domingo, 16 de junho de 2024

FERNANDO PESSOA, ODES DE HETERÔNIMOS


            Arte com imagens de heterônimos de Fernando Pessoa


FERNANDO PESSOA

 

Uno conquanto diverso

 

Florisvaldo Mattos

 

Em que grau de lirismo julgava Fernando Pessoa encaixar-se a sua poesia, tomando por base os princípios estéticos que ele próprio doutrinava? Não é desconhecida a carga de disponibilidade imaginativa e virtuosismo irônico com que, bem à feição do Modernismo, o poeta português expunha seus pensamentos. Assim é que, discorrendo sobre o que chamou de graus da poesia lírica, os dispõe e distribui em quatro classes. À primeira pertencia quem ele enxergava como “o tipo mais vulgar de poeta lírico” - de temperamento intenso e emotivo, exprimindo-o “espontânea ou refletidamente”, porém de menor mérito, por produzir poemas tematicamente monocórdios, justificando rótulos, como os de poeta do amor, das rosas, da saudade, da tristeza. A emoção nele é crua, palpável, mas pequena, um lirismo de tipo vulgar.

Nesta ótica, o segundo grau da poesia lírica impunha-se por ser o poeta “mais intelectual ou imaginativo”, o qual, por mais culto, não se subordina à simplicidade ou limitação das emoções. Embora quase ainda um teleguiado do sensitivo, opera com vários tipos de emoção, o que não o torna monocórdio.    

Mudança de relevo sucede no terceiro grau da poesia lírica, aquele em que, segundo Pessoa - e nisto nos enfiando uma pista -, “o poeta, ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir não já porque sente, mas porque pensa que sente; a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende”. A inteligência então se imiscui, dissolvendo o temperamento do poeta. É o campo da poesia de densidade dramática e, neste contexto, Pessoa dá como exemplo o que o inglês Robert Browning chamou de “poemas dramáticos”, embora sendo líricos (não esqueçamos que Pessoa conheceu a literatura inglesa antes da portuguesa, por ter quando jovem morado e estudado em Durban, na África do Sul).

Já como evolução de toda essa elucubração, o quarto grau da poesia lírica é aquele, diz Pessoa, “muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda, mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização” (mais indícios com relação a si mesmo). Este poeta “não só sente, mas vive, os estados de alma que não tem diretamente”. Em grande número de casos caem no dramático, porém seguem essencialmente líricos. E frisa Pessoa: “nem já o estilo define a unidade do homem; só o que no estilo há de intelectual a denota”. E o exemplo maior disto ainda é um inglês, Shakespeare. Eu ousaria incluir o argentino Jorge Luis Borges nesse campo, que com ele até se assemelha no toque refinado, seletivo, apolítico e blasé da personalidade.

Como que a aproximar mais ainda a teoria de si mesmo e, embora sem nomeá-lo, a aventar um quinto grau, Fernando Pessoa avança ainda um passo na escala da despersonalização poética e cogita, com indubitável carga de subjetividade: “Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para ele (o poeta) uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente”. Eu pergunto mais uma vez: não estará aí o arcabouço sugestivo de toda a arte deste poeta, em que se incrustam a poesia do ortônimo e a dos heterônimos? Fernando Pessoa fascina pelo próprio sobrenome, que significa persona, ou “máscara”, como pontua Harold Bloom, ao incluí-lo entre os gênios da literatura.

Sabe-se que Fernando Pessoa, em vida, não publicou nenhuma outra obra, além do livro Mensagem, de 1934, ao qual é concedido, pelo Secretariado de Propaganda Nacional - glória de que se apropria indevidamente o regime fascista de Salazar (instalado em 1927) - o prêmio Antero de Quental de “segunda categoria” (o de primeira fora dado a outro poeta, hoje desconhecido, Vasco Reis, pelo livro Romaria, que morreu em grande parte inédito, somente admirado num estreito círculo, onze meses depois.

A grande obra de Pessoa começará a ser conhecida, pouco depois, amplamente acatada e valorizada, com os volumes que aparecem seguidamente, entre 1942 e 1946, graças à iniciativa dos escritores João Gaspar Simões e Luís de Montalvor; primeiramente, os cinco volumes das Obras Completas, seguindo-se outros, sem tal continuidade, a partir de 1952, inclusive as Poesias Inéditas e a prosa ensaística de estética, organizada por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, até 1968, com a publicação dos Textos Filosóficos; como se vê já bem avançado o século 20.

Há de reconhecer-se que o prestígio internacional do poeta, a partir daí, só fez crescer, ao ponto de emparelhar-se com o de Luís de Camões, autor de Os Lusíadas, mas sem jamais superá-lo, aos olhos da melhor história literária, no posto de poeta nacional. Justa ou injustamente, porque há a sua poesia ortônima, a glória de Pessoa se deve principalmente aos seus três heterônimos - Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos - concentrando nele, no dizer de Harold Bloom, três grandes poetas, que se filiam à imaginação do Alto Romantismo, representado na cultura de língua inglesa por Shelley, de que é herdeiro outro gigante da poesia, Walt Whitman - para ele, entre cáustico e lamentoso, “fora de moda nos dias de hoje, quando críticos nas universidades são consumidos pelo ressentimento e pela determinação de salvar o mundo o quanto antes”. Para Bloom, é incontestável a influência de Whitman sobre Pessoa, mas concorda com especialistas que entrevêem o esquema de seus três heterônimos desenvolvido a partir dos monólogos dramáticos de Robert Browning, que, coincidentemente, também influenciaram Borges, segundo este confessa no prólogo de um de seus livros (El otro, el mismo, 1964).

A poesia ortônima de Pessoa, em português - porque ele também compunha versos de qualidade em inglês -, é geralmente definida como um hino à glória de Portugal, suas aspirações, conquistas e desenganos, no encaixe mitológico de um Atlântico Sublime (atlantismo), a funcionar como um emblema de sinceridade, da parte de quem está em busca da autenticidade criativa, com um toque de simbolismo decadentista e impressionismo. Mas foram as individualidades “distintas do autor delas”, os heterônimos, um tributo erguido à simulação, que lhe deram consagração internacional.

Esses três heterônimos, e mais ele próprio, que parecia conduzir-se espiritualmente como autor fictício, formam o cosmo pessoano. Alberto Caeiro, cogita Jacinto do Prado Coelho, “surge como homem de visão ingênua, instintiva, gostosamente entregue à infinita variedade das sensações”. Trava combate explícito com o pensamento. Cultor do verso livre, escreve em linguagem fluente e solta, pastoral. “Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações./ Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca. // Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la/ E comer um fruto é saber-lhe o sentido”. (“O guardador de rebanhos”).

O italiano Antonio Tabucchi, morto recentemente, descreve o heterônimo Ricardo Reis, que era médico de profissão, como um sensista, materialista, de formação clássica, enquanto Prado Coelho o vê diverso de Caeiro; este marcado pelo amor à vida rústica, próximo da natureza, já Reis é um ressentido que “sofre por se saber efêmero”, refugiando-se em “um epicurismo temperado de estoicismo, tal como Horácio, seu modelo literário”. Trabalha densamente a sua expressão. Eis o retrato que dele faz Prado Coelho: “Lúcido e cauteloso, sabiamente constrói para si uma felicidade relativa, feita de resignação altiva e de temperado gozo dos prazeres que não comprometem a liberdade interior”.

 

“Girassóis sempre/ Fitando o sol, / Da vida iremos/ Tranquilos, tendo/ Nem o remorso/ De ter vivido.” (...) “Não tenhas nada nas mãos/ Nem uma memória na alma, // Que quando te puserem/ Nas mãos o óbolo último, // Ao abrirem-te as mãos/ Nada te cairá.

(...) Senta-te ao sol. Abdica/ E sê rei de ti próprio.” (“Odes de Ricardo Reis”).

 

Talvez por sua exuberância, o mais aclamado e celebrado dos heterônimos de Fernando Pessoa é Álvaro de Campos; para Harold Bloom, também, o mais contaminado pela grande angústia do gênio de Walt Whitman. Era engenheiro naval e, segundo Tabucchi, morreu no mesmo dia, mês e ano da morte de Pessoa, 30 de novembro de 1935; logo, é o que mais lhe foi fiel. Moderno e urbano, nervoso e emotivo, identificava-se com a trepidação do século, daí as suas odes de inspiração futurista.

O grande poeta de sua atualidade, a da máquina e da velocidade, dos instintos ferozes, flertando com o futurismo de Marinetti, deveria ser o mais rico de “contradições e dessemelhanças”, com isso aproximando-se do culto às impurezas que Eliot, seu contemporâneo, recomendava dever impregnar-se a poesia moderna. Sua estética e aspiração era substituir a ideia de beleza pela ideia de força. Entre nós, baianos, o poeta que se aproxima da imaginação desse heterônimo e de seu cosmo tecnológico é o feirense Eurico Alves, nos poemas que publicou na década de 20, expondo-nos uma Salvador repleta de fábricas, chaminés e eletricidade. São exemplares da arte do heterônimo Álvaro de Campos a “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima”. 

 

“À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecido dos antigos. // Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno! / Em fúria fora e dentro de mim, / Por todos os meus nervos dissecados fora, / Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!” (“Ode Triunfal”).

 

“Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, / Olho pro lado da barra, olho o Indefinido, / Olho e contenta-me ver, / Pequeno, negro e claro, um paquete entrando/ Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira./ Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo./ Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,/ Aqui, acolá, acorda a vida marítima,/ Erguem-se velas, avançam rebocadores,/ Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto./ Há uma vaga brisa.” (“Ode Marítima”).

 

Pessoa teve mais dois heterônimos, ambos prosadores: Bernardo Soares, que andava a preparar um diário que intitulou Livro do desassossego, e o filósofo Antônio Mora, que preparava um livro, O regresso dos deuses, destinado à pregação do neopaganismo português. Dizem que entregou os manuscritos dessa obra a Pessoa. De barba branca alongada, vivia encarcerado numa clínica psiquiátrica em Cascais, arredores de Lisboa.

Numa pequena obra de ficção, recheada de supra-realidades (“Os três últimos dias de Fernando Pessoa – Um delírio”, Antonio Tabucchi engendra a visita de todos esses heterônimos ao poeta no quarto do hospital onde ele se internara, para não mais sair vivo. E onde lhe pede Antônio Mora que “fique mais um pouco entre nós como Fernando Pessoa”, ao que responde ele: “Está na hora de partir, é hora de deixar este teatro de imagens a que chamamos de nossa vida”.

Na Bahia, trazido por portugueses que aqui vieram coadjuvar no impulso inovador da então jovem Universidade da Bahia hoje federal (UFBA), fazendo contraponto com o espanhol Federico Garcia Lorca, Fernando Pessoa adquiriu foros de moda literária e ganhou quase unanimidade em setores universitários, principalmente na Faculdade de Filosofia, área de Letras, por toda a década de 1950. Pode-se dizer que por aqui, nesta época, houve uma espécie de culto a Pessoa, que foi aos poucos se rarefazendo, mas deixando marcas de sua olímpica passagem.


Obras consultadas

Antonio TabucchiOs três últimos dias de Fernando Pessoa – Um delírio. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

Fernando PessoaObra Poética. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1972.

Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias (Org. de Georg Rudolf Lind e Jacinto Prado Coelho). Lisboa: Edições Ática, 1973.

Harold Bloom - Gênio – Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

Jacinto do Prado CoelhoDicionário de Literatura. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora.

 

Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e articulista; professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, pela Faculdade de Comunicação. Exerceu cargos em vários jornais, entre os quais os de editor-chefe de “A Tarde”, chefe de Redação do “Diário de Notícias”, ambos de Salvador, e de chefe da Sucursal do Jornal do Brasil, na Bahia. Editou o suplemento A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Membro da Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a Cadeira nº 31 desde 1995. Foi presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia (1987-89). Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, Prêmio da União Brasileira de Escritores, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma antologia, 2012; Estuário dos dias e outros poemas, 2017; Antologia poética e Inéditos, 2017 (todos de poesia). Escritos outros: Estação de Prosa & Diversos, 1997); Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, (2004); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 3ª edição, 2018. CACAUEIROS – Poesia. Conto. Teatro (2022); Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022). Participou de antologias poéticas bbaianas, nacionais e estrangeiras (Portugal, Espanha, França e Alemanha). 


QUE SÃO ODES?

O termo Ode remete-nos para dois diferentes tipos de composição representados na obra de Fernando Pessoa: as grandes Odes de Álvaro de Campos – «Ode Triunfal» (1914), «Ode Marítima» (1915) e «Dois Excertos de Odes» (1914), para além das menos conhecidas e inacabadas «Ode Marcial» (1916) e «Ode Mortal» (1927) – e as pequenas Odes de Ricardo Reis. Definida como um poema lírico dividido em estrofes semelhantes entre si pelo número e medida dos versos, a ode ganha em Álvaro de Campos características completamente diversas. Trata-se, no seu caso, de composições em longos versos brancos, alternando com versos curtos, sem métrica, à maneira de Walt Whitman. São odes futuristas, destinadas a cantar (como se preceitua também para este tipo de poema) a máquina e a vida moderna. O título «Ode Triunfal» não deixa, no entanto, de apresentar uma ressonância antiga, se nos lembrarmos das Odes Triunfais de Píndaro, celebrando os atletas vencedores dos jogos olímpicos. Em contrapartida, as Odes de Reis, publicadas pela primeira vez em Athena, nº 1, Outubro de 1924, mostram como Pessoa conhecia bem a tradição greco-latina e os aspectos formais deste género de poesia. Este conhecimento, adquirido na juventude (em Durban, aprendeu a ler Horácio no original, exercitando-se a traduzir as suas odes para versos ingleses, e estudou também poetas como Milton e Marvell, grandes cultores da ode), permite-lhe fazer uma perfeita tradução contemporânea das odes da antiguidade. Pessoa refere-se, aliás, à intemporalidade das odes clássicas do seu heterónimo, numa carta para Armando Côrtes-Rodrigues, de 4-10-1914: «Essas são em verdade contemporâneas por dentro da idade eterna da Natureza» (Correspondência, I, p. 124). E também Sá-Carneiro, numa carta de 27-6-1914, vê nelas, «uma “novidade” clássica horaciana». Maria Helena da Rocha Pereira chama a atenção para a capacidade de renovação do género que Reis revela. E sublinha o cuidado com a isometria e o perfeccionismo de Reis no tratamento que lhe dá, encontrando ecos de Virgílio em Reis, e intertextualidades entre as suas odes e as de Horácio. No entanto, a poesia de Reis, embora siga o esquema formal e temático das odes de Horácio, apresenta um nível especulativo e uma complexidade incomparavelmente maiores.

 

BIBL.: Maria Helena da Rocha Pereira, Reflexos horacianos nas odes de Correia Garção e Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Porto, 1958; idem, «Leituras de Ricardo Reis, in Circum-navegando Fernando Pessoa, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986. (Copiado do Google).


    Fernando Pessoa, em arte de seu amigo Almada Negreiros


ODES DE ÁLVARO DE CAMPOS


OPIÁRIO

 

Fernando Pessoa

               Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

 

É antes do ópio que a minh'alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.

 

Esta vida de bordo há-de matar-me.

São dias só de febre na cabeça

E, por mais que procure até que adoeça,

Já não encontro a mola pra adaptar-me.

 

Em paradoxo e incompetência astral

Eu vivo a vincos d'ouro a minha vida,

Onda onde o pundonor é uma descida

E os próprios gozos gânglios do meu mal.


É por um mecanismo de desastres,

Uma engrenagem com volantes falsos,

Que passo entre visões de cadafalsos

Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

 

Vou cambaleando através do lavor

Duma vida-interior de renda e laca.

Tenho a impressão de ter em casa a faca

Com que foi degolado o Precursor.

 

Ando expiando um crime numa mala,

Que um avô meu cometeu por requinte.

Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,

E caí no ópio como numa vala.

 

Ao toque adormecido da morfina

Perco-me em transparências latejantes

E numa noite cheia de brilhantes

Ergue-se a lua como a minha Sina.

 

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora

Não faço mais que ver o navio ir

Pelo canal de Suez a conduzir

A minha vida, cânfora na aurora.

 

Perdi os dias que já aproveitara.

Trabalhei para ter só o cansaço

Que é hoje em mim uma espécie de braço

Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

 

E fui criança como toda a gente.

Nasci numa província portuguesa

E tenho conhecido gente inglesa

Que diz que eu sei inglês perfeitamente.   

 

Gostava de ter poemas e novelas

Publicados por Plon e no Mercure,

Mas é impossível que esta vida dure.

Se nesta viagem nem houve procelas!

 

A vida a bordo é uma coisa triste

Embora a gente se divirta às vezes.

Falo com alemães, suecos e ingleses

E a minha mágoa de viver persiste.

 

Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.        

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver.

 

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tedio.

 

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,

Muito a leste não fosse a oeste já!

 

Pra que fui visitar a Índia que há

Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.

Os ciganos roubaram minha Sorte.

 

Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte

Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.

Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.

Meu coração é uma avozinha que anda

Pedindo esmola às portas da Alegria.

 

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!

Volta à direita, nem eu sei para onde.

Passo os dias no smoking-room com o conde—

Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto á Europa descontente, e em sortes

De vir a ser um poeta sonambólico.

Eu sou monárquico, mas não católico

E gostava de ser as coisas fortes.

 

Gostava de ter crenças e dinheiro,

Ser varia gente insipida que vi.

Hoje, afinal, não sou senão, aqui,

Num navio qualquer um passageiro.

 

Não tenho personalidade alguma.

É mais notado que eu esse criado

De bordo que tem um belo modo alçado

De laird escocês há dias em jejum.

 

Não posso estar em parte alguma. A minha

Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.

O comissário de bordo é velhaco.

Viu-me co'a sueca… e o resto ele adivinha.

 

Um dia faço escândalo cá a bordo,

Só para dar que falar de mim aos mais.

Não posso com a vida, e acho fatais

As iras com que às vezes me debordo.

 

Levo o dia a fumar, a beber coisas,

Drogas americanas que entontecem,

E eu já tão bêbado sem nada! Dessem

Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

 

Escrevo estas linhas. Parece impossível

Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!

O facto é que esta vida é uma quinta

Onde se aborrece uma alma sensível.

 

Os ingleses são feitos pra existir.

Não há gente como esta pra estar feita

Com a Tranquilidade. A gente deita

Um vintém e sai um deles a sorrir.

 

Pertenço a um gênero de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes.

 

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!

Nem leio o livro á minha cabeceira.

Enoja-me o Oriente. É uma esteira

Que a gente enrola e deixa de ser bela.

 

Caio no ópio por força. Lá querer

Que eu leve a limpo uma vida destas

Não se pode exigir. Almas honestas

Com horas pra dormir e pra comer,

 

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.

Porque estes nervos são a minha morte.

Não haver um navio que me transporte

Para onde eu nada queira que o não veja!

 

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.

Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali

Para sonhos que dessem cabo de mim

E pregassem comigo nalgum lodo.

 

Febre! Se isto que tenho não é febre,

Não sei como é que se tem febre e sente.

O facto essencial é que estou doente.

Está corrida, amigos, esta lebre.

 

Veio a noite. Tocou já a primeira

Corneta, pra vestir para o jantar.

Vida social por cima! Isso! E marchar

Até que a gente saia pla coleira!

 

Porque isto acaba mal e há-de haver

(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim

Deste desassossego que há em mim

E não há forma de se resolver.

 

E quem me olhar, há-de me achar banal,

A mim e á minha vida… Ora! um rapaz…

O meu próprio monóculo me faz

Pertencer a um tipo universal.

 

Ah quanta alma haverá, que ande metida

Assim como eu na Linha, e como eu mística!

Quantos sob a casaca caraterística

Não terão como eu o horror à vida?

 

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!

 Vou no Maelstrom, cada vês mais pró centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

 

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!

Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co'os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!  

 

Tenho vontade de levar as mãos

Á boca e morder nelas fundo e a mal.

Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.

 

O absurdo como uma flor da tal Índia

Que não vim encontrar na Índia, nasce

No meu cérebro farto de cansar-se.

 A minha vida mude-a Deus ou finde-a…

 

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,

Até virem meter-me no caixão.

Nasci pra mandarim de condição,

Mas faltam-me o sossego, o chá e a esteira.

 

Ah que bom que era ir daqui de caída

Prá cova por um alçapão de estouro!

A vida sabe-me a tabaco louro.

Nunca fiz mais do que fumar a vida.

 

E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas—

E basta de comedias na minh'alma!

 

1914, Março.

No canal de Suez, a bordo.

 

        Pessoa, sorvendo uma taça de vinho, no balcão de A Brasileira


TABACARIA

 

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

                                                        Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


       Estátua em bronze de Pessoa diante de A Brasileira, no Chiado


 

ODE TRIUNFAL

 

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical - 
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força - 
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro 
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, 
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, 
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, 
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, 
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas! 
Promíscua fúria de ser parte-agente 
Do rodar férreo e cosmopolita 
Dos comboios estrénuos, 
Da faina transportadora-de-cargas dos navios, 
Do giro lúbrico e lento dos guindastes, 
Do tumulto disciplinado das fábricas, 
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas 
Entre maquinismos e afazeres úteis! 
Grandes cidades paradas nos cafés, 
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas 
Onde se cristalizam e se precipitam 
Os rumores e os gestos do Útil 
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo! 
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! 
Novos entusiasmos de estatura do Momento! 
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas, 
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos! 
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific! 
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis, 
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots, 
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram 
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule! 
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras! 
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos; 
Membros evidentes de clubes aristocráticos; 
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia! 
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! 
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! 
Olá grandes armazéns com várias secções! 
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem! 
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente. 
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida, 
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras 
Até à noite ponte misteriosa entre os astros 
E o mar antigo e solene, lavando as costas 
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - 
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. 
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão. 
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa 
O burro anda à roda, anda à roda, 
E o mistério do mundo é do tamanho disto. 
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. 
A luz do sol abafa o silêncio das esferas 
E havemos todos de morrer, 
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, 
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa 
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante! 
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus. 
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios 
De todas as partes do mundo, 
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? 
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, 
Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

      "Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de verão e vaga brisa"


ODE MARÍTIMA

                                                 A Santa Rita Pintor

Fernando Pessoa


Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhā,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea.
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
 
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
 
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…
 
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
 
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Obliquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
 
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
 
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado,
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Cousas-Reais, Espiritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem nada que se altere,
Tudo se revela diverso.
 
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fumo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados
Em divino êxtase revelador
Às horas cor de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
 
Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!
 
Ó fugas continuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos de vagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar coino alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longinquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas…
 
Ah, as praias longinquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sobre as ilhas longinquas das costas deixadas passar,
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.
 
Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
— O medo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo —
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer cousa,
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo…
 
A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
 
Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado obliquo.
 
Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) —
 
Todos estes navios abstractos quase na sua ida,
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra cousa
E não apenas navios, navios indo e vindo.
 
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcarneles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas,
Olhando de perto os mastros, af ilando-se lá prò alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo —
Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
 
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítinias, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei porque sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das cousas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!
 
E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Cai por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril,
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-nie metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha prò ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
 
Soa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
 
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava connosco
Morreu afogado ao pé de uma ilha do Pacífico!
Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pròs pulmões!
 
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando — ai de mim! — os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
 
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios do horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegaçaes perigosar,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses.
 
Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas,
Começam a pegar bem as correias de transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nitidamente.
 
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
 
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquissimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as cousas do niar,
Dos naufrágios, das viagens longinquas, das travessias perigosas.
Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Esse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras cousas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:
 
Ahó ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò — yyyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò — yyyy…)
 
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
 
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
 
Ah, seja como for, seja para onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se pra frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me!...
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!
 
Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto – ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Subitamente, tremulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
 
Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co’a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagónia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos toscos em colónias à proa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fosse nada.
Como se isso fosse natural,
Como se a vida fosse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-he-he-he-eh-he-he!
Homens do mar actual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
¡Eh-eh-eh-eh-eh! ¡Eh-eh-eh-eh-eh! ¡Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
 
Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os centos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em mares do sul
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espirito!
Ir convosco, despir de mim — ah! põe-te daqui pra fora! —
O meu traje de civilizado, a ininha brandura de acções,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
 
No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!
 
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar prà Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das cousas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longinquas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranquilos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar prà Morte com dor, voluptuosamente,
Um corpo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!
 
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, preguem-a às quilhas.
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do nieu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
 
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
 
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa verga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
Marooned!
O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
 
                Fifteen men on the Dead Man's Chest
                Yo-ho ho and a bottle of rum!
 
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
 
Darby M’Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!
 
Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
 
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
 
De repente estala-me sobre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
 
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó ---- yyyy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó ---- yyyy…
 
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mor! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
 
Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me convosco, piratas!
 
Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
 
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas,
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,
Trincasse velas, remos, cordame e poleame,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
 
E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Há uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espirito,
Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
 
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apressados foge prà loucura — essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
 
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!
 
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso - todas estas cousas duma só vez — pela espinha!
 
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do meu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vosos cutelos, das vossas mãos estranguladoras!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis!
Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
 
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazieis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingieis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!
 
Estar convosco na carnagem, na pilhagem!
Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas,
Ser-vos as vítimas — homens, mulheres, crianças, navios -,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso acto abstracto de orgia,
Não era só isto que eu queria ser — era mais que isto, o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteismo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
 
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne — fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de cairem sobre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convés onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu
Fosse uma célula consciente — e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo!
 
Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
 
                Fifteen men on the Dead Man's Chest.
                Yo-ho-ho and a bottle of rum!
 
Eh-lahô-lahô-laHO ---- lahá-á-ááá ---- ààà…
 
Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,
Pr’aqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
 
Arre! por não poder agir d'acordo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des mours às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina — todos nós o somos — do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ânsia das cousas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstracto os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
 
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mini o vosso escravo e a vossa cousa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
O meus senhores! Ó meus senhores!
 
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sobre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer,
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnivora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sobre os conveses,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
 
Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma!
Cortai, riscai!
 
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de dominio!
 
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
 
Fazei de mim qualquer cousa como se eu fosse
Arrastado – ó prazer, ó beijada dor! –
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!
¡Eh-eh-eh-eh! ¡Yeh-eh-eh-eh-eh! ¡Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! ¡Todo canta, gritando:
 
         FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN’S CHEST.
         YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
 
¡Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! ¡Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! ¡Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
¡Hé-lahô-lahô-la HO-O-O-ôô-lahá-á-á ---- ààà!
 
¡AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó ---- yyy!...
SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó ---- yyyy!...
¡Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
¡DARBY M’DRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
 
¡Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
 
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
 
Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim há só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que há um mar nocturno dentro de mim,
Sobe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiquissimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longinqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, boiam meus sonhos desfeitos…
 
Ahó ó ó ó ó ó ó ó ó ó ---- yy...
Schooner ahò-ò-ò ò ò-ò-ò ò ò ò-ò-ò ---- yy…
 
Ah o orvalho sobre a minha excitação!
O frescor nocturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia do enorme mistério humaníssimo das ondas nocturnas.
A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
 
Era na velha casa sossegada, ao pé do rio...
(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar também,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo...
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas.
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto…)
 
Uma inexplicável ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquelas vítimas — principalmente as crianças —
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas;
Terna e suave, porque não o foram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
 
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
Que longe estou do que fui há uns momentos!
Histeria das sensações — ora estas, ora as opostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das águas,
O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais...,
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longinquos, dum azul japonês,
As casas de Almada,
E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!...
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.
 
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma carícia.
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infância ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas águas!...
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu....,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fosse já crescido de mais para isso)...
Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-o da vida,
E ergue-se uma leve brisa marítima dentro de mim.
As vezes ela cantava a «Nau Catrineta»:
 
                       Lá vai a Nau Catrineta
                       Por sobre as águas do mar…
 
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela — e afinal que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta» ... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
 
                       Estando a Bela Infanta
                       No seu jardim assentada...
 
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
 
                       Estando a Bela Infanta
                       No seu jardim assentada,
                       Seu pente de ouro na mão,
                       Seus cabelos penteava…
 
O meu passado de infância, boneco que me partiram!
 
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
 
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
 
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem ténue de confusas cousas na alma!
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inúteis,
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma…
 
Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
 
               Fifteen men on the Dead Man's Chest.
               Yo-ho-ho and a bottle of rum!
 
Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas através duma imaginação quasi literária,
A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque,
Da chacina inútil de mulheres e de crianças,
Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres,
E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
 
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães deles)
Enterrar vivas nas illas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa).
 
Aguilhoo uma ânsia fria dos crimes marítimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de provincia
com a toalha atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande cousa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá...
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente – oh pavor por todas as minhas veias!–,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglês Jim Barns, com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas cousas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim…
 
Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso,
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e nocturno, o sopro fundo e confuso:
 
Ahó-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-yyy......
Ahó-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-yyy.........
Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô---yyyy ......…
 
Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.
 
Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higiénica, forte, prática,
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e úteis,
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros,
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
 
Maravilhosa vida marítima moderna,
Toda limpeza, máquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado,
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fosse por leis naturais,
Nenhuma cousa esbarrando com outra!
 
Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas
Com a sua poesia também, e todo o novo género de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das máquinas veio trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve –
Em parte nenhuma, graças a Deus!
 
Os portos cheios de vapores de muitas espécies!
Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!
O olhar humanitário dos faróis na distância da noite,
Ou o súbito farol próximo na noite muito escura
(«Que perto da terra que estávamos passando!» E o som da água canta-nos ao ouvido)!…
 
Tudo isto é como sempre foi, mas há o comércio;
E o destino comercial dos grandes vapores
Envaidece-me da minha época!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil
Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as cousas,
E gozar a vida realizando um grande número de sonhos.
 
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo,
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higiénico respirar o ar do mar.
 
O día é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se.
 
Com un grande prazer natural e directo percorro com a alma
Todas as operações comerciais necessárias a un embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.
 
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigor comercial do principio e do fim das cartas:
Dear Sirs — Messieurs — Amigos e Snrs,
Yours faithfully –... nos salutations empressées...
Tudo isto é não só humano e limpo, mas também belo,
E tem ao fim um destino marítimo, un vapor onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.
 
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes —
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Há quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios!
 
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a,
Porque tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna,
Porque as facturas e as cartas comerciais são o princípio da história
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
 
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros uns dos outros
Duma maneira especial, coino se um mistério marítimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das águas!
Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!
 
As viagens, os viajantes -tantas espécies deles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se pode dar à vida,
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária.
É uma cousa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou!
 
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses,
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
 
Despeço-me nesta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpático de proletário dos mares,
É sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.
 
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer espécie de deveres.
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai ele tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres: Não tem importância.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,
(T - t -- t --- t ---- t ----- t ...)
O volante dentro de mim, pára.
 
Passa, lento vapor, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...
 
 
Fernando Pessoa, por Álvaro de Campos, um de seus consagrados heterônimos.

 

Ode Marítima

(Análise do poema de Fernando Pessoa)

 

Considerado “um dos mais grandiosos e profundos poemas de que pode orgulhar-se a língua portuguesa” (Eduardo Lourenço) e até “um dos mais geniais poemas de qualquer época da literatura universal” (Adolfo Casais Monteiro), a “Ode Marítima” foi publicada por Fernando Pessoa no nº 2 de Orpheu (Julho de 1915), atribuída a e assinada por Álvaro de Campos, Engenheiro.

Constitui, à primeira vista, uma bem pouco portuguesa celebração efusiva do imaginário marítimo aventureiro que elege emblematicamente como sua primeira referência inspiradora o “marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo” (v. 221) e o seu “grito antiquíssimo, inglês” (v. 222) capaz de resumir a “voz inédita e implícita de todas as coisas do mar, / Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas” (v. 226-27). De resto, o outro refrão (ou espécie de refrão em segundo grau) mais ou menos regularmente repetido entre os versos 414 e 716, confirmando esta provocatória rotação em sentido anglófilo da poesia portuguesa, é extraído da célebre Ilha do Tesouro, de R. L. Stevenson: o estribilho de piratas “Fifteen men on the Dead Man’s Chest. / Yo-ho ho and a bottle of rum!” O próprio cenário que o longo poema constrói desenrola-se, quase narrativamente, entre a contemplação de um paquete que “vem entrando” na barra do Tejo e, nas últimas estrofes, a visão de um “tramp-steamer inglês” (embora “Muito sujo, como se fosse um navio francês”, escreve o humor intencional de Pessoa/Campos no v. 860) à “saída do porto de Lisboa, hoje!” (v. 877) Mas nem mesmo este final mais pragmático, mais próximo do que o próprio poema designa como “as coisas modernas e úteis” (v. 768) para também as celebrar homenageando de passagem a memória de Cesário Verde, basta para iludir o tom pouquíssimo modernista da “Ode Marítima”, que parece querer cantar as coisas que a modernidade condena ao desaparecimento ou ao anacronismo. Nesse sentido, o centro do seu insólito programa de operações figurativas é constituído por estes dois versos: “Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto. / Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.” (205-6)

Pode conceber-se certa solidariedade entre a assimilação do imaginário lírico e ficcional de matriz inglesa, por um lado, e a suspensão dos entusiasmos futuristas que surgiam, apesar de já pouco programáticos, na “Ode Triunfal”, por outro lado. Na “Ode Marítima” é mais visível a dramatização da relação (ou da tensão) entre fenómeno exterior observado e sentimento íntimo experimentado, de acordo com o modelo retórico predominante na poesia oitocentista, estruturando mesmo as estrofes mais aparentemente caóticas ou histéricas. O dístico que constitui a segunda estrofe do poema resume e enuncia esse processo prolongado até ao último verso: “Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, / E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.” Mais adiante (v. 272), este volante interior activado pelo olhar que contempla ou observa é expressamente designado como o “volante vivo da minha imaginação” — e a palavra “imaginação” tem aqui o triplo sentido sobreposto de uma máquina de criar (ou reproduzir) imagens, de um dispositivo de acesso ao inconsciente e de um activador de memórias culturais ou míticas para as quais a literatura é suporte ou mediador imprescindível.

A “Ode Marítima”, lida enquanto resposta ao “chamamento confuso das águas” (v. 225) ou expressão de uma possessão pelo “delírio das coisas marítimas” (v. 211), deixa-se interpretar a título de uma apologia da imaginação, bem mais consentânea com o universo literário inglês do que com a já então institucionalizada influência francesa nas letras portuguesas, e bem mais naturalmente orientada para a alegórica ressurreição de fantasmas oriundos do passado — “Porque os mares antigos são a Distância Absoluta, / O Puro Longe, liberto do peso do Actual...” (v. 200-01) — do que para o anúncio de futuros radicalmente novos. Mas trata-se, convém sempre sublinhá-lo, de uma apologia hiperconsciente de que a vida a que esta imaginação pertence é em tudo a negação daquilo que o “volante vivo” desencadeia interiormente, visto que é uma vida feita da “minha brandura de acções, / Meu medo inato das cadeias, / Minha pacífica vida, / A minha vida sentada, estática, regrada e revista!” (v. 345-48). Daí que o elogio final, a roçar a ingenuidade, da “Maravilhosa vida marítima moderna, / Toda limpeza, máquinas e saúde!” (v. 772-73) mal chegue a ser contraditório com a orgiástica série de invocações e apóstrofes desencadeada recorrentemente por aquele “grito inglês”, “sem forma humana nem voz”, o “grito tremendo” (v. 230) com que Jim Barns fingia, diz o texto, chamar por uma escuna: “Ahò ò-ò ò-ò-ò-ò-ò ò-ò ò----yyyy... / Schooner ahò-ò-ò ò-ò-ò-ò---yyyy...” O elogio da imaginação converte-se ou reconverte-se em discurso sobre a sobrevivência da poesia num mundo em que “Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio” (v. 797), de tal modo que o uso da adversativa não implica qualquer antinomia, antes sendo inclusivo de um excedente, de um suplemento introduzido sem ruptura nem descontinuidade: “Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas / Com a sua poesia também, e todo o novo género de vida / Comercial, mundana, intelectual, sentimental, / Que a era das máquinas veio trazer para as almas.” (v. 780-83)

Esta espécie de bonomia precocemente pós-moderna, ao mesmo tempo sensível às diferenças e insensível a qualquer dramatização da diferença, não deixa afinal de ser consistente com o modo como a “Ode Marítima” termina num registo, já não de ode, mas de elegia. Antes disso, porém, há que acentuar a muito específica intensidade trazida ao poema, no seu conjunto mas sobretudo nas suas sequências intermédias, por aquela dimensão do “volante vivo” da imaginação que o faz dar voz ou dar passagem ao que, sem ambiguidade, designa por “O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima” (v. 274). Foi Eduardo Lourenço quem melhor leu, contra o pano de fundo de uma deserotizada história cultural portuguesa moderna, o “excesso resplandecente da palavra sexual libertada” da “Ode Marítima”, para usar os seus próprios termos. É, com efeito, só no final de uma longa e apaixonada apóstrofe dirigida aos piratas (quer dizer, ao cabo de uma longa e inegável apologia da crueldade e da dor, sexualmente interpretada e exaltada), com cerca de cento e setenta versos de duração, que por fim “Decresce sensivelmente a velocidade do volante” (v. 622) e a “Ode Marítima”, através de um retrocesso falsamente compensatório à memória de infância, quase se descaracteriza no tom elegíaco que a conclui. A sabotagem interna a que a própria libertação da “palavra sexual” é sujeita, nessa sequência, foi também sublinhada por E. Lourenço e é indicativa do traço porventura mais original e inesperado do longo poema (e, eventualmente, da poética de Álvaro de Campos): o seu modo revisionista de composição, como se uma linha de sentido fosse perseguida até ao limite em que se esgota e uma dobra no texto impusesse a exposição, a frio, do seu reverso. A metáfora do fluxo e do refluxo, no movimento de uma onda, aplica-se, por isso, com fecundidade hermenêutica e crítica, à estrutura e à desestruturação que marcam, do ponto de vista composicional e figurativo, o abalo considerável representado pela “Ode Marítima” na poesia de língua portuguesa.

Estes movimentos contraditórios, no sentido em que fazem da experiência e da exploração da contradição o próprio motor ou alimento de que se sustenta o poema, lembram a que ponto a poética dita modernista instala as suas inovações na dependência, quase sempre conflituosa, das direcções abertas pelo romantismo. Em poemas como as duas grandes odes de Álvaro de Campos publicadas por Pessoa nos dois números de Orpheu, isto é imediatamente sensível no convívio estreito entre procedimentos de escrita tradicionalmente poéticos e toda a sorte de prosaísmos discursivos que vão permeando os versos. Nessa perspectiva, é inegável que não há lugar onde melhor se exprima, em português, o desejo (ou a necessidade) de inventar outra língua para a poesia, condição sem a qual seria absurdo falar de “modernismo”, do que na “Ode Triunfal” e na “Ode Marítima”.

 

BIBL.: Fernando Guimarães, O Modernismo Português e a sua Poética, Porto, Lello Editores, 1999. Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa Revisitado: Leitura Estruturante do Drama em Gente, 2ª edição, Lisboa, Moraes Editores, 1981. Adolfo Casais Monteiro, A Poesia de Fernando Pessoa (2ª edição, org. de José Blanco), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.


SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

 

Fernando Pessoa, pela voz de seu heterônimo Álvaro de Campos

 

Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze…

Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

 

De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,

Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,

Concubina fogosa do universo disperso,

Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas

Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,

Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,

Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,

Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,

E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

 

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,

Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,

Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos

Irmão gémeo de todos os arrancos,

Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,

Homero do insaisissable do flutuante carnal,

Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,

Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!

Incubo de todos os gestos,

Espasmo p’ra dentro de todos os objectos de fora

Souteneur de todo o Universo,

Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!

 

Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,

Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,

Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser…

Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,

Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,

E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,

Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.

Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,

Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,

Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,

E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

 

Quantas vezes eu beijo o teu retrato.

Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)

Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)

E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,

Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,

Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.

 

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,

Mas perante o universo a tua atitude era de mulher,

E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

 

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evoé!

Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,

Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,

Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:

De dentro para fora… Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —

Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —

Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,

Poeta sensacionista,

Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,

Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

 

Nunca posso ler os teus versos a fio… Há ali sentir de mais…

Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,

E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica

Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,

Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,

Ou de cabeça p’ra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,

No tecto natural da tua inspiração de tropel,

No centro do tecto da tua intensidade inacessível.

 

Abram-me todas as portas!

Por força que hei-de passar!

Minha senha? Walt Whitman!

Mas não dou senha nenhuma…

Passo sem explicações…

Se for preciso meto dentro as portas…

Sim — eu franzino e civilizado, meto dentro as portas,

Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,

Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,

E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!

 

Tirem esse lixo da minha frente!

Metam-me em gavetas essas emoções!

Daqui p’ra fora, políticos, literatos,

Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,

Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.

O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

 

Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!

O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!

Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, deixa-me ir…

É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito…

Prá frente!

Meto esporas!

Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,

Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,

Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer cousa,

Conforme me der na gana… Ninguém tem nada com isso…

Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,

De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,

De me cramponner às rodas dos veículos e ficar por baixo,

De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,

 

De me (…)

 

De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,

De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,

De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,

E tudo para te cantar, para te saudar e (…)

Dança comigo, Walt, lá do outro mundo esta fúria,

Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,

Cai comigo sem forças no chão,

Esbarra comigo tonto nas paredes,

Parte-te e esfrangalha-te comigo

 

E (…)

 

Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,

Raiva abstracta do corpo fazendo maelstroms na alma…

 

Arre! Vamos lá prá frente!

Se o próprio Deus impede, vamos lá prá frente… Não faz diferença…

Vamos lá prá frente

Vamos lá prá frente sem ser para parte nenhuma…

Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

Pum! pum! pum! pum! pum!

Agora, sim, partamos, vá lá prá frente, pum!

Pum

Pum

Heia…heia…heia…heia…heia…

 

Desencadeio-me como uma trovoada

Em pulos da alma a ti,

Com bandas militares à frente prolongo a saudar-te…

Com um grande cortejo e uma fúria de berros e saltos

Estardalhaço a gritar-te

E dou-te todos os vivas a mim e a ti e a Deus

E o universo anda à roda de nós como um carrocel com música dentro dos nossos crânios,

E tendo luzes essenciais na minha epiderme anterior

Eu, louco de musical sibilar ébrio de máquinas,

Tu célebre, tu temerário, tu o Walt — e o instinto,

Tu a sensualidade ponto

Eu a sensualidade curiosamente nascente até da inteligência

Tu a inteligência (…)

 

11-6-1915

 

 

Porta pra tudo!

Ponte pra tudo!

Estrada pra tudo!

Tua alma omnívora e (…)

Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher,

Tua alma os dois onde estão dois,

Tua alma o um que são dois quando dois são um,

Tua alma seta, raio, espaço,

Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York,

Brooklyn Ferry à tarde,

Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,

Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!

Pum! pum! pum! pum! pum!

PUM!

 

Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,

O sujeito e o objeto, o ativo e o passivo,

Aqui e ali, em toda a parte tu,

Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,

Marco miliário de todas as coisas que podem ser,

Deus Termo de todos os objetos que se imaginem e és tu!

Tu Hora,

Tu Minuto,

Tu Segundo!

Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,

Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento,

Intercalador, libertador, desfraldador, remetente,

Carimbo em todas as cartas,

Nome em todos os endereços,

Mercadoria entregue, devolvida, seguindo…

Comboio de sensações a alma-quilômetros à hora,

À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

 

E todos estes ruídos naturais, humanos, de máquinas

Todos eles vão juntos, tumulto completo de tudo,

Cheios de mim até ti, saudar-te

Cheios de mim até ti,

Vão gritos humanos, vão choros de terra,

Vão volumes dos montes,

Vão os rumores de águas,

Vão barulhos da guerra,

Vão os estrondos da (…) os, (…) da (…)

Vão os ruídos dos povos em lágrimas,

Vão os sons débeis dos ais no escuro

E vão mais cerca da vida, rodeando-me,

Prémio melhor do meu saudar-te

Os ruídos, cicios, assobios dos comboios

Os ruídos modernos e das fábricas,

Som regular,

Rodas,

Volantes,

Hélices

Pum…

 

Heia que eu vou chamar

Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te

Todo o formilhamento humano do Universo,

Todos os modos de todas as emoções

Todos os feitios de todos os pensamentos,

Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.

Heia que eu grito

E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam

Com uma algaravia metafisica e real,

Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

(…)

 

Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,

Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,

Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.

Fúria do moderno concretado em mim,

Espasmo translúcido de ser,

Flor de agirem os outros,

Festa por há a Vida,

Loucura porque não há vida bastante em um p’ra ser todos

Porque ser é ser bastardo e só Deus nos servia.

Ah, tu que cantaste tudo, deixaste tudo por cantar.

Quem pode vibrar mais que o seu corpo em seu corpo,

Quem tem mais sensaçaões que as sensações por ter?

Quem é bastante quando nada basta?

Quem fica completo quando um só (¿vinco?) de erva

Fica com a raíz fora, do seu coração?

 

Por isso é a ti que endereço

Meus versos saltos, meus versos pulos , meus versos espasmos,

Os meus versos-ataques-histéricos,

Os meus versos que arrastam o carro (…) dos meus nervos.

 

Aos trambolhões me inspiro,

Mal podendo respirar, ter-me-de-pé me-exalto,

E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

 

Abram-me todas as janelas!

Arranquem-me todas as portas!

Puxem a casa toda para cima de mim!

Quero viver em liberdade no ar,

Quero ter gestos fora do meu corpo,

Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,

Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,

Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,

Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

 

Não quero fechos nas portas!

Não quero fechaduras nos cofres!

Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,

Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,

Que me despejem dos caixotes,

Que me atirem aos mares,

Que me vão buscar a casa com fins obscenos,

Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,

Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!

 

Não quero intervalos no mundo!

Quero a contiguidade penetrada e material dos objectos!

Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,

Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!

Ser arremessado como uma granada!

Ir parar a… Ser levado até…

Abstracto auge no fim de mim e de tudo!

 

Clímax a ferro e motores!

Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!

Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!

 

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!

Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem

Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

 

Os marinheiros levaram-me preso.

As mãos apertaram-me no escuro.

Morri temporariamente de senti-lo.

Seguiu-se a minh’alma a lamber o chão do cárcere-privado,

E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

 

Pula, salta, toma o freio nos dentes,

Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,

Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

Salta, pula, embandeira-te,

Deixa a sangue o rasto na imensidade nocturna ,

A sangue quente, [?mesmo de longe?],

A sangue fresco [?mesmo de longe?].

A sangue vivo e frio no ar dinâmico a mim!

Salta, galga, pula,

Ergue-te, vai saltando, (…)

 

Numa grande marche aux flambeaux-todas-as-cidades-da-Europa,

Numa grande marcha guerreira a indústria e comércio e ócio,

Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida

Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,

Salto a saudar-te,

Berro a saudar-te,

Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinchos!

Hé-lá

 

Ave, salve, viva!…

 

Arregimento!

Comigo, coisas!

Sigam-me, gentes!

Máquinas. artes, letras, […] — comigo!

Vós, que ele tanto amou, coisas que são a terra:

Árvores sem sentido salvo verde,

Flores com a cor na alma,

(…)

Escura brancura das águas,

Rio fora dos rios,

Paz dos campos porque não são as cidades

Seiva lenta ao emergir da avareza das crostas

 

Onde não sou o primeiro, prefiro não ser nada, não estar lá,

Onde não posso agir o primeiro, prefiro só ver agir os outros.

Onde não posso mandar, antes quero nem obedecer.

 

Excessivo na ânsia de tudo, tão excessivo que nem falo,

E não falo, porque não tento.

«Ou Tudo ou Nada» tem um sentido pessoal para mim.

Mas ser universal — não o posso, porque sou particular.

Não posso ser todos, porque sou Um, um só, só eu

Não posso ser o primeiro em qualquer coisa, porque não há o primeiro.

Prefiro por isso o nada de ser co-primeiro em ser nada.

 

Quando é que parte o último comboio, Walt?

Quero deixar esta cidade, a Terra,

Quero emergir de vez deste país, Eu,

Deixar o mundo com o que se comprova falido,

Como um caixeiro viajante que vende navios a habitantes do interior.

 

O fim a motores partidos!

Que foi todo o meu ser? Uma grande ânsia inútil —

Estéril realização com um destino impossível —

Máquina de louco para realizar o motu continuo,

Teorema de absurdo para a quadratura do círculo,

Travessia a nado do Atlântico, falando na margem de cá

Antes da entrada na água, só com eles e o cálculo,

Atirar de pedras à lua

Ânsia absurda do encontro dos paralelos Deus-vida.

 

Megalomania dos nervos,

Ânsia de elasticidade do corpo duro,

Raiva de meu concreto ser por não ser o auge-eixo

O carro da sensualidade de entusiasmo abstracto

O vácuo dinâmico do mundo!

 

Vamo-nos embora de Ser.

Larguemos de vez, definitivamente, a aldeia-Vida

O arrabalde-Mundo de Deus

E entremos na cidade à aventura, ao rasgo

Ao auge, loucamente ao Ir…

Larguemos de vez.

 

Quando parte, Walt, o último comboio p’ra aí?

Que Deus fui para as minhas saudades serem estas ânsias?

Talvez partindo regresse. Talvez acabando, chegue,

Quem sabe? Qualquer hora é a hora. Partamos,

Vamos! A estada tarda. Partir é ter ido.

 

Partamos para onde se fique.

Ó estrada para não-haver-estradas!

Término no Não-Parar!

 

Um comboio de criança movido a corda, puxado a cordel

Tem mais movimento real do que os nossos versos…

Os nossos versos que não têm rodas

Os nossos versos que não se deslocam

Os nossos versos que, nunca lidos, não saem para fora do papel.

(Estou farto — farto da vida, farto da arte —,

Farto de não ter coisas, a menos ou a medo —

Rabo-leva da minha respiração chagando a minha vida,

Fantoche absurdo de feira da minha ideia de mim.

Quando é que parte o último comboio?)

Sei que cantar-te assim não é cantar-te — mas que importa?

Sei que é cantar tudo, mas cantar tudo é cantar-te,

Sei que é cantar-me a mim — mas cantar-me a mim é cantar-te a ti

Sei que dizer que não posso cantar é cantar-te, WaIt, ainda…

 

Heia? Heia o quê e porquê?

O que tiro eu de heia! ou de qualquer coisa,

Que valha pensar em heia!?

 

Decadentes, meu velho, decadentes é que nós somos…

No fundo de cada um de nós há uma Bizâncio a arder,

E nem sinto as chamas e nem sinto Bizâncio

Mas o Império finda nas nossas veias aguadas

E a Poesia foi a da nossa incompetência para agir…

Tu, cantador de profissões enérgicas, Tu o Poeta do Extremo, do Forte,

 

Tu, músculo da inspiração, com musas masculinas por destaque,

Tu, afinal, inocente em viva histeria,

Afinal apenas “acariciador da vida”,

Mole ocioso, paneleiro pelo menos na intenção,

— Bem… isso era contigo — mas onde é que aí está a Vida?

 

Eu, engenheiro como profissão, Farto de tudo e de todos,

Eu, exageradamente supérfluo, guerreando as coisas

Eu, inútil, gasto, improfícuo, pretensioso e amoral,

Bóia das minhas sensações desgarradas pelo temporal,

Âncora do meu navio já quebrada pr’ó fundo

Eu feito cantor da Vida e da Força — acreditas?

Eu, como tu, enérgico, salutar, nos versos —

E afinal sincero como tu, ardendo em ter toda a Europa no cérebro,

No cérebro explosivo e sem diques,

Na inteligência mestra e dinâmica,

Na sensualidade carimbo, projector, marca, cheque

P’ra que diabo vivemos, e fazemos versos?

Raios partam a mandriice que nos faz poetas,

A degenerescência que nos engana artistas,

O tédio fundamental que nos pretende enérgicos e modernos,

Quando o que queremos é distrair-nos, dar-nos ideia da vida

Porque nada fazemos e nada somos, a vida corre-nos lenta nas veias.

Vejamos ao menos, Walt, as coisas bem pela verdade…

Bebamos isto como um remédio amargo

E concordemos em mandar à merda o mundo e a vida

Sem quebranto no olhar, e não por desprezo ou aversão

 

Isto, afinal é saudar-te?

Seja o que for, é saudar-te,

Seja o que valha, é amar-te,

Seja o que calhe, é concordar contigo…

Seja o que for é isto. E tu compreendes, tu gostas,

Tu, a chorar no meu ombro, concordas, meu velho, comigo —

(Quando parte o último comboio? —

Vilegiatura em Deus…)

Vamos, confiadamente, vamos…

Isto tudo deve ter um outro sentido

Melhor que viver e ter tudo…

Deve haver um ponto da consciência

Em que a paisagem se transforme

E comece a interessar-nos, a acudir-nos, a sacudir-nos…

Em que comece ti haver fresco na alma

E sol e campo nos sentidos despertos […]

Seja onde for a Estação, lá nos encontraremos…

Espera-me à porta, Walt; lá estarei…

Lá estarei sem o universo, sem a vida, sem eu-próprio, sem nada…

E relembraremos, a sós, silenciosos, com a nossa dor

O grande absurdo do mundo, a dura inépcia das coisas

E sentirei, o mistério sentirei tão longe, tão longe, tão longe,

Tão absoluta e abstractamente longe,

Definitivamente longe.

 

 

Heia o quê? Heia porquê? Heia p’ra onde?

Heia até onde?

Heia p’ra onde, corcel suposto?

Heia p’ra onde, comboio imaginário?

Heia p’ra onde, seta, pressa, velocidade

Todas só eu a penar por elas

Todas só eu a não tê-las por todos os meus nervos fora.

 

Heia p’ra onde, se não há onde nem como?

Heia p’ra onde, se estou sempre onde estou e nunca adiante

Nunca adiante, nem sequer atrás,

Mas sempre fatalissimamente no lugar do meu corpo,

Humanissimamente no ponto-pensar da minha alma,

Sempre o mesmo átomo indivisível da personalidade divina?

 

Heia p’ra onde ó tristeza de não realizar o que quero?

Heia p’ra onde, para quê, o quê, sem o quê?

Heia, heia, heia, mas ó minha incerteza, p’ra onde?

 

Não escrever versos, versos, versos a respeito do ferro,

Mas ver, ter, ser o ferro e ser isso os meus versos,

Versos — ferro — versos, círculo material-psíquico-eu

 

(quando parte o último comboio?)

 

 

A expressão, aborto abandonado

Em qualquer vão-de-escada da realidade.

 

O que é a necessidade de escrever versos senão a vergonha de chorar?

O que é o desejo de fazer arte senão o adultismo p’ra brinquedos?

(Quando é que parte o último comboio, Walt,

Quando é que parte o último comboio?)

 

Bonecos da minha infância com quem eu imaginava melhor que hoje

 

(…)

 

A química por baixo do Aqui jaz...

A dor, febre que hoje é química só, lá longe na cavada encosta

À hora em que era costume ele vir para casa

 

E o mesmo candeeiro hoje iluminado […]

E apenas o silêncio já sem nos dizer que o fazem por se terem calado.

 

 

Para saudar-te

Para saudar-te como se deve saudar-te

Preciso tornar os meus versos corcel,

Preciso tornar os meus versos comboio,

Preciso tornar os meus versos seta,

Preciso tornar os versos pressa,

Preciso tornar os versos nas coisas do mundo

 

Tudo cantavas, e em ti cantava tudo —

Tolerância magnífica e prostituída

A das tuas sensações de pernas abertas

Para os detalhes e os contornos do sistema do universo.

 

Abram falência à nossa vitalidade!

Escrevemos versos, cantamos as coisas-falências; não as vivemos.

Como poder viver todas as vidas e todas as épocas

E todas as formas da forma

E todos os gestos do gesto?

O que é fazer versos senão confessar que a vida não basta

O que é arte senão uma esperança que não é ninguém

Adeus, Walt, adeus!

Adeus até ao indefinido do para além do Fim.

Espera-me, se aí se pode esperar,

Quando parte o último comboio?

Quando parte? (Quando partimos)

 

Choro como a criança a quem falta a lua perto,

Como o amante abandonado pela que não tem ainda,

Com o livro inexplícito do seu Reino por vir,

O que se julga em vão Motor,

Eixo do movimento dos espíritos,

Fulcro das ambições sombrias,

Auge dinâmico das tropas da ascensão,

Ou, mais claro e mais rápido,

Protoplasma do mundo matemático do futuro!

 

Quem sou eu, afinal, por que te saúdo?

Quem com nome e língua e sem voz?

 

A labuta prostituta do [caldeamento?] de (…)

Nos altos fornos de mim!

 

 

Minha oração-cavalgada!

 

Minha saudação-arranco!

 

Quem como tu sentiu a vida individual de tudo?

Quem como tu esgotou sentir-se — a vida — sentir-nos?

Quem como tu tem sempre o sobresselente por próprio

E transborda por norma da norma — forma da Vida?

(…)

 

a minha alegria é uma raiva,

o meu arranco um choque

(Pá!)

em mim…

 

Saúdo-te em ti ó Mestre da minha doença de saúde,

o primeiro doente perfeito da universalite que tenho

o caso-nome do “mal de Whitman” que há dentro de mim!

St. Walt dos Delírios Ruidosos e a Raiva!

 

 

Abram todas as portas!

Partam os vidros das janelas!

Omitam fechos na vida de fechar!

Omitam a vida de fechar da vida de fechar!

Que fechar seja estar aberto sem fechos que lembrem,

Que parar seja o nome alvar de prosseguir,

Que o fim seja sempre uma coisa abstracta e ligada

Fluida a todas as horas de passar por ele!

Eu quero respirar!

Dispam-me o peso do meu corpo!

Troquem a alma por asas abstractas, ligadas a nada!

Nem asas, mas a Asa enorme de Voar!

Nem Voar mas o que fica de veloz quando cessar é voar

E não há corpo que pese na alma de ir!

 

Seja eu o calor das coisas vivas, a febre

Das seivas, o ritmo das ondas e o (…)

Intervalo em Ser para deixar Ser ser…!

 

Fronteiras em nada!

Divisões em nada!

Só Eu

 

 

Para cantar-te,

Para saudar-te

Era preciso escrever aquele poema supremo,

Onde, mais que em todos os outros poemas supremos,

Vivesse, numa síntese completa feita de uma análise sem esquecimentos,

Todo o Universo de coisas, de vidas e de almas,

Todo o Universo de homens, mulheres, crianças,

Todo o Universo de gestos, de actos, de emoções, de pensamentos,

Todo o Universo das coisas que a humanidade faz,

Das coisas que acontecem à humanidade —

Profissões, leis, regimentos, medicinas, o Destino,

Escrito a entrecruzamentos, a intersecções constantes

No papel dinâmico dos Acontecimentos,

No papiro rápido das combinações sociais,

No palimpsesto das emoções renovadas constantemente.

 

 

O verdadeiro poema moderno é a vida sem poemas,

É o comboio real e não os versos que o cantam

É o ferro dos rails, dos rails quentes, é o ferro das rodas, é o giro real delas.

E não os meus poemas falando de rails e de rodas sem eles.

 

 

No meu verso canto comboios, canto automóveis, canto vapores,

Mas no meu verso, por mais que o ice, ha só ritmos e ideias,

Não há ferro, aço, rodas, não há madeiras, nem cordas,

Não há a realidade da pedra mais nula da rua,

Da pedra que por acaso ninguém olha ao pisar

Mas que pode ser olhada, pegada na mão, pisada,

E os meus versos são como ideias que podem não ser compreendidas.

 

O que eu quero não é cantar o ferro: é o ferro.

O que eu penso é dar só a vida do aço — e não o aço —

O que me enfurece em todas as emoções da inteligência

É não trocar o meu ritmo que imita a água cantante

Pelo frescor real da água tocando-me nas mãos,

Pelo som visível do rio onde posso entrar e molhar-me,

Que pode deixar o meu fato a escorrer,

Onde me posso afogar, se quiser,

Que tem a divindade natural de estar ali sem literatura.

Merda! Mil vezes merda para tudo o que eu não posso fazer.

Que tudo, Walt — […] ? — que é tudo, tudo, tudo?

 

Todos os raios partam a falta que nos faz não ser Deus

Para ter poemas escritos a Universo e a Realidades por nossa carne

E ter ideias-coisas e o pensamento Infinito!

Para ter estrelas reais dentro do meu pensamento-ser

Nomes-números nos confins da minha emoção-a-Terra.

 

 

Futilidade, irrealidade, (…) estática de toda a arte,

Condenação dos artistas a não viver!

 

Ó quem nos dera, Walt,

A terceira coisa, a média entre a arte e vida

A coisa que sentiste, e não seja estática nem dinâmica,

Nem real nem irreal

Nem nós nem os outros —

Mas como até imaginá-la?

Ou mesmo apreendê-la

Mesmo sem a esperança de não a ter nunca?

 

A dinâmica pura, a velocidade em si,

Aquilo que dê absolutamente as coisas,

Aquilo que chegue tactilmente aos sentidos,

Construamos comboios, Walt, e não os cantemos,

Cavemos e não cantemos, meu velho, o cavador e o campo,

 

Provemos e não escrevamos,

Amemos e não construamos,

Metamos dois tiros de revólver na primeira cabeça com chapéu

E não façamos onomatopeias inúteis e vãs no nosso verso

No nosso verso escrito em prosa, e depois impresso.

 

Poema que esculpisse em Móvel e Eterno a escultura,

Poema que (…)se palavras

Que (…) ritmo o canto, a dança e (…)

Poema que fosse todos os poemas,

Que dispensasse bem outros poemas,

Poema que dispensasse a Vida.

Irra, faço o que quero, estorça o que estorça no meu ser central,

Force o que force em meus nervos industriados a tudo,

Maquine o que maquine no meu cérebro furor e lucidez,

Sempre me escapa a coisa em que eu penso,

Sempre me falta a coisa que (…) e eu vou ver se me falta,

Sempre me falta, em cada cubo, seis faces,

Quatro lados em cada quadrado do que quis exprimir,

Três dimensões na solidez que procurei perpetuar…

Sempre um comboio de criança movido a corda, a corda,

Terá mais movimento que os meus versos estáticos e lidos,

Sempre o mais verme dos vermes, a mais química célula viva

Terá mais vida, mais Deus, que toda a vida dos meus versos,

Nunca como os duma pedra todos os vermelhos que eu descreva,

Nunca como numa música todos os ritmos que eu sugira!

Nunca como (…)

Eu nunca farei senão copiar um eco das coisas,

O reflexo das coisas reais no espelho baço de mim.

 

A morte de tudo na minha sensibilidade (que vibra tanto!)

A secura real eterna do rio lúcido da minha imaginação!

Quero cantar-te e não posso cantar-te, Walt!

Quero dar-te o canto que te convenha,

Mas nem a ti, nem a nada, — nem a mim, ai de mim! — dou um canto…

Sou um surdo-mudo berrando em voz alta os seus gestos,

Um cego fitando à roda do olhar um invisível-tudo

 

Assim te canto, Walt, dizendo que não posso cantar-te!

Meu velho comentador da multiplicidade das coisas,

Meu camarada em sentir nos nervos a dinâmica marcha

Da perfeita físico-química da

Da energia fundamental da aparência das coisas para Deus,

Da distinta forma de sujeito e objecto para além da vida

 

Andamos a jogar às escondidas com a nossa intenção…

Fazemos arte e o que queremos fazer afinal é a vida.

O que queremos fazer já está feito e não está em nós fazê-Io,

E fá-lo o […] melhor do que nós, mais de perto,

Mais instintivamente […]

Sim, se o que nos poemas é o que vibra e fala,

mais casto gesto da vida é mais sensual que o mais sensual dos poemas,

Porque é feito por alguém que vive, porque é (…) porque é Vida.

 

Paro, escuto, reconheço-me!

O som da minha voz caiu no ar sem vida.

Fiquei o mesmo, tu estás morto, tudo é insensível…

Saudar-te foi um modo de eu querer animar-me,

Para que te saudei sem que me julgue capaz

Da energia viva de saudar alguém!

 

Ó coração por sarar! quem me salva de ti?

 

 

Saudação a Walt Whitman

(Outros fragmentos recolhidos por Teresa Rita Lopes*)

 

 

Portugal — Infinito, onze de Junho de 1915

Hé lá, á — á — á — á!

 

De aqui, de Portugal, de onde a Europa olha a América,

De onde tu teres existido é um efeito complexo,

Consciente de estar à vista, no palco para a plateia que é no auge.

Saúdo-te deliberadamente, saúdo-te

Desde o princípio de te saudar, como é próprio de ti.

 

Hé-lá Walt, old boy, meu velho arado das almas,

Hé-lá meu condottiere da sensualidade autêntica

Pirata do teu próprio génio,

Filho-pródigo da tua inspiração!

 

Ó sempre moderno e eterno; cantor dos concretos absolutos

Concubina fogosamente […] do universo disperso,

Grande pederasta roçando-te pela diversidade das coisas,

Sexualidade…

 

Tu, o homem-mulher-criança-natureza-máquinas!

Tu, o p’ra-dentro, tu o p’ra-fora, tu o ao-lado de tudo!

Fulcro-sensualidade ao serviço do infinito, escada

Até não haver fim a subir, — e subir!

 

Saúdo-te e chamo

A tomar parte em mim na saudação que te faço

Tudo quanto cantaste ou desejaste cantar.

Ervas, árvores, flores, a natureza dos campos…

Homens, lutas, tratados — a natureza das almas…

Os artifícios, que dão sabor ao que não é artifício

As coisas naturais que valem sem valor dado,

As profissões com que o homem se interessa por ter vontade

As grandes ambições, as grandes raivas, as pálpebras

Descidas sobre a inutilidade metafísica de viver…

Chamo a mim, para os levar até ti,

Como a mãe chama a criança para a sentir ser

A totalidade dispersa do que interessa ao mundo…

Ah, que nada me fique de fora das algibeiras

Quando vou procurar-te.

Que nada me esqueça, se te saúdo, que nada

Falte, nem o faltar esqueça,

Porque faltar é uma coisa — faltar.

Vá! Vá! Tudo! O natural e o humano!

Vá, o que parte! vá, o que fica! vá o que lembra e o que esquece!

Tu tens direito a ser saudado por tudo

E eu, porque o vejo,

Tenho o direito a encanar a voz em tudo saudar-te

 

 

 

Saudação a Walt Whitman

(Outros fragmentos recolhidos por Teresa Rita Lopes)

 

 

O pó que fica das velocidades que já se não vêem!

O do metálico dos êmbolos,

O furor uterino das válvulas lá por dentro —

O sangue dando em baque ao ataque dos excêntricos.

 

Minhas sensações

Protoplasma da humanidade matemática do futuro!

 

Eia-la-ho! Hó-oo-o!

 

Oh lá, saltos e pulos com o meu pensamento todo

Pula bola de mim — a mágica biológica que eu sou!

O cérebro servo de leis, os nervos movidos por normas

Por normas compostas em tratados de psiquiatras

 

 

A minha universalite —

 

A ânsia vaga, a alegria absurda, a dor indecifrável

Síndroma da doença da Incongruência Final.

 

Curso do êmbolo do dinamismo abstracto

Do vácuo dinâmico do mundo!

 

A minha aspiração consubstanciada com fórmulas

Matemática de mim falido

 

 

Com bandas militares à frente, compostas de volantes e hélices,

Com uma vanguarda sonora de sereia de automóvel e de barco

Com um estardalhaço longínquo, com saltos e alardes

De bombos e pratos, com (…)

Desencadeio-me a saudar-te. Pum!

Pum, pum, pum…

Pu-u-u-u-u-m!

 

 

Cá estamos no píncaro — nós dois.

Nós dois e Homero? Não sabemos. Esse está mais abaixo.

Estendemos a mão e cada qual ainda que cego chega a Deus (ele não)

O quê — você não chega? Então você desaparece? — ou não chegou.

 

Sou míope e português

Se houver troca de louros

(…)

 

P’ra Apolo falta-me a beleza

Mas também falta só isso.

[…]

[…]

 

Camarada Will, qualquer de nós

Vale o resto, excepto o outro

 

Ave, poema mudo de verso (poema diverso)

Verso mudo de frases

Mesmo (ó diabo!) mudo de mim

Não importa. Feliz encontro

 

 

Para cantar-te,

Para cantar-te como tu quererias que te cantassem,

Melhor é cantar a terra, o mar, as cidades e os campos —

Os homens, as mulheres, as crianças,

As profissões, […], as (…)

Todas as coisas que, juntas, formam a síntese-universo,

Todas as coisas que, separadas, valem a síntese-Universo,

Todas as coisas que universais formam a síntese Deus.

Ah, o poema que te cantasse bem,

Seria o poema que todo cantasse tudo,

O poema em que estivessem todas as vestes e todas as sedas —

Todos os perfumes e todos os sabores

E o contato em todos os sentidos do tacto de todas as coisas tangíveis.

Poema que dispensasse a música, música com vida,

Poema que transcendesse a pintura, pintura com alma

 

 

 

Ah, de que serve

A arte que quer ser vida, sem a vida que quer ser?

De que serve a arte se não é a arte que queremos?

De que nos serve a vida se a queremos e não a buscamos,

Se nunca é para nós a vida?

Ah, p’ra saudar-te

Era preciso o coração

Da terra toda…

O corpo-espírito das coisas,

 

 

 

Eu, o ritmista febril

Para quem o parágrafo de versos é uma pessoa inteira,

Para quem, por baixo da metáfora aparente,

Como em estrofe, anti-estrofe, epodo o poema que escrevo,

Que por detrás do delírio construo

Que por detrás de sentir penso

Que amo, expludo, rujo, com ordem e oculta medida,

Eu ante ti quereria ter menos de engenheiro na alma,

Menos de grego das máquinas, de Bacante de Apolo

Nos meus momentos de alma multiplicados em verso.

Mas o ar do mar alto

Chega, por um influxo de dentro do meu sangue

Ao meu cérebro desterrado em terra,

E a fúria com que medito, a raiva com que me domino

Abre-se como uma vela, tomada de vento, aos ares

Ampla servidão ao rasgo de assombro dos (…)

 

* Maria Teresa Rita Lopes (Faro12 de setembro de 1937) é uma escritora portuguesa. Licenciada em Filologia Românica, doutorou-se em Paris com uma tese sobre Fernando Pessoa, tendo consagrado a sua carreira de investigação ao estudo da obra deste.[carece de fontes]

É Professora Catedrática de Literaturas Comparadas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desde 1979. A sua produção literária vai desde a poesia ao teatro, para além de inúmeros ensaios sobre literatura.


DOIS EXCERTOS DE ODES

    (fins de duas odes, naturalmente)


Álvaro de Campos

 

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, Noite

Com as estrelas lentejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,

Vem, levemente,

Vem sozinha, solene, com as mãos caídas

Ao teu lado, vem

E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,

Funde num campo teu todos os campos que vejo,

Faze da montanha um bloco só do teu corpo,

Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,

Todas as estradas que a sobem,

Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.

Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,

Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,

Na distância subitamente impossível de percorrer.


Nossa Senhora

Das coisas impossíveis que procuramos em vão,

Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,

Dos propósitos que nos acariciam

Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas

Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...

Vem, e embala-nos,

Vem e afaga-nos.

Beija-nos silenciosamente na fronte,

Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam

Senão por uma diferença na alma.

E um vago soluço partindo melodiosamente

Do antiquíssimo de nós

Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha

Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos

Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.


Vem soleníssima,

Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

E todos os gestos não saem do nosso corpo

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.


Vem, dolorosa,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,

Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.

Vem, lá do fundo

Do horizonte lívido,

Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade

Onde vicejo.

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,

Folha a folha lê em mim não sei que sina

E desfolha-me para teu agrado,

Para teu agrado silencioso e fresco.

Uma folha de mim lança para o Norte,

Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;

Outra folha de mim lança para o Sul,

Onde estão os mares que os Navegadores abriram;

Outra folha minha atira ao Ocidente,

Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,

Que eu sem conhecer adoro;

E a outra, as outras, o resto de mim

Atira ao Oriente,

Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,

Ao Oriente pomposo e fanático e quente,

Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,

Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,

Ao Oriente que tudo o que nós não temos,

Que tudo o que nós não somos,

Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,

Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...


Vem sobre os mares,

Sobre os mares maiores,

Sobre os mares sem horizontes precisos,

Vem e passa a mão pelo dorso da fera,

E acalma-o misteriosamente,

ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!


Vem, cuidadosa,

Vem, maternal,

Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste

À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,

E que viste nascer Jeová e Júpiter,

E sorriste porque tudo te é falso é inútil.


Vem, Noite silenciosa e extática,

Vem envolver na noite manto branco

O meu coração...

Serenamente como uma brisa na tarde leve,

Tranquilamente com um gesto materno afagando.

Com as estrelas luzindo nas tuas mãos

E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.

Todos os sons soam de outra maneira

Quando tu vens.

Quando tu entras baixam todas as vozes,

Ninguém te vê entrar.

Ninguém sabe quando entraste,

Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,

Que tudo perde as arestas e as cores,

E que no alto céu ainda claramente azul

Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem.

 

A lua começa a ser real.

 

PESSOA QUE PENSA CAMPOS QUE SENTE

https://run.unl.pt/bitstream/10362/4230/1/RFCSH1_101_109.pdf

 

 

CINCO POEMAS DE RICARDO REIS

 

Ricardo Reis, ao lado de Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Bernardo Soares, é um dos heterônimos do escritor português Fernando Pessoa. Entre todas as personagens literárias criadas pelo excêntrico e misterioso poeta (o fenômeno da heteronímia justifica o epíteto), Ricardo Reis foi o responsável por dar voz aos poemas de índole pagã.

Influenciado pelos ideais filosóficos greco-latinos, sobretudo pelo epicurismo e pelo estoicismo, Ricardo Reis criou uma poesia em que a harmonia, a clareza, as boas formas de viver, o prazer, a serenidade e o equilíbrio são os principais temas. Recebeu também forte influência do poeta Alberto Caeiro, heterônimo de Pessoa considerado um mestre para os demais. Sua poesia defende o ideal do “carpe diem”, frase do poeta Horácio popularmente traduzida como “aproveite o momento”. Por meio de seus versos, Ricardo Reis procurou atingir a paz e o equilíbrio sem sofrer, considerando a vida como uma viagem cujo fluir e fim são inevitáveis.

Para que você conheça um pouco mais os versos precisos e harmônicos desse interessante heterônimo, o sítio de Português selecionou cinco poemas de Ricardo Reis para você experimentar o estilo neoclássico permeado por alusões mitológicas do poeta. Aproveite o dia e boa leitura!


“Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui”. Versos famosos do poema Põe quanto és no mínimo que fazes, Ricardo Reis

Segue o Teu Destino

Segue o teu destino, 
Rega as tuas plantas, 
Ama as tuas rosas. 
O resto é a sombra 
De árvores alheias. 

A realidade 
Sempre é mais ou menos 
Do que nos queremos. 
Só nós somos sempre 
Iguais a nós-próprios. 

Suave é viver só. 
Grande e nobre é sempre 
Viver simplesmente. 
Deixa a dor nas aras 
Como ex-voto aos deuses. 

Vê de longe a vida. 
Nunca a interrogues. 
Ela nada pode 
Dizer-te. A resposta 
Está além dos deuses. 

Mas serenamente 
Imita o Olimpo 
No teu coração. 
Os deuses são deuses 
Porque não se pensam. 

Ricardo Reis, in "Odes"

Amo o que Vejo

Amo o que vejo porque deixarei 
   Qualquer dia de o ver. 
   Amo-o também porque é. 

No plácido intervalo em que me sinto, 
   Do amar, mais que ser, 
   Amo o haver tudo e a mim. 

Melhor me não dariam, se voltassem, 
   Os primitivos deuses, 
   Que também, nada sabem. 

Ricardo Reis, in "Odes"

Estás Só

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis, in "Odes"

Colhe o Dia, porque És Ele

Uns, com os olhos postos no passado, 
Veem o que não veem: outros, fitos 
Os mesmos olhos no futuro, veem 
O que não pode ver-se. 

Por que tão longe ir pôr o que está perto — 
A segurança nossa? Este é o dia, 
Esta é a hora, este o momento, isto 
É quem somos, e é tudo. 

Perene flui a interminável hora 
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto 
Em que vivemos, morreremos. Colhe 
O dia, porque és ele. 

Ricardo Reis, in "Odes"

Tenho Mais Almas que Uma

Vivem em nós inúmeros; 
Se penso ou sinto, ignoro 
Quem é que pensa ou sente. 
Sou somente o lugar 
Onde se sente ou pensa. 

Tenho mais almas que uma. 
Há mais eus do que eu mesmo. 
Existo todavia 
Indiferente a todos. 
Faço-os calar: eu falo. 

Os impulsos cruzados 
Do que sinto ou não sinto 
Disputam em quem sou. 
Ignoro-os. Nada ditam 
A quem me sei: eu 'screvo. 

Ricardo Reis
, in Odes



   Lendo Orfeu (1954), pintura de José de Almada Negreiros


CARTA DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA, 

ÚNICA MULHER QUE ELE AMOU NA VIDA


Em 14.06, Fernando Pessoa, o Nininho na intimidade, fazia aniversário, mas, num dia como hoje, porém em 1900, nascia, em Lisboa, Ofélia Queiroz, a namorada dele, o único amor conhecido do poeta, o único nos seus 47 anos de vida. Abaixo, uma carta de Nininho para sua Ofélia.

 

(Carta a Ophélia Queiroz - 5 de abril de 1920)

 

Meu Bebé pequeno e rabino:

Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa coisa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra.

Sabes? Estou-te escrevendo mas não estou pensando em ti . Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da caça aos pombos ; e isto é uma coisa, como tu sabes, com que tu não tens nada...

Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem disposta, e eu estava bem disposto, e o dia estava bem disposto também (O meu amigo, não. A. A. Crosse: está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado).

Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade. A terceira razão é haver só duas razões, e, portanto, não haver terceira razão nenhuma. (Álvaro de Campos, engenheiro).

Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo... Meu Bebé para sentar ao colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para...

(e depois o Bebé é mau e bate-me...) «Corpinho de tentação» te chamei eu; e assim continuarás sendo, mas longe de mim.

Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho... Vem... Estou tão só, tão só de beijinhos ...

Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades de mim a valer . Ao menos isso era uma consolação... Mas tu, se calhar, pensas menos em mim que no rapaz do gargarejo, e no D. A. F. e no guarda-livros da C. D. & C.! Má, má, má, má, má...!!!!!

Açoites é que tu precisas.

Adeus; vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para baixo para descansar o espírito. Assim fazem todos os grandes homens — pelo menos quando têm — 1º espírito, 2º cabeça, 3º balde onde meter a cabeça.

Um beijo só durando todo o tempo que ainda o mundo tem que durar, do teu, sempre e muito teu

Fernando (Nininho)

 

 


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