Unamuno (1876-1936), poeta, escritor e membro da Geração de 98 |
MIGUEL DE UNAMUNO
Arriba o humanismo, abaixo o
irracional
Florisvaldo Mattos
O episódio dramático mais célebre da
Guerra Civil Espanhola (1936-1939), rivalizando com o bombardeio de Guernica,
por bombardeiros e caças Junkers
alemães, a serviço de Franco, que Picasso eternizou num famoso painel, com o
grito desesperado de La Pasionaria (Dolores Ibarruri) - No passarán! -, ante o avanço das tropas franquistas sobre Madri, e
com o assassinato do poeta Garcia Lorca em Granada, teve como principal
protagonista e sobrevive na memória, porque vitorioso e consagrador aos olhos
da história, um homem que Giovanni Papini iria definir como “o espírito mais
representativo da Espanha de seu tempo”, o escritor e filósofo Miguel de
Unamuno.
No
dia 12 de outubro de 1936, num dos momentos de maior exaltação dos grupos em
conflito - republicanos e nacionalistas -, em pleno salão de honra da
Universidade de Salamanca, da qual era reitor vitalício, Unamuno pronunciou o
que ficaria gravado na história como o discurso
da sobranceria, em resposta à fala do general Millán Astray, que elegera
como lema de campanha a frase tenebrosa “España,
una. Viva la muerte!”; e, ali, perante um auditório repleto e congestionado
de slogans belicosos, desfechara violento ataque contra os catalães e os
bascos, e contra a intelectualidade que resistia ao primado da força.
Ante a multidão que fazia a saudação
fascista em louvor do general e a parte emudecida da plateia, Unamuno sentiu
que não podia silenciar; levantou-se e, tendo por detrás de si o retrato de
Franco pendurado na parede, disse as palavras que vão reproduzidas adiante. É
justamente a memória desse homem e desse histórico que a Espanha até hoje
guarda e segue reverenciando muitos anos após sua morte, em dezembro de 1936,
aos 72 anos de idade, em sua casa, aonde se recolhera doente e desiludido.
A comemoração se inicia com a
publicação de seu livro Prensa de
Juventud, que reúne artigos da mocidade de Unamuno na imprensa espanhola. E
virão certamente reedições de seus principais livros dentre os quais estão Niebla (traduzido para o português, Névoa, e lançado pela Nova Fronteira, no
Brasil, em 1989); Del sentimiento de la
vida en los hombres y en los pueblos; Vida de Quijote y Sancho; La agonia del cristinianismo; Paz en la guerra; La Tia Tula,
todos paradigmáticos do espírito e da cultura da Espanha. No ano passado, a
editora Nova Alexandria lançou, com tradução de Mustafa Yazbek, um dos livros
canônicos de Unamuno Três Novelas Exemplares e um Prólogo, em que
o espanhol expressa seu pensamento a respeito da criação de personagens e do
valor do trabalho literário, incluído pelo crítico Harold Bloom entre as obras
fundadoras de seu polêmico cânone da literatura ocidental.
Neste livro, publicado pela primeira
vez em 1920, mas só agora pela primeira vez traduzido no Brasil, Unamuno
procurou transmitir o que entendia por existência humana, através da ótica do
que se poderia chamar de uma estética exemplar, em que transparece toda a força
de seu humanismo, prevalecendo a dialética entre a realidade, elaborada pelo
autor, e a do universo psicológico que emana dos personagens. Em 1981, o
filósofo e escritor espanhol Julian Marías citava um verso de Mallarmé, para
ele imortal - “Tel qu’en lui même enfin
l’éternité le change” - , para ressaltar a permanência de Unamuno, vendo
crescer a expressão de suas ideias e de seu nome, após sua morte, como quem se
recusasse a morrer, vibrando em cada um de seus leitores e em cada uma de suas
obras editadas: “Ficou tremendo, vibrando, sem acabar de morrer, sem entrar na
serenidade do passado”, observava.
“O que sobrevive, verdadeiramente,
mais que as ideias, a melodia da frase, os temas ou o exemplo, é a figura.
Todos, até os que pouco o leram e não muito bem, sabem quem era Unamuno, e
quando se diz seu nome se evoca seu rosto, o corpo erguido, arrogante, um pouco
vencido no fim, a maneira pessoal de vestir, o gesto altaneiro e enigmático. De
Unamuno salvou-se o rosto, o prósopon,
a máscara, inclusive, isto é, a pessoa”. (Julian Marías). E ao grande poeta
Antonio Machado, seu companheiro da geração “del 98”, como Ortega y Gasset,
Gregório Marañon, Menendez Pidal, Perez de Ayala e Pio Baroja, talvez se deva
tal premonição de perenidade, quando homenageou Unamuno, com estes versos: “Livros novos. Abro um/de Unamuno/ Oh, deleite/ predileto/ desta Espanha que se
agita/ porque nasce e volta a se erguer!...”.
Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, ovacinamado |
A FALA DE UNAMUNO
“Estais esperando mis palabras. Mi
conocéis bien y sabéis que soy incapaz de permanecer en silencio. A veces,
quedarse callado equivale a mentir. Porque el silencio puede ser interpretado
como aquiescencia. Quiero hacer algunos comentarios al discurso - por llamarlo
de algún modo - del General Millán Astray, que se encuentra entre nosotros.
Dejaré de lado la ofensa personal que supone su repentina explosión contra
vascos y catalanes. Yo mismo, como sabéis, naci em Bilbao. El obispo lo quiera,
es catalán, nacido en Barcelona. Pero ahora acabo de oír el necrófilo e
insensato grito, “Viva la muerte”. Y yo que he pasado mi vida componiendo
paradojas que excitaban la ira de algunos que no las comprendian, he de
deciros, como experto en la matéria, que esta ridícula paradoja me parece
repelente. El General Millán Astray es un inválido. No es preciso que digamos
esto con un tono más bajo. Es un inválido de guerra. También lo fué Cervantes.
Pero desgraciadamente en España hay actualmente demasiados mutilados. Y, si
Dios no nos ayuda, pronto habrá muchísimos más. Me atormenta el pensar que el
General Millán Astray pudiera dictar las normas de la psicologia de la masa. Un
mutilado que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, es de esperar que
encuentre un terrible alívio viendo como se multiplican los mutilados a su
alrededor”.
En
este momento, Millan Astray gritó: “Abajo la intelegencia!
Viva la muerte!”.
General Millán Astray, integrante ao exército do general Franco |
“Este es el templo de la inteligencia. Y yo soy su sumo sacerdote. Estáis profanando su sagrado recinto. Venceréis, porque tenéis sobrada fuerza bruta. Pero no convenceréis. Para convencer, hay que persuadir. Y para persuadir necesitaríeis algo que vos falta: razón y derecho en la lucha. Me parece inútil el pediros que penséis en España”.
Unamuno,
em sua própria língua e, adiante, em tradução.
“Estais
esperando por minhas palavras. Conheceis-me bem, e sabeis que sou incapaz de
permanecer em silêncio. Às vezes, o conservar-se calado equivale a mentir.
Porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. Quero tecer alguns
comentários ao discurso - se assim podemos chamar o que ouvimos - do general
Millán Astray, que se encontra aqui entre nós. Deixarei de lado a afronta
pessoal contida em sua repentina explosão contra os bascos e os catalães. Eu,
próprio, como sabeis, nasci em Bilbao. O bispo, queira ele ou não, (e
apontou para o prelado a seu lado na mesa),
é catalão, nascido em Barcelona. (Deteve-se. Houve um silêncio de medo). Porém, neste momento, acabo de ouvir o
grito necrófilo e insensato de “Viva a morte!” E eu, que passei minha vida
dando forma a paradoxos que provocavam a ira daqueles que não puderam
compreendê-los, devo dizer-vos, como autoridade no assunto, que este ridículo
paradoxo me parece repulsivo. O general Millán é um inválido. Não é o caso de
dizermos isto em um tom mais baixo. É um inválido de guerra. Cervantes também o
foi. Porém, desgraçadamente, na Espanha de hoje, existem mutilados em demasia.
E, se Deus não vier em nosso auxílio, haverá em breve muitíssimos outros.
Atormenta-me o pensar que o general Millán Astray poderá vir a ditar normas de
psicologia das massas. É de se esperar que um mutilado destituído da grandeza
espiritual de Cervantes sinta um enorme alívio vendo como se multiplicam os
mutilados ao seu redor”.
Neste momento, o general Millán não
se conteve e gritou: “Abaixo a
inteligência! Viva a morte!”. Mas Unamuno prosseguiu:
“Este
é o templo da inteligência. E eu sou o seu supremo sacerdote. Sois vós que
profanais este sagrado recinto. Vencereis porque tendes mais do que a força
bruta necessária. Mas não convencereis. Porque para convencer é necessário persuadir.
E para persuadir necessitaríeis de algo que vos falta: razão e direito na luta.
Parece-me inútil pedir-vos que penseis na Espanha. Tenho dito”. Miguel
de Unamuno, Universidade de Salamanca, 12 de outubro de 1936. (Tradução
cotejada, F.M.).
Na
época, desafiar o general, comandante de um corpo de exército que acumulava vitórias nas terras
bascas, era desafiar o franquismo, o estado de guerra instalado, que avançava,
e sua indústria de massacres.
Paro e penso, submerso em nevoeiro,
na
cortina de dor sobre a Meseta,
na
fala de Unamuno em Salamanca,
no
que dizem ou bradam vozes grandes.
Súbito
um berro. Rebentando os tímpanos
e
rompendo a fissura das abóbadas,
incinera
retinas quando rangem
os
pulmões da loucura: “Viva a morte!”
(Florisvaldo Mattos, versos da parte 5 do poema “A Caligrafia do Soluço - Rastro Sonâmbulo às Cinco da Tarde em Ponto”, expressão de sentimento hispânico lastreado sobre o imaginário da Guerra Civil espanhola; in A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996, p. 9. Artigo sobre Miguel de Unamuno foi publicado em A Tarde Cultural, edição de 03.02.1996, pelos 60 anos da morte de Unamuno).
Murilo Ribeiro, Sobre o Céu de Guernica, o.s.t, Salvador-BA
GUERRA CIVIL ESPANHOLA - 1936-1939
Avessa às revoluções liberais que tomaram conta da
Europa no século XIX, a Espanha chegou ao século seguinte ainda se mantendo
sobre o comando de um regime monárquico. Nesse período, os movimentos de
esquerda espanhóis se dividiam entre duas facções que se colocavam contra os
graves problemas enfrentados pelo país e a manutenção da monarquia. Em geral, o
país observava a ascensão de grupos políticos de tendência comunista,
socialista e anarquista.
A partir de 1910, esse movimento de oposição das esquerdas comandou diversas manifestações trabalhistas e organizou vários comandos de greve. A situação chegou a um ponto insustentável e, com isso, o regime absolutista espanhol abdicou do poder para deixar a nação sobre o controle dos militares. O general Primo Rivera, em 1923, instalou um governo ditatorial com apoio dos monarquistas. Ainda assim, os movimentos de esquerda não perderam suas forças e impuseram o fim da ditadura militar em 1930.
Após uma frustrada tentativa de reconstituição da monarquia, a Espanha implantou uma reforma política que marcou o início da chamada Segunda República. No final de 1931, o país ganhou uma nova carta constitucional e elegeu Niceto Alcalá Zamora como novo presidente espanhol. Entre outras ações, o novo governo descentralizou o poder, instituiu um regime eleitoral com voto livre direto, fixou novos salários, iniciou uma reforma agrária e promoveu a separação entre Igreja e Estado.
Essas duas medidas em especial desagradaram profundamente os setores ligados aos grandes fazendeiros e os clérigos católicos. Ao mesmo tempo, os movimentos de esquerda julgavam as novas medidas extremamente limitadas e setores mais conservadores do meio militar desejavam o retorno da monarquia. No ano de 1932, uma tentativa de golpe foi ensaiada por alguns militares fiéis à realeza. Paralelamente, as esquerdas se manifestaram em novas greves e na organização de protestos públicos.
Ao longo da década de 1930, a delicada situação política ganhou novos contornos com a polarização política instituída por dois novos movimentos: a Falange Tradicionalista Espanhola, defensora de um regime totalitário no país; e a Frente Popular de Esquerda, que agrupava líderes socialistas, comunistas e anarquistas. Nas eleições de 1936, a Frente Popular ganhou uma expressiva quantidade de votos e conseguiu eleger o presidente Manuel Azaña.
Acuada com a derrota eleitoral, a direita espanhola pediu apoio político para a Alemanha nazista e ao governo fascista italiano. Enquanto isso, o novo governo tentou instituir seu projeto de reforma agrária e concedeu aumento salarial para as classes trabalhadoras. A tensão política arrebentou com o início de uma guerra civil, em julho de 1936. Os partidários da Falange logo conseguiram expressivas vitórias, graças à ação do general direitista Francisco Franco.
O triunfo dos falangistas foi garantido pelo massivo apoio militar cedido pelos alemães e italianos. Do outro lado, esquerdistas e democratas tentavam conter o triunfo de Francisco Franco. Mediante esse conflito, a Internacional Comunista convocou diversos de seus membros para lutarem em favor da esquerda espanhola, formando as Brigadas Internacionais. Além disso, a União Soviética também demonstrou seu apoio à Frente com o envio de tropas.
Entre os anos de 1936 e 1937, vários combates arrasaram a nação espanhola. Entre as mais violentas e famosas batalhas acontecidas nesse período, destacamos o bombardeio aéreo dirigido contra a cidade de Guernica, tema de uma das mais famosas obras do pintor Pablo Picasso. No ano de 1938, os franquistas já tinham controlado as principais cidades do território espanhol. Além disso, a União Soviética assinou um armistício com a Alemanha e retirou suas tropas da Espanha.
Em março de 1939, os exércitos do general Franco conseguiram tomar posse da cidade de Barcelona, após uma sangrenta batalha, onde 30 mil republicanos foram executados. A partir de então, Francisco Franco se tornou líder máximo da nação espanhola, deixando o cargo somente em 1975. De acordo com algumas estimativas, em seu breve período de duração, a Guerra Civil Espanhola foi responsável pela morte de mais de um milhão de pessoas.
Por Rainer Sousa, graduado em História.
Veja mais sobre "Guerra Civil Espanhola" em: https://brasilescola.uol.com.br/guerras/guerra-civil-espanhola.htm
O QUE FOI A GUERRA CIVIL ESPANHOLA
Situação política da Espanha na
primeira metade do século XX
Cláudio
Fernandes
A Guerra Civil Espanhola, que transcorreu entre 1936 e
1939, foi um conflito armado que envolveu facções políticas e militares na
Espanha durante o período da chamada Segunda República. Foi nessa guerra que,
pela primeira vez, potências totalitárias, com a Alemanha Nazista, de Hitler, e
a União Soviética, de Stalin, mostraram ao mundo suas inovações militares, ao
darem auxílio aos seus respectivos aliados ideológicos. Foi nesse contexto, por
exemplo, que a aviação alemã bombardeou a cidade de Guernica, como forma de
demonstração militar, fato que ocasionou a morte de milhares de civis.
Com os ventos da Revolução Bolchevique, ocorrida na Rússia, em 1917, a Espanha, assim como outras tantas nações europeias à época, teve em seu território a ascensão de muitos grupos de extrema-esquerda, tanto de orientação socialista mais ponderada quanto de orientações radicais, como anarquistas e comunistas revolucionários. O então regime político prevalecente na Espanha era a monarquia, sendo Afonso XIII o rei.
Entre os dias 13 e 15 de setembro de 1923, com apoio do rei, o aristocrata e militar general Miguel Primo de Rivera deu um golpe de Estado que instaurou uma ditadura de orientação nacionalista. Durante o governo de Rivera, a pressão por parte das organizações republicanas, sendo a maioria de esquerda, fez com que o rei Afonso demitisse o ditador em 29 de janeiro de 1930. A estratégia do rei era dar abertura para participação republicana, sem, contudo, promover transformações profundas. No entanto, a demissão do ditador deu mais intensidade às manifestações antimonárquicas.
Em fevereiro de 1931, um almirante chamado Juan
Bautista Aznar foi designado pelo rei a convocar novas eleições. Tais eleições
mostraram uma grande adesão popular às candidaturas republicanas. No dia 14 de
abril, foi proclamada na Espanha a Segunda República, e o rei teve que deixar a
condição de chefe de Estado e sair do país.
O primeiro presidente eleito foi Niceto Alcála-Zamora,
que governou até 1936. Um dos principais problemas da República era a tensão
entre as facções dos partidos políticos. Havia, por um lado, os monarquistas
restauradores, os integrantes da Falange Española e a Confederación Española de
Derechas Autónomas (Ceda); por outro, os partidos da Frente Popular, os Aliados
da Frente Popular (anarcossindicalistas e anarquistas) e os bascos, que lutavam
pela emancipação política.
Essas forças contrárias chocaram-se logo no início do
segundo governo republicano, o de Manuel Azaña Díaz, que assumiu a presidência
em 1936, tendo como primeiro-ministro Largo Caballero, político socialista
renomado. Contra a Frente Popular e a gestão de Largo Caballero, insurgiu-se o
Movimento Nacional, que congregava as forças da direita. Liderados pelo general
Francisco Franco, os nacionalistas deram um golpe contra a Segunda República.
Esse foi o estopim para o desencadeamento da guerra.
Povo espanhol contra o fascismo, de leste a oeste e de norte a sul |
Desenvolvimento
da guerra
Apesar de ter havido uma polarização nítida no
desenvolvimento do conflito, a Guerra Civil Espanhola não pode ser resumida
pura e simplesmente no embate entre direita e esquerda na Espanha, pois cada um
desses campos era segmentado e bastante complexo. Como diz o historiador Antony
Beevor:
Surgiram
dois outros eixos de conflito: o centralismo estatal contra a independência
regional e o autoritarismo contra a liberdade do indivíduo. As forças
nacionalistas da direita eram muito mais coesas, porque, com poucas exceções,
combinavam três extremos coesivos. Eram ao mesmo tempo de direita, centralistas
e autoritárias. A República, por outro lado, constituía um caldeirão de
incompatibilidades e suspeitas mútuas, com centralistas e autoritários,
principalmente comunistas, enfrentando a oposição de regionalistas e
libertários. [1]
Além do combate regular travado entre militares com
ideologias opostas, houve na Guerra Civil Espanhola a chamada guerra irregular,
isto é, a tática de guerrilha levada a cabo por camponeses, intelectuais e operários,
que se valiam de emboscadas, infiltrações, armadilhas etc. Além disso, a
crueldade também foi um fator onipresente na guerra. Comunistas e anarquistas
aproveitaram a ambiência da guerra para destroçar tudo o que fazia referência à
monarquia e à tradição católica. Conta Antony Beevor que “[…] de uma comunidade de
cerca de 115 mil indivíduos, 13 bispos, 4.184 padres, 2.365 integrantes de
outras ordens e 283 freiras foram mortos, a grande maioria no verão de 1936.”
[2]
As mortes eram precedidas de estupros, no caso das
freiras, e tortura, no caso de padres, bispos etc. Além disso, era frequente a
profanação dos símbolos sagrados do catolicismo. Continua Beevor:
Alguns
morreram queimados em suas igrejas e há relatos de castração e evisceramento e
de que alguns foram enterrados vivos depois de obrigados a cavar o próprio
túmulo. Muito mais igrejas foram incendiadas e vandalizadas. Sobrepelizes foram
usadas em touradas de mentirinha nas ruas. Um republicano que se vestiu de
brincadeira com os trajes cerimoniais do arcebispo de Toledo foi fuzilado por
um miliciano bêbado, que o confundiu com o primaz. O vinho da comunhão foi
bebido nos cálices sagrados, quebraram-se vitrais e milicianos se barbearam nas
pias batismais. [3]
Do lado nacionalista também houve barbárie, comunistas,
protestantes e até mesmo sacerdotes de regiões rebeladas, como o país basco,
foram eliminados. Combates, massacres e destruição pairavam sobre as principais
cidades espanholas.
Cortejo de vencidos pelas forças do exército e das falanges, o fim
Internacionalização
da guerra
Durante a guerra, houve a participação direta das
forças militares do nazismo, que apoiaram Franco, e do comunismo internacional,
principalmente o soviético, que apoiou a Frente Popular. Muitos escritores de
esquerda, como George Orwell, Ernest Hemingway e John dos Passos lutaram ao
lado dos comunistas espanhóis.
Essa internacionalização da guerra tornou a Espanha
uma espécie de “centro de testes” de armamentos novos. A cidade de Guernica,
por exemplo, foi alvo do bombardeio de uma sofisticada frota de aviões da
aeronáutica nazista da época – esse episódio ficou marcado pela pintura feita
por Pablo Picasso.
A guerra teve fim em 1939, às vésperas da Segunda
Guerra Mundial, com a vitória dos nacionalistas. Francisco Franco, aliado ao
fascismo e ao nazismo, permaneceu no poder durante todo o período da guerra e
também depois, sendo chefe de Estado até 1975, ano de sua morte.
NOTAS
[1] BEEVOR, Antony. A Batalha pela Espanha – A Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 25-26.
[2] Ibid. p. 137.
[3] Ibid. p. 137-138.
Escrito
por: Cláudio Fernandes. Escritor oficial Brasil Escola
FERNANDES,
Cláudio. "Guerra Civil
Espanhola"; Brasil Escola.
Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/historiag/guerra-civil-espanhola.htm. Acesso em
12 de julho de 2024."
Veja mais sobre Guerra Civil Espanhola, em:
https://brasilescola.uol.com.br/historiag/guerra-civil-espanhola.htm
Francisco Franco comemora o triunfo em Barcelona (1939)
GUERNICA
Perdoar, sim; esquecer, jamais
Florisvaldo Mattos
Por duas vezes, prostrei-me diante de Guernica, de Pablo Picasso. A primeira, em 1978, em Nova York, então a obra dominava a entrada d MoMA (Museu de Arte Moderna), onde permaneceria de 1942 a 1981, por expressa vontade do pintor; a segunda, em 1994, em Madrid, no Museu Rainha Sofia, para onde se transferira depois de breve período num anexo do Museu do Prado, agora ocupando quase inteiramente ampla parede, cercada de vidros blindados e severo aparato de segurança.
Em ambas as ocasiões, entre extasiado e tenso, pude sentir o halo de admiração, reverência e pasmo que envolvia o semblante de cada um dos que, mirando-a, se dispunham em longas filas, reproduzindo-se talvez, num e noutro momento, sensação semelhante à de que se tomaram os visitantes da grande exposição internacional de Paris, ao se deparar com a vasta pintura mural, medindo 3,51m x 7,52m, que ornava a entrada do pavilhão da Espanha.
Uns, segundo relatos da época, sem conter as lágrimas, sacudidos pelos ecos da ignominiosa luta fratricida que se travava na Espanha; outros, esses jovens pintores, impactados com desfile da violência por toda a tela, e talvez pela premonição do que viria logo a seguir, em
Por isso mesmo, Guernica comporta duas narrativas, nas quais a guerra sobressai como palco de carnificina e símbolo de morte e horror: a do bombardeio cruel e covarde de uma pacata cidade basca situada no norte da Espanha, em frente ao golfo de Biscaia, pelos aviões da famosa Legião Condor, a mando de Hitler, e a do célebre mural pintado por um artista singular, na qual, recordando a concepção de Homero, na Ilíada, se reafirma que a beleza emerge do sofrimento e do desastre.
Sabe-se dede muito que guerra, como tema, nunca deixou de atormentar e invadir o campo das artes plásticas. Guerreiros e cenas de batalhas sempre instigaram o pensamento de artistas e suscitaram formas visuais e plásticas que atraem e comovem plateias. Assim é que uma imponente figuração de cavaleiros em reluzentes montarias, ou empunhando armas, em posturas várias, massacres, fuzilamentos, cenas de martírio explícito, entre outros condimentos, povoam salas de museus, vestíbulos e praças públicas em muitos centros civilizados do planeta, a mostrar que vencedores e vencidos, heróis e covardes jamais deixaram de ser em qualquer época protagonistas da criação plástica, expressa em traço, cor e volume.
Para não ir muito longe, sobrepassando o clássico de Diego Velázquez (1599-1660), A Rendição de Breda 1634-5), celebrizado com o epíteto de Las Lanzas (“As Lanças”), que no Museu do Prado, em Madri, documenta o epílogo de um conflito no qual um gesto de galhardia espanhola se sobrepõe ao furor da beligerância, coube a outro grande espanhol, já agora em clave trágica, Goya, dedicar toda uma fase de sua obra à dilaceração e dor que foram para o povo espanhol os desastres decorrentes da invasão do país pelas tropas napoleônicas, no alvorecer do século XIX. No mesmo período, outros pintores também manifestaram interesse por temas guerreiros, como Jacques-Louis David (1748-1825), o pintor de Napoleão, e Eugène Delacroix (1798-1863), papa do romantismo. Na modernidade, praticamente inaugurada com a erupção de uma guerra, já agora mundial, a de 1914-1918, nascida da ambição das potências europeias da época, que disputavam o domínio do mundo (Inglaterra, França e Alemanha), os temas bélicos e seus desastrosos efeitos sempre estiveram presentes na consciência dos artistas, a começar pelos impressionistas alemães (Otto Dix, George Grosz, Max Beckmann e outros) que, sofredores no espírito e na carne, lançaram sobre variados suportes toda uma escatologia de horrores. Nos dias de um novo século, ante o espetáculo planetário da dissolução de valores, com o terror instalado, atomizado e quase familiarizado no cotidiano de cidades, povos e países, de que são tristes exemplos os ataques do 11 de Setembro de 2001, nos EUA, a invasão e ocupação do Iraque, em 2003, e as explosões terroristas que se têm sucedido em cidades do Ocidente (Madrid, Londres, Paris) e em outros tantos pontos do planeta, com mortes, mutilações e dor generalizada, pode-se imaginar o que significaram a trágica destruição da pequena cidade basca e a sua memória pelas mãos de um artista genial.
Guernica, mural de Picasso, exposto em evento (Londres, 1937) |
Quase às 5 da tarde em ponto
Talvez como o eco fatal de um verso de Federico García Lorca
(“Eram cinco da tarde em ponto” - “A captura e a morte”, em Pranto por Ignácio Sánchez Mejías,
1935), a tragédia de Guernica começou exatamente às 16:45 horas de uma
segunda-feira, 26 de abril de 1937, dia de feira na cidade, a cujas ruas estreitas
nesse dia afluíam camponeses dos vales vizinhos com seus produtos. Assim o
inglês Hugh Lee Thomas narra cruamente o momento fatídico:
“Já houvera antes outras incursões aéreas na região, mas
Guernica não tinha sido bombardeada. Às vinte para as cinco, começaram a surgir
os Heinkels 111, primeiro bombardeando a cidade, e em seguida metralhando as
ruas. Os Heinkels foram seguidos pelos antigos espectros da Guerra da Espanha,
os Junkers 52. O povo começou a correr pela cidade. Foi também metralhado.
Bombas incendiárias, pesando até
Repórter de guerra na Espanha conflagrada, outro inglês,
George L. Steer, enviou um relato ao Times,
de Londres, no qual mostrava claramente a estratégia do ataque, de semear a carnificina
e o pânico entre a população civil, com essa descrição: “Quando entrei em
Guernica, após meia noite, as casas estavam caindo de todos os lados, e era
totalmente impossível, até para bombeiros, entrar no centro da cidade. Os
hospitais Josefinas e Convento de Santa Clara eram montanhas luminosas de
brasas, e as igrejas, exceto a de Santa Maria, foram destruídas; as poucas
casas que ainda estavam de pé estavam condenadas. Quando voltei a Guernica
naquela tarde, a maior parte da cidade ainda estava queimando, e novos
incêndios tinham se iniciado. Cerca de 30 mortos estavam jogados no hospital
arruinado”.
No
dia 27 de abril de 1937, o circunspecto Times,
de Londres, frio e distante, transmitia a seus leitores o seguinte telegrama:
“Ontem à tarde, Guernica, a cidade
mais antiga das províncias bascas, foi totalmente destruída por um ataque aéreo
dos rebeldes. O bombardeio da cidade, situada longe da frente de batalha e sem
defesa aérea, durou exatamente três quartos de hora. Durante esse tempo, uma
numerosa esquadrilha de aviões de origem alemã - bombardeiros Junkers e
Heinkel, além de caças Heinkel - despejou de forma ininterrupta bombas de até
500 quilos. Ao mesmo tempo, os caças-bombardeiros, voando a baixa altura,
metralhavam os habitantes que saíam em fuga para fora da cidade. Em poucos
momentos, Guernica inteira ficou coberta de chamas”.
Foi
este episódio - objeto de posteriores explicações (cínicas) da parte de
vencedores da guerra civil e relatos (sombrios) de heróis dela saídos ou apenas
condoídas testemunhas - que Picasso transformou no acontecimento pictórico do
século XX, narrando não a sua atualidade histórica nem o fato concreto da
guerra, para dar validade a sua criação, mas, principalmente, como assinala o
alemão Ingo F. Walther, “a eternidade do sofrimento”, reveladora do sentimento
de consternação que se apossara do artista, afetando sua psiquê.
Triunfos da dor e do medo, Walther
recorda lancinantes palavras com que Picasso concluiria um poema em que pela
primeira vez fazia referência à luta entre republicanos e fascistas (Sonho e mentira de Franco): “Gritos de
crianças, gritos de mulheres, gritos de pássaros, gritos de flores, gritos de
árvores e de pedras, gritos de ladrilhos, de móveis, de camas, de cadeiras, de
cortinas, de caçarolas, de gatos e de papéis, gritos de perfumes que se
arranham, gritos de fumaça, dos gritos que cozinham em baldes e da chuva de
pássaros que inunda o mar que rói o osso e rebenta os dentes mordendo um lenço
de algodão”.
Essa escrita de elocução drástica
indica bem qual iria ser o resultado de uma solicitação que lhe fizera o
governo republicano em janeiro de 1937, encomendando-lhe um quadro para figurar
no pavilhão espanhol da Exposição Universal de Paris, sem que se lhe fosse
imposto qualquer tema, apenas sugerindo-lhe uma obra vigorosa, de dimensões
monumentais. Embora avesso a trabalhar sob encomenda, Picasso aceitou o convite
que lhe viera por intermédio do poeta José Bergamin, então adido cultural da
Embaixada da Espanha, na França, que com ele acertaria um pagamento simbólico
de 150 mil francos franceses pela obra.
Fonte de dúvidas e polêmica
Não obstante tantos dados rastreáveis de informação disponívelrespondente de jornal, esse mesmo ponto dá origem a infindável polêmica e diferentes versões. Na mais plausível destas, escrevendo na Folha de S. Paulo, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony recobrou uma velha cogitação - não abonada por fontes autorizadas, diga-se -, que situava a origem do quadro em momento anterior ao da encomenda republicana, o de pintura elaborada em homenagem póstuma que Picasso prestara a um toureiro que idolatrava, a que dera o título de A morte do toureiro Joselito. Por essa versão, quando a encomenda republicana lhe chegou, Picasso teria ressuscitado a obra anterior com o título de Guernica, após alguns retoques. Cony tacha a versão dominante de pura mistificação, com laivos de propaganda comunista que à época era de nervoso curso.
Ante
a corrosiva dúvida de que Picasso, para homenagear a memória de um toureiro, se
decidisse por pintar um painel com tais dimensões, o que tem gerado dificuldades
para sua conservação, em verdade, Cony apenas repetia antiga versão, atribuída
a correligionários do ditador Francisco Franco, que chegara mesmo a negar
tivesse acontecido o bombardeio de Guernica. Além do mais, quanto a certos
signos presentes, como o touro, o cavalo e os gestos de assombro, perceptíveis
nas tradicionais corridas de touros, há de se ter em mente que a obra claramente
remonta a símbolos imorredouros da própria cultura espanhola. Não bastasse tal evidência,
palavras do próprio pintor bastariam para esclarecer o simbolismo do célebre
mural. Numa entrevista concedida ao jornalista Jerome Seckler - “Picasso
Explains”-, publicada em New Masses
(Nova York), em 13 de março de 1945, Picasso declara que “o touro representa a
brutalidade; o cavalo, o povo”. “Sim, ali usei o simbolismo”, confessa o
artista e, para colocar um ponto final na curiosidade do jornalista, esclarece:
“O touro não é o fascismo, mas a brutalidade e as trevas”.
É mais fácil atribuir-se a origem da
versão conflitante ao pouco tempo que Picasso consumiu em pintar Guernica (seis semanas), quando
atravessava um momento de baixa inspiração por motivos pessoais, embora já
houvesse confessado a seu marchand e amigo Daniel-Henri Kahnweiler o desejo de
pintar uma tela de grandes dimensões, que expressasse o próprio século e não
mais apenas o que envolvesse o seu íntimo. Quando sobreveio o bombardeio de
Guernica, ele cumpre esse propósito, sendo o motor de sua decisão, segundo
narrativas com base em fontes primárias, uma foto publicada no jornal Ce Soir, em seu número de 1º de maio de
1937, acompanhada de informação sobre o número de mortos e feridos na tragédia (respectivamente
1.654 e 889), a maior parte velhos, mulheres e crianças. Consta que, imediatamente,
Picasso teria preparado mais de seis dezenas entre esboços e desenhos, entre os
quais podiam ser vistos uma mãe fugindo com o filho morto nos braços, um cavalo
ferido, uma cabeça pendida sobre as ruínas de uma casa em chamas e goelas
escancaradas.
Guernica começou a ser exposto no pavilhão espanhol da
Exposição Universal de Paris no começo de junho de 1937, um mês depois de sua
abertura, despertando curiosidade e rebuliço, mas quando, de volta dos Estados
Unidos, aonde fora à cata de fundos para ajuda dos republicanos espanhóis,
André Malraux visitou Picasso em seu ateliê, deparou-se com essa multidão de
desenhos alinhada ao pé da enorme tela ainda virgem. Ao visitante, denotando
enfado, Picasso confidencia seu desejo de que aqueles desenhos pudessem por si
mesmos subir para a tela - “como baratas”, um nítido gracejo.
Coube a Dora Maar, então mulher de
Picasso, o empenho e o cuidado de documentar fotograficamente todas as etapas
da obra, todos os desenhos e esboços, iniciativa que legaria um enigma à
história da arte: enquanto a maior parte dos estudos era em cores, a obra
definitiva resultaria em preto, branco e cinza, circunstância que permitirá ao
autor, quando indagado a respeito de tal divergência, responder fleumático que
“não tivera tempo para terminar” a obra, facultando doravante a qualquer um o
direito de encarar Guernica como obra inacabada, o que redundaria em seu único verniz
anedótico. Não obstante, existe explicação crível. Segundo Jean-Louis Ferrier,
a ausência de cor se deveu a uma opinião de Paul Éluard, que acompanhara a
execução da obra dia-a-dia, e convenceu Picasso de que, como estava, refletia
mais efetivamente o universo a que se reportava. O competente Giulio Carlo Argan
dá a sua interpretação: “Em Guernica
não há cor, apenas negro, branco e cinza. Está excluído que Picasso tenha
utilizado o monocromatismo para conferir uma tonalidade sombria e trágica ao
quadro: tudo é claro, as linhas traçam com precisão os planos destinados a se
preencherem de cor, mas a cor não está ali, foi
embora”.
Persiste a convicção de que Picasso teria preferido
expressar pictoricamente na obra definitiva o estado de espírito que na ocasião
lhe induzia o realismo cru das fotografias e dos relatos sob grossos títulos
que se publicavam nos jornais parisienses, narrando o infortúnio de Guernica.
Abstraiu as bombas e os aviões da famigerada Legião Condor de Hitler, atendo-se
essencialmente ao simbolismo do trágico, através de suas sugestões dramáticas,
como a de mulheres contorcendo-se em dores agudas sob a luminosidade de um sol
elétrico; um cavalo com o flanco trespassado por uma lança, no centro da
composição, simbolizando a vítima inocente da tragédia; o touro das corridas
cuja crueldade sempre fascinou o artista; citações de figuras da história da
arte e dele próprio, como o guerreiro
prostrado à esquerda do quadro; traços de sua própria criatividade, evocando
formas cubistas, como a composição triangular e a função de deslocamento de
seres e coisas do passado para o presente vivido, sob o influxo predominante da
figura humana.
Até mesmo a opção por uma cor denotativa de sofrimento
e violência, através de uma grande lágrima vermelha no centro, respingando
sobre os rostos, que estaria nos estudos, teria sido abandonada por inútil, na convicção
de Picasso. Fiel à encomenda original do governo republicano, permaneceu na
tela a alusão ao piso do pavilhão espanhol: uma extensão recoberta por um
quadriculado de lajotas. A guerra está lá mais do que presente, ornada pelas
armas da técnica, no simbolismo escaldante da cor branca, que parece ferir os
olhos e ferver a mente, em superfícies cobertas de alusões a signos impressos,
por entre chamas. Talvez tenha sido a presença do touro e do cavalo a origem da
versão, logicamente eivada de ilação ideológica, de que Guernica foi o aproveitamento de uma tela preexistente sobre a
trágica morte de um toureiro.
Muitas das formas contidas nos
estudos de Guernica, que figuram na
versão definitiva, perdurariam em obras criadas por Picasso, ainda em 1937,
como duas telas sob título igual, Mulher
chorando, em que usa francamente traços da “mulher com filho morto”, em
cores, mas por demais alusivos à grande obra, na expressão do drama da dor, e
também em obras subsequentes, alinhadas a atitudes antifascistas, como o óleo
sobre tela Menina com barco (1938),
um apelo ao tema da ingenuidade e da alegria inocente contra a dor e o
desespero, antídoto para uma época de horrores, e Taberna com crâneo de boi (1942), já agora de forma indubitavelmente
explícita, aludindo às restrições que a guerra impunha à mesa (racionamento de
víveres) e a um tempo de desesperança, e ainda em O ossuário, tela de 1944/45. Como se vê, Guernica estava fadado a frutificar, refletindo história.
A propósito das distorções figurativas predominantes na obra, Jean-Louis Ferrier reporta-se à questão do quanto a violência se fixou na mente de Picasso, depois de uma visita ao Museu de Trocadéro, no verão de 1907, quando descobriu a arte negra, reavivando no íntimo sensações de horror e fascinação, que lhe incutia o que à época se rotulava de fétiches, e recorda o que o pintor confidenciara certo dia a André Malraux sobre tal experiência: “Eu percebi: eu também, eu sou contra tudo”. Estava ali o que para ele era desconhecido, acrescentando: “Tudo, não os detalhes: as mulheres, as crianças, os animais, o tabaco, jogar, porém, o todo”; para concluir: “Eu entendi porque eu era pintor”. Esse episódio e esse confissão despertam em Ferrier uma certeza, ao referir-se à morte de Picasso em 8 de abril de 1973, aos 92 anos: “Picasso não deixará de repeti-lo doravante; desde a guerra civil espanhola, ele definirá sua pintura como uma arma de defesa e de ataque contra o inimigo ou quando, mais tarde, dirá que cada um de seus quadros é um conjunto de destruições. Picasso corta, distorce, quebra, dilacera. Durante três quartos de século ele soprou sobre a arte um vento de tempestade”. Não há dúvida de que, livrando-se das imposições ocasionais de conteúdo e objeto, Guernica subsiste como reflexo contundente de um grave e sombrio momento vivido então pela civilização ocidental, na primeira metade do século XX. Parece aí configurar-se frase pronunciada por Picasso: “O que é terrível é que se seja em si mesmo a própria águia de Prometeu, a um só tempo aquele que devora e aquele que é devorado”.
Pessoas corriam pelas ruas, à cata do que pudessem ainda achar
A tragédia de Guernica desencadeou clamor mundial, não apenas pela tragédia em si, mas pelo que ali se prenunciava. Começando a sua escalada, Hitler, justos oito meses antes, entre os acordes de uma ópera wagneriana, anunciara seu apoio ao general espanhol Francisco Franco, que liderava a guerra civil para derrubada do governo democrático da República Espanhola, o que culminaria com a vitória das falanges franquistas, em 18 de julho de 1939, vésperas do início da Segunda Guerra mundial, com a invasão nazista da Polônia. E resolveu fazer de Guernica palco para testar seu poderio bélico: a eficiência da força aérea e o efeito mortífero de bombas e granadas. Mandou uma carta ao caudilho e o resultado é o que se viu e a história registra: a tragédia que sobreviria com a grande guerra de 1939-1945.
Livrando-se de Franco, cuja
ditadura durou 36 anos (1939-1975), a Espanha curou suas feridas e progrediu social
e economicamente. E, da dissidência basca, com ataques empreendidos pelo ETA
(basco), os habitantes de Guernica seguiram o mesmo caminho, resolvendo
transformar num lugar de paz e conciliador o que ficou para a humanidade como
um símbolo do militarismo fascista no mundo. Montaram um museu no centro da
cidade, local maior da tragédia, onde se exibe a memória dolorosa do bombardeio,
tais como fragmentos de bombas e fotografias da destruição, e filmes
documentários de variada criação e procedência.
Quem a visita relata também a
manutenção de um centro de pesquisa sobre a paz, com o nome de Guernica
Relembrada (Gernika Gogoratuz, em
basco), que produziu um filme com o título de O bombardeio de Guernica: a marca dos homens. Possui também o museu
cópias de esboços do painel de Picasso (provavelmente fotos de Dora Maar), e da
própria obra. E, neste clima de sobranceiro perdão, uma das paredes do Museu de
Guernica exibe emoldurada em um quadro o que mentes apressadas poderiam tomar
como tardo gesto ou suprema ironia: uma carta do presidente da Alemanha, Roman
Herzog, datada de 27/3/97, a propósito dos 60 anos da tragédia, em que reconhece
o ataque da Legião Condor como “injustificável ato de bombardeio aéreo” e,
solidário e compadecido, acrescenta: “As vítimas desta terrível atrocidade
sofreram angústia humana. Nós repudiamos o bombardeio pelos aviadores alemães e
o horror que ele causou. Agora nós pedimos reconciliação e paz entre nossos
povos”.
Indo de encontro a qualquer juízo
temerário, a carta de Herzog refletia uma lição de humanidade, que vem de
Homero e da qual derivaram ideias de máxima importância na história posterior –
para a Europa, daí para o mundo -, como as da anistia política e do armistício,
e por isso, também, do caminho da paz entre nações beligerantes. Foi quando o
gênio grego concebeu no último livro da Ilíada
o encontro de Príamo, rei de Tróia, com Aquiles, matador de Heitor, seu
filho, num dos episódios mais cruéis da epopeia. Desfazendo-se dos brios de sua
majestade e da idade, o ancião chega sozinho ao acampamento do inimigo; vem
resgatar o corpo mutilado de Heitor, em presença do homem que o matou. Aquiles
o recebe, manda-o sentar numa poltrona, ouve-o, aquiesce ao pedido e, mesmo
ante relutância, convida Príamo para jantar. Diz Homero:
Depois de satisfeita a
vontade de comer, o dardânida Príamo, maravilhado, fita Aquiles: aquele porte,
aquele aspecto, dizia-se seu rosto refletir o dos deuses. Mas Aquiles também
admira Príamo, contemplando seu rosto bondoso e ouvindo as palavras do
Dardânida”.
Príamo levou o corpo de Heitor e a guerra prosseguiu. Jasper
Griffin define o encontro entre os dois personagens dessa guerra mítica como “a
oportunidade de mostrar grande cortesia e reconhecer-se reciprocamente o
esplendor e a fragilidade que coexistem na natureza dos homens”. Não deve
pensar diferente hoje o povo de Guernica, marcado pelo horror daquele episódio
trágico, mesmo tendo que calar sobre ele durante as quase quatro décadas da
ditadura do general Franco. No entanto, há um fulgor de dignidade que permeia
este espírito altaneiro, próprio do povo espanhol. No entanto, visitando a
cidade em 2000, o americano Herbert Mitgang, em artigo para o The New York Times, anotava como resumo
de suas observações e contatos o sentimento que sobrevive naqueles corações
resignados: “Perdoar, sim; esquecer, jamais”.
A própria cidade de Guernica tinha
consciência disto, pois, a propósito da criação do famoso painel, 30 artistas
se reuniram em abril de 2007, em San Sebastian (cidade basca) para homenagear o
que os bascos consideram o símbolo universal dos horrores da guerra: no pátio
externo de uma galeria de arte, foi instalado um painel branco, com as mesmas
dimensões da obra de Picasso, para que interviessem sobre a sua superfície, com
base em fragmentos do original distribuídos a cada um deles. Tinha-se o
propósito de que o mural, refletindo a interpretação pessoal que cada um dos
pintores atribuísse a Guernica, como expressão aglutinadora de
diferentes tendências, estivesse à disposição da população e dos visitantes
durante as rememorações da tragédia bélica.
Arte maior e manifesto político
A zombeteira frase atribuída a Pablo Picasso – “Eu não procuro,
eu acho” -, se verdadeira, encontra total comprovação nesta sua célebre pintura
mural, gerada a partir de encomenda do então governo republicano espanhol,
intermedida pelo poeta José Bergamin. Picasso aceitou a encomenda, já que desde
o ano anterior tomara posição política de colaborar com a propaganda
republicana
Eis como tal decisão foi definida por uma das maiores autoridades
em história da arte, o italiano Giulio Carlo Argan:
“Assim nasce, em poucas semanas, Guernica, que se pode dizer o único quadro histórico de nosso século. Ele o é não por representar um fato histórico, e sim por ser um fato histórico. É a primeira intervenção resoluta da cultura na luta política; à reação, que se exprime destruindo, a cultura democrática responde pelo punho de Picasso, criando uma obra-prima”.
Em seguida, Argan chega a fazer
uma inusitada comparação. Considerando a problemática histórico-política do
século 20 à histórico-religiosa do século 16, iguala o significado de Guernica de Picasso ao do Juízo Final de Michelangelo Buonarroti
(1475-1564) – ambos intervieram “com a autoridade do gênio” no problema mais
candente de suas respectivas épocas. Nos dias de Guernica, que problema europeu era esse? Resumia-se a duas frentes
preocupantes: a da ambiciosa ameaça do rearmamento alemão, que se revelara na
ousadia da escolha de Guernica para campo de testes, arrasando-a, e a ascensão
do fascismo na Itália, manifestada na ocupação da Etiópia por Mussolini, em
1935, durando até 1941, duas agressões que prenunciavam o fim da democracia na
Europa, o travamento do avanço revolucionário da luta operária e, para
culminar, a conflagração mundial próxima. O próprio Picasso prescrevia: “A
pintura não foi feita para enfeitar paredes. A pintura é uma arma, é a defesa
contra o inimigo”.
Esse o estado e o ânimo geral da Europa, onde Paris era só
efervescência. Estava nos estertores o governo da Frente Popular, liderado por
Léon Blum, afetando duramente o futuro do que então se rotulava de “causa
comum” e, frente à ameaça do nazi-fascismo, ganhavam consistência as
movimentações para oferecer apoio à luta dos republicanos contra os
nacionalistas na Espanha, onde a República definhava, e se empreendiam ações
para acolher os refugiados espanhóis, na sua maioria intelectuais. Dentre
outros, integravam esse comitê Picasso, Bergamin, Jean Cassou, Louis Aragon,
Tristan Tzará e Paul Éluard, que em apenas um mês socorreram umas 500 pessoas,
entre os quais os poetas Antonio Machado e Rafael Alberti. André Malraux, outro
solidário que lutara na Espanha em guerra, regressava dos Estados Unidos aonde
fora pronunciar conferências no intuito de arrecadar fundos em cm socorro dos
republicanos espanhóis.
Um dado indiscutível,
à conta da emoção de ver a obra: Guernica
tem um significado especial na formação do imaginário de todos os que acreditaram
nas utopias democráticas de um pós-guerra vicejante e pujante de expectativas e
espírito progressista, e que, não por culpa deles, se esfumaram. Não há quem,
em tais vicissitudes, não tenha entrevisto um raio de luz naquele caos de
signos reversos e controversos que, secretamente, apontava para uma nova ordem
na caudal do humanismo libertário.
Remontando a essas lucubrações, imagine-se o
sentimento de que se tomaram os admiradores de Guernica, em 2007, após a leitura de notícia oriunda de Paris, a
propósito dos setenta anos de sua criação, que anunciava em letras fortes a
agonia do célebre mural e sua previsível morte, pela ocorrência de danos na
estrutura e por deterioração do material pictórico que compõe sua superfície. Guernica está condenada, advertia-se, então.
Furos, rasgos, acúmulo excessivo de resina, rachaduras, danos decorrentes de
restaurações inadequadas, rugas, perdas de cor, sequelas de numerosos
transportes do quadro para exposição em lugares tão distantes como Estocolmo,
na Suécia, e São Paulo, no Brasil (foram 16 viagens entre 1937 e 1992, depois
terminantemente proibidas pelas autoridades espanholas) - são os vilões que sobressaíam
num relatório técnico autorizado, atestando o precário estado da obra,
atualmente no Museu Nacional Rainha Sofia, em Madri, depois de passar 42 anos
(1939-1981) sob a guarda do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), por
vontade expressa de Picasso, que acreditava estar sua obra mais segura nos
Estados Unidos do que em outra parte. Soava irônico que fossem justamente
restaurações, cujo objetivo é preservar a integridade da obra de arte, e, mais
ainda, a promovida pelo MoMA, sediado num país tido como o sacrário das
tecnologias de ponta, o fator responsável pelo estado de irreversível
precariedade de Guernica. Mas era o
que acusava tal relatório.
Para agravar a situação, há ainda o
fato de terem sido usados na confecção da obra materiais não-convencionais de
pintura que se tornaram uma tendência da arte moderna, em face da maior
disponibilidade de produtos físicos e químicos originários de aperfeiçoamentos
industriais, sempre decantados pela publicidade, mas, como se vê, pouco
confiáveis, desde que sujeitos à fatalidade do obsoletismo, uma das primícias
do capitalismo industrial. Segundo opinião abalizada, Picasso optou pelo seu
uso por dois motivos básicos: as dimensões do painel e a concepção de que se
apossara para criá-lo. A exiguidade do tempo para atender à encomenda provavelmente
não lhe permitiu optar por outra técnica pictórica, como o óleo, mais duradouro
e mais apropriado a pinceladas curtas.
Desde a sua primeira exposição, a obra tem sido
celebrada por escritores e poetas. Entre estes, não poderia estar ausente Paul
Éluard, que lhe dedicou um poema (La
victoire de Guernica), no qual preferiu glorificar a gente do povo cujo sofrimento
iria servir de exemplo à humanidade – “Homens
reais para quem o desespero, / alimenta o fogo devorador da esperança” e, juntos,
irão abrir “a última brotação do futuro”.
Para Rafael Alberti, compatriota de Pablo Picasso, no grande mural a cor canta
com outra ortografia “e a mão dispara uma nova escritura”: como “uma onda e
outra desolada”, Guernica significa “dor em vermelho vivo”, onde a arte “começa
a ser um jogo explosivo”. Mas,
aludindo a seu amigo e compatriota, proclamou sua glória em outros versos, que
muitos admiradores prostrados diante do que resiste em Guernica, nos dias de hoje, poderão murmurar, entre faíscas de
memória:
Dios creó el mundo -dicen-
y en el sétimo día,
quando estaba tranquilo descansando,
se sobresaltó y dijo:
He olvidado una cosa:
los ojos y la mano de Picasso.*
Devo a Guernica de Pablo Picasso e às duas ocasiões em que me prostrei diante dessa monumental obra a cogitação e a redação de um poema, a que se somava a distante impressão que me causara a leitura da história da Guerra Civil espanhola escrita por Hugh Lee Thomas, em tradução dos baianos Hélio Pólvora e Moniz Sodré, 1961, que me aventurei a escrever, constante de meu livro A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996), sob o título de “Revisitando Guernica - Via Picasso, Madri, 1994”, e que agora me atrevo a transcrever, ao encerrar esse texto.
Bombas arrasam Guernica |
FONTES
Livros:
ARGAN. Giulio Carlo – Arte
Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FERRIER,
Jean-Louis – L´Aventure de l´Art au XXe
siècle. Paris: Chêne-Hachette, 1988.
GRIFFIN, Jasper – Homero.
Madri: Alianza Editorial, 1980.
LOTTMAN,
Herbert L. –
MATTOS, Florisvaldo – Estação
de Prosa & Diversos. Salvador: Memorial das Letras, 1997.
THOMAS, Hugh Lee– A
Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
dois volumes. Tradução: Hélio Pólvora e Moniz Sodré, 1964.
ALBERTI,
Rafael - Los 8 nombres de Picasso y no digo más que lo que no
digo.
Editorial Kairós, Barcelona, 1970.
Na internet:
CRUZ, José Raimundo Gomes da – Guernica: perdoar, mas nunca esquecer. S/D.
DIEHL, Jörg – Destruição
de Guernica por Hitler – Praticando Blitzkrieg no País Basco. Berlim: Der Spiegel, 27/04/2007.
HIDALGO, J. C. – Quando
um quadro não é só arte. S/D.
PALACIOS, Ariel – Disponível in https://internacional.estadao.com.br/blogs/ariel-palacios/vencereis-mas-nao-convencereis-unamuno-e-a-razao-contra-a-forca/
*Deus criou o mundo - dizem –
e no sétimo
dia,
quando estava tranquilo descansando,
teve um sobressalto e disse:
Esqueci-me de uma coisa:
os olhos e a mão de Picasso.”
(Tradução
livre por FM).
Florisvaldo Mattos. Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais. Salvador: ALBA Cultural, 2022.
Caças destruíram Guernica, deixando 1.654 mortos e
A CALIGRAFIA DO SOLUÇO
(Rastro sonâmbulo às cinco da tarde em ponto)
I
Com um facho de auroras no coração
corro me debruço nas tardes levando
uma flor azul no peito
Um pássaro na mão.
Seguramente não sei em que labirinto
de pranto hereditário ou cemitério de gelo
residem as forças que me animam
E este caminho
não é cor-de-rosa, nem de ouro.
É um caminho.
II
Em 1937 eu tinha cinco anos
Em Espanha
meus irmãos humanos vestidos de sangue
conduziam uma lâmpada
Uma dor profunda.
Escancaradas as bocas apregoavam
aos que tinham no peito o punhal dos momentos
que ao longo dos minutos e dos dias
dos hospitais dos montes das trincheiras
um cheiro grosso de sombra e horror subia
abarcando ruas sangrentas rios templos
Onde a noite
duramente plantava seus domínios.
III
Hoje estou triste. Marulhoso canto
mais alto levanto de pedra e cimento.
Desfaço-me da auréola de frágeis resíduos
com o sangue a ferver nas veias insones.
Árduo espelho de rio americano,
Cartaz que varreu toda a Espanha |
aqui soam paixões do índio Vallejo.
Curtido de sereno e vento andino,
levo sonhos partidos, sentimentos
impúberes, halos de tradição,
oblatas índias, rezas, atabaques.
Destrincho vértebras de meu assombro,
uma a uma, para ser calmo e preciso,
sem ódio, sem rancor, antes memória
de todos os caídos nas guerras do homem,
remoto brilho de estrela trespassado
de solidão, de chuva, de caminhos.
IV
Negros cavalos de conquistadores
arreados com arnês de Santos Chocano
rincham em estrebarias flamejantes.
Aldeias onde párocos rurais
sussurram orações no entardecer
para que durmam terra, frutos, homens.
Do Pacífico galgando a estrada inca
por dentro da floresta, sobre as águas,
suplanto amargurada tordesilha:
o Atlântico por voz, o céu por guia,
penetro na angustiada geografia
que tem a forma de punho fechado.
V
Percorro de Alicante a Estremadura.
De Galícia e Navarra a Andaluzia.
Paro em Granada. Algo me impele ao áspero
caminho que virou chão de papoulas.
Paro e penso, submerso em nevoeiro,
na cortina de dor sobre a Meseta,
na fala de Unamuno em Salamanca,
no que dizem ou bradam vozes grandes.
Súbito um berro. Rebentando tímpanos
e rompendo a fissura das abóbadas,
incinera retinas quando rangem
os pulmões da loucura: “Viva a morte!”
Carlos Drummond de Andrade cantou a dor de toda a Espanha
VI
De um certo cabedal de sonho e fé
trago lumes que são meu patrimônio.
De Lorca, de sua luzente aurora,
molhado ainda do orvalho de Visnar
galos que bicam a casca do dia;
lavor cigano, gestas andaluzes,
objetos de metal, carabineiros.
Filigranas que o murmurante Dauro
tece à sombra do Alhambra de ouro e púrpura
na surda manhã lavada de passos e balas.
De Hernandez – e de seu clamor viril –
ventos do povo que laceram nervos,
vão direto à garganta, refletidos
Hernández, o poeta do povo |
casas e plantas: cântaros de barro
sobre sacadas cheirando a hortelã.
De Machado, na borda do nascente,
águas e campos de Castela, margens
operosas do Douro, laranjais
(oh, perfumes e terras de Soria),
semeaduras e cristais de Segóvia;
o Tajes rumoroso amando pedras.
Pássaros velam seu corpo entre dunas,
o silêncio caminha entre fuzis.
De Alberti, no maciço do fervor
por pastagens prenhes de luas lívidas,
touros saudosos de bandarilheiros,
nas luminosas tardes de Carabanchel.
Areia e nuvens que as retinas guardam,
fronte alta latejando exílio, lábios
ao sol beijando o ardente cais de Cádiz.
De Neruda – tão nítido, tão real –
estrelas distantes tiritando azuis
sobre o mar duro de Valparaíso,
lá onde entre vinhas e penhascos gélidos
o planeta vomita sentenças de fogo e fel.
De Hemingway,
Hemingway, de lá, para jornal |
pele sulcada de raios antilhanos,
a tinta forte das linhas telegráficas
em Morse para Londres e Nova York.
Bares e arenas; bebidas secas; páginas
de sumo efêmero; signos e batalhas.
De Claudel
o céu e o inferno entre as mãos,
testemunhos da morte no esplendor do meio-dia.
De Auden – de lá, da fria York (urgente),
disparando luas para Valência,
palavras e ímãs que flutuam sobre os oceanos,
migram como gaivotas e sementes,
vencem terras iníquas e desfiladeiros;
horas de amizade num exército do povo,
estrelas mortas (lágrimas sob pálpebras)
vagando sem ajuda e sem perdão.
De Malraux,
ardor e fé que chegam pilotando manhãs.
André Malraux, em busca de apoio |
De soldados em rotos uniformes
e voluntários das brigadas loucas,
escapando de fotos amarelecidas, círios
enfileirados rumo ao esquecimento
por trilhas e atalhos – ignotas sendas.
VII
Neste solo de heranças com colagens,
amálgama de superior esterco,
convoco a parceria dos andrajos,
tudo o que fere a pele do silêncio;
petrificados gestos, faces, gritos,
clamorosos adejos, perecidos
rastos na lama, diários de campanha,
cartas lidas no fundo das trincheiras
à luz somente de martírio e febre,
lamentos andarilhos, fumo e drogas.
VIII
Paro e vejo: são cinco da tarde em ponto.
Da estação de Sevilha surdamente
o último comboio direto ao coração.
Imita o curso do Gualdaquivir.
Ando e vejo, no embuçado da noite seca,
o grito das manchetes perdulárias.
Mugem pelo furor dos artefatos,
pelo choro enjaulado nas mesquitas,
pelo gemer da pedra nas muralhas.
Sobre jardins e escadarias clicam
cenas de amanhecer pelos quintais
onde meninos brincam de toureiro.
A procissão de Córdoba entoa um canto
que é de palavra só o verso das saetas.
Verônicas de chumbo, andor de pedra.
Ando e paro. São cinco da tarde em ponto.
Daqui, da Fonte de Cibele, rútila,
sob a luz dos anúncios de turismo,
rosna um colear de pés em mar de falas.
Da Porta do Sol, pela Gran Via, até Moncloa,
de ônibus ou metrô, desço em Callao.
Riscos de Salvador Dali (talvez)
nas dobras de um relógio. Escorre sangue
dos arranha-céus da Praça de Espanha,
do escuro bronze de Quixote e Sancho,
da fachada do Palácio de Oriente;
em Arguelles, vestígios do que foram
nomes vivos de aldeias em bandeiras.
Eis Madrid: Guadarrama de gemidos
na estação de Atocha (uma outra viagem),
nos vagões dos expressos fumacentos
rubros slogans encandeando a vista,
o entusiasmo de povos solidários
por arrabaldes, pontes, mares, túneis.
A Guerra Civil Espanhol iluminou também as telas dos cinemas |
IX
Preso ao solipsismo de minhas ânsias,
a fronte em febre, coração aos baques,
vou direto à raiz do sofrimento.
Arqueólogo da insônia, a sós, percorro
bibliotecas e arquivos burocráticos.
Lá folheio compêndios, sigo mapas,
sobre o sal do silêncio, em viva tinta,
relatos que de angústia são lembretes.
Itinerários recomponho. O rijo
couro do tempo espicho nos fichários;
por fétidos desvãos, à mão o facho,
exausto, alcanço as tumbas da razão.
Por entre catedrais carbonizadas,
invisível rumor: a música do sangue
escoa resistente nos espaços.
Logo do lúgubre lugar se esgueiram
sombras; e depois corpos – ossos, nomes –
em movimento, náufragos soturnos,
como que saídos de um leprosário,
animam laborioso subterrâneo.
X
Paro e vejo (são cinco da tarde em ponto) Manuel Azaña presidiu a República
debruado pela sombra, baralhado
ao verde que recorta o Manzanares,
um partido da gente que escreveu,
em latinoamargo abecedário
e com a caligrafia do soluço,
a história que é de sonho e luta vã,
além do medo, além da compreensão.
Fincados em montanhas de palavras
e de números estarrecedores,
do passado máscaras sonâmbulas,
e no palco que a cena favorece,
transitam ante a luz crepuscular
dementes girassóis, atores mudos.
Aguirre cumprimenta Alvarez del Vayo.
Manuel Azaña rege um funeral
em cujo esquife dorme Calvo Sotelo.
Casares Quiroga adverte Campanys
sobre o que há de correr na Catalunha.
A hora é de estar José Diaz abraçado
com Durruti para espanto de Oliver.
Franco acorda do sonho marroquino,
avança para Gil Robles pensativo.
Atribuirá missões a Moscardó?
Discutirá estratégias com Sanjurjo?
Rumina estratagemas de campanha,
ou apenas inventa pesadelos?
Jesus Hernandez e Largo Caballero
conferem com Checa a lista fúnebre
dos legionários vindos de Albacete.
Ledesma e Mola, bêbados. Martinez
Barrio tece o aranhal do Parlamento.
Miaja aponta arma para Juan Negrín.
Expedem-se a Andrés Nin comunicados
Famoso slogan de La Pasionaria |
por um correio de nuvens apressadas.
La Pasionaria grava No pasarán!
no disco que ao poente o instante rouba.
Indalecio Prieto ouve na vitrola
e dança com Federica Mont’Seny
um madrigal ou a Internacional?
Queipo de Llano e seus carabineiros
aguardam ordens do Generalíssimo
para atacar milícias e miragens.
Franco, Redondo e Suner confabulam.
Varela e Yague imaginam estar vendo
José Antonio Primo de Rivera
atrás da tela em que pintou Picasso
o galope da Morte em Guernica.
Todos como a puxar ali um ao outro,
à luz do Manzanares que desliza
e rege a morta música dos juncos;
todos como que alegremente trocam
o crepúsculo pelo amanhecer,
roxo por trás da Cruz de Los Caídos.
REVISITANDO GUERNICA
(Via Picasso; Madri, 1994)
Onde álacres campinas de recreio
Abriam-se a canto e alarido escolar;
Onde antes havia o tempo sem abismos,
Coruscantes ruas, comércio lucrativo,
Familiar convívio de pacatos rostos,
Ah, tudo desapareceu na hora agra:
Algo se transmudou em chão rugoso,
A seara insone de insaciadas fomes.
Foram mil seiscentos e cinquenta
Mortos; oitocentos e
oitenta e nove
Feridos e aleijados. Em Guernica,
As platibandas antes imponentes
Testemunharam o furor do sangue;
Enquanto avança o vento assoviando,
Fendas no chão de crenças, sonhos
Súbito de pedra viram coágulos.
Aquartelados nos oitões da sombra,
De alumínio e aço centuriões desatam
Os arsenais de mortas dinastias –
Metálico tropel, inferno a vômitos.
Meteoro cravado a ferro e fogo
Sobre chaga ainda incólume sem idade,
Guernica: Troia em terras de Numância;
Canudos no caminho de My-lai.
Como que pendentes das estatísticas
E dos noticiosos radiofônicos,
Milhares de pássaros em pânico,
Mulheres e homens por aqui passaram,
Sem olhos e mãos aos céus clamando.
Ao marulho de pés acorrentados,
Marcham por vales e nevados montes.
Marcham, e marcham para a eternidade.
MEDITAÇÕES DE UM MILICIANO ATEU
Não me persegue aquela mesma sorte
dos que a América foram conquistar.
Já levaram no atlântico transporte
a ideia do que iriam lá buscar.
O necessário inimigo era a morte,
algo que haviam de sobrepujar;
como na guerra do Islã – e à outra coorte
presentes no viver e no pensar.
Ó Espanha que guerreia para nada.
Deus está de um lado: o resto é inimigo.
Da fé faz alimento, apaixonada.
Assim foi e será, na mesma estrada
do tempo (isto penso ante o mar de Vigo).
Não há guerra vencida, não há nada.
Mantenho minha crença, meu julgar.
Eu não sei o que é ser um cavalheiro,
se a noção não se amarra a algum lugar,
Não existe bem nascer. O homem, primeiro.
A natureza manda harmonizar.
Que a diferença surja por inteiro,
na forma de sentir, no ato de amar.
Não difere por posse ou por dinheiro.
Se é glória eternizar a tradição,
a palavra de Roma, o amor ao Rei,
perpetramos o assalto da razão.
Ouve, Espanha (aqui te fala um soldado
do mundo): se é este o teu futuro, sei,
teu cárcere será o teu passado.
BALADA DO LEGIONÁRIO CONDENADO À MORTE
Sou moço vindo de longe
pra na guerra pelejar.
Andei por terras estranhas,
vim de carro, vim por mar.
Meu navio é a esperança
meu volante meu cantar.
Quero que me tragam tudo
que na vida eu quis amar.
Me tragam aquelas meninas
que eu conheci lá em Jaén,
cantando na procissão
ao Cristo que a todos vem;
me caso com todas elas
para o mal ou para o bem,
mas se me derem só uma
me satisfaço também.
De cabelo enrodilhado,
de grinalda a cintilar,
olhos claros, tez morena,
rosto moreno e luar,
vestido negro rendado,
de cavalo a passear,
ou presa pela cintura,
na colina sobre o mar.
Me tragam vinho de Rioja
para com ela beber,
calamares de Algeciras,
churrasco para valer
de carne do bom miura
que na praça vi morrer,
jerez, sangria e guitarra
pra saudar o amanhecer.
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