domingo, 4 de fevereiro de 2024

A BRUXA TROCOU A JACUTINGA POR UM BORDEL

    Serra do Jacutinga, imagem captada por Vera Pessoa, em 2011
   (
O cimo da Serra do Jacutinga está a 780 metros, acima do nível do mar, altura igual à do Corcovado, no Rio de Janeiro).

Por Florisvaldo Mattos

MEMÓRIA DA BRUXA NUM BORDEL DE NOVELA

Como nasci lá nos cafundós da região cacaueira, tenho assistido a capítulos desse remake da novela Renascer, da Rede Globo, que nos anos 90 teve suas cenas gravadas numa fazenda perto de Castelo Novo, vilarejo situado bem próximo da cidade de Ilhéus, em anos gloriosos chamada de Princesinha do Cacau. Vi essa primeira versão, com Antônio Fagundes, no papel principal, obra de Benedito Ruy Barbosa.
Por isso, virei-me para essa espécie de reprise, mais ainda por ter seu conteúdo atual referente à praga da vassoura-de-bruxa, cuja tragédia devastou a economia da região, atingindo-a fundamente, em nível tamanho, desde o ano de 1990, quando irrompeu, sem que, até hoje, tenha sido dominada e varrida (veja isto, presidente Lula, assistindo a novela!), por total fracasso no seu combate.
Assistindo aos primeiros capítulos, movido pelos efeitos de seu trágico conteúdo, senti-me folcloricamente surpreso, ao ver a dona do bordel, uma cópia burlesca da famosa Maria Machadão, criada por Jorge Amado ('Gabriela, cravo e canela", 1958), chamar-se Jacutinga, nome coincidente com o da serra situada no interior rural do município de Itacaré, cujo poético azul me enchia de encantos, ao mirá-la, alta, defronte, cotidianamente, na infância e na adolescência.
Jacutinga, que imensa recordação! Pois, tanto esta Serra do Jacutinga me ficou na memória, que, décadas depois, escrevi poemas, levado pela magia visual que ainda permanecia em minha mente.
Será que o autor dessa nova aventura algum dia, numa distração, deparou-se com esses minhas evocativas estrofes e ao menos se encantou com o título do poema?
Pois bem, é esta peripécia verbal que transcrevo, abaixo, seguida de outras, dentro da mesma escala sensorial, até me desembocar no cerne dramático de Renascer, que se fixa na praga da vassoura-de-bruxa, até hoje não banida, embora tenha havido inúmeros programas federais de eliminá-la e traçar um rol de iniciativas de recuperação da lavoura e economia da região cacaueira, afundada desde a descoberta essa danosa erupção em 1990, numa fazenda da zona de Banco Central, distrito de Ilhéus.
Está na hora de os maiorais do atual governo se associarem à grande plateia da novela Renascer e, começando por se desculparem com a região do cacau, até mesmo pelo que em anos passados não fizeram, e, ao menos, ouçam os empenhos de parlamentares e membros de instituições representativas da região produtiva, que atualmente defendem a adoção imediata de um freio na importação de amêndoas da Costa do Marfim, que tem prejudicado todo esforço em favor da recuperação da lavoura cacaueira. (Os franceses, que são contra o acordo entre a União Europeia e o Mercosul, devem bater palmas para o corrosivo desempenho de sua africana Côte d´Ivoire, que no passado tanto dominaram, como colonizadores).
Assistam ao converseiro, às cenas de amor frajola, as falsidades, mas se fixem no eixo temático em que se fundamenta historicamente a fabulação da novela: o mal que a praga da vassoura-de-bruxa causou à terra, às gentes às esperanças e aos sonhos de toda uma região produtora do cacau. Conscientes e descontraídos, apreciem, cena por cena, os comportamentos, a linguagem tosca e o dialeto pleno de sabor rural.
Aí, se assenta a inconsútil verdade.
A outra faceta situa-se na injuriosa associação dos bancos federais com os efeitos danosos de tamanha tragédia rural, mantendo alto volume de dívidas impagáveis em soturnos e impenetráveis calabouços. Acordem, senhores governantes!
Leiam os anunciados poemas.
SERRA DO JACUTINGA
Para o filho Mauro

Lá debaixo esta serra é tão longínqua,
Como lá de cima a água, seu espelho.
A alma infante me fala na descida,
Se de cima diviso o chão vermelho.
Quando lanterna do silvado trina
A lembrança – ah, que vento verdadeiro! -
Morde-me o nu do peito na corrida
Que é a alma que me abraça o sol inteiro.
No instante em que galopam precipícios
As nuvens sobre a terra (seu cavalo),
Uivam tardes de outrora que persigo
Presa de mim e dos anis vassalo.
Campo verde de malva e calumbi
Informa que da mata olhos selvagens
Nos espreitam. Logo saltam dali
Paca, teiú, quati, tatu – miragens...
E o mato esconde aos olhos do menino
No cenário de sonho da descida
Agudo fio do aço campesino
Que pela vida foi cortando a vida.

(Florisvaldo Mattos, "CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro". Ilhéus-BA: Editora Mondrongo, 2022).


RASTRO DE BRISA

                        A mãe Gertrudes


Somente de horas alegres

São feitos os dias da infância.

(O que é duro e revés

Sai da coluna do Haver).

Há duas exceções, porém:

A fome, que é desespero,

E a morte, noturna hiena,

E também as mágoas vindas

Dos primeiros desencantos.

O resto fica escondido

Nas abas lá da jindiba

Entre os guardados da loba.

Sobram os grandes espaços,

Os horizontes abertos

Às primeiras cavalgadas.

Eram cavalos-de pau

Ou era a tropa de burros?

Facão no cinto e na mão,

A taca de mil estalos,

Nas dobras de alguma nuvem,

Ramiro tange escondido

Cuscuz e a Besta Melada.

E depois nos prega sustos

Saltando detrás das portas

Com a boca escancarada.

Do cume da Jacutinga

No trote da frialdade

Desce um rebanho de sonhos.

Ou são rebanhos de sombras?

Neblina fácil nas copas

Enreda-se com a folhagem.

Misturam-se aos bem-te-vis

Velhos cantares e aboios

Que os ventos levam e trazem.


“Que fazem meninos? Brinquem”,

Entoa a voz cautelosa

De quem quer filhos unidos.

Somente de alegres luzes

São feitos os dias da infância.

NOVAS IMAGENS DA SERRA

                                  

Eras tu, Jacutinga, amada serra,

Entre maços de cinza, pela tarde,

Tu, de neblina em cio e aroma ungida,

Na palidez de um céu alaranjado.

Qual Antonio Machado, em Guadarrama,

Vagando por cumeadas e veredas,

Trilhas abertas para o amor e o sonho,

Eu cavalgo também tuas entranhas.


Dama de Elche debaixo do luar

Logo me acende emoção de pretéritos:

A mesma iluminada deusa etrusca,

Que meu voraz vagar flagrou nos fundos  


De um plácido museu, em rubra luz

Envolta, magma de eficaz mistério,

Que evoca tempos e paisagens mágicas,

Solo por onde transitaram crenças.  


Jamais te abandonei, amada serra.

No duro passo do calvário urbano,

Abstruso nicho de burocracias,

Pulsavas no seio íntimo de tudo

Que era eu mesmo com as minhas aflições.

Ó serra quase da boa esperança,

A luz de teu luar segue em meu olhar,

Sem que haja um verso com a palavra adeus.


À SOMBRA DA TARDE

                        A Soane Nazaré de Andrade

                              

Oh, minha serra, eis a hora

                                   Do adeus vou-me embora,

Trago a luz do teu luar

                                   No meu olhar,

                                   Adeus.

                                   (“Serra da Boa Esperança”, de Lamartine Babo, canção)

Eu só, em tarde de forte vento e frio,

defronte de minha deusa etrusca, ela

estirada, lassa, em dorsal decúbito,

recoberta de lanhos (verdes matas,

campos e plantações), que é a minha Serra

do Jacutinga, grávida de nuvens.


Nem parece que há um céu a navegá-la,

eternidade que as estrelas fitam.


Mirante solar de sete cidades,

ó serra transida de chuva e sol,

para guardar um verso musical,

para chamar-se de boa esperança,

consumas-te em pincel, paleta e tinta,

festa de verde e azul, varal de infâncias.

 POETA DO DIA

                        Em memória de Dodô, filósofo da Pirambeira

Na Serra do Jacutinga,

onde o mundo dava um nó,

Macedônio me dizia:

“Deus que é grande ficou só”.


Era mais pelo que via

do que pelo que não via,

um filósofo do dia.

Quase sempre me dizia

que não via o que via

aquele poeta do dia.

CAMINHOS


Descendo da Serra do Jacutinga,

serena, a água espelha estrelas douradas;

espelha a verdura dos cacauais,

o brilho que tem a cor da amargura.

Espelha mais a água pura do riacho:

talvez a minha alma, talvez o que foi

um dia esfinge, na curva do tempo,

de onde me vem um tropel de alimárias,

que a água replica por entre a verdura,

abrindo-se em cor de estrelas douradas.

Para o riacho e a mata só o dia existe,

e o peão que aguarda o sol da manhã,

enquanto o riacho projeta nas pedras

a luz que celebra frutos dourados.


Barro Vermelho: aquela casa branca, de seis portas, que voava
Foto de FM, 1974


LAVRA DE PATER FAMÍLIAS

​​                        Meliboeus: “Tityre, tu patulae recubans sub tegmine fagi”.

Tityrus: “O Meliboee, deus nobis haec otia fecit”.

​​​​​​​                                                                       (Virgílio, Bucólicas)*

Sem ser Títiro, nem ser Melibeu, 

nem recostado estar numa jaqueira,

como também não para doces ócios,

apuro a mente e escavo chão de auroras,

começando por dias que se foram.

A estrada se abre e ando pelos vales.

A casa de seis portas na ladeira

contempla campo e serra azul-turquesa.

A cor da terra consentiu o nome: 

Barro Vermelho, salvação de brenhas.

“Já lá te espera o mundo”, ao pai disseram, 

e árduo, de peito aberto aos ventos, foi;

faina e farnel, intrépido, montou,

para mulher e filhos sustentar.

*Melibeu: Ó Títiro, tu, deitado à sombra de uma vasta faia...

Títiro: Ó Melibeu, um deus criou estes ócios para nós.)


ESTA CASA JÁ FOI MINHA

Que casa antiga é essa que me olha da janela,

Em que tantas tardes passei e passaria?

Ela olha para todo lado, dia a dia,

E não se passam anos sem que pense nela.

Noite. Não se porque me bate esta agonia

De tanto me passarem anos e ainda vê-la,

Como se vivesse uma vida paralela

À que bem distante eu vivi e viveria.

Nunca tive uma casa igual à que foi minha,

Em tempo de mata e quintal sem flor daninha,

Viajando pelo mundo, tendo o que tiver.

De volta aos longes de menino ou de rapaz,

Sei que essa casa ainda existe e ainda me quer

Pousado em seu longo varal de amor e paz.

(Florisvaldo Mattos, SSA-BA, manhã de 09/01/2018)


A CASA BRANCA QUE VOAVA

               Voy al encuentro de mí mismo.

                La hora es bola de cristal.

                                         Octavio Paz

 Deixo a casa que para mim voava.

Sempre fincada estava, mas tinha asa.

Saltava serras, rios navegava;

corria em trilhos, sendo sempre casa.

Sentado num jardim, me concentrava,

mirando as árvores; em tarde rasa

de frescor, vinha e súbito pousava.

É pelo coração que o sonho vaza.

Era assim, por sobre horas e distâncias,

ela vindo aliviar as minhas ânsias,

às vezes, a sentia em minhas mãos.

Não sei se é o destino fatal das casas.

Sei que, sempre de nervo e mente sãos,

vezes acordo sob aquelas asas.

(2017)

HORA DE JANTAR

                       A Roberto Gabriel Dias

I

Não, não fale, não clame.

Ouça os lenhadores.

Deles nos chega vívida

– densa e temporal –

a linguagem do aço

assumida ao gume

bem no centro da mata

de árvores pernaltas.

II

Não, não fale, não grite.

Ouça os serradores.

Deles nos chega lenta

– grave e comovida –

a linguagem da fibra

(ou nervos) torturada;

instante inicial da madeira

em domação corporal.

III

Não, não fale, não cante.

ouça os carpinteiros.

Deles nos chega reta

– nítida e apurada –

a linguagem do metro

antevisão do espaço

em projeto racional

a caminho da utilidade.

IV

Não, não fale, não xingue.

Ouça os marceneiros.

 

Deles nos chega úmido

– límpido, imperturbável –

o código do verniz

nos interiores onde

reina a superfície

muito mais que espelhos.

V

Não, não fale, não chore.

Ouça os familiares.

 

Deles nos chega clara

– plácida e distante -

a linguagem do uso:

modo natural de todos

calados em volta da mesa

submersa em utensílios.

O TEMPO, O LUGAR

As três portas da frente onde era a venda,

guarnecida de vastas prateleiras,

e outra mais e mais outra, toda a senda

que levava ao quintal de bananeiras;

a franja da floresta, onde eu a lenda

desfiava de Anice, a que as primeiras

quimeras fez passar por uma fenda

na alma e que se ocultava dos que às feiras

de cristalinos sábados rumavam;

os cavalos de pau e as de bambu

flautas, mais a valer quando imitavam

virentes sons; e os ninhos de jacu,

por onde começava nova história.

Tudo isso me abre sulcos na memória.


 RES DE RELICTA

Entro na casa. Chão vasto de auroras,

Velho armazém de secos e molhados

Repousa de silêncio fatigado.

Instrumentos ressonam; são miragens.

Moirões, mudas cancelas, arreatas

(arrochos, peitorais, bridões, cabrestos,

fivelas, argolões de Potosí),

soberanos, debaixo da ferrugem,

palpitam, pulsam, me olham e latejam

(coração a arrulhar sonhos remotos).

Restam no chão madeiras desgastadas,

sombras em trânsito e fugazes gestos.

Nelas, no que lhe doa a consistência,

Rosna uma geometria de clausura.


Colheita de Cacau, pintura da ilheense Jane Hilda Badaró

BARRO VERMELHO, UM LUGAR

Ai! sítio que me atiça

as emoções primeiras.

Coração nas ladeiras

rasga-me. A serra: do alto

a mata avisto, a casa.

O descampado onde água

arisca (o riacho) risca-me

fervente infância – ai! asa

despedaçada; mergulho

fundo no espelho – em brasa.


Ai! vento que me estuma

à mente, ao rosto, aos lábios

acesos calendários.

Entro com as ferramentas

do sonho na derruba.

Dilacera-me a fúria

da lâmina nas árvores,

e mais que isto, o que avisto,

no começo das chuvas,

os horizontes graves.


AO SOM DE BÚZIOS PONTUAIS


Nasci e me criei em chão maduro,

eu, sonhando com roças de cacau:

a laboriosa febre das colheitas,

a cor, o mel, que escorre sobre a relva,

o aroma das amêndoas, som de rodos 

ao sol, em lastro que o calor hospeda. 


Minha mãe na máquina de costura,

esmerando nas roupas que eu vestia,

cumpre sina que a salva no desterro,

se para trás ficaram mudos olhos,

a terra esturricada, a dor sem pão,

a porta a se fechar com a morte dentro.

O pai, tenso na ponta do passeio,

clama aos céus pelo chão que o sol oprime, 

por safras que o socorram o ano inteiro

e, montes fitando de azul fatal,

verte lágrima, que lhe tinge o rosto

a esperança que desapareceu.

A natureza enferma insufla exílios.

Mais que sentindo, ouvindo seu perfume,

as flores de um quintal (enfim memória)

colherei hoje mesmo, inda bem cedo.

Perto da fonte de água cristalina,

moças estendem roupas nos varais.

Rapazes hão de vir no fim da tarde,

em tropel que desata serra abaixo, 

de quem anui com búzios vespertinos,

junto de arroios, quando o sol declina.

Sabe-se que, ao fim todos, de alma sã,

logo se vestirão de amanheceres.


DIÁLOGO DA TERRA COM OS SENTIDOS

 ​        

Fecho os olhos cansados, e descrevo         

      Das telas da memória retocadas.                                          

    Cesário Verde​​

Acordava de ouvidos aguçados,

quando na mata ventos sobrevinham, 

e a família dos ecos se agitava;

logo que iam, pronto, retornavam.

Eram machados cortando (e ainda cortam),

sons da derruba assustando pássaros,

sob céu mais de favores que de preces.

Ninguém lia, mas aprendia, no eito,

como usar o facão libertador.

Os homens se agrupavam em simpósio,

com o sol de convidado principal,

desenfurnado desde o amanhecer.

E era assim que nascia a madrugada,

do diálogo da terra com os sentidos.


TEMPO DE ÁGUAS SOLIDÁRIAS

              É a Natureza, sim, no seu perpétuo        

              Desdobramento anímico e profundo. 

      Teixeira de Pascoaes


No dia que amanhece, a mente aprumo,

passo em revista fardos de horas vãs.  

Uma brisa, uma nuvem, mesmo um trino, ​

ou voz qualquer de ramos que decreta:    

nenhum outro caminho dentre a selva.    

O chão e as águas fremem solidários.

As águas, sobretudo. Na esperança

que alimenta e seduz serenos rostos, 

elas são o que a terra mais almeja.

O solo a chuva encharca suavemente.

Retumbam vozes pelos cacauais,

igualmente com sol depois da chuva.

 

Calmo verão clareia esses caminhos,

mas é o outono que devolve à terra 

o óbolo com que sonha o lavrador

e faz seus pés sentirem o alarido

da febre que se apossa das sementes,

quando o solo começa a conhecer-se.


A natureza torna o homem mais lúcido.

Unido à terra, ao fogo, à água, ao ar, remotas

quatro forças que regem seu destino,

espelha-se nos olhos e nos lábios

a comunhão de sonhos com sentidos,

coalhando o chão de cantos e ufanias.


ESPERANDO A NOITE VASTA

                    Nunca sabremos quién forjó la palavra

                    para el intervalo de sombra

                    que divide los dos crepúsculos”.

                                                 Jorge Luis Borges

 

Recordo: havia um armazém de secos e molhados.

De uma de suas quatro portas avistava ao longe,

Mudo, a curva serra de ouro-azul resplandecente.

Que sentiam esses homens, errando pelos matos,

De pés descalços, lentos, na tarde pisando espinhos?

Pisam formigas, folhas e frutos de sonoros ramos

E no intenso verde, armam laços de pueris caçadas.

Não sei como eles percorriam tantos labirintos

De turvas roças de cacau, lajedos, cegos pântanos.

Adiante o campo que se debruçava sobre cercas

E baixadas. Soavam búzios, e logo por ladeiras,

Bambeando em passos rítmicos, retornavam eles

De árduas fainas que pressuroso alfanje decifrava.

No terreiro, moreno Ramiro desarreia plácidas

Mulas (Gasosa, Fortaleza, Catita, Diamantina).

Por entre porcos, desfilam galos madrugadores.

Busco um número no concerto vesperal do dia,

Os vinte e dois da tropa árdega encabeçada

Pelo branco-fosco Te-Aviso, que dispensava,

Na dura estrada, o peitoral de sino e guiso célere.

Ouço vozes. Está verão, despenca o dia. Cores

Misturam-se num rubro céu de lento entardecer.

Dentro, jovem negro, cearense, junto do balcão,

Após o búzio que o liberta de eito clamoroso,

Entornando feliz um rubro copo de cachaça,

Declama versos parnasianos de insepultos dias.

A mim e a todos ali, que o ouvimos mais que pasmos,

Diz que provê de mão endeusadora de mulher,

Mas se recorda apenas que de Santa a nominavam.

A noite desce como todos a pressentem, lúbrica.

Com o sentimento de auferi-la sucessivamente;

Nós, a tudo que prazerosamente nos rodeia,

Ávidos, terra, ar, água, plantas, aves, nuvens, mitos.

Noite, só uma palavra a distingue, não há outra,

Sem que se saiba quem um dia a tenha inventado,

Quando lá no alto a lua parece mesmo ser real!

 

(Florisvaldo Mattos, SSA/BA, 31/07/2017)

 

ESTAÇÃO DE DIAS NUNCA IGUAIS

 

​​                        Passam os tempos, vai dia atrás dia,

​​incertos muito mais que ao vento as naves.

​​​​​​                                                           (Sá de Miranda)

​​

É um outro agora que pensa por mim.

As manhãs que ficaram são de flora

verdejando roçados, solidões,

já de fogo distantes, semeaduras,

e um sol que bisbilhota tronco e fronde.

Mirando céu de noite estrelejada,

despeço-me da serra azul-turquesa.  

Bem mais que o próprio resplendor, a lua,

solitária e solene, quão remota,

espreita meus silêncios, meus assombros;

o terreiro de burros arreados

e o tropeiro que os trata como filhos.

São reais, todos eles. Finda a faina,

o espetáculo fecha-se, completo:

a noite segue impávida, igualmente

a almas fartas de dias nunca iguais.


QUANDO O FERRO O FOGO AFAGA

 

Um urgente parêntesis. Ninguém

lembra do fogo servo do cacau.                  

Desce de longe, de impassíveis matas

ou vastidões de ingentes capoeiras,

a madeira que logo excita os homens, 

os mansos que não vivem de quimeras.

Calor ao ferro unido como ao corpo

e, ágil, ungindo amêndoa e solidão,

prossegue o fogo, alegre de ser fogo.

A chama legitima o ardor das mentes.

E é do contato imune com a ferragem

que, íntimo, o fogo cumpre o seu destino.

Do alto, quieto, o matuto lá embaixo ouve 

o som de um cão que uiva no terreiro.    

  

TROPAS DE CACAU

                

Conduzindo cacau para Água Preta,

Sinto na tropa um fio de soluço;

É algo de mim que viaja em fuga, é seta,

Que aponta um tempo em que eu, pajem de buço,

Mirava o efeito que um sol exegeta

Produzia na flora, de onde um ruço

E um castanho rompiam (quanta meta,

Quanta preparação para o soluço!).

Aqueles burros hoje, aquelas cargas,

Recalcando ladeiras na memória,

Como em todas as estações amargas,

Fazem trajeto inverso de outra glória:

São estrelas em tardes andarilhas,

Remédio que à alma exausta chega em bilhas.

  

SAGA DE TROPEIRO

                          Mar y cielo, pampa y sierra,

                          su galope al sueño arranca (...)

                                               Leopoldo Lugones

Vinha tangendo pela estrada azul
alimárias de lombo carregado,
metido em lona e calos, um soldado
tenso de lutas contra o vento sul.

Com ele teve o cacau sua escultura
muar. Contempla o sol do ocaso roxo.
Desce da sela, põe a mão no arrocho,
que a carga se regula pela altura.

Rudeza e valor são suas divisas:
uma, do coração; outra, do risco.
Fremem no sangue ardor e agilidade.

Acorda-o o amanhecer das notas lisas
do pássaro cantor. Com sol arisco,
coleia, galopando a claridade.


A BESTA SE CHAMAVA FORTALEZA

 

​​                                   A besta era serena e atendia

​​                                   Pelo suave nome de Suzana.

​​​​                                                           Paulo Mendes Campos 

 

Se do Campos a besta era Suzana,

a minha se chamava Fortaleza.

Era nos pastos que ela obedecia,

leve e serena, quase comovida,

ao gesto só de manejar a rédea,

quando queria pássaros ouvir

ou bezerros tanger para o curral,

em conluio com aragens, logo cedo,

por descampados vastos, meu tesouro.

Quero viver de novo esta harmonia

de cores, sons, aromas e sabores,

no delírio em que a tarde se desmancha, 

com sussurros da brisa me avisando

que disso tudo a besta participa.


TROPAS DE BURROS SOBRE NUVENS

  

Tarde calma, no corredor da casa,

escuto de Ramiro a gargalhada.

Tropeiro não se esbalda no trabalho,

somente quando com meninos brinca.

 

No tempo não ficou somente a imagem 

de um moreno brincando com meninos;

ficou, além do som no corredor,

um sol ruidoso no clarão dos dentes.

  

“Aonde tu vais, Ramiro?”. “Vou pegar,

arrear e trazer a Besta Melada.

Cuscuz vai ser a tua montaria,

para colher laranjas que há demais”.

 

Ramiro estende um couro no terreiro,

sob um calor de doer, e vai dormir.

Hoje, acima dos vales e das serras,

tange tropas de burros sobre nuvens.


NINFAS PELO BREJO CEGO

 

(Nunca vestem farrapos. Botticelli

jamais as olharia, de entre os ramos.

Seduzem mãos de ofício menos raro:     

purezas de Ingres, ciências de Courbet,

de Matisse, talvez de Modigliani;

o feminino abstrato de Delvaux?)

 

Desço de montes, sigo pelo vale.

Escuto um baque: rolam seixos, a água

na tarde morna em círculos se mexe.

Um bulício de folhas à distância

traz a brisa que roça meus ouvidos.

A tarde se disfarça em porcelana.

 

Serão ninfas que fogem pelo brejo

perseguidas por faunos e centauros?

De onde vieram esses seres lépidos, 

tímidas fêmeas pelos arrebóis, 

que, pouco diplomáticas, se esgueiram,

a fugir de injuriosas investidas?

 

Vou por atalhos, de olho atento a trilhas.

Fátuas, ligeiras e, de pés olímpicos,

passam por mim e pelas andorinhas.

Param, como se lírios lhes acenam.

Para elas se abre o sol; a água lhes beija

o colo e os pés de nuvem. Que perscrutam?

 

A brisa é a sua aliada predileta.

Saracuras, sanhaços e nambus 

além se calam. Elas, ágeis, fogem

por sáfaros caminhos; ribanceiras 

galgam e somem num coral de adeuses.

Fogem, porque fugir é de sua arte.

 

Sigo seus rastros pelo brejo cego.

Guiam-me, mesmo após as despedidas.

Porque tenho pés e olhos de andarilho,

persigo sendas altas de onde aviste-as,

na certeza de que para onde forem 

meus sentidos nunca estarão sem pátria.

 

Os ramos cumprimentam, quando passam;

redes de cipó e musgo, a quem, atônito,

pergunto se são ninfas, o que são.

Junto-me ao vento e subo numa encosta.

Diviso um prado. Não mais vejo-as; foram-se.

Existem mesmo ninfas neste pântano?

 

(Musa inquietante que se foi com Zeus, 

penso que Leda me deixou sozinho). 

O vento segue vomitando ausências 

sobre abismos de insônia, sobre mim.

Logo a tarde se cobre de carvão.

Zás! Beira d´água, alguém me segura a mão.

 

(SSA-BA, dez./2014-jan./2015)



    Vista da Fazenda São Salvador, Itacaré-BA, Zona do Jacutinga
      Foto de FM, 1982


SONETO RURAL

 

À precipitação do amanhecer

rural retiro à flauta o som mais puro

de quem, já acostumado com o escuro,

absorto fica vendo o sol nascer.

 

Caprino olho tecido em bem-querer,

preexistente nas coisas que procuro

pastoreando sonhos: amargo ver

desencontrado olhar longe do muro.

 

Recolho pastoral envelhecida

ao som da flauta (pastoral da vida)

armado de silêncio e panorama.

 

Ela se perde verde no horizonte,

como ovelha de luz ou como fonte

onde lavo meu sonho. E se derrama.

 

 CAMPESINO

 

Como folhas caindo num deserto,

humanas resistências vão caindo

sobre campo sem sol. Peito coberto

de um só grito esperança vai cobrindo.

 

Rude labor de enxadas consumindo

sangue que dá de sangue um sonho certo,

esperanças do amanho já sumindo

na sede da esperança que está perto.

 

Amargas deslembranças param, vendo

no íntimo do espetáculo chuvoso

o aparecido desaparecendo.

 

Antes que amor se ausente ao chão sem húmus,

já baixam sobre o campo generoso,

as águas da manhã movendo rumos.


SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS

        

 Cansei-me de pensar no que era o dia,

Se ele entre dois crepúsculos se evade.

Cansei de me perder nessa agonia,

Fosse hora calma, fosse tempestade.

 

Juntei a vida inteira os Elementos

E a cada um dispensei olhar de justo.

Se regem mundos, regem os momentos,

Não conseguem parar o sol injusto.

 

A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses

Que governam e nutrem a Humanidade,

Como me adverte o oráculo de Elêusis.

 

Não podemos mudar de itinerário.

Ao fim nos resta uma única verdade:

O nosso cabedal é o calendário.


OS ELEMENTOS E A CHUVA

 

Amo-te no teu propositado cair sempre

macio sobre os campos, chuva. Tuas serenas

lanças cuidadosamente perfuram chão amargo,

folhas e semente. Cuidadosamente

tua úmida língua de silêncio purifica

pelagem tranquila de mansas reses,

solitários mourões lavas com tua indústria

melancólica de cinza e poeira.

 

Campestre cai sobre exaustas ferramentas

tua dimensão vegetal, tua água solidária,

primaveral de vento e seiva generosa

ásperos espinhos lavando e aconselhando

próspero itinerário de terras trabalhadas

e empresas de outras funções em lavoura

fixa de cacauais em sal de ódio aquecida.

Sobre telhados negros, isenta de perigos,

sobre pedra, tão sobre rostos expectantes

e mudos, tua coma vesperal desaba.

 

És na tarde fria como anjo predileto

com tua lâmina agrária libertando

de saqueados corações desertos braços,

de prisões interiores e fazendas

denso mar de soluço e duras penas.

 

Seguramente amo-te, ó chuva, quando

das altas serras sobre os vales baixa

tua segura astrologia de horóscopo e surpresa,

e uma saúde operosa de existência

cresce sob esta floresta de cercas e arames,

sob esta esperança frágil dos arbustos.

 

Em tua verde matéria de sonho elaborado

com amargura, com olhos e músculos fatigados

abre-se um caminho de experiência vespertina,

um diurno sabor de apodrecidas madeiras

sobre o solo. Um odor rústico de produção

e mantimentos. Abre-se como fruto repartido

entre lavradores teu mecanismo de fartura,

teu humano suor de tendência preciosa. 


SISTEMA AGRÁRIO

 

Meu canto gravado de um saber oculto de águas

esquecidas fabricarei no campo com suor

de rudes trabalhadores, na chuva, sepultando-se

de búzios pontuais, lamentos e desgraças.

Forçosamente rústico caindo sobre troncos,

pelo ar, compacto de húmus e branco vinho, caindo

sobre plantações. Sobre homens caindo. Não os sei

com metralhadoras e mortes pesadas flutuando

em suas mãos calosas de sonho e agricultura.

Senão com amargo clamor, ao meio-dia, quando

com rijas ferraduras rubro sol golpeia lhes

decisivo o tórax sombrio. De sangue a sua

permanência rural de árvore e vento.

 

Materiais e diários, continuamente os vejo

por frios vales e serras recolhendo incertezas

e dores unânimes, pontes que lhes pesam úmidas,

como rios perduráveis, sobre o rosto seguro (banhados

tão por cinzentos rios, girassóis destroçados

vigiando rebanhos e metais decadentes

revisando no tempo em sonora aliança), como

estranhas biografias e equipagens

de passados cavaleiros, em derrota.

 

Impossuídas, colheitas vão durando,

como denso muro de sono cicatrizado

em seu corpo amanhecido sobre a terra, que

pensamentos cruéis e sombras apunhalam.

Meu canto fabricarei com lágrimas e suor

subterrâneo de músculos e ferramentas.

 

Maduram no verde dos cacauais suas asas telúricas.

Nas semeaduras, sob tempestade, reside no solo

seu mecanismo de lutas e existência

de incessante labor camponês. Agrário sempre.

Suas armas essenciais, sua geometria agreste

hão de impregnar-se necessárias de úmidas

paisagens agrícolas, de horror precipitando-se

sobre homens em silêncio nas estradas pacíficas.


Eles que sonhavam com instrumentos longínquos

terão na cabeça, rugindo sempre, uma voz de ameaça,

quando a seus pés um ruído grosso de sacrifícios

vai sua boca de amor sem pão revolucionando.

    Cacau Sonhado, óleo sobre tela, da pintora Jane Hilda Badaró
 

COMPOSIÇÃO DE FERROVIA

 

Sobre campos de sol fotografados de fome

de manhã surpreendo-me entre maquinistas.

guarda-freios, foguistas, agulheiros

colecionam tristezas numa ferrovia.

Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,

exiladas faces como nuvens atônitas,

contra pontilhões investem, contra água pesada.

 

Sucedo de rotas e destinatários,

de mercadorias emerjo, melancólico.

Experiências metálicas de locomotivas

trituram músculos, afogada energia

de trabalhos humanos e apitos agudos,

trilhos que sulcam horizonte sem âncora;

me alimento de fogo, velocidades sofridas

de vagões conduzindo cacau e sombra

sobre cidades e montes, sobre latifúndio:

negro mar se agacha, silencioso salta,

come homens e meninos que choram sonhando.

 

Entre estações que gritam impossível atraso,

sonolentos comboios avançam na noite.

Desenvolvem sem termo choro agressivo,

um choro duro de homens e fornalhas

devorando madeiras e carne em lamento.

Lento uivo de rodas que se multiplicam

com substância noturna de salários

acumula vegetação nos eixos aluídos,

esperança consome na carreira profunda

sobre ilhas de acaso engrossando velho

patrimônio de mortes alugadas.

 

Rápidos horários com palavras de fumo

seu voo de espuma e lâminas corroídas

e matérias subjugadas anoitece

no sangue roxo operário com ferrugem,

elabora sentidos e desgraças na fronte

espessa. Na garganta incendiada cresce

gemido áspero de peito mutilado,

com umidades ocultas, com soluço. 


APOGEU DOS VAGÕES

 

Noturnos vagões carregados de amargura,

de empilhados produtos e origens,

correi sobre horizontes dos dias!

 

Composição de espanto corrosivo

acerca-se de mim, vai penetrando

com violência em meus olhos. Vence-me

a carne e os nervos, minha voz,

meu desesperado sangue e cansaço, como

fantasma criminoso que, alta noite,

entrasse em minha casa fortemente

nutrido de perigos e desastres.

 

Negros, armados de geometria difícil,

rota economia de outonos ressentidos,

duram interiores funerários

sobre sacos sombrios e carregadores.

Barris de angústia, lento soluço,

arrastado gemido sobre trilhos,

correi, correi, sempre correi, sombra

afogada na sombra de sangrento galope.

 

Confuso grito e fúria registrando

velocidades e pressentimentos,

avançai contra noites, contra os dias,

noturnos vagões, consistência

de amarguras espessas e ferragens,

cruel fome de rodas gira-mundo. 


    Trem-de-Ferro, óleo sobre tela, da paleta de Almiro Borges, s.d.

NO TREM, COM CENTURIÕES

 

O trem-de-ferro para na estação.

Dentro da classe de janelas muitas,

sento-me na cadeira de palhinha.

Tez denunciando terras e distâncias,

fazendeiros de bota e paletó

penetram no vagão suando auroras.

De cenho carregado, dependuram,

no alto, o chapéu, esporas e o revólver.

 

As mulheres destrincham seus rosários.

Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.

Compadres são de justas e conquistas

(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).

Colecionando safras e plantios,

transpiram suor e orvalho. Nas capangas,

dormem papéis e ganhos, calendários.

Nunca delas sairá a última moeda.

 

Confiam num outono redentor,

em dias mergulhados na lavoura.

Pacíficos, serenos e domésticos,

não bebem aguardente, nem sorriem.

Sonharam, não mais sonham, esses machos.

Em tardes mansas de remotos sítios,

sem traficar afagos e carícias,

encharcaram de filhos castos ventres.

 

Logo velhas histórias de jagunços

desfilam entre gáudios outonais:

de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,

do que morreu de tiro noutro rio

(quietos Mocambo, Almada. Catolé).

Logo se dá notícia alvissareira:

cacaueiros esplendem de fartura,

com fruto encachoeirando pelo tronco.

 

Fugindo de centelhas e fuligem,

em meu traje de seda cintilante,

abro a janela e me debruço. Sopro

minha flauta vermelha de metal,

com que costumo celebrar instantes

em que o dia derrama suavidades

e saúdo os guriatãs e os curiós,

que se abancam nos postes de telégrafo.

 

A manhã solidária me convoca

a mirar a beleza das campinas,

na luz que pauta a música do dia.

A máquina suspira, o trem esbarra.

Guardo a flauta no bolso da camisa.

Súbito casas, uma praça, letras.

No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:

a vida é bela, há mais que desfrutar.


FERROVIAURA

 

I – Caminhos profundos

 

Tão nascida do homem como o homem

artefato da vida como a vida

de repente apagou-se fumo

                                               Flora

 

sobrevinda outorgou-se aura de espanto

sob frio apenas ululante rastro

de universo roubado à geometria

 

Pena que teve origem que sofrido

foi-lhe o passo de rio ossificado

comércio e fábrica foi

                                      Oceano útil

 

onde massas de fel tiveram porto

polígino conúbio do trabalho

com lavouras nutrindo-se em neblina

durou flecha de sol e foi perpétuo

vento esculpindo solo atormentado

 

Como oferta de assombro como silvo

indecifrado agreste nascimento

algo rompeu da selva taciturna

holocausto  a cipoal empedernido

despontou nos vales de secreto fausto

súbita mãe gestando moitas

                                               Deus

 

ex machina em seu tempo/movimento

senda de lavra e sangue

 

                                               Ferrovia

 

estrela agrimensora no deserto

pesquisando rochedos serras altas

teodolito assentado sobre a carne

mirando grotas pássaros em coma

arrosta-se à navegação de precipícios

célere mordendo manhãs desperta

chão de lágrimas águas ofendidas

floresta /brenha folhas

                            

E ao fundo nuvens

 

Garra amputada à fauna de felinos

carapaça equipada de luz rude

para oferenda a deificado fruto

 

O verbo no princípio era de ferro

de fogo

                de fumaça mensageira

Lábaro sobrevoando paralelas

ou trilhos no úmido chão laborado

ou metal fugidio cravado em som

ou claro gesto na cor liberado

aeroplano espectral fotografando

tumba ou leito da State of Bahia

South Western Railway Company

de estio agulha para sempre cose

minério pedras troncos

                                               Labareda

 

língua incessante touro arremetendo

ao descampado o cosmo em disparada

 

Está morta

                        Sumiram-lhe os ouvidos

Foi-se o grito alvoroçador do verde

os olhos de esperança se apagaram

O dorso

                        O peito

 

                                               O império mineral

 

Hoje está morta

                                   E era maciço ferro

Era madeira forte

Tudo muito real

Serpente de fumo ou cão ígneo

rojado contra um milhão de relógios

 


II - Navegação dos horários

 

Conscientemente

                                   instalo-me sobre mudos

pontilhões e repasso calendários

De vapor o marulho transeunte

é das locomotivas ofegantes

Rodas e trilhos no asilo da ferrugem

abalando dormentes na lembrança

ensaiam no ar nostálgico de ruídos

brados

Ancoram em terminais de sono

onde tudo é memória luto sombra

 

Congelados nos postes de telégrafo

espectros de mensagens desgarradas

soterrando-se em Morse de azinhavre

cifram em sinais de brumoso código

a solidão das estações em ruína

duelam contra ventos redundantes

funcionários dementes engenheiros

severos cabos-de-turmas

                                               Oligarcas

 

que à mesa pela noite jogam cartas

bebem uísque, soda e vinho do Porto

pantagruelicamente comem lauto

repasto convertido em florilégio

peões da estrada a martelar o sexo

regressando de abismos petrificam

desolado tributo que persegue

Mutuns Rio do Braço Água Preta

Santa Cruz Serra Verde Catolé

Cascata Pedras Pretas Poiri

 

Os atletas do trem soprando búzios

voam no pelo de cavalos doidos

 

Ante brasa e aço a dança dos foguistas

desperta cogumelos que deslizam

lentos por corredores de resina

e naufragam em crepitante pélago

 

Guarda-freios e maquinistas bêbados

escapando de sujos botequins

entoam sobre plataformas ermas

velhas canções de esperma itinerante

 

A fome lhes comeu o olhar de espanto

comeu-lhes rosto braços pensamento

e agora por entre aldeias sanatórios

praças com animais mumificados

acena-lhes com moedas de crepúsculo

misturadas a ânsias confissões gemidos

que viajam na mala dos correios

pelos desvios despachando brisas

que sobressaltam como os telegramas


(...)

   Xilogravura de Calasans Neto, para REVERDOR (1965)

A máquina quando geme

é a centelha sentindo a cento e vinte

a bandeira vermelha nas tangentes

era de fato um sinal de perigo

que ninguém viu descendo para Ilhéus

 

Árvore rio nuvem recolheram

espetáculos de roupas suarentas

e teceram no espaço dos horários

biografias murais de óleo e carvão

 

Dos trens de carga aqueles vagões negros

levam sonhos de infância em feixe e fardo

cabedais de família minhas queixas

rolam por ribanceiras vêm como águas

de cheia

                        Torturadas torturando

 

As armações dos verdes armazéns

delegam ao ferro forças irreais

para guardar sob zinco a sacaria

Safras de cacau

           

                             Vidas em coágulo

 

Mercadorias fremem ao som distante

de um telefone negro endoidecido

O velho Barros chefe-da-estação

polindo estrelas sobre o guarda-sol

distribui caracóis aos passageiros

ou  desvendando leis no roto clima

sujeita o tempo a seu apito mágico

A máquina parece assombração

quando parte espantando as alimárias

Te-Aviso Gasosa Telefone

Fortaleza Cuscuz Besta Melada

curvos às cargas longe grimpam montes

doando seu trunfo ao infinito

sobre verde que espelho a tarde sangra

 

III – Cemitério de esperança

 

a)

Nem mesmo estavas preparada

Estavas como caça fatigada

quando de ti veio se acercando

por entre ramos cedros sapucaias

desavindo rumor

                                Severidades

ensombrecendo leito matutino

 

Era preciso que o céu baixasse rápido

que tudo se cobrisse de argamassa

e se desse ao ferro cemitério

Tudo era preciso no momento

Era preciso que se abatesse a caça

e se fizesse sombra onde era sol

se apagasse o caminho de alegrias

por onde seguiam os que voltavam

 

b)

olhos mergulho agudos na folhagem

perfuro frondes de onde saltam rostos

cavados dentes olhos do barranco

aparições enfermas se debruçam

sobre desfiladeiro imaginário

que persigo em desembestada fúria

vozerio que se arma me acompanha

eleva-se como corpo trespassado

veloz dardo que passa e me detém

 

Gritam choram tremem dentes olhos

rostos qual pensa esteira de gemidos

lua despedaçada em mar distante

relâmpagos amargos que me fendem

o coração

                   a boca paralisa

 

 c)

Eu sei

              Tens até mágoa

                                      Quando vens

Espetas teu apito verdejante

no céu na flora de abundante mel

madeira mineral que te rodeia

– e o louro e o fel e a mão oculta

e sobre a roxa amêndoa de cacau

que anuncia o verão

                                   Vens e despejas

tua usina de aromas

                                   teu calor

Eu sei

Tens vontade até de recuar

para o seio absoluto da manhã

e lá polir a crosta de ferrugem

arrancar-se depois do inanimado

chão da morte

                          como ave ou como estrela

súbito em voo raso sobre os campos

 

E a mim vens com teu peso

                                               teu galope

animal de pelagem coruscante

rolas sobre meu peito

                                      meu semblante

sobre meus olhos hóspedes do vento

a de ontem vida tua enfermidade

 

Vens como se rompesse a noite em febre

açulando os outeiros acordando

pássaros empalhados nas ramagens

malgrado tudo

                                   Sonho capturado

vens banhada de luz e tempestade

tua massa colora os ambientes

embriaga o instante avança e nos eriça

cadáver hoje que se inventou bandeira

ao roçar de teu sopro

                                   Teu convívio

 

   Estrada-de-Ferro de Ilhéus, após sua extinção, por decreto (1965)

 

IV – Expectante reflexão

 

O trem

               verde e vermelho como a vida

mas pode-se agregar ocre e amarelo

se é de homens e coisas que se fala

O trem

  ânsias de infância/arrimo de velhice

O trem

   rebanho de acenos/rama flamejante

O trem

   ágil pesadelo/viação da aurora

O trem

   transido soluço/bandeira de sorrisos

O trem

   flauta de vidro/vertebrado canto

O trem

   centopeia de nuvem/potro de esmeralda

O trem

               O trem de Água Preta

 

Dardo de som lançado ao infinitivo

rajada de luz atravessando o paraíso

me aduba  o coração o sonho acorda

o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.


SÚBITO EM MADRUGADA FRIA


Súbito um ruído: em madrugada fria,

Vozes arrastam sacos transitando.

Zonzo, acordo, na rede em que dormia,

Lá fora, a noite, mas ninguém passando.

 

Pela casa só via gente andando.

Ainda na escuridão, já vindo o dia,

alguém com um saco de caroços pando,

e eu sem decifrar o que acontecia.

 

Sei agora. Essa de cacau trazer

Em tropa de burro para Água Preta

É coisa que não dá para entender.

Melhor nem perguntar, parece treta. 

 

Quando, apitando, aponta o trem-de-carga

E para na estação da rua larga.


VELHAS ESTAÇÕES DE TREM

 

Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.


Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.


Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.


Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.


Estação de Ilhéus, de onde partiam os comboios da extinta EFIC
   

CACAU EM QUATRO TEMPOS

 

I

Sol da manhã em venda de secos & molhados.

Olhos adventícios só desvendam claridade.

O moço desce do paquete entre sorrisos

no cais de apitos e gritos de carregadores.

 

II

Bendito destino esse, que movimenta sonhos!

Um outro apito – o do trem de ferro na estação,

que propõe sendas de irrevogável êxito,

em brilho que acende olhar imprevidente.

 

III

Paragens de adusto marco e sonhos murchos,

de tudo sabe o velho por seus relógios mudos:

são túmulos do verde as roças prediletas,

são círios apagados os frutos amarelos.

 

IV

Nada mais lhe anima as retinas fumarentas,

só um pouco de vento e ar, de luz em dor.

Penetra-lhe o peito de sombras revestido

o que lhe sobeja em túnica de pretéritos.    


NOVA SAFRA DE SOMBRAS

 

Vivo momentos que meu pai vivia,

Quando, a chorar na ponta do passeio,

Vociferava aos céus no fim do dia,

E, a mirá-lo eu, voltando do recreio.

 

Ao longe, de azul constante, a serrania,

A contemplar-lhe o tamanho do receio,

Que em sua face todo mundo lia,

No furioso galope com que veio.

 

“Foi o sol, foi o sol”, grita um matuto.

“Não há nuvens, nem mesmo vento astuto,

A salvar o que foi sonho e semente”.

 

Sombras vieram e amadureceram

O saldo de tristeza comovente

E tudo de horror que meus olhos leram.


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QUARTETOS DE OUTONO

 

Sono que se desprende da algazarra,

sangue que se dá ao corpo e se renova,

moedas que se perdem numa farra,

crepúsculo que é de sonhos boa prova.

 

Tudo isso é marginal; o que mais vale

escorre qual jasmins apodrecidos

entre os dedos e pede que me cale

para não acordar os dias idos.

 

Sou mais o peixe que surge das tramas

da água e alcança a plenitude viva

do poente, ou mudo pássaro nas ramas,

que celebra o que o coração aviva.

 

Lavro sonhos na sombra. O claro-escuro

da tarde declinante nos meus lábios,

semelhando palavras em um muro,

divulga solilóquios e presságios.

 

A leitura do corpo descarnado,

já por emagrecer, já por desgosto,

mais que seja de pranto navegado,

coleciona ametistas de sol-posto.

 

Triste Narciso que comove a artéria

por onde correm a água e a paisagem,

busco o rosto absoluto, a índole séria,

que a torrente do tempo imprime à imagem

 

no espelho irremediável refletida.

Noites são noites, e manhãs, manhãs.

E as tardes que prescrevem para a vida

destino de escrever palavras vãs?

 

A frase que me morde o aflito crânio,

na hora de adormecer, ideias claras

me traz: cravo plantei, plantei gerânio,

em pântano em que só nascem flores raras.

 

Vou. Caminho. Corro, horas, dias, meses.

Livro-me da armadilha dos delírios.

Não quero ter um fim como o do grego,

Postado na janela a contar círios.

 

Estou só, entre as árvores queimadas,

que margeiam meu rio distraído.

Faz-me bem lembrá-las, eram amadas.

E ele, pleno de curvas, comovido.

 

SONHADOR SONHADO, DE ELO EM ELO

 

No fundo da casa

de Sancho Alves de Melo,

havia um cavalo

que se montava em pelo.

 

E havia um buraco

de gerar pesadelo,

no fundo da roça

de Sancho Alves de Melo,

 

que só de mirá-lo

arrepiava o cabelo,

a profundidade

turvava o Setestrelo.

 

Buraco que um homem

sozinho abria com zelo.

Não se sabe se era

branco, negro ou amarelo.

 

Solteiro na vida,

disse que era donzelo

e que ali chegara,

fugindo de um flagelo.

 

Toda noite invade=lhe

um sonho de castelo:

que perto havia ouro,

no chão, sem paralelo.

 

Essa alma sem nome

largou o parabellum

e, com ferro e suor,

deu ao sonho seu elo.

 

Cavou e cavou,

com os dias em duelo,

pensando em ao sonho

chegar sem atropelo.

 

Prosseguiu cavando

com amor e desvelo,

e o vento a saudá-lo,

tocando violoncelo.

 

Alma retirante,

ao sol lançava apelo

de que não sumisse;

na vida vale o anelo.

 

Pássaros cantavam

e, num momento belo,

folhas solfejavam

um som nada singelo.

 

No céu, via o Cristo,

montado num camelo,

lhe abençoar a vida

de fé, único modelo.

 

Os dias e as tardes,

sem nenhum engabelo;

somente o amor ao ferro

salva um pé-de-chinelo.

 

“Ouro, somente ouro,

é o prêmio por que velo”,

brada. Embaixo, a terra

vai virando farelo.

 

Respira quietude,

dela puxa o novelo.

De alimento apenas

frutas e cogumelo.

 

A ele importa menos

que da alta serra o gelo.

Sofrer já lhe foi.

Hoje não, hoje é o selo

 

da sorte no tempo.

Que venha tudo pelo

ar. Que soprem músicas

ventos de Apolo Délio!

 

“Há de sair meu sonho

deste fundo magrelo!

Sonho que se vá

Bem melhor que não tê-lo”.

 

Saco de pó no ombro,

o corpo em desmantelo,

mais firme que um touro,

a puxar um rastelo.

 

O tempo vencido,

à força de martelo;

o saco na escada

rebenta o tornozelo.

 

Ao redor avista

de flores o labelo,

aves saltitantes,

a fugir de pinguelo.

 

Cacaueiros novos

tratados a cutelo,

bem melhor o peso,

torturando o canelo.

 

O vento zunindo,

com raiva de escalpelo,

finca-lhe na fronte

mudo sinal de estrelo.

 

Afundado em ânsias,

no escuro, o peito nuelo,

só o ouro, o sonhado ouro,

é capaz de entretê-lo.

 

Um dia descobre:

está branco o cabelo;

se o sonho persiste,

não cogita perdê-lo.

 

Se a lua e as estrelas

guardam silêncio, ao vê-lo,

é que não quiseram

os deuses protegê-lo.

 

Dor funda e martírio

golpearam seu anelo.

Nada há para salvá-lo,

Nem mesmo o Setestrelo.

 

O ouro tão sonhado

dorme no cerebelo.

Será que o recebem,

De volta a Cabedelo?

 

Com vinte mil réis,

de Sancho Alves de Melo,

chorou e partiu.

Nem Deus conseguiu vê-lo.

 

Este ingênuo cabra

sonhou um sonho belo.

Se pertence aos fados,

não dá para perdê-lo.


LAVOURA FATAL COM GÓRGONAS

 

As portas e as janelas, tristemente,

Miravam serrania e verdes pastos.

Assim como derrete campos vastos,

O sol na tarde insulta rosto ardente.

Sou um homem de outrora. Estes meus braços,

Que atravessaram matas, montes, rios,

Na aura vertiginosa dos plantios,

Carregam a memória de balaços,

Que hoje não denuncia a mão deserta.

Cacau, um deus que chega e arreia a mala,

Vindo de México ou de Guatemala,

Amor ao ferro, só, nenhum alerta.

            E quando as intempéries regurgitam,

            São os céus vingativos que vomitam.

 

(Florisvaldo Mattos, SSS/BA, 26/04/2017)


PAISAGEM CONTRA O ESPELHO


Quebro o espelho, mas se mantém a imagem.

Livro-me de histerias e queixumes,

levanto os olhos para o teto, penso.

Vejo colinas, bosques, águas, flores, 

um terreiro longínquo, uma pastagem,

verdes que precipitam cacauais.

Vem anunciando chuva benfazeja

um vento forte e novo, bem diverso

do que desce da serra quando calmo,

este que agora as telhas injuria,

atravessa ruidoso as quatro portas

do armazém de secos e molhados

e me escancara em tarde pressurosa

roto espelho de auroras sossegadas.


CACAU. CANTO. CLAMOR

(Ao ontem verde com alma)

 

                                               A Jorge Amado, in memoriam

 

                                   Um gran vuelo de cuervos mancha el azul celeste.

                                                                                   Rubén Darío (1905)

 

I

Na terra farta de frutos

sigo os rios.

Na árvore gorda de grãos

sorvo a seiva.

 

Vou, sim, vou.

Cacauais me amparam

de sol terroso,

de chuva rude.

 

Ó infinitude, áureo cosmo

prenhe de diálogos verdes,

depois safra de soluços.

 

Ressoando primórdios                                     

de edênicas andanças,

a natureza sorria

abraçada com os homens.

 

Vale lembrar este tempo

em que a mata acordava.

Não se ouviam trombetas,

pulmões fortes, buzinas,

nem bodegas rurais,

nem sorrisos de moças                                                                                               

ou violões seresteiros.

Sim, pássaros nos ninhos.

Lobrigam o abismo verde

ou músicos passeiam

sobre a clave dos ramos

de onde pendem saguins

ou o jupará de amanhã.

 

(Ó natural semeadura de crenças.

Ó gestos noturnos que a selva oculta.

Ó dias de ontem nada temerosos).

 

Ali, sim, se estabeleceu aurora

De raízes jamais adormecidas.

 

II

Cegou-se o horizonte?

Nunca mais hei de ver

manhãs fecundas,

tardes dormentes,

noites que anunciavam

certezas do outro dia?

E as mudas, vingaram?

E as vozes, clamaram?

 

Sou um colecionador de sombras,

de veredas mortas, onde

mãos burocráticas impudicas

imprimiram

sobre caules, ramos, folhas

signos de amor ausente,

afrontaram

a memória do chão,

a de quem por ele transitou

com alma e sonhos perenes.

 

Um dia, dirão: acorde e parta,

as estradas de ontem se fecharam,                                       

o ar de frescor apodreceu,

a água encheu-se de mercúrio,

as pedras são sobras de incêndio,

e só restou a mim para apagá-lo.

Mudo, fito o que não sou.

Perplexo, converso com o nada.

 

III

Da janela do trem olhos inúteis

refazem itinerário sob poeira,

bordejam matas, coloridos montes,

morada de vozes e saltitantes rostos;

sonhos férvidos trafegam pelos

debruns da tarde, antes que a noite

chegue e me devolva migalhas de ontens,

meras sobras de metamorfoses.

 

Não te aconselho a chorar, quando passes

e mires o deserto de nutridas safras, nem

o que se passou, o que, nítido e úmido,

nasceu, vibrou, viveu, tombou, morreu.

Homem, entende: todos quererão saber

o quem, o que, o quando, o como e o porquê,

de madura fatalidade e dor no sangue.

 

IV

Dirás que homens vieram na noite grande,

misturando longes, fomes e outros brados.

Alpercatas tiniam, dentes rangiam, calças

de mescla e brim ressoavam como bronze;

ávidas faces de crianças ecoam maldições.

Os que vieram do Norte com chagas e sonhos,

guerreiros e santos em busca de água e pão,

mártires de pés rachados e barba por fazer;

do Norte, de Sergipe e Canudos, lapeados

de caatinga abrasante, e os mais de África rastros,

que obscuros vieram também para ser donos

de terras sobre encostas e perambeiras únicos;

cambaleando na noite fantasmática,

esgueiram-se na selva contra os medos,

para emergir na terra solidária

banhados de suor e economia.

Sombra e dor no semblante, fecundos passos,

espalharam claridade em solo de durezas,

e logo a terra-úbere, à vasta luz abrindo-se,

vingou, gerou seiva, abençoada pelas estrelas. 

 

V

Dirás que homens outros também vieram,

descidos dos céus, chegados do mar, varões

de olhos claros, cabelos e sobrenomes feéricos,

terno engomado e gravata borboleta, eles,

fugitivos de guerras e derrotas, em Ilhéus

aportaram vontades e proas confiantes,

os Stevenson, os Wildberger, os Colavolpe,

os Scaldaferri, Kaufmann, Brussell, Zack Oack     

(longe, decifro gasto letreiro por sobre a ponte,

refletido em murmúrios de bagres e tainhas).

Em gabinetes e terraços, recendendo auroras

de mares remotos, tardes e noites gélidas,

plantaram experiência e formas de pensar,

com discretos modos de aprisionar os dias.

Potentes centauros desceram na hora unânime,

com galope febril, no despertar das águas,

vêm cobertos de auras, nostálgicos de neve,

que se acrescentam às barbas do Rio Almada,

invadem o Cachoeira, suplantam Rio de Contas.

Entraram vibrantes pelos riachos, avançaram

botas e sobre solidões assentaram portas,

para trocas atônitas que assanhavam manhãs.

 

Moveram aço e rodas, logo rotas de comércio,

inundaram distâncias com amêndoa e sacaria;

avivaram cassinos, ao som de polcas e foxes,

amores, bródios, com vinho e whisky perdulário.

Vilas dirão mais tarde para que vieram eles,

quando à noite se abrir a luz dos alfarrábios.

Se ventos zunem, balas zumbem, nuvens captam,

repercutem mensagens desta nova aurora.

Altos, avermelhados, ágeis, descendo rútilos,

chegaram com tropel de notas promissórias:

uma luz cambial se propagará nas matas,

por onde seguem florescendo vozes e rastros.

 

VI

Fé e sol do Oriente, mel e flor dos oásis,

para trás o deserto, camelos e miragens,

reluzentes medinas, versos do Corão,

livres de turbantes, burcas e sandálias,

outros mais, mais outros, enfim dezenas,

vieram, por desejo de erguer e construir

o que a alma na carne gravara como dívida,

exsudando moeda e astúcia planejada.

 

(Tinham a carne igual à de centauros,

correndo na planície em cavalgada).

 

Vencem terras avaras e mares e vão unir-se

aos muitos que semeavam sóis junto dos rios                                                   

e, urdindo calendários com luas generosas,

cavalgando manhãs e crepúsculos amenos,

trafegaram por horizontes e lá montaram

sociedade ecumênica de raças e línguas.

 

VII

 De repente, na sucessão de colheitas amargas,

de fartos comboios com amêndoas apodrecidas,

de lágrimas e mãos em clamor estendidas,

estuário de sombras, dor e morte (sabemos),

em paisagem apropriada a corvos e desvarios,

da serra a fome, em corcovas, coalhando vales,

límpidas mentes dispostas a aplacar estios,

outros vieram, lépidos, com asfalto nas veias,

a reacender chama com lábia e burocracias,

propalando siglas, ciência e metodologias,

químicas severas, mapas e árdua geometria,

metidos em trajes de rija e formal pertinência,

dizimaram crepúsculos, auroras acenderam.

Bocas espalham pelo ar com notas estridentes: 

a vida é bela, a morte tarda, sonhos vencem,

porque o que cabe ao sol, útil, da noite se ausenta.

 

Foi depois com o dia alto que o desastre veio.

Sobre águas, pedras, colinas, canoros córregos,

com saber das Antilhas ou nos Andes colhido,

à força de azoto, fosfato, cal e ureia, roubados

do fundo da terra aberta à ilusão e ao sonho,

áulicos derramaram a esconjurada lavra.

“Não há mal que sempre dure”, brada o jovem,

ante os lamentos do úbere enfermo canceroso.

“Nem bem que nunca se acabe”, rosnou o velho,

nos bruxuleios da noite que baixa inapelável.

 

VIII                                                                             

Acordo em alamedas tumulares,

conto círios de noites que se foram.

São pesadelos o meu patrimônio,

de horrores me basto comigo mesmo.

Converte-se o ar em tumba de canções,

Orlando, Sílvio, Chico, Ciro, Dick

passeiam entre antenas, folhas mortas.

Uma criança chorou, a mãe gritou,

o pai desesperou, o rádio calou,

e ele foi de ônibus para El Dorado

(disseram: lá ele é amigo de Deus,                                                   

tem a sensação de terra prometida).                                            

Em São Paulo desceu, ganhou salário.

Vai para a obra e morre eletrocutado.

 

IX

Adeus, dias claros de outrora, corolários

que vingaram na terra de águas fartas;

adeus, mãos operosas que redimiram brenhas;

adeus, sonhos silvestres, semens de manhãs,

em campinas pejadas de música e cores;

adeus, meteorologias, verdades sazonais

de cochos e lastros cheios; adeus, chamas

de fornalhas ardentes noite adentro,

enfartadas de músculos e amêndoas,

tropas de burros subjugando lamaçais.

Adeus, trens de carga repletos de saudade,

avisai às quebradas, aos contrafortes,

à fieira de pássaros nos fios telefônicos:

debaixo da terra, estou indo para o trabalho.                                           

 

X

Fulgurações de mel em cuias escorrendo,

sob o fresco das roças de pujantes frondes,

adeus. Morto, comprei passagem para o éden.

Lá, com amigos, quero encontrar a doce Anice,

a de olhos forjados em veredas de infância,                                                                   

jambo de cabelos azuis e mãos de seda

e um jeito pré-rafaelita de sentar,

virar o corpo, os seios rijos, e mirar-me

por sobre abas da jindiba no alto da serra.

Adeus, tropas de lento passo nas ladeiras,

convosco dialogo em minhas noites insones;

adeus, tropeiros que ajeitavam peitorais,

nas íngremes subidas rumo ao infinito.

Desta fonte flui a essência de minha vida.

   Vista da da Estação de Uruçuca, quando se foi a estrada-de-ferro


SONETO DO AMOR PERDIDO

            A Dinalva, Euvaldo, Célia, Genevaldo e Heraldo, com amor de irmão

 

Lá, no armazém de secos e molhados,

Sentado no passeio ou no batente,

Meu pai mirava a serra azul, em frente,

Queixando-se de vida sem cuidados.

 

Ele, sempre dos céus nada temente,

Ali, chorava a sorte dos coitados.

Foi-se a hora de facões desembainhados,

No eito, da roçagem e da semente.

 

Oh, duros tempos do Barro Vermelho!

Hoje, sou eu, aqui, lembrando o velho

E os amargores de tempos passados.

 

Perdeu-se tudo: o amor à terra, às leiras,

À serra azul e às gordas prateleiras,

Lá, do armazém de secos e molhados.


SAFRA DE SOMBRAS

                        That is no country for old men, the young

                        In one another’s arms, birds in the trees.

                                                                       W.B.Yeats*

 

                                                           A Hélio Pólvora

 

 

É; foi-se o tempo de plantar cacau:

Não é mais um ofício para jovens.

 

Grandes nuvens de crinas esvoaçadas,

Esparramadas no azul – soltas setas –

Galoparam sedentas de outros mapas.

 

A terra agora espectro de agra face,

Paragens somente para ossos (frios),

Esqueletos que são aves em ramos,

E até bem pouco não era assim (saibam):

O chão se abria a sonhos e sussurros,

soluço (único) de água mensageira,

E lá vinham pérolas entre musgos,

ametistas suando ao verde sob chuva.

 

O sol gretou os seios da morena,

sinhá-moça que veio de Belmonte,

intumesceu os olhos generosos.

E fez mais: as almas ressecou,

E os antes desasselvajados rios,

(Mirai) hoje somente veias secas,

E semblantes que vagam nas estradas,

Safra de sombras, ai! dever de velhos.

 

*Terra aquela não é que sirva para ancião.

Os moços a abraçar-se, as aves a cantar

Nas árvores (...)

Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos


HOMEM MORTO DIANTE DO RIO

 

(À memória imortal de Adalgício
de Oliveira Leite, varão campestre,
guardião das matas de Itacaré, vez
por outra, narrador de jagunçagens)

Ibant obscuri sola sub nocte per umbram.
(“Iam obscuros pela sombra na noite solitária”; Virgílio, Eneida, Canto VI, 268)


Barro Vermelho. Subindo a ladeira,
Parede em taipa, o teto era de palha,
E de barro socado o chão da casa.

Adalgício, o seu nome. Eu, diante dele,
Recém-arremessado ao mundo, ouvia-o,
Que bem me vinham vozes que eram suas.

Sobre baú de cedro e couro velho,
Arrimo da carcaça, queixo e mãos
Contra magro joelho, o tempo verga.

O senhor das estradas e dos montes.
A testa alta, cabelos já grisalhos,
tal um fauno, um arauto de outras eras.

Na sala tosca, o grave monge entoa
de sangue e arrojo histórias pelejadas,
na doce luz da tarde que descamba.

Palavras mágicas em duro rosto,
Sonho a jorrar da boca do homem calvo,
Perpétuo, no passado e no presente,

A voz do bardo rústico desfia
Luas coalhadas de esperança e medo:
Árdua canoagem sobe e desce rios,

Destino obscuro de homens pela noite
Conduzir (todos mudos) de Sergipe,
Límpido fogo, pelo Rio Almada.

Crispada mão, a arma no coldre oculta,
Brilha o punhal de doze polegadas,
O facão e o fuzil papo-amarelo.

Fome de comer nuvens, de romper
Mata fechada atando feixe e fardo,
Chuva e lama ungindo ouvido e tato.

Vaus e lajedos, pântanos e serras,
Dentro da noite a aurora como guia,
Mas no íntimo era o sol que te mirava.

Quando morreste no catre de tábuas,
À beira de outro rio de outras lendas,
Teu passado viajava pelos dias.

Mais que um farol, a mente recompunha
Geografias de coisas e de gentes,
Na batalha do sonho contra a sombra.

Talante que decifra telhas vãs,
No horizonte de ganhos e perdidos,
Ficou teu nome, sim, como um troféu.


Rosto anguloso, clara pele em corpo 

ossudo, a firme voz despeja o sumo

do que foi glória e ardor no anonimato.

(2003)  

 

NOMES QUE OS GURIATÃS CANTAVAM 

                        Por todo o bosque, as folhas estão cheias de vozes,

Em sussurros (...). Ezra Pound, Canto III)

                        

Onde estarão Vavá, Neném, Namir,

Wande, Miro e Carlito de Mãe-Dé?

Seus nomes ainda ecoam nas baixadas,

desafiando o azul da serrania.

Sobem e descem íngremes ladeiras,

percorrem trilhas sem nenhum cansaço. 

Filhos do mato virgem, nele somem.         

Lá, cochilam num tempo que não passa,

estirados na relva. Os alçapões

em galhos onde pássaros gorjeiam

guardam sorrisos dentro de manhãs.

Vou pegar a capanga e vou lá dentro, 

Por aguadas e roças de cacau,

recorrer armadilhas com os amigos.

Hora de mata em festa, as flores cantam,

Com a musical orquestração dos ramos.


TARDES/PARAGENS

                                    Para o amigo Dr. Carlos Cézar de Castro Moraes

 Olhar detém

a serra alta

de vasta luz

em decúbito

dorsal de deusa

lasciva curva

assemelhando

REDESENHADA

 

Advento verde

grávido em cinza

(fulvo proscênio)

ouro e vermelho

que abrem pálpebras

outro debuxo

outra sequência

ALARANJADA

 

Em tons pesados

a tarde oblíqua

a noite avança

quintais invade

onde dormita

pregressa vida

falas de infância

REFIGURADA

 

Olentes árvores

jovens correndo

ventos alísios

esfiapam nuvens

velam paisagens

cores viajadas

de uma folhinha

RECAPTURADA

 

Ímpetos de ontem

apaziguaram

as crinas de um

potro alazão

claro galope

no esmalte verde

tributo à alma

RETEMPERADA

 

E haja dor

No meu

OLHAR

E haja flor

De bom

MIRAR

E haja sonho

Para

SONHAR

E vero amor

Só 

CELEBRAR 


ÍNTIMOS CAMNHOS                 

 

"Não sei para onde vou

 - Sei que não vou por aí!"

                                                (José Régio)

 

Não. Nada de penhascos irreais,

Tampouco de florestas invisíveis!

Por aqui tudo fala à sensação,

Ao olhar, ao aroma, à língua, ao tato,

Ao som. Feliz de quem os tem. Ó vós,

Que ditais pelos montes de onde venho,

Por trás de sombras como que vazias?

Enquanto me desfaço de meus fardos

Ancestrais, meu cabedal de fadigas,

Lábios trazem clarões de frescas auras,

Meus pés sibilam sobre sendas rudes,

Mas com promessa de horizontes novos.

Se me pedes que siga o teu caminho,

Descansa. Sei que não vou por aí!


AMANHECERES

 

Dias virão
sob um céu pálido
e seguirão
sobre chão cálido

e voltarão
num sonho válido.
Palmas de mão
para um inválido

ser que se perde
por tantos dias
por tanto verde

nas alegrias 
do asfalto mudo.
Sonhar é tudo.


VATICÍNIO

 

Na última página,

O último verso.

Ah, que vontade

Fosse um regresso!


    "Sonhar é tudo", parece dizer essa pintura de Jane Hilda Badaró


QUEM É QUEM DO AUTOR

 

Natural de Uruçuca, no sul do estado da Bahia (Brasil), Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; aposentado da Universidade Federal da Bahia, como professor da Faculdade de Comunicação (FACOM); como repórter, editor e colunista, exerceu funções em vários jornais, ocupando inclusive os cargos os de editor-chefe, no Diário de Notícias e A Tarde, ambos de Salvador). Foi correspondente e chefe de sucursal na Bahia do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Por mais de uma década, exerceu a editoria do caderno semanal A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como o melhor do Brasil, no quesito de Divulgação Cultural. Desde 1995, é assume a titularidade da Cadeira nº 31, da Academia de Letras da Bahia. Entre 1987-89 ocupou a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma antologia, 2012 (todos de poesia). Estação de Prosa & Diversos, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 1998 (2ª edição) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, em 2004 (os últimos de ensaio). CACAUEIROS: Poesia. Conto. Teatro (2022); Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022).  Participa de várias antologias baianas e nacionais e quatro do estrangeiro - na Galícia, em Portugal, na França (Bretanha) e na Alemanha (Frankfurt). E, como convidado, também de eventos culturais: seminário promovido pela Fundação Cultural Pacífico Pereira, em Jequié (2009); Feira do Livro de Cachoeira (Flica, 2014); Feira do Livro Nordestino (Fenelivro, Recife, 2015); como homenageado: no Festival de Poesia, realizado em Maracás (2015) e no II Festival Literário de Ilhéus (2017).  

Imagem: Florisvaldo Mattos. Fotografia de Mauro Coelho, com tratamento gráfico Fhotolab.

 


FLORISVALDO MATTOS


FONTES DOS POEMAS ARROLADOS - LIVROS 



REVERDOR. Salvador: Edições Macunaíma, 1965.

A caligrafia do soluço & poesia anterior. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.

Mares anoitecidos. Rio de Janeiro: Editora Imagens, 2000.

Galope amarelo e outros poemas. Salvador: Edições da Bahia, 2001.

Poesia Reunida e Inéditos. São Paulo: Escrituras Editora, 2011.

Estuário dos dias e outros poemas. Salvador: Caramurê Publicações, 2016.

Antologia Poética e Inéditos. Salvador: Assembleia Legislativa da Bahia (Coleção Mestres da Literatura Baiana), 2017.

CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro. Itabuna/BA: Mondrongo, 2022.


 



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