e então descanta.
Sobe um perfume dos sacrários:
incenso ou mirra sacrossanta.
Vem ver o vento os dromedários,
correndo mais do que Atalanta.
Estou no cimo deste monte,
a cavaleiro da cidade.
Ora, maior do que um mastodonte,
Avança a treva para o monte,
passa por cima da cidade
e cinge o monte e agora o invade.
Saiu do mar o mastodonte
e cobre agora a imensidade.
Por que não vem Belerofonte
matar Tifon que os céus invade
com o ar sombrio de Caronte
e do infernal Marquês de Sade?
Mata esse monstro, Laocoonte.
Pede um punhal à imensidade.
Como um brilhante anel de arconte,
cintila à noite esta cidade.
Dentro da curva do horizonte,
Ilhéus recorda, ao pé do monte,
um grande búfalo bifronte
com olhos rútilos de jade.
Anoiteceu. Tudo rebrilha.
Sinto-me entanto, merencório.
A estrela está dos céus na trilha
brilhando mais do que um cibório.
Caindo em gotas na baunilha,
o orvalho é um lírico suspensório.
Oh! surge a negra mancenilha
no olhar de dom Juan Tenório.
Formosa pérola casquilha,
lembra a corola da baunilha
um madrigal em redondilha
e um angélico incensório.
A noite pôs sobre a mantilha
negro adereço de avelório
e pôs também a gargantilha,
grande colar de estrelas flóreo.
Como as formosas de Sevilha,
a noite vai ao desponsório.
Não quis brilhar para o noivado
da noite, a lua, aquela joia.
Não quis, romântica Lindoia,
pelo infinito constelado
rodar a rútila tipoia.
Não quis sair do mar dourado
brilhando mais do que o papado
e que a coroa de um ducado
e que um soneto elogiado
de um velho bardo de Pistoia.
Não quis a lua andar no prado
que está no céu todo estrelado
e tem mais brilho que um noivado
Poeta Sosígenes Costa (1901-1968)

e os quadros rútilos de Goya.
Não quis a lua, o rosto amado,
boiar dos céus na claraboia,
como um semblante decepado
de uma princesa de Saboia.
Não quis brilhar para o noivado
a lua. Helena astral de Troia.
Dentro da noite, iluminado,
despede Ilhéus clarões de joia,
qual grande búfalo encantado,
com cem pupilas de jiboia.
Dentro da noite sussurrante
pela canção das brandas auras,
Ilhéus recorda, neste instante,
um grande búfalo gigante
que, perseguido por centauras,
por ter os olhos de brilhante
e ser mais rápido que as auras,
veio agachar-se, palpitante,
ao pé do morro, entre as centauras.
Anoiteceu. Pede a mantilha
o céu à noite em doce rogo.
O bravo pélago dedilha
cantos mongólicos de Togo.
Protervos ventos em matilha,
como cem feras em regougo,
fazem da noite na Bastilha
revoluções de demagogo.
Ventos, ladrões de uma quadrilha,
depois do crime, vão pro jogo.
Dentro da noite, Ilhéus rebrilha
qual grande búfalo de fogo.
(1928)
Sosígenes Costa. Obra Poética. Rio de Janeiro; Editora Leitura, 1959).

Palácio Paranaguá, a sede da Prefeitura Municipal de Ilhéus

TEMPOS DE ILHÉUS, PRINCESINHA DO CACAU



E
STRADA DE FERRO ILHÉUS – CONQUISTA

Alfredo Amorim da Silveira


Desde o tempo do império o poder público estadual já tinha a intenção de construir uma estrada de ferro na região. Em 1892, no tempo do Encilhamento*, o governo do Estado fez um projeto ligando as cidades de Ilhéus a Canavieiras, projeto este que não obteve sucesso.

Em 1899, o governo do Estado fez concessão pelo prazo de 50 anos da Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista aos engenheiros Frederic William Cox e a José Correia de Lacerda, com o prazo de um ano para ser começada a construção, novamente não se concretizando o projeto.

Em 1904, tendo sido concluído os estudos definitivos da construção da ferrovia, o governo do Estado, na administração de Severino Vieira, concedeu a Bento Berilo de Oliveira a concessão para construir a referida ferrovia, não conseguindo iniciar o projeto, Bento Berilo de Oliveira concedeu a concessão à firma Oliveira, Carvalho & Companhia em 1905, dois anos depois houve um aditamento ao contrato. Em 1909 foram transferidos os direitos da concessão à firma inglesa The State of Bahia South Westem Railway Company Limited, que enviou o engenheiro Francis Reginald Hull para ser o seu Superintendente Geral.

Em 1913, foi inaugurado o primeiro trecho da linha com extensão de 59 km até Itabuna, trecho este que já estava sendo usado desde 1911.

Em 1914, iniciou-se a construção do primeiro ramal, o de Água Preta (Uruçuca), que partia da estação do Rio do Braço, com extensão de 35 km, ramal que depois foi prolongado até a Estação de Santa Cruz, em Itapira, que em 1940 passou a chamar-se Poiri, com uma extensão de 42 km. Neste local em 1930 existia uma fazenda de cacau pertencente a Ramiro Teixeira, com a chegada da ferrovia foi criado em torno da mesma o povoado de São Miguel que em 1961 passou a chamar-se Aurelino Leal. Por este ramal era transportado o cacau produzido nos municípios de Itacaré, Maraú, Camamu e Jequié.

Em 1918, foi iniciada a construção do ramal de Sequeiro do Espinho, que depois passou a chamar-se Pirangy, hoje acidade de Itajuípe, concluído em 1934.

Foram as máximas extensões que a ferrovia alcançou, pois nunca chegou a sua ideia principal, que era de chegar a Conquista (Vitória da Conquista).

A estação central da Estrada de Ferro situava-se na Praça Cairu, onde hoje está instalado o terminal urbano e o escritório da Ceplac, o seu percurso começava na Rua Tiradentes, seguia pela Visconde de Mauá, passando em frente ao Estádio Mário Pessoa, Maternidade Santa Isabel até a Praça do Cacau, continuava pela Avenida ACM , em frente à antiga Petrobras. No Malhado, na primeira curva entre o Colégio Estadual e o Parque Infantil existia uma estação, depois do Parque Infantil seguia pela Avenida Vereador Amilton de Castro, antiga Rua da Linha, na Barra, até o canal do Rio Itaípe, no Jardim Savoia seguia pela Avenida Raymundo Sá Barreto, antiga Av. Proclamação, até o bairro do Iguape, no local denominado de “Pêra”, que era a denominação de uma caixa d’água usada para abastecer a caldeira dos trens, onde também ficavam as oficinas da estrada de ferro, hoje, neste local, está instalada a fábrica da INCON. Seguia margeando o rio Almada, em frente da Fazenda Rosário até Aritaguá, Sambaituba, Lava Pés, seguindo para o distrito do Rio do Braço, de onde se bifurcava para as demais estações.

Os seus funcionários tinham moradias na Avenida Antonio Carlos Magalhães, em frente à Petrobras; no Bairro da Barra, em frente ao 2º BPM, e no Bairro do Iguape, logo após o anel rodoviário.

Em 1950, os ingleses repassaram a estrada ao Governo Federal, Rede Ferroviária Federal, RFFSA, que mudou o seu nome para “Estrada de Ferro de Ilhéus”. A ferrovia nunca chegou a Conquista, pelo fato de os ingleses já estarem satisfeitos com o que arrecadavam com as linhas já existentes.

Nos seus dias finais, teve muita importância na construção do Porto do Malhado, transportando as pedras que construíram o seu espigão.

Em 1963, a ferrovia encontrava-se em plena decadência, parando de funcionar definitivamente em 1965.

(*O Encilhamento foi um período em que Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda, permitiu que certos Bancos emitissem títulos de crédito não cobertos por depósitos em dinheiro.)


Alfredo Amorim da Silveira (1950) é ilheense, pertencente a família, de forte presença, social, econômica e política, centrada na história da região cacaueira, é pesquisado, historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Ilhéus.


 OBS.- Com a abreviatura E.F.I.C., até fixada em classes e vagões, a ferrovia do cacau, por não se ter completado o previsto no projeto, de chegar até a cidade de Vitória da Conquista, sempre foi comumente conhecida e tratada como Estrada de Ferro de Ilhéus, mas esta nomenclatura só se oficializou em 1950, com a sua transferência para o governo federal. (Acréscimo de FM).


ESTRADA DE FERRO DE ILHÉUS

Alexandre Santurian* - 1991

Com 132 km de extensão, foi inicialmente denominada EF Ilhéus - Conquista.

Situava-se no sul da Bahia, ligando as cidades de Itabuna, Itajuípe e Poiri ao porto de Ilhéus.

Sua construção acompanhou o desenvolvimento das fazendas de cacau, que suas linhas atravessavam, e resultou da concessão dada em 1907 a uma empresa de capital inglês — The State of Bahia South Western Railway Company Limited.

Construída com muita lentidão, somente 26 anos mais tarde foi totalmente concluída. O retorno financeiro era muito baixo e acentuava a falta de interesse dos proprietários em novos investimentos.

Como consequência de todo um processo de decadência, o governo federal encampou a ferrovia, através dos saldos que o Brasil possuía congelados na Inglaterra, durante a II Guerra Mundial, resultado de nossa balança superavitária, na época.

O processo de compra provocou ações de interdição movidas pelos proprietários ingleses e só foi concluído em 1959, em acordo firmado entre os tribunais de ambos os países.

Ao ser incorporada à RFFSA, poucos meses depois, a EF Ilhéus transportava basicamente cacau, e estava em péssimo estado de conservação. Foi também absorvida pela Leste Brasileiro e, posteriormente, erradicada.

 

*Paulista, Alexandre Santurian é um profissional de Comércio Exterior, no momento aposentado e aberto a novos projetos em Salvador ou São Paulo.

    Maria Fumaça, arte do baiano Almiro Borges (1933-2010)


COMPOSIÇÃO DE FERROVIA


Florisvaldo Mattos

I - Galope sangrento

Sobre campos de sol fotografados de fome

de manhã surpreendo-me entre maquinistas.

guarda-freios, foguistas, agulheiros

colecionam tristezas numa ferrovia.

Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,

exiladas faces como nuvens atônitas,

contra pontilhões investem, contra água pesada.

Sucedo de rotas e destinatários,

de mercadorias emerjo, melancólico.

Experiências metálicas de locomotivas

trituram músculos, afogada energia

de trabalhos humanos e apitos agudos,

trilhos que sulcam horizonte sem âncora;

me alimento de fogo, velocidades sofridas

de vagões conduzindo cacau e sombra

sobre cidades e montes, sobre latifúndio:

negro mar se agacha, silencioso salta,

come homens e meninos que choram sonhando.

Entre estações que gritam impossível atraso,

sonolentos comboios avançam na noite.

Desenvolvem sem termo choro agressivo,

um choro duro de homens e fornalhas

devorando madeiras e carne em lamento.

Lento uivo de rodas que se multiplicam

com substância noturna de salários

acumula vegetação nos eixos aluídos,

esperança consome na carreira profunda

sobre ilhas de acaso engrossando velho

patrimônio de mortes alugadas.

Rápidos horários com palavras de fumo

seu voo de espuma e lâminas corroídas

e matérias subjugadas anoitece

no sangue roxo operário com ferrugem,

elabora sentidos e desgraças na fronte

espessa. Na garganta incendiada cresce

gemido áspero de peito mutilado,

com umidades ocultas, com soluço.

 

II - Inclinação do touro

Abandona-se à agonia das campinas

vencidas, idêntico de origens, branco touro.

Bruscamente desperta das árvores em fuga,

da massa dos dias. De repente, das raízes

do pranto inclina-se operoso, agrupa-se

a um barulho de ferros e caldeiras,

a êmbolos movendo-se na paisagem confusa.

Do sentimento comum de águas em arranco,

súbito levanta-se, acorda ferroviárias

perspectivas amarradas ao volume do sono.

De aurora que lhe umedece cascos e chifres

baixa uma luz influente de conquista;

do seu dorso de argila ao meu rosto chega

uma luz que me alcança cruza-me os nervos

ampla de rumos mergulha na carne de todos

resistente caindo sem parar nas cabeças.

De neutra cinza liberto cansaço, no oleoso

crepúsculo, evoluindo em cada elemento,

sua construção permanece de touro veloz

em cada pedra (ou manhã) no metal dos segundos.

Estação da estrada de ferro de Ilhéus, depois de extinta, em 1965

APOGEU DOS VAGÕES


Florisvaldo Mattos

Noturnos vagões carregados de amargura,

de empilhados produtos e origens,

correi, correi sobre horizontes dos dias!

 Composição de espanto corrosivo

acerca-se de mim, vai penetrando

com violência em meus olhos. Vence-me

a carne e os nervos, minha voz,

meu desesperado sangue e cansaço, como

fantasma criminoso que, alta noite,

entrasse em minha casa fortemente

nutrido de perigos e desastres.

Negros, armados de geometria difícil,

rota economia de outonos ressentidos,

duram interiores funerários

sobre sacos sombrios e carregadores.

Barris de angústia, lento soluço,

arrastado gemido sobre trilhos,

correi, sempre correi, sombra

afogada na sombra de sangrento galope.

Confuso grito e fúria registrando

velocidades e pressentimentos,

avançai contra noites, contra os dias,

noturnos vagões, consistência

de amarguras espessas e ferragens,

cruel fome de rodas gira-mundo.

Estação da estrada de ferro de Ilhéus, nos tempos áureos do cacau

FERROVIAURA


Florisvaldo Mattos

I – Caminhos profundos

Tão nascida do homem como o homem

artefato da vida como a vida

de repente apagou-se fumo

                                             Flora

sobrevinda outorgou-se aura de espanto

sob frio apenas ululante rastro

de universo roubado à geometria

Pena que teve origem que sofrido

foi-lhe o passo de rio ossificado

comércio e fábrica foi

                                      Oceano útil

onde massas de fel tiveram porto

polígino conúbio do trabalho

com lavouras nutrindo-se em neblina

durou flecha de sol e foi perpétuo

vento esculpindo solo atormentado

Como oferta de assombro como silvo

indecifrado agreste nascimento

algo rompeu da selva taciturna

holocausto  a cipoal empedernido

despontou nos vales de secreto fausto

súbita mãe gestando moitas

                                               Deus

ex machina em seu tempo/movimento

senda de lavra e sangue

                                               Ferrovia

estrela agrimensora no deserto

pesquisando rochedos serras altas

teodolito assentado sobre a carne

mirando grotas pássaros em coma

arrosta-se à navegação de precipícios

célere mordendo manhãs desperta

chão de lágrimas águas ofendidas

floresta /brenha folhas           

E ao fundo nuvens

Garra amputada à fauna de felinos

carapaça equipada de luz rude

para oferenda a deificado fruto

O verbo no princípio era de ferro

de fogo          

de fumaça mensageira

Lábaro sobrevoando paralelas

ou trilhos no úmido chão laborado

ou metal fugidio cravado em som

ou claro gesto na cor liberado

aeroplano espectral fotografando

tumba ou leito da State of Bahia

South Western Railway Company

de estio agulha para sempre cose

minério pedras troncos

                                            Labareda

língua incessante touro arremetendo

ao descampado o cosmo em disparada

Está morta

                        Sumiram-lhe os ouvidos

Foi-se o grito alvoroçador do verde

os olhos de esperança se apagaram

O dorso

                        O peito

                                           O império mineral

Hoje está morta

                          E era maciço ferro

Era madeira forte

Tudo muito real

Serpente de fumo ou cão ígneo

rojado contra um milhão de relógios

Inauguração da linha férrea, ligando Itabuna a Ilhéus, em 1911

II - A navegação dos horários

Conscientemente

                              instalo-me sobre mudos

pontilhões e repasso calendários

de vapor o marulho transeunte

é das locomotivas ofegantes

rodas e trilhos no asilo da ferrugem

abalando dormentes na lembrança

ensaiam no ar nostálgico de ruídos

brados

Ancoram em terminais de sono

onde tudo é memória luto sombra

Congelados nos postes de telégrafo

espectros de mensagens desgarradas

soterrando-se em Morse de azinhavre

cifram em sinais de brumoso código

a solidão das estações em ruína

duelam contra ventos redundantes

funcionários dementes engenheiros

severos cabos-de-turmas

                                             Oligarcas

que à mesa pela noite jogam cartas

bebem uísque, soda e vinho do Porto

pantagruelicamente comem lauto

repasto convertido em florilégio

peões da estrada a martelar o sexo

regressando de abismos petrificam

desolado tributo que persegue

Mutuns Rio do Braço Água Preta

Santa Cruz Serra Verde Catolé

Cascata Pedras Pretas Poiri

Os atletas do trem soprando búzios

voam no pelo de cavalos doidos

Ante brasa e aço a dança dos foguistas

desperta cogumelos que deslizam

lentos por corredores de resina

e naufragam em crepitante pélago

Guarda-freios e maquinistas bêbados

escapando de sujos botequins

entoam sobre plataformas ermas

velhas canções de esperma itinerante

A fome lhes comeu o olhar de espanto

comeu-lhes rosto braços pensamento

e agora por entre aldeias sanatórios

praças com animais mumificados

acena-lhes com moedas de crepúsculo

misturadas a ânsias confissões gemidos

que viajam na mala dos correios

pelos desvios despachando brisas

que sobressaltam como os telegramas

O maquinista da 15 era Paizinho

só ele percebe o que lhe dizem toros

estalando como ossos na fornalha

Paiva ia na 12 engolindo rampas

A 13 parecia o Cabeçorra

sacolejando-se em Banco do Pedro

Rude pandeiro é a terra quando a máquina

14 galgando Corte Obrigado

corta nervos na  pedra com seu  berro

Papa terra                              Come trilho

Sobe serra                             Salta rio

Bebe fonte                             Torra folha

Empurra nuvem                     Arrasta safra

Açoita vento                           Acolhe pranto

Fruto acende                          Usura afaga

Conta mortos                         Canta a vida

Entrista casa                                       Espanta as aves

Rompe manhã                        Acorda as águas

Afia a tarde                                        O sangue queima

Aclara a noite                         O sonho alegra

E ferro fere o ar ferido                      

a máquina

                      A máquina quando geme

é a centelha sentindo a cento e vinte

a bandeira vermelha nas tangentes

era de fato um sinal de perigo

que ninguém viu descendo para Ilhéus

Árvore rio nuvem recolheram

espetáculos de roupas suarentas

e teceram no espaço dos horários

biografias murais de óleo e carvão

Dos trens de carga aqueles vagões negros

levam sonhos de infância em feixe e fardo

cabedais de família minhas queixas

rolam por ribanceiras vêm como águas

de cheia

                        Torturadas torturando

As armações dos verdes armazéns

delegam ao ferro forças irreais

para guardar sob zinco a sacaria

Safras de cacau

                             Vidas em coágulo

Mercadorias fremem ao som distante

de um telefone negro endoidecido

O velho Barros chefe-da-estação

polindo estrelas sobre o guarda-sol

distribui caracóis aos passageiros

ou  desvendando leis no roto clima

sujeita o tempo a seu apito mágico


A máquina parece assombração

quando parte espantando as alimárias

Te-Aviso Gasosa Telefone

Fortaleza Cuscuz Besta Melada

curvos às cargas longe grimpam montes

doando seu trunfo ao infinito

sobre verde que espelho a tarde sangra

  Espera de passageiros na estação de Ilhéus (O Malho, 1915)

III – Cemitério de esperança

a)

Nem mesmo estavas preparada

estavas como caça fatigada

quando de ti veio se acercando

por entre ramos cedros sapucaias

desavindo rumor

                                Severidades

ensombrecendo leito matutino

Era preciso que o céu baixasse rápido

que tudo se cobrisse de argamassa

e se desse ao ferro cemitério

Tudo era preciso no momento

Era preciso que se abatesse a caça

e se fizesse sombra onde era sol

se apagasse o caminho de alegrias

por onde seguiam os que voltavam

b)

olhos mergulho agudos na folhagem

perfuro frondes de onde saltam rostos

Estação que foi de Sambaituba




cavados dentes olhos do barranco

aparições enfermas se debruçam

sobre desfiladeiro imaginário

que persigo em desembestada fúria

vozerio que se arma me acompanha

eleva-se como corpo trespassado

veloz dardo que passa e me detém

Gritam choram tremem dentes olhos

EFIC, estação da antiga Pirangy

rostos qual pensa esteira de gemidos

lua despedaçada em mar distante

relâmpagos amargos que me fendem

o coração

                   a boca paralisa

c)

Eu sei

              Tens até mágoa

                                      Quando vens

Espetas teu apito verdejante

no céu na flora de abundante mel

madeira mineral que te rodeia

– e o louro e o fel e a mão oculta

sobre a roxa amêndoa de cacau

que anuncia o verão

                                   Vens e despejas

EFIC morta, estação de Aritaguá

tua usina de aromas

                                   teu calor

Eu sei

Tens vontade até de recuar

para o seio absoluto da manhã

e lá polir a crosta de ferrugem

arrancar-se depois do inanimado

chão da morte

                          como ave ou como estrela

súbito em voo raso sobre os campos

E a mim vens com teu peso

                                               teu galope

animal de pelagem coruscante

rolas sobre meu peito

                                      meu semblante

sobre meus olhos hóspedes do vento

a de ontem vida tua enfermidade

Vens como se rompesse a noite em febre

açulando os outeiros acordando

pássaros empalhados nas ramagens

malgrado tudo

                                   Sonho capturado

vens banhada de luz e tempestade

tua massa colora os ambientes

embriaga o instante avança e nos eriça

cadáver hoje que se inventou bandeira

ao roçar de teu sopro

                                   teu convívio

IV – Expectante reflexão

O trem         

verde e vermelho como a vida

mas pode-se agregar ocre e amarelo

se é de homens e coisas que se fala

O trem

  ânsias de infância/arrimo de velhice

O trem

   rebanho de acenos/rama flamejante

O trem

   ágil pesadelo/viação da aurora

O trem

   transido soluço/bandeira de sorrisos

O trem

   flauta de vidro/vertebrado canto

O trem

   centopeia de nuvem/potro de esmeralda

O trem

               O trem de Água Preta

Dardo de som lançado ao infinitivo

rajada de luz atravessando o paraíso

me aduba  o coração o sonho acorda

o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.


Florisvaldo Mattos. Poesia Reunida e Inéditos, 2011)


A HORA DO TREM DE CARGA


Florisvaldo Mattos


Súbito um ruído: em madrugada fria,

Vozes arrastam sacos transitando.

Zonzo, acordo, na rede em que dormia,

Lá fora, a noite, mas ninguém passando.

 

Pela casa só via gente andando.

Ainda na escuridão, já vindo o dia,

alguém com um saco de caroços pando,

e eu sem decifrar o que acontecia.

 

Sei agora. Essa de cacau trazer

Em tropa de burro para Água Preta

É coisa que não dá para entender.

Melhor nem perguntar, parece treta. 


Quando, apitando, aponta o trem-de-carga

E para na estação da rua larga.

 

Trem de passageiros, na linha que liga Ilhéus a Itabuna

DE PRANTOS NA FOLHINHA

Florisvaldo Mattos

I

Há um tempo para tudo. Mala pronta,

banho tomado, ajeito a calça curta.

Primeiro, era subir a serra até o alto;

depois, descê-la para o Catolé,

o rio de águas turvas e beiradas

de canoa aguardando passageiro.

Alguém me levará para a estação

da Fazenda Cascata, éden rural,

que pulsa no esplendor da luz elétrica.

O lugar tem de um tudo, minha gente!

Farmácia, posto-médico, armazém,

escola, padaria e cabaré...

Por que deste alvoroço? É o trem-de-ferro,

que chega de vagões abarrotados. 

II

Na manhãzinha de um verão defunto,

repisando palavras, conselheira,

a mãe urdia na hora da partida,

igualmente a um martelo na bigorna.

“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.

A luz do livro guia o pensamento”.

Os dias disparando na folhinha,

subo no trem e vou para Água Preta.

Trilhos rangem. A máquina resfolga,

bafejando fumaça nos dormentes.

Como a vida, o trem passa e passará.

Chegar, parar, partir, é o seu destino,

sem que perdure vivo nos apitos

o pranto que ele deixa para trás.

NO TREM, COM CENTURIÕES


O trem-de-ferro para na estação.

Dentro da classe de janelas muitas,

sento-me na cadeira de palhinha.

Tez denunciando terras e distâncias,

fazendeiros de bota e paletó

penetram no vagão suando auroras.

De cenho carregado, dependuram,

no alto, o chapéu, esporas e o revólver.


As mulheres destrincham seus rosários.

Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.

Compadres são de justas e conquistas

(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).

Colecionando safras e plantios,

transpiram suor e orvalho. Nas capangas,

dormem papéis e ganhos, calendários.

Nunca delas sairá a última moeda.


Confiam num outono redentor,

em dias mergulhados na lavoura.

Pacíficos, serenos e domésticos,

não bebem aguardente, nem sorriem.

Sonharam, não mais sonham, esses machos.

Em tardes mansas de remotos sítios,

sem traficar afagos e carícias,

encharcaram de filhos castos ventres.


Logo velhas histórias de jagunços

desfilam entre gáudios outonais:

de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,

do que morreu de tiro noutro rio

(quietos Mocambo, Almada. Catolé).

Logo se dá notícia alvissareira:

cacaueiros esplendem de fartura,

com fruto encachoeirando pelo tronco.


Fugindo de centelhas e fuligem,

em meu traje de seda cintilante,

abro a janela e me debruço. Sopro

minha flauta vermelha de metal,

com que costumo celebrar instantes

em que o dia derrama suavidades

e saúdo os guriatãs e os curiós,

que se abancam nos postes de telégrafo.

 

A manhã solidária me convoca

a mirar a beleza das campinas,

na luz que pauta a música do dia.

A máquina suspira, o trem esbarra.

Guardo a flauta no bolso da camisa.

Súbito casas, uma praça, letras.

No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:

a vida é bela, há mais que desfrutar.

(Florisvaldo Mattos, Estuário dos Dias e outros poemas, 2016)


Cacau Sonhado, arte de Jane Hilda Badaró (que feneceu)


VELHAS ESTAÇÕES DE TREM


Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas

no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.

Ó trilhos dispersados na saudade,

curvas que a mão dos anos enferruja!

Miro paredes gastas; já me invade

a doçura de um tempo sem mão suja.

Ainda vejo passar o maquinista,

o guarda-freios, lépido, o foguista,

a me acender a lenha da memória.

Elas contam um tanto desta história,

a que junta cacau com coronéis,

da passagem custando dois mil réis.

(Salvador, manhãzinha de 09/10/2015. Estuário dos dias e outros poemas, 2016)


Cinco grapiúnas de raiz, pela ordem, da esquerda para a direita: Jorge Amado (1912-2001), Raimundo Sá Barreto (1924-2003), Telmo Padilha (1930-1997), Florisvaldo Mattos (1932) e James Amado (1922-2013). Foto captada em Ilhéus, s/d.




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