(O cimo da Serra do Jacutinga está a 780 metros, acima do nível do mar, altura igual à do Corcovado, no Rio de Janeiro).
MEMÓRIA DA BRUXA NUM BORDEL DE NOVELA
A mãe Gertrudes
Somente de horas alegres
São feitos os dias da infância.
(O que é duro e revés
Sai da coluna do Haver).
Há duas exceções, porém:
A fome, que é desespero,
E a morte, noturna hiena,
E também as mágoas vindas
Dos primeiros desencantos.
O resto fica escondido
Nas abas lá da jindiba
Entre os guardados da loba.
Sobram os grandes espaços,
Os horizontes abertos
Às primeiras cavalgadas.
Eram cavalos-de pau
Ou era a tropa de burros?
Facão no cinto e na mão,
A taca de mil estalos,
Nas dobras de alguma nuvem,
Ramiro tange escondido
Cuscuz e a Besta Melada.
E depois nos prega sustos
Saltando detrás das portas
Com a boca escancarada.
Do cume da Jacutinga
No trote da frialdade
Desce um rebanho de sonhos.
Ou são rebanhos de sombras?
Neblina fácil nas copas
Enreda-se com a folhagem.
Misturam-se aos bem-te-vis
Velhos cantares e aboios
Que os ventos levam e trazem.
“Que fazem meninos? Brinquem”,
Entoa a voz cautelosa
De quem quer filhos unidos.
Somente de alegres luzes
São feitos os dias da infância.
NOVAS IMAGENS DA SERRA
Eras tu, Jacutinga, amada serra,
Entre maços de cinza, pela tarde,
Tu, de neblina em cio e aroma ungida,
Na palidez de um céu alaranjado.
Qual Antonio Machado, em Guadarrama,
Vagando por cumeadas e veredas,
Trilhas abertas para o amor e o sonho,
Eu cavalgo também tuas entranhas.
Dama de Elche debaixo do luar
Logo me acende emoção de pretéritos:
A mesma iluminada deusa etrusca,
Que meu voraz vagar flagrou nos fundos
De um plácido museu, em rubra luz
Envolta, magma de eficaz mistério,
Que evoca tempos e paisagens mágicas,
Solo por onde transitaram crenças.
Jamais te abandonei, amada serra.
No duro passo do calvário urbano,
Abstruso nicho de burocracias,
Pulsavas no seio íntimo de tudo
Que era eu mesmo com as minhas aflições.
Ó serra quase da boa esperança,
A luz de teu luar segue em meu olhar,
Sem que haja um verso com a palavra adeus.
À SOMBRA DA TARDE
A Soane Nazaré de Andrade
Oh, minha serra, eis a hora
Do adeus vou-me embora,
Trago a luz do teu luar
No meu olhar,
Adeus.
(“Serra da Boa Esperança”, de Lamartine Babo, canção)
Eu só, em tarde de forte vento e frio,
defronte de minha deusa etrusca, ela
estirada, lassa, em dorsal decúbito,
recoberta de lanhos (verdes matas,
campos e plantações), que é a minha Serra
do Jacutinga, grávida de nuvens.
Nem parece que há um céu a navegá-la,
eternidade que as estrelas fitam.
Mirante solar de sete cidades,
ó serra transida de chuva e sol,
para guardar um verso musical,
para chamar-se de boa esperança,
consumas-te em pincel, paleta e tinta,
festa de verde e azul, varal de infâncias.
Em memória de Dodô, filósofo da Pirambeira
Na Serra do Jacutinga,
onde o mundo dava um nó,
Macedônio me dizia:
“Deus que é grande ficou só”.
Era mais pelo que via
do que pelo que não via,
um filósofo do dia.
Quase sempre me dizia
que não via o que via
aquele poeta do dia.
CAMINHOS
Descendo da Serra do Jacutinga,
serena, a água espelha estrelas douradas;
espelha a verdura dos cacauais,
o brilho que tem a cor da amargura.
Espelha mais a água pura do riacho:
talvez a minha alma, talvez o que foi
um dia esfinge, na curva do tempo,
de onde me vem um tropel de alimárias,
que a água replica por entre a verdura,
abrindo-se em cor de estrelas douradas.
Para o riacho e a mata só o dia existe,
e o peão que aguarda o sol da manhã,
enquanto o riacho projeta nas pedras
a luz que celebra frutos dourados.
Meliboeus: “Tityre, tu patulae recubans sub tegmine fagi”.
Tityrus: “O Meliboee, deus nobis haec otia fecit”.
(Virgílio, Bucólicas)*
Sem ser Títiro, nem ser Melibeu,
nem recostado estar numa jaqueira,
como também não para doces ócios,
apuro a mente e escavo chão de auroras,
começando por dias que se foram.
A estrada se abre e ando pelos vales.
A casa de seis portas na ladeira
contempla campo e serra azul-turquesa.
A cor da terra consentiu o nome:
Barro Vermelho, salvação de brenhas.
“Já lá te espera o mundo”, ao pai disseram,
e árduo, de peito aberto aos ventos, foi;
faina e farnel, intrépido, montou,
para mulher e filhos sustentar.
*Melibeu: Ó Títiro, tu, deitado à sombra de uma vasta faia...
Títiro: Ó Melibeu, um deus criou estes ócios para nós.)
Que casa antiga é essa que me olha da janela,
Em que tantas tardes passei e passaria?
Ela olha para todo lado, dia a dia,
E não se passam anos sem que pense nela.
Noite. Não se porque me bate esta agonia
De tanto me passarem anos e ainda vê-la,
Como se vivesse uma vida paralela
À que bem distante eu vivi e viveria.
Nunca tive uma casa igual à que foi minha,
Em tempo de mata e quintal sem flor daninha,
Viajando pelo mundo, tendo o que tiver.
De volta aos longes de menino ou de rapaz,
Sei que essa casa ainda existe e ainda me quer
Pousado em seu longo varal de amor e paz.
(Florisvaldo Mattos, SSA-BA, manhã de 09/01/2018)
A CASA BRANCA QUE VOAVA
Voy al encuentro de mí mismo.
La hora es bola de cristal.
Octavio Paz
Deixo a casa que para mim voava.
Sempre fincada estava, mas tinha asa.
Saltava serras, rios navegava;
corria em trilhos, sendo sempre casa.
Sentado num jardim, me concentrava,
mirando as árvores; em tarde rasa
de frescor, vinha e súbito pousava.
É pelo coração que o sonho vaza.
Era assim, por sobre horas e distâncias,
ela vindo aliviar as minhas ânsias,
às vezes, a sentia em minhas mãos.
Não sei se é o destino fatal das casas.
Sei que, sempre de nervo e mente sãos,
vezes acordo sob aquelas asas.
HORA DE JANTAR
A Roberto Gabriel Dias
I
Não, não fale, não clame.
Ouça os lenhadores.
Deles nos chega vívida
– densa e temporal –
a linguagem do aço
assumida ao gume
bem no centro da mata
de árvores pernaltas.
II
Não, não fale, não grite.
Ouça os serradores.
Deles nos chega lenta
– grave e comovida –
a linguagem da fibra
(ou nervos) torturada;
instante inicial da madeira
em domação corporal.
III
Não, não fale, não cante.
ouça os carpinteiros.
Deles nos chega reta
– nítida e apurada –
a linguagem do metro
antevisão do espaço
em projeto racional
a caminho da utilidade.
IV
Não, não fale, não xingue.
Ouça os marceneiros.
Deles nos chega úmido
– límpido, imperturbável –
o código do verniz
nos interiores onde
reina a superfície
muito mais que espelhos.
V
Não, não fale, não chore.
Ouça os familiares.
Deles nos chega clara
– plácida e distante -
a linguagem do uso:
modo natural de todos
calados em volta da mesa
submersa em utensílios.
As três portas da frente onde era a venda,
guarnecida de vastas prateleiras,
e outra mais e mais outra, toda a senda
que levava ao quintal de bananeiras;
a franja da floresta, onde eu a lenda
desfiava de Anice, a que as primeiras
quimeras fez passar por uma fenda
na alma e que se ocultava dos que às feiras
de cristalinos sábados rumavam;
os cavalos de pau e as de bambu
flautas, mais a valer quando imitavam
virentes sons; e os ninhos de jacu,
por onde começava nova história.
Tudo isso me abre sulcos na memória.
Entro na casa. Chão vasto de auroras,
Velho armazém de secos e molhados
Repousa de silêncio fatigado.
Instrumentos ressonam; são miragens.
Moirões, mudas cancelas, arreatas
(arrochos, peitorais, bridões, cabrestos,
fivelas, argolões de Potosí),
soberanos, debaixo da ferrugem,
palpitam, pulsam, me olham e latejam
(coração a arrulhar sonhos remotos).
Restam no chão madeiras desgastadas,
sombras em trânsito e fugazes gestos.
Nelas, no que lhe doa a consistência,
Rosna uma geometria de clausura.
BARRO VERMELHO, UM LUGAR
Ai! sítio que me atiça
as emoções primeiras.
Coração nas ladeiras
rasga-me. A serra: do alto
a mata avisto, a casa.
O descampado onde água
arisca (o riacho) risca-me
fervente infância – ai! asa
despedaçada; mergulho
fundo no espelho – em brasa.
Ai! vento que me estuma
à mente, ao rosto, aos lábios
acesos calendários.
Entro com as ferramentas
do sonho na derruba.
Dilacera-me a fúria
da lâmina nas árvores,
e mais que isto, o que avisto,
no começo das chuvas,
os horizontes graves.
Nasci e me criei em chão maduro,
eu, sonhando com roças de cacau:
a laboriosa febre das colheitas,
a cor, o mel, que escorre sobre a relva,
o aroma das amêndoas, som de rodos
ao sol, em lastro que o calor hospeda.
Minha mãe na máquina de costura,
esmerando nas roupas que eu vestia,
cumpre sina que a salva no desterro,
se para trás ficaram mudos olhos,
a terra esturricada, a dor sem pão,
a porta a se fechar com a morte dentro.
O pai, tenso na ponta do passeio,
clama aos céus pelo chão que o sol oprime,
por safras que o socorram o ano inteiro
e, montes fitando de azul fatal,
verte lágrima, que lhe tinge o rosto
a esperança que desapareceu.
A natureza enferma insufla exílios.
Mais que sentindo, ouvindo seu perfume,
as flores de um quintal (enfim memória)
colherei hoje mesmo, inda bem cedo.
Perto da fonte de água cristalina,
moças estendem roupas nos varais.
Rapazes hão de vir no fim da tarde,
em tropel que desata serra abaixo,
de quem anui com búzios vespertinos,
junto de arroios, quando o sol declina.
Sabe-se que, ao fim todos, de alma sã,
logo se vestirão de amanheceres.
DIÁLOGO DA TERRA COM OS SENTIDOS
Fecho os olhos cansados, e descrevo
Das telas da memória retocadas.
Cesário Verde
Acordava de ouvidos aguçados,
quando na mata ventos sobrevinham,
e a família dos ecos se agitava;
logo que iam, pronto, retornavam.
Eram machados cortando (e ainda cortam),
sons da derruba assustando pássaros,
sob céu mais de favores que de preces.
Ninguém lia, mas aprendia, no eito,
como usar o facão libertador.
Os homens se agrupavam em simpósio,
com o sol de convidado principal,
desenfurnado desde o amanhecer.
E era assim que nascia a madrugada,
do diálogo da terra com os sentidos.
TEMPO DE ÁGUAS SOLIDÁRIAS
É a Natureza, sim, no seu perpétuo
Desdobramento anímico e profundo.
Teixeira de Pascoaes
No dia que amanhece, a mente aprumo,
passo em revista fardos de horas vãs.
Uma brisa, uma nuvem, mesmo um trino,
ou voz qualquer de ramos que decreta:
nenhum outro caminho dentre a selva.
O chão e as águas fremem solidários.
As águas, sobretudo. Na esperança
que alimenta e seduz serenos rostos,
elas são o que a terra mais almeja.
O solo a chuva encharca suavemente.
Retumbam vozes pelos cacauais,
igualmente com sol depois da chuva.
Calmo verão clareia esses caminhos,
mas é o outono que devolve à terra
o óbolo com que sonha o lavrador
e faz seus pés sentirem o alarido
da febre que se apossa das sementes,
quando o solo começa a conhecer-se.
A natureza torna o homem mais lúcido.
Unido à terra, ao fogo, à água, ao ar, remotas
quatro forças que regem seu destino,
espelha-se nos olhos e nos lábios
a comunhão de sonhos com sentidos,
coalhando o chão de cantos e ufanias.
ESPERANDO A NOITE VASTA
Nunca sabremos quién forjó
la palavra
para el intervalo de sombra
que divide los dos
crepúsculos”.
Jorge Luis Borges
Recordo:
havia um armazém de secos e molhados.
De uma de
suas quatro portas avistava ao longe,
Mudo, a
curva serra de ouro-azul resplandecente.
Que
sentiam esses homens, errando pelos matos,
De pés
descalços, lentos, na tarde pisando espinhos?
Pisam
formigas, folhas e frutos de sonoros ramos
E no
intenso verde, armam laços de pueris caçadas.
Não sei
como eles percorriam tantos labirintos
De turvas
roças de cacau, lajedos, cegos pântanos.
Adiante o
campo que se debruçava sobre cercas
E
baixadas. Soavam búzios, e logo por ladeiras,
Bambeando em
passos rítmicos, retornavam eles
De árduas
fainas que pressuroso alfanje decifrava.
No
terreiro, moreno Ramiro desarreia plácidas
Mulas (Gasosa, Fortaleza, Catita, Diamantina).
Por entre
porcos, desfilam galos madrugadores.
Busco um
número no concerto vesperal do dia,
Os vinte e
dois da tropa árdega encabeçada
Pelo
branco-fosco Te-Aviso, que
dispensava,
Na dura
estrada, o peitoral de sino e guiso célere.
Ouço
vozes. Está verão, despenca o dia. Cores
Misturam-se
num rubro céu de lento entardecer.
Dentro,
jovem negro, cearense, junto do balcão,
Após o
búzio que o liberta de eito clamoroso,
Entornando
feliz um rubro copo de cachaça,
Declama
versos parnasianos de insepultos dias.
A mim e a
todos ali, que o ouvimos mais que pasmos,
Diz que
provê de mão endeusadora de mulher,
Mas se
recorda apenas que de Santa a nominavam.
A noite
desce como todos a pressentem, lúbrica.
Com o
sentimento de auferi-la sucessivamente;
Nós, a
tudo que prazerosamente nos rodeia,
Ávidos,
terra, ar, água, plantas, aves, nuvens, mitos.
Noite, só
uma palavra a distingue, não há outra,
Sem que se
saiba quem um dia a tenha inventado,
Quando lá
no alto a lua parece mesmo ser real!
(Florisvaldo Mattos, SSA/BA, 31/07/2017)
ESTAÇÃO DE DIAS NUNCA IGUAIS
Passam os tempos, vai
dia atrás dia,
incertos muito mais que ao vento as
naves.
(Sá
de Miranda)
É um outro agora que pensa por mim.
As manhãs que ficaram são de flora
verdejando roçados, solidões,
já de fogo distantes, semeaduras,
e um sol que bisbilhota tronco e fronde.
Mirando céu de noite estrelejada,
despeço-me da serra azul-turquesa.
Bem mais que o próprio resplendor, a lua,
solitária e solene, quão remota,
espreita meus silêncios, meus assombros;
o terreiro de burros arreados
e o tropeiro que os trata como filhos.
São reais, todos eles. Finda a faina,
o espetáculo fecha-se, completo:
a noite segue impávida, igualmente
a almas fartas de dias nunca iguais.
QUANDO O FERRO O FOGO AFAGA
Um urgente parêntesis. Ninguém
lembra do fogo servo do cacau.
Desce de longe, de impassíveis matas
ou vastidões de ingentes capoeiras,
a madeira que logo excita os homens,
os mansos que não vivem de quimeras.
Calor ao ferro unido como ao corpo
e, ágil, ungindo amêndoa e solidão,
prossegue o fogo, alegre de ser fogo.
A chama legitima o ardor das mentes.
E é do contato imune com a ferragem
que, íntimo, o fogo cumpre o seu destino.
Do alto, quieto, o matuto lá embaixo ouve
o som de um cão que uiva no terreiro.
Conduzindo cacau para Água Preta,
Sinto na
tropa um fio de soluço;
É algo de
mim que viaja em fuga, é seta,
Que
aponta um tempo em que eu, pajem de buço,
Mirava o
efeito que um sol exegeta
Produzia
na flora, de onde um ruço
E um
castanho rompiam (quanta meta,
Quanta
preparação para o soluço!).
Aqueles
burros hoje, aquelas cargas,
Recalcando
ladeiras na memória,
Como em
todas as estações amargas,
Fazem
trajeto inverso de outra glória:
São
estrelas em tardes andarilhas,
Remédio
que à alma exausta chega em bilhas.
SAGA DE
TROPEIRO
Mar y cielo, pampa y sierra,
su galope al sueño arranca (...)
Leopoldo
Lugones
Vinha
tangendo pela estrada azul
alimárias de lombo carregado,
metido em lona e calos, um soldado
tenso de lutas contra o vento sul.
Com ele teve o cacau sua escultura
muar. Contempla o sol do ocaso roxo.
Desce da sela, põe a mão no arrocho,
que a carga se regula pela altura.
Rudeza e valor são suas divisas:
uma, do coração; outra, do risco.
Fremem no sangue ardor e agilidade.
Acorda-o o amanhecer das notas lisas
do pássaro cantor. Com sol arisco,
coleia, galopando a claridade.
A BESTA SE CHAMAVA FORTALEZA
A besta era serena e atendia
Pelo suave
nome de Suzana.
Paulo
Mendes Campos
Se do Campos a besta era Suzana,
a minha se chamava Fortaleza.
Era nos pastos que ela obedecia,
leve e serena, quase comovida,
ao gesto só de manejar a rédea,
quando queria pássaros ouvir
ou bezerros tanger para o curral,
em conluio com aragens, logo cedo,
por descampados vastos, meu tesouro.
Quero viver de novo esta harmonia
de cores, sons, aromas e sabores,
no delírio em que a tarde se desmancha,
com sussurros da brisa me avisando
que disso tudo a besta participa.
TROPAS DE BURROS SOBRE NUVENS
Tarde calma, no corredor da casa,
escuto de Ramiro a gargalhada.
Tropeiro não se esbalda no trabalho,
somente quando com meninos brinca.
No tempo não ficou somente a imagem
de um moreno brincando com meninos;
ficou, além do som no corredor,
um sol ruidoso no clarão dos dentes.
“Aonde tu vais, Ramiro?”. “Vou pegar,
arrear e trazer a Besta Melada.
Cuscuz vai ser a tua montaria,
para colher laranjas que há demais”.
Ramiro estende um couro no terreiro,
sob um calor de doer, e vai dormir.
Hoje, acima dos vales e das serras,
tange tropas de burros sobre nuvens.
NINFAS PELO BREJO CEGO
(Nunca vestem farrapos. Botticelli
jamais as olharia, de entre os ramos.
Seduzem mãos de ofício menos raro:
purezas de Ingres, ciências de Courbet,
de Matisse, talvez de Modigliani;
o feminino abstrato de Delvaux?)
Desço de montes, sigo pelo vale.
Escuto um baque: rolam seixos, a água
na tarde morna em círculos se mexe.
Um bulício de folhas à distância
traz a brisa que roça meus ouvidos.
A tarde se disfarça em porcelana.
Serão ninfas que fogem pelo brejo
perseguidas por faunos e centauros?
De onde vieram esses seres lépidos,
tímidas fêmeas pelos arrebóis,
que, pouco diplomáticas, se esgueiram,
a fugir de injuriosas investidas?
Vou por atalhos, de olho atento a trilhas.
Fátuas, ligeiras e, de pés olímpicos,
passam por mim e pelas andorinhas.
Param, como se lírios lhes acenam.
Para elas se abre o sol; a água lhes beija
o colo e os pés de nuvem. Que perscrutam?
A brisa é a sua aliada predileta.
Saracuras, sanhaços e nambus
além se calam. Elas, ágeis, fogem
por sáfaros caminhos; ribanceiras
galgam e somem num coral de adeuses.
Fogem, porque fugir é de sua arte.
Sigo seus rastros pelo brejo cego.
Guiam-me, mesmo após as despedidas.
Porque tenho pés e olhos de andarilho,
persigo sendas altas de onde aviste-as,
na certeza de que para onde forem
meus sentidos nunca estarão sem pátria.
Os ramos cumprimentam, quando passam;
redes de cipó e musgo, a quem, atônito,
pergunto se são ninfas, o que são.
Junto-me ao vento e subo numa encosta.
Diviso um prado. Não mais vejo-as; foram-se.
Existem mesmo ninfas neste pântano?
(Musa inquietante que se foi com Zeus,
penso que Leda me deixou sozinho).
O vento segue vomitando ausências
sobre abismos de insônia, sobre mim.
Logo a tarde se cobre de carvão.
Zás! Beira d´água, alguém me segura a mão.
(SSA-BA,
dez./2014-jan./2015)
SONETO RURAL
À precipitação do amanhecer
rural retiro à flauta o som mais puro
de quem, já acostumado com o escuro,
absorto fica vendo o sol nascer.
Caprino olho tecido em bem-querer,
preexistente nas coisas que procuro
pastoreando sonhos: amargo ver
desencontrado olhar longe do muro.
Recolho pastoral envelhecida
ao som da flauta (pastoral da vida)
armado de silêncio e panorama.
Ela se perde verde no horizonte,
como ovelha de luz ou como fonte
onde lavo meu sonho. E se derrama.
Como folhas caindo num deserto,
humanas resistências vão caindo
sobre campo sem sol. Peito coberto
de um só grito esperança vai cobrindo.
Rude labor de enxadas consumindo
sangue que dá de sangue um sonho certo,
esperanças do amanho já sumindo
na sede da esperança que está perto.
Amargas deslembranças param, vendo
no íntimo do espetáculo chuvoso
o aparecido desaparecendo.
Antes que amor se ausente ao chão sem húmus,
já baixam sobre o campo generoso,
as águas da manhã movendo rumos.
SONETO DOS QUATRO ELEMENTOS
Cansei-me de pensar no que era o dia,
Se ele entre dois crepúsculos se evade.
Cansei de me perder nessa agonia,
Fosse hora calma, fosse tempestade.
Juntei a vida inteira os Elementos
E a cada um dispensei olhar de justo.
Se regem mundos, regem os momentos,
Não conseguem parar o sol injusto.
A Água, a Terra, o Ar, o Fogo, quatro deuses
Que governam e nutrem a Humanidade,
Como me adverte o oráculo de Elêusis.
Não podemos mudar de itinerário.
Ao fim nos resta uma única verdade:
O nosso cabedal é o calendário.
OS ELEMENTOS E A CHUVA
Amo-te no teu propositado cair sempre
macio sobre os campos, chuva. Tuas serenas
lanças cuidadosamente perfuram chão amargo,
folhas e semente. Cuidadosamente
tua úmida língua de silêncio purifica
pelagem tranquila de mansas reses,
solitários mourões lavas com tua indústria
melancólica de cinza e poeira.
Campestre cai sobre exaustas ferramentas
tua dimensão vegetal, tua água solidária,
primaveral de vento e seiva generosa
ásperos espinhos lavando e aconselhando
próspero itinerário de terras trabalhadas
e empresas de outras funções em lavoura
fixa de cacauais em sal de ódio aquecida.
Sobre telhados negros, isenta de perigos,
sobre pedra, tão sobre rostos expectantes
e mudos, tua coma vesperal desaba.
És na tarde fria como anjo predileto
com tua lâmina agrária libertando
de saqueados corações desertos braços,
de prisões interiores e fazendas
denso mar de soluço e duras penas.
Seguramente amo-te, ó chuva, quando
das altas serras sobre os vales baixa
tua segura astrologia de horóscopo e surpresa,
e uma saúde operosa de existência
cresce sob esta floresta de cercas e arames,
sob esta esperança frágil dos arbustos.
Em tua verde matéria de sonho elaborado
com amargura, com olhos e músculos fatigados
abre-se um caminho de experiência vespertina,
um diurno sabor de apodrecidas madeiras
sobre o solo. Um odor rústico de produção
e mantimentos. Abre-se como fruto repartido
entre lavradores teu mecanismo de fartura,
teu humano suor de tendência preciosa.
SISTEMA AGRÁRIO
Meu canto gravado de um saber oculto de águas
esquecidas fabricarei no campo com suor
de rudes trabalhadores, na chuva, sepultando-se
de búzios pontuais, lamentos e desgraças.
Forçosamente rústico caindo sobre troncos,
pelo ar, compacto de húmus e branco vinho, caindo
sobre plantações. Sobre homens caindo. Não os sei
com metralhadoras e mortes pesadas flutuando
em suas mãos calosas de sonho e agricultura.
Senão com amargo clamor, ao meio-dia, quando
com rijas ferraduras rubro sol golpeia lhes
decisivo o tórax sombrio. De sangue a sua
permanência rural de árvore e vento.
Materiais e diários, continuamente os vejo
por frios vales e serras recolhendo incertezas
e dores unânimes, pontes que lhes pesam úmidas,
como rios perduráveis, sobre o rosto seguro (banhados
tão por cinzentos rios, girassóis destroçados
vigiando rebanhos e metais decadentes
revisando no tempo em sonora aliança), como
estranhas biografias e equipagens
de passados cavaleiros, em derrota.
Impossuídas, colheitas vão durando,
como denso muro de sono cicatrizado
em seu corpo amanhecido sobre a terra, que
pensamentos cruéis e sombras apunhalam.
Meu canto fabricarei com lágrimas e suor
subterrâneo de músculos e ferramentas.
Maduram no verde dos cacauais suas asas telúricas.
Nas semeaduras, sob tempestade, reside no solo
seu mecanismo de lutas e existência
de incessante labor camponês. Agrário sempre.
Suas armas essenciais, sua geometria agreste
hão de impregnar-se necessárias de úmidas
paisagens agrícolas, de horror precipitando-se
sobre homens em silêncio nas estradas pacíficas.
Eles que sonhavam com instrumentos longínquos
terão na cabeça, rugindo sempre, uma voz de ameaça,
quando a seus pés um ruído grosso de sacrifícios
vai sua boca de amor sem pão revolucionando.
Sobre campos de sol fotografados de fome
de manhã surpreendo-me entre maquinistas.
guarda-freios, foguistas, agulheiros
colecionam tristezas numa ferrovia.
Acompanho-lhes o passo, utensílios diários,
exiladas faces como nuvens atônitas,
contra pontilhões investem, contra água pesada.
Sucedo de rotas e destinatários,
de mercadorias emerjo, melancólico.
Experiências metálicas de locomotivas
trituram músculos, afogada energia
de trabalhos humanos e apitos agudos,
trilhos que sulcam horizonte sem âncora;
me alimento de fogo, velocidades sofridas
de vagões conduzindo cacau e sombra
sobre cidades e montes, sobre latifúndio:
negro mar se agacha, silencioso salta,
come homens e meninos que choram sonhando.
Entre estações que gritam impossível atraso,
sonolentos comboios avançam na noite.
Desenvolvem sem termo choro agressivo,
um choro duro de homens e fornalhas
devorando madeiras e carne em lamento.
Lento uivo de rodas que se multiplicam
com substância noturna de salários
acumula vegetação nos eixos aluídos,
esperança consome na carreira profunda
sobre ilhas de acaso engrossando velho
patrimônio de mortes alugadas.
Rápidos horários com palavras de fumo
seu voo de espuma e lâminas corroídas
e matérias subjugadas anoitece
no sangue roxo operário com ferrugem,
elabora sentidos e desgraças na fronte
espessa. Na garganta incendiada cresce
gemido áspero de peito mutilado,
com umidades ocultas, com soluço.
APOGEU DOS VAGÕES
Noturnos vagões carregados de amargura,
de empilhados produtos e origens,
correi sobre horizontes dos dias!
Composição de espanto corrosivo
acerca-se de mim, vai penetrando
com violência em meus olhos. Vence-me
a carne e os nervos, minha voz,
meu desesperado sangue e cansaço, como
fantasma criminoso que, alta noite,
entrasse em minha casa fortemente
nutrido de perigos e desastres.
Negros, armados de geometria difícil,
rota economia de outonos ressentidos,
duram interiores funerários
sobre sacos sombrios e carregadores.
Barris de angústia, lento soluço,
arrastado gemido sobre trilhos,
correi, correi, sempre correi, sombra
afogada na sombra de sangrento galope.
Confuso grito e fúria registrando
velocidades e pressentimentos,
avançai contra noites, contra os dias,
noturnos vagões, consistência
de amarguras espessas e ferragens,
cruel fome de rodas gira-mundo.
NO TREM, COM CENTURIÕES
O trem-de-ferro para na estação.
Dentro da classe de janelas muitas,
sento-me na cadeira de palhinha.
Tez denunciando terras e distâncias,
fazendeiros de bota e paletó
penetram no vagão suando auroras.
De cenho carregado, dependuram,
no alto, o chapéu, esporas e o revólver.
As mulheres destrincham seus rosários.
Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.
Compadres são de justas e conquistas
(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).
Colecionando safras e plantios,
transpiram suor e orvalho. Nas capangas,
dormem papéis e ganhos, calendários.
Nunca delas sairá a última moeda.
Confiam num outono redentor,
em dias mergulhados na lavoura.
Pacíficos, serenos e domésticos,
não bebem aguardente, nem sorriem.
Sonharam, não mais sonham, esses machos.
Em tardes mansas de remotos sítios,
sem traficar afagos e carícias,
encharcaram de filhos castos ventres.
Logo velhas histórias de jagunços
desfilam entre gáudios outonais:
de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,
do que morreu de tiro noutro rio
(quietos Mocambo, Almada. Catolé).
Logo se dá notícia alvissareira:
cacaueiros esplendem de fartura,
com fruto encachoeirando pelo tronco.
Fugindo de centelhas e fuligem,
em meu traje de seda cintilante,
abro a janela e me debruço. Sopro
minha flauta vermelha de metal,
com que costumo celebrar instantes
em que o dia derrama suavidades
e saúdo os guriatãs e os curiós,
que se abancam nos postes de telégrafo.
A manhã solidária me convoca
a mirar a beleza das campinas,
na luz que pauta a música do dia.
A máquina suspira, o trem esbarra.
Guardo a flauta no bolso da camisa.
Súbito casas, uma praça, letras.
No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:
a vida é bela, há mais que desfrutar.
FERROVIAURA
I – Caminhos profundos
Tão nascida do homem como o homem
artefato da vida como a vida
de repente apagou-se fumo
Flora
sobrevinda outorgou-se aura de espanto
sob frio apenas ululante rastro
de universo roubado à geometria
Pena que teve origem que sofrido
foi-lhe o passo de rio ossificado
comércio e fábrica foi
Oceano útil
onde massas de fel tiveram porto
polígino conúbio do trabalho
com lavouras nutrindo-se em neblina
durou flecha de sol e foi perpétuo
vento esculpindo solo atormentado
Como oferta de assombro como silvo
indecifrado agreste nascimento
algo rompeu da selva taciturna
holocausto a cipoal
empedernido
despontou nos vales de secreto fausto
súbita mãe gestando moitas
Deus
ex machina em seu tempo/movimento
senda de lavra e sangue
Ferrovia
estrela agrimensora no deserto
pesquisando rochedos serras altas
teodolito assentado sobre a carne
mirando grotas pássaros em coma
arrosta-se à navegação de precipícios
célere mordendo manhãs desperta
chão de lágrimas águas ofendidas
floresta /brenha folhas
E ao fundo nuvens
Garra amputada à fauna de felinos
carapaça equipada de luz rude
para oferenda a deificado fruto
O verbo no princípio era de ferro
de fogo
de fumaça mensageira
Lábaro sobrevoando paralelas
ou trilhos no úmido chão laborado
ou metal fugidio cravado em som
ou claro gesto na cor liberado
aeroplano espectral fotografando
tumba ou leito da State of Bahia
South Western Railway Company
de estio agulha para sempre cose
minério pedras troncos
Labareda
língua incessante touro arremetendo
ao descampado o cosmo em disparada
Está morta
Sumiram-lhe
os ouvidos
Foi-se o grito alvoroçador do verde
os olhos de esperança se apagaram
O dorso
O
peito
O
império mineral
Hoje está morta
E
era maciço ferro
Era madeira forte
Tudo muito real
Serpente de fumo ou cão ígneo
rojado contra um milhão de relógios
Conscientemente
instalo-me
sobre mudos
pontilhões e repasso calendários
De vapor o marulho transeunte
é das locomotivas ofegantes
Rodas e trilhos no asilo da ferrugem
abalando dormentes na lembrança
ensaiam no ar nostálgico de ruídos
brados
Ancoram em terminais de sono
onde tudo é memória luto sombra
Congelados nos postes de telégrafo
espectros de mensagens desgarradas
soterrando-se em Morse de azinhavre
cifram em sinais de brumoso código
a solidão das estações em ruína
duelam contra ventos redundantes
funcionários dementes engenheiros
severos cabos-de-turmas
Oligarcas
que à mesa pela noite jogam cartas
bebem uísque, soda e vinho do Porto
pantagruelicamente comem lauto
repasto convertido em florilégio
peões da estrada a martelar o sexo
regressando de abismos petrificam
desolado tributo que persegue
Mutuns Rio do Braço Água Preta
Santa Cruz Serra Verde Catolé
Cascata Pedras Pretas Poiri
Os atletas do trem soprando búzios
voam no pelo de cavalos doidos
Ante brasa e aço a dança dos foguistas
desperta cogumelos que deslizam
lentos por corredores de resina
e naufragam em crepitante pélago
Guarda-freios e maquinistas bêbados
escapando de sujos botequins
entoam sobre plataformas ermas
velhas canções de esperma itinerante
A fome lhes comeu o olhar de espanto
comeu-lhes rosto braços pensamento
e agora por entre aldeias sanatórios
praças com animais mumificados
acena-lhes com moedas de crepúsculo
misturadas a ânsias confissões gemidos
que viajam na mala dos correios
pelos desvios despachando brisas
que sobressaltam como os telegramas
(...)
Xilogravura de Calasans Neto, para REVERDOR (1965)
A máquina quando geme
é a centelha sentindo a cento e vinte
a bandeira vermelha nas tangentes
era de fato um sinal de perigo
que ninguém viu descendo para Ilhéus
Árvore rio nuvem recolheram
espetáculos de roupas suarentas
e teceram no espaço dos horários
biografias murais de óleo e carvão
Dos trens de carga aqueles vagões negros
levam sonhos de infância em feixe e fardo
cabedais de família minhas queixas
rolam por ribanceiras vêm como águas
de cheia
Torturadas
torturando
As armações dos verdes armazéns
delegam ao ferro forças irreais
para guardar sob zinco a sacaria
Safras de cacau
Vidas em coágulo
Mercadorias fremem ao som distante
de um telefone negro endoidecido
O velho Barros chefe-da-estação
polindo estrelas sobre o guarda-sol
distribui caracóis aos passageiros
ou desvendando leis
no roto clima
sujeita o tempo a seu apito mágico
A máquina parece assombração
quando parte espantando as alimárias
Te-Aviso Gasosa Telefone
Fortaleza Cuscuz Besta Melada
curvos às cargas longe grimpam montes
doando seu trunfo ao infinito
sobre verde que espelho a tarde sangra
III – Cemitério de esperança
a)
Nem mesmo estavas preparada
Estavas como caça fatigada
quando de ti veio se acercando
por entre ramos cedros sapucaias
desavindo rumor
Severidades
ensombrecendo leito matutino
Era preciso que o céu baixasse rápido
que tudo se cobrisse de argamassa
e se desse ao ferro cemitério
Tudo era preciso no momento
Era preciso que se abatesse a caça
e se fizesse sombra onde era sol
se apagasse o caminho de alegrias
por onde seguiam os que voltavam
b)
olhos mergulho agudos na folhagem
perfuro frondes de onde saltam rostos
cavados dentes olhos do barranco
aparições enfermas se debruçam
sobre desfiladeiro imaginário
que persigo em desembestada fúria
vozerio que se arma me acompanha
eleva-se como corpo trespassado
veloz dardo que passa e me detém
Gritam choram tremem dentes olhos
rostos qual pensa esteira de gemidos
lua despedaçada em mar distante
relâmpagos amargos que me fendem
o coração
a boca paralisa
Eu sei
Tens até mágoa
Quando vens
Espetas teu apito verdejante
no céu na flora de abundante mel
madeira mineral que te rodeia
– e o louro e o fel e a mão oculta
e sobre a roxa amêndoa de cacau
que anuncia o verão
Vens
e despejas
tua usina de aromas
teu
calor
Eu sei
Tens vontade até de recuar
para o seio absoluto da manhã
e lá polir a crosta de ferrugem
arrancar-se depois do inanimado
chão da morte
como ave ou como estrela
súbito em voo raso sobre os campos
E a mim vens com teu peso
teu
galope
animal de pelagem coruscante
rolas sobre meu peito
meu semblante
sobre meus olhos hóspedes do vento
a de ontem vida tua enfermidade
Vens como se rompesse a noite em febre
açulando os outeiros acordando
pássaros empalhados nas ramagens
malgrado tudo
Sonho
capturado
vens banhada de luz e tempestade
tua massa colora os ambientes
embriaga o instante avança e nos eriça
cadáver hoje que se inventou bandeira
ao roçar de teu sopro
Teu
convívio
IV – Expectante reflexão
O trem
verde e vermelho como a vida
mas pode-se agregar ocre e amarelo
se é de homens e coisas que se fala
O trem
ânsias de
infância/arrimo de velhice
O trem
rebanho de
acenos/rama flamejante
O trem
ágil
pesadelo/viação da aurora
O trem
transido
soluço/bandeira de sorrisos
O trem
flauta de
vidro/vertebrado canto
O trem
centopeia de
nuvem/potro de esmeralda
O trem
O trem de Água Preta
Dardo de som lançado ao infinitivo
rajada de luz atravessando o paraíso
me aduba o coração o
sonho acorda
o trem de Ilhéus do fundo de seu sono.
SÚBITO EM MADRUGADA FRIA
Súbito um ruído: em madrugada fria,
Vozes arrastam sacos transitando.
Zonzo, acordo, na rede em que dormia,
Lá fora, a noite, mas ninguém passando.
Pela casa só via gente andando.
Ainda na escuridão, já vindo o dia,
alguém com um saco de caroços pando,
e eu sem decifrar o que acontecia.
Sei agora. Essa de cacau trazer
Em tropa de burro para Água Preta
É coisa que não dá para entender.
Melhor nem perguntar, parece treta.
Quando, apitando, aponta o trem-de-carga
E para na estação da rua larga.
VELHAS ESTAÇÕES DE TREM
Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.
Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.
Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.
Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.
CACAU EM
QUATRO TEMPOS
I
Sol da
manhã em venda de secos & molhados.
Olhos
adventícios só desvendam claridade.
O moço
desce do paquete entre sorrisos
no cais
de apitos e gritos de carregadores.
II
Bendito
destino esse, que movimenta sonhos!
Um outro
apito – o do trem de ferro na estação,
que
propõe sendas de irrevogável êxito,
em brilho
que acende olhar imprevidente.
III
Paragens
de adusto marco e sonhos murchos,
de tudo
sabe o velho por seus relógios mudos:
são
túmulos do verde as roças prediletas,
são
círios apagados os frutos amarelos.
IV
Nada mais
lhe anima as retinas fumarentas,
só um
pouco de vento e ar, de luz em dor.
Penetra-lhe
o peito de sombras revestido
o que lhe sobeja em túnica de pretéritos.
NOVA
SAFRA DE SOMBRAS
Vivo momentos que meu pai vivia,
Quando, a chorar na ponta do passeio,
Vociferava aos céus no fim do dia,
E, a mirá-lo eu, voltando do recreio.
Ao longe, de azul constante, a serrania,
A contemplar-lhe o tamanho do receio,
Que em sua face todo mundo lia,
No furioso galope com que veio.
“Foi o sol, foi o sol”, grita um matuto.
“Não há nuvens, nem mesmo vento astuto,
A salvar o que foi sonho e semente”.
Sombras vieram e amadureceram
O saldo de tristeza comovente
E tudo de horror que meus olhos leram.
QUARTETOS
DE OUTONO
Sono que
se desprende da algazarra,
sangue
que se dá ao corpo e se renova,
moedas
que se perdem numa farra,
crepúsculo
que é de sonhos boa prova.
Tudo isso
é marginal; o que mais vale
escorre
qual jasmins apodrecidos
entre os
dedos e pede que me cale
para não
acordar os dias idos.
Sou mais
o peixe que surge das tramas
da água e
alcança a plenitude viva
do poente,
ou mudo pássaro nas ramas,
que
celebra o que o coração aviva.
Lavro
sonhos na sombra. O claro-escuro
da tarde
declinante nos meus lábios,
semelhando
palavras em um muro,
divulga
solilóquios e presságios.
A leitura
do corpo descarnado,
já por emagrecer,
já por desgosto,
mais que
seja de pranto navegado,
coleciona
ametistas de sol-posto.
Triste
Narciso que comove a artéria
por onde
correm a água e a paisagem,
busco o
rosto absoluto, a índole séria,
que a
torrente do tempo imprime à imagem
no espelho
irremediável refletida.
Noites
são noites, e manhãs, manhãs.
E as
tardes que prescrevem para a vida
destino
de escrever palavras vãs?
A frase
que me morde o aflito crânio,
na hora
de adormecer, ideias claras
me traz:
cravo plantei, plantei gerânio,
em
pântano em que só nascem flores raras.
Vou.
Caminho. Corro, horas, dias, meses.
Livro-me
da armadilha dos delírios.
Não quero
ter um fim como o do grego,
Postado
na janela a contar círios.
Estou só,
entre as árvores queimadas,
que
margeiam meu rio distraído.
Faz-me
bem lembrá-las, eram amadas.
E ele,
pleno de curvas, comovido.
SONHADOR
SONHADO, DE ELO EM ELO
No fundo da casa
de Sancho Alves de Melo,
havia um cavalo
que se montava em pelo.
E havia um buraco
de gerar pesadelo,
no fundo da roça
de Sancho Alves de Melo,
que só de mirá-lo
arrepiava o cabelo,
a profundidade
turvava o Setestrelo.
Buraco que um homem
sozinho abria com zelo.
Não se sabe se era
branco, negro ou amarelo.
Solteiro na vida,
disse que era donzelo
e que ali chegara,
fugindo de um flagelo.
Toda noite invade=lhe
um sonho de castelo:
que perto havia ouro,
no chão, sem paralelo.
Essa alma sem nome
largou o parabellum
e, com ferro e suor,
deu ao sonho seu elo.
Cavou e cavou,
com os dias em duelo,
pensando em ao sonho
chegar sem atropelo.
Prosseguiu cavando
com amor e desvelo,
e o vento a saudá-lo,
tocando violoncelo.
Alma retirante,
ao sol lançava apelo
de que não sumisse;
na vida vale o anelo.
Pássaros cantavam
e, num momento belo,
folhas solfejavam
um som nada singelo.
No céu, via o Cristo,
montado num camelo,
lhe abençoar a vida
de fé, único modelo.
Os dias e as tardes,
sem nenhum engabelo;
somente o amor ao ferro
salva um pé-de-chinelo.
“Ouro, somente ouro,
é o prêmio por que velo”,
brada. Embaixo, a terra
vai virando farelo.
Respira quietude,
dela puxa o novelo.
De alimento apenas
frutas e cogumelo.
A ele importa menos
que da alta serra o gelo.
Sofrer já lhe foi.
Hoje não, hoje é o selo
da sorte no tempo.
Que venha tudo pelo
ar. Que soprem músicas
ventos de Apolo Délio!
“Há de sair meu sonho
deste fundo magrelo!
Sonho que se vá
Bem melhor que não tê-lo”.
Saco de pó no ombro,
o corpo em desmantelo,
mais firme que um touro,
a puxar um rastelo.
O tempo vencido,
à força de martelo;
o saco na escada
rebenta o tornozelo.
Ao redor avista
de flores o labelo,
aves saltitantes,
a fugir de pinguelo.
Cacaueiros novos
tratados a cutelo,
bem melhor o peso,
torturando o canelo.
O vento zunindo,
com raiva de escalpelo,
finca-lhe na fronte
mudo sinal de estrelo.
Afundado em ânsias,
no escuro, o peito nuelo,
só o ouro, o sonhado ouro,
é capaz de entretê-lo.
Um dia descobre:
está branco o cabelo;
se o sonho persiste,
não cogita perdê-lo.
Se a lua e as estrelas
guardam silêncio, ao vê-lo,
é que não quiseram
os deuses protegê-lo.
Dor funda e martírio
golpearam seu anelo.
Nada há para salvá-lo,
Nem mesmo o Setestrelo.
O ouro tão sonhado
dorme no cerebelo.
Será que o recebem,
De volta a Cabedelo?
Com vinte mil réis,
de Sancho Alves de Melo,
chorou e partiu.
Nem Deus conseguiu vê-lo.
Este ingênuo cabra
sonhou um sonho belo.
Se pertence aos fados,
não dá para perdê-lo.
LAVOURA FATAL COM GÓRGONAS
As portas e as janelas, tristemente,
Miravam serrania e verdes pastos.
Assim como derrete campos vastos,
O sol na tarde insulta rosto ardente.
Sou um homem de outrora. Estes meus braços,
Que atravessaram matas, montes, rios,
Na aura vertiginosa dos plantios,
Carregam a memória de balaços,
Que hoje não denuncia a mão deserta.
Cacau, um deus que chega e arreia a mala,
Vindo de México ou de Guatemala,
Amor ao ferro, só, nenhum alerta.
E quando as intempéries regurgitam,
São os céus vingativos que vomitam.
(Florisvaldo Mattos, SSS/BA, 26/04/2017)
PAISAGEM CONTRA O ESPELHO
Quebro o espelho, mas se mantém a imagem.
Livro-me de histerias e queixumes,
levanto os olhos para o teto, penso.
Vejo colinas, bosques, águas, flores,
um terreiro longínquo, uma pastagem,
verdes que precipitam cacauais.
Vem anunciando chuva benfazeja
um vento forte e novo, bem diverso
do que desce da serra quando calmo,
este que agora as telhas injuria,
atravessa ruidoso as quatro portas
do armazém de secos e molhados
e me escancara em tarde pressurosa
roto espelho de auroras sossegadas.
CACAU.
CANTO. CLAMOR
(Ao
ontem verde com alma)
A
Jorge Amado, in memoriam
Um gran vuelo de cuervos mancha el
azul celeste.
Rubén
Darío (1905)
I
Na terra farta de frutos
sigo os rios.
Na árvore gorda de grãos
sorvo a seiva.
Vou, sim, vou.
Cacauais me amparam
de sol terroso,
de chuva rude.
Ó infinitude, áureo cosmo
prenhe de diálogos verdes,
depois safra de soluços.
Ressoando
primórdios
de edênicas andanças,
a natureza sorria
abraçada com os homens.
Vale lembrar este tempo
em que a mata acordava.
Não se ouviam trombetas,
pulmões fortes, buzinas,
nem bodegas rurais,
nem sorrisos de moças
ou violões seresteiros.
Sim, pássaros nos ninhos.
Lobrigam o abismo verde
ou músicos passeiam
sobre a clave dos ramos
de onde pendem saguins
ou o jupará de amanhã.
(Ó natural semeadura de
crenças.
Ó gestos noturnos que a
selva oculta.
Ó dias de ontem nada
temerosos).
Ali, sim, se estabeleceu
aurora
De raízes jamais
adormecidas.
II
Cegou-se o horizonte?
Nunca mais hei de ver
manhãs fecundas,
tardes dormentes,
noites que anunciavam
certezas do outro dia?
E as mudas, vingaram?
E as vozes, clamaram?
Sou um colecionador de sombras,
de veredas mortas, onde
mãos burocráticas impudicas
imprimiram
sobre caules, ramos, folhas
signos de amor ausente,
afrontaram
a memória do chão,
a de quem por ele transitou
com alma e sonhos perenes.
Um dia, dirão: acorde e parta,
as estradas de ontem se
fecharam,
o ar de frescor apodreceu,
a água encheu-se de mercúrio,
as pedras são sobras de incêndio,
e só restou a mim para apagá-lo.
Mudo, fito o que não sou.
Perplexo, converso com o nada.
III
Da janela do trem olhos inúteis
refazem itinerário sob poeira,
bordejam matas, coloridos montes,
morada de vozes e saltitantes rostos;
sonhos férvidos trafegam pelos
debruns da tarde, antes que a noite
chegue e me devolva migalhas de ontens,
meras sobras de metamorfoses.
Não te aconselho a chorar, quando passes
e mires o deserto de nutridas safras, nem
o que se passou, o que, nítido e úmido,
nasceu, vibrou, viveu, tombou, morreu.
Homem, entende: todos quererão saber
o quem, o que, o quando, o como e o porquê,
de madura fatalidade e dor no sangue.
IV
Dirás que homens vieram
na noite grande,
misturando longes, fomes
e outros brados.
Alpercatas tiniam, dentes
rangiam, calças
de mescla e brim
ressoavam como bronze;
ávidas faces de crianças
ecoam maldições.
Os que vieram do Norte
com chagas e sonhos,
guerreiros e santos em
busca de água e pão,
mártires de pés rachados
e barba por fazer;
do Norte, de Sergipe e
Canudos, lapeados
de caatinga abrasante, e
os mais de África rastros,
que obscuros vieram
também para ser donos
de terras sobre encostas
e perambeiras únicos;
cambaleando na noite
fantasmática,
esgueiram-se na selva
contra os medos,
para emergir na terra
solidária
banhados de suor e
economia.
Sombra e dor no
semblante, fecundos passos,
espalharam
claridade em solo de durezas,
e logo a terra-úbere, à
vasta luz abrindo-se,
vingou, gerou seiva,
abençoada pelas estrelas.
V
Dirás que homens outros
também vieram,
descidos dos céus,
chegados do mar, varões
de olhos claros, cabelos
e sobrenomes feéricos,
terno engomado e gravata
borboleta, eles,
fugitivos de guerras e
derrotas, em Ilhéus
aportaram vontades e
proas confiantes,
os Stevenson, os
Wildberger, os Colavolpe,
os Scaldaferri, Kaufmann, Brussell, Zack Oack
(longe, decifro gasto
letreiro por sobre a ponte,
refletido em murmúrios de
bagres e tainhas).
Em gabinetes e terraços,
recendendo auroras
de mares remotos, tardes
e noites gélidas,
plantaram experiência e formas
de pensar,
com discretos modos de
aprisionar os dias.
Potentes centauros
desceram na hora unânime,
com galope febril, no
despertar das águas,
vêm cobertos de auras,
nostálgicos de neve,
que se acrescentam às
barbas do Rio Almada,
invadem o Cachoeira,
suplantam Rio de Contas.
Entraram vibrantes pelos
riachos, avançaram
botas e sobre solidões
assentaram portas,
para trocas atônitas que
assanhavam manhãs.
Moveram aço e rodas, logo
rotas de comércio,
inundaram distâncias com
amêndoa e sacaria;
avivaram cassinos, ao som
de polcas e foxes,
amores, bródios, com
vinho e whisky perdulário.
Vilas dirão mais tarde
para que vieram eles,
quando à noite se abrir a
luz dos alfarrábios.
Se ventos zunem, balas
zumbem, nuvens captam,
repercutem mensagens
desta nova aurora.
Altos, avermelhados,
ágeis, descendo rútilos,
chegaram com tropel de
notas promissórias:
uma luz cambial se
propagará nas matas,
por onde seguem
florescendo vozes e rastros.
VI
Fé e sol do Oriente, mel
e flor dos oásis,
para trás o deserto,
camelos e miragens,
reluzentes medinas,
versos do Corão,
livres de turbantes, burcas
e sandálias,
outros mais, mais outros,
enfim dezenas,
vieram, por desejo de
erguer e construir
o que a alma na carne
gravara como dívida,
exsudando moeda e astúcia
planejada.
(Tinham a carne igual à
de centauros,
correndo na planície em
cavalgada).
Vencem terras avaras e
mares e vão unir-se
aos
muitos que semeavam sóis junto dos rios
e, urdindo calendários
com luas generosas,
cavalgando manhãs e
crepúsculos amenos,
trafegaram por horizontes
e lá montaram
sociedade ecumênica de
raças e línguas.
VII
De repente, na sucessão
de colheitas amargas,
de fartos comboios com
amêndoas apodrecidas,
de lágrimas e mãos em
clamor estendidas,
estuário de sombras, dor
e morte (sabemos),
em paisagem apropriada a
corvos e desvarios,
da serra a fome, em
corcovas, coalhando vales,
límpidas mentes dispostas
a aplacar estios,
outros vieram, lépidos,
com asfalto nas veias,
a reacender chama com
lábia e burocracias,
propalando siglas,
ciência e metodologias,
químicas severas, mapas e
árdua geometria,
metidos em trajes de rija
e formal pertinência,
dizimaram crepúsculos,
auroras acenderam.
Bocas espalham pelo ar
com notas estridentes:
a vida é bela, a morte
tarda, sonhos vencem,
porque o que cabe ao sol,
útil, da noite se ausenta.
Foi depois com o dia alto
que o desastre veio.
Sobre águas, pedras,
colinas, canoros córregos,
com saber das Antilhas ou
nos Andes colhido,
à força de azoto,
fosfato, cal e ureia, roubados
do fundo da terra aberta
à ilusão e ao sonho,
áulicos derramaram a
esconjurada lavra.
“Não há mal que sempre
dure”, brada o jovem,
ante os lamentos do úbere
enfermo canceroso.
“Nem bem que nunca se
acabe”, rosnou o velho,
nos bruxuleios da noite
que baixa inapelável.
VIII
Acordo em alamedas
tumulares,
conto círios de noites
que se foram.
São pesadelos o meu
patrimônio,
de horrores me basto
comigo mesmo.
Converte-se o ar em tumba
de canções,
Orlando, Sílvio, Chico,
Ciro, Dick
passeiam entre antenas,
folhas mortas.
Uma criança chorou, a mãe
gritou,
o pai desesperou, o rádio
calou,
e ele foi de ônibus para
El Dorado
(disseram: lá ele
é amigo de Deus,
tem a sensação de terra
prometida).
Em São Paulo desceu,
ganhou salário.
Vai para a obra e morre
eletrocutado.
IX
Adeus, dias claros de
outrora, corolários
que vingaram na terra de
águas fartas;
adeus, mãos operosas que
redimiram brenhas;
adeus, sonhos silvestres,
semens de manhãs,
em campinas pejadas de
música e cores;
adeus, meteorologias,
verdades sazonais
de cochos e lastros cheios;
adeus, chamas
de fornalhas ardentes
noite adentro,
enfartadas de músculos e
amêndoas,
tropas de burros
subjugando lamaçais.
Adeus, trens de carga
repletos de saudade,
avisai às quebradas, aos
contrafortes,
à fieira de pássaros nos
fios telefônicos:
debaixo da terra, estou indo para o trabalho.
X
Fulgurações de mel em
cuias escorrendo,
sob o fresco das roças de
pujantes frondes,
adeus. Morto, comprei
passagem para o éden.
Lá, com amigos, quero
encontrar a doce Anice,
a
de olhos forjados em veredas de infância,
jambo de cabelos azuis e
mãos de seda
e um jeito pré-rafaelita
de sentar,
virar o corpo, os seios
rijos, e mirar-me
por sobre abas da jindiba
no alto da serra.
Adeus,
tropas de lento passo nas ladeiras,
convosco
dialogo em minhas noites insones;
adeus,
tropeiros que ajeitavam peitorais,
nas
íngremes subidas rumo ao infinito.
Desta
fonte flui a essência de minha vida.
Vista da da Estação de Uruçuca, quando se foi a estrada-de-ferro
SONETO DO AMOR PERDIDO
A Dinalva, Euvaldo, Célia, Genevaldo e
Heraldo, com amor de irmão
Lá, no armazém de secos e molhados,
Sentado no passeio ou no batente,
Meu pai mirava a serra azul, em frente,
Queixando-se de vida sem cuidados.
Ele, sempre dos céus nada temente,
Ali, chorava a sorte dos coitados.
Foi-se a hora de facões desembainhados,
No eito, da roçagem e da semente.
Oh, duros tempos do Barro Vermelho!
Hoje, sou eu, aqui, lembrando o velho
E os amargores de tempos passados.
Perdeu-se tudo: o amor à terra, às leiras,
À serra azul e às gordas prateleiras,
Lá, do armazém de secos e molhados.
SAFRA DE SOMBRAS
That is
no country for old men, the young
In one another’s arms, birds in the trees.
W.B.Yeats*
A
Hélio Pólvora
É; foi-se
o tempo de plantar cacau:
Não é
mais um ofício para jovens.
Grandes
nuvens de crinas esvoaçadas,
Esparramadas
no azul – soltas setas –
Galoparam
sedentas de outros mapas.
A terra
agora espectro de agra face,
Paragens
somente para ossos (frios),
Esqueletos
que são aves em ramos,
E até bem
pouco não era assim (saibam):
O chão se
abria a sonhos e sussurros,
soluço
(único) de água mensageira,
E lá
vinham pérolas entre musgos,
ametistas
suando ao verde sob chuva.
O sol
gretou os seios da morena,
sinhá-moça
que veio de Belmonte,
intumesceu
os olhos generosos.
E fez
mais: as almas ressecou,
E os
antes desasselvajados rios,
(Mirai)
hoje somente veias secas,
E
semblantes que vagam nas estradas,
Safra de
sombras, ai! dever de velhos.
*Terra
aquela não é que sirva para ancião.
Os moços
a abraçar-se, as aves a cantar
Nas
árvores (...)
Trad. de
Péricles Eugênio da Silva Ramos
HOMEM MORTO DIANTE DO RIO
(À memória imortal de Adalgício
de Oliveira Leite, varão campestre,
guardião das matas de Itacaré, vez
por outra, narrador de jagunçagens)
Ibant obscuri sola sub nocte per umbram.
(“Iam obscuros pela sombra na noite solitária”; Virgílio, Eneida, Canto
VI, 268)
Barro
Vermelho. Subindo a ladeira,
Parede em taipa, o teto era de palha,
E de barro socado o chão da casa.
Adalgício, o seu nome. Eu, diante dele,
Recém-arremessado ao mundo, ouvia-o,
Que bem me vinham vozes que eram suas.
Sobre baú de cedro e couro velho,
Arrimo da carcaça, queixo e mãos
Contra magro joelho, o tempo verga.
O senhor das estradas e dos montes.
A testa alta, cabelos já grisalhos,
tal um fauno, um arauto de outras eras.
Na sala tosca, o grave monge entoa
de sangue e arrojo histórias pelejadas,
na doce luz da tarde que descamba.
Palavras mágicas em duro rosto,
Sonho a jorrar da boca do homem calvo,
Perpétuo, no passado e no presente,
A voz do bardo rústico desfia
Luas coalhadas de esperança e medo:
Árdua canoagem sobe e desce rios,
Destino obscuro de homens pela noite
Conduzir (todos mudos) de Sergipe,
Límpido fogo, pelo Rio Almada.
Crispada mão, a arma no coldre oculta,
Brilha o punhal de doze polegadas,
O facão e o fuzil papo-amarelo.
Fome de comer nuvens, de romper
Mata fechada atando feixe e fardo,
Chuva e lama ungindo ouvido e tato.
Vaus e lajedos, pântanos e serras,
Dentro da noite a aurora como guia,
Mas no íntimo era o sol que te mirava.
Quando morreste no catre de tábuas,
À beira de outro rio de outras lendas,
Teu passado viajava pelos dias.
Mais que um farol, a mente recompunha
Geografias de coisas e de gentes,
Na batalha do sonho contra a sombra.
Talante que decifra telhas vãs,
No horizonte de ganhos e perdidos,
Ficou teu nome, sim, como um troféu.
Rosto anguloso, clara pele em corpo
ossudo, a firme voz despeja o sumo
do que foi glória e ardor no anonimato.
(2003)
NOMES QUE OS GURIATÃS CANTAVAM
Por todo o bosque, as folhas estão
cheias de vozes,
Em sussurros (...). Ezra
Pound, Canto III)
Onde estarão Vavá, Neném, Namir,
Wande, Miro e Carlito de Mãe-Dé?
Seus nomes ainda ecoam nas baixadas,
desafiando o azul da serrania.
Sobem e descem íngremes ladeiras,
percorrem trilhas sem nenhum cansaço.
Filhos do mato virgem, nele somem.
Lá, cochilam num tempo que não passa,
estirados na relva. Os alçapões
em galhos onde pássaros gorjeiam
guardam sorrisos dentro de manhãs.
Vou pegar a capanga e vou lá dentro,
Por aguadas e roças de cacau,
recorrer armadilhas com os amigos.
Hora de mata em festa, as flores cantam,
Com a musical orquestração dos ramos.
TARDES/PARAGENS
Para o amigo Dr. Carlos Cézar de Castro Moraes
Olhar detém
a serra alta
de vasta luz
em decúbito
dorsal de deusa
lasciva curva
assemelhando
REDESENHADA
Advento verde
grávido em cinza
(fulvo proscênio)
ouro e vermelho
que abrem pálpebras
outro debuxo
outra sequência
ALARANJADA
Em tons pesados
a tarde oblíqua
a noite avança
quintais invade
onde dormita
pregressa vida
falas de infância
REFIGURADA
Olentes árvores
jovens correndo
ventos alísios
esfiapam nuvens
velam paisagens
cores viajadas
de uma folhinha
RECAPTURADA
Ímpetos de ontem
apaziguaram
as crinas de um
potro alazão
claro galope
no esmalte verde
tributo à alma
RETEMPERADA
E haja dor
No meu
OLHAR
E haja flor
De bom
MIRAR
E haja sonho
Para
SONHAR
E vero amor
Só
CELEBRAR
ÍNTIMOS CAMNHOS
"Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!"
(José
Régio)
Não. Nada de penhascos irreais,
Tampouco de florestas invisíveis!
Por aqui tudo fala à sensação,
Ao olhar, ao aroma, à língua, ao tato,
Ao som. Feliz de quem os tem. Ó vós,
Que ditais pelos montes de onde venho,
Por trás de sombras como que vazias?
Enquanto me desfaço de meus fardos
Ancestrais, meu cabedal de fadigas,
Lábios trazem clarões de frescas auras,
Meus pés sibilam sobre sendas rudes,
Mas com promessa de horizontes novos.
Se me pedes que siga o teu caminho,
Descansa. Sei que não vou por aí!
AMANHECERES
Dias virão
sob um céu pálido
e seguirão
sobre chão cálido
e voltarão
num sonho válido.
Palmas de mão
para um inválido
ser que se perde
por tantos dias
por tanto verde
nas alegrias
do asfalto mudo.
Sonhar é tudo.
VATICÍNIO
Na última página,
O último verso.
Ah, que vontade
Fosse um regresso!
"Sonhar é tudo", parece dizer essa pintura de Jane Hilda Badaró
QUEM É QUEM DO AUTOR
Natural de Uruçuca, no sul do estado da Bahia (Brasil), Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; aposentado da Universidade Federal da Bahia, como professor da Faculdade de Comunicação (FACOM); como repórter, editor e colunista, exerceu funções em vários jornais, ocupando inclusive os cargos os de editor-chefe, no Diário de Notícias e A Tarde, ambos de Salvador). Foi correspondente e chefe de sucursal na Bahia do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Por mais de uma década, exerceu a editoria do caderno semanal A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como o melhor do Brasil, no quesito de Divulgação Cultural. Desde 1995, é assume a titularidade da Cadeira nº 31, da Academia de Letras da Bahia. Entre 1987-89 ocupou a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Obras publicadas: Reverdor, 1965; Fábula Civil, 1975; A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996; Mares Anoitecidos, 2000; Galope Amarelo e Outros Poemas, 2001; Poesia Reunida e Inéditos, 2011; Sonetos elementais – Uma antologia, 2012 (todos de poesia). Estação de Prosa & Diversos, 1997); A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 1998 (2ª edição) e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, em 2004 (os últimos de ensaio). CACAUEIROS: Poesia. Conto. Teatro (2022); Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais (2022). Participa de várias antologias baianas e nacionais e quatro do estrangeiro - na Galícia, em Portugal, na França (Bretanha) e na Alemanha (Frankfurt). E, como convidado, também de eventos culturais: seminário promovido pela Fundação Cultural Pacífico Pereira, em Jequié (2009); Feira do Livro de Cachoeira (Flica, 2014); Feira do Livro Nordestino (Fenelivro, Recife, 2015); como homenageado: no Festival de Poesia, realizado em Maracás (2015) e no II Festival Literário de Ilhéus (2017).
Imagem: Florisvaldo Mattos. Fotografia de Mauro Coelho, com tratamento gráfico Fhotolab.
FLORISVALDO MATTOS
FONTES DOS POEMAS ARROLADOS - LIVROS
REVERDOR. Salvador: Edições Macunaíma, 1965.
A caligrafia do soluço & poesia anterior. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.
Mares anoitecidos. Rio de Janeiro: Editora Imagens, 2000.
Galope amarelo e outros poemas. Salvador: Edições da Bahia, 2001.
Poesia Reunida e Inéditos. São Paulo: Escrituras Editora, 2011.
Estuário dos dias e outros poemas. Salvador: Caramurê Publicações, 2016.
Antologia Poética e Inéditos. Salvador: Assembleia Legislativa da Bahia (Coleção Mestres da Literatura Baiana), 2017.
CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro. Itabuna/BA: Mondrongo, 2022.
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