segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

QUANDO A POESIA DESCOBRIU A MULTIDÃO

 

    Marco do Impressionismo do francês Gustave Caillebotte (1848-1894), Refúgio, 1880


  PARA UM ESTRANHO


Estranho que passas! tu não sabes com que ânsia eu te fito,

Tu deves ser aquele que eu andava procurando, ou aquela

[que eu andava procurando

(isso vem a mim como um sonho)

Com certeza eu já gozei em algum ponto do mundo uma

[vida de alegria contigo,

Tudo me diz que já nos cruzamos ombro a ombro, fluidos,

[ternos, castos, em plena maturação.

Tu cresceste comigo, foste um rapaz comigo ou uma moça comigo,

Eu já comi e dormi contigo; teu corpo, desde então não

pertence somente a si, assim como o meu não ficou pertencendo mais somente a mim.

Quando passamos um pelo outro, tu me dás o prazer de teus

olhos, do teu rosto, da tua carne e eu te retribuo com o prazer do meu peito, das minhas mãos, da minha barba.

Eu não quero falar contigo, eu gosto é de pensar em ti quando estou sentado sozinho, ou acordado à noite sozinho.

Eu te esperarei, não tenho dúvida alguma de que vou te encontrar ainda.

E terei cuidado dessa vez para que não te perca.


Walt Whitman

(Trad: de Oswaldino Marques)

 Arte: Gustave Caillebotte - Refúgio. 1880.

    Camille Pissarro (1835-1903), Boulevard Montmartre na Manhã de inverno, 1897 
 

QUANDO A POESIA DESCOBRIU A MULTIDÃO

 

A leitura deste poema de Walt Whittmann nos sugere que o narrador, no caso o poeta, viu-se de repente perdido no meio de uma multidão, fenômeno urbano, que surgiu em consequência da forte aglomeração humana que gerou as grandes cidades, por força da crescente industrialização e os avanços nas relações de comércio, ávidas por mão-de-obra e consumo.

A multidão guarda um segredo no anonimato, que é o seu cofre.

Descobre-se alguém no meio da multidão, homem ou mulher, o espectador de alguma forma se emociona, reage intimamente, mas a figura de repente desaparece, sem que ele saiba quem é, impedindo-o de lhe dizer o que sentiu.

Li esse poema e, de repente, me veio à mente belíssimo soneto do francês Charles Baudelaire (1821-1867), que a mim me pareceu celebrar a presença da multidão como consequência da famosa reforma urbana implementada pelo Barão de Haussmann (1809-1893), durante o império de Napoleão III, de 1850 a 1870), em Paris, imitada no mundo inteiro (lembremos a nossa Avenida Sete, surgida pela mão do governador J. J. Seabra, e a hoje chamada de Avenida Rio Branco, antes de Avenida Central, na reforma implantada por Pereira Passos, no Rio de Janeiro).

Pois é, neste soneto Baudelaire narra justamente a impressão que causou, emocionalmente, no poeta, a descoberta de uma bela e elegante mulher, que transitava dentro da multidão, por ela se encantando e com ela sonhando, mas que de repente foge, desaparecendo completamente, certo de que só a verá na eternidade...

Para que leiam e tirem as suas conclusões, transcrevo embaixo esta maravilha de lirismo proporcionado pela modernidade, em união com a arte da linguagem, no original e em tradução. (Florisvaldo Mattos)

 

A UNE PASSANTE

 

Charles Baudelaire (1821-1867)

 

La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,

Une femme passa, d’une main fastueuse

Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

 

Agile et noble, avec sa jambe de statue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,

Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,

La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

 

Un éclair… puis la nuit! — Fugitive beauté

Dont le regard m’a fait soudainement renaître,

Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?

 

Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!

Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

 

 

A UMA PASSANTE

 

Charles Baudelaire

 

A rua em torno era um frenético alarido.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

Uma mulher passou, com sua mão suntuosa

Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

 

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.

Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia

No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,

A doçura que envolve e o prazer que assassina.

 

Que luz… e a noite após! – Efêmera beldade

Cujos olhos me fazem nascer outra vez,

Não mais hei de te ver senão na eternidade?

 

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!

Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,

Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!


(Charles Baudelaire. As Flores do mal. Edição bilíngue. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: p. 345.).

    Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Um Baile no Moulin de la Galette, 1876

CHARLES BAUDELAIRE E A CIDADE DE PARIS

Carlos Henrique Gileno *

 Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história

Depressa muda mais que um coração infiel).

Charles Baudelaire. Poema "O Cisne". As Flores do Mal.

1. Introdução

A partir do século XVIII as cidades modernas começaram a se expandir, transfigurando a política, a cultura, a sociedade, a economia, o espaço e o tempo. Portanto, é verossímil analisarmos as cidades modernas enquanto uma construção histórica, fruto de um determinado momento da vida dos indivíduos e das coletividades. E, se o modernismo é uma arte especificamente urbana, em parte é porque o artista moderno, tal como seus semelhantes, foi capturado pelo espírito da cidade moderna, que em si é o espírito de uma sociedade tecnológica moderna. A cidade moderna se apropriou da maioria das funções e meios de comunicação da sociedade, da maioria da população e dos limites mais avançados de sua experiência tecnológica, comercial, industrial e intelectual. A cidade se tornou cultura, ou talvez o caos que se segue a ela. Sendo ela própria modernidade enquanto ação social, a cidade é, ao mesmo tempo, o centro da ordem social existente e a fronteira criadora de seu crescimento e transformação. (Bradbury, 1989: 77, grifos meus).

De fato, podemos entender a cidade moderna enquanto o desenvolvimento de um processo, ou seja, as transformações que ocorrem em seu interior nos revelam um movimento contínuo: movimento, entretanto, heterogêneo, posto que a sua complexidade seja produto de alguns dos elementos fundamentais que engendraram a modernidade. [...] a experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. (Berman, 1986: 15).

A análise do modernismo nas várias cidades que o vivenciaram nos séculos XVIII e XIX oferece um terreno fértil para tentarmos compreender as interpretações que deram origem aos pontos de vista de diferentes autores sobre a modernidade: “[...] o modernismo foi mais do que qualquer cidade em si: foi, como mostrarão os ensaios seguintes, frutos de muitas capitais e muitos países, muitos impulsos e diferentes estados de espírito intelectuais e estéticos.” (Bradbury, 1989: 82) 1.

A modernização (“um complexo de estruturas e processos materiais”, que compreende a economia e a política) e o modernismo (um “estado de espírito”, que abarca a arte, a cultura e a sensibilidade) foram temas recorrentes nos escritos de Goethe, Marx, Flaubert, Dickens, Stendhal, Baudelaire, Dostoievski, entre outros. As transformações materiais capitaneadas pela burguesia nos séculos XVIII e XIX mantiveram uma relação dialética com o pensamento: relação tensa e contraditória que gera, na vida moderna, a “fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno.” (Berman, 1986: 129).

As Flores do Mal – os 100 poemas publicados por Charles Baudelaire em 1857 - possue um importante significado político para o período histórico apontado acima.  Nesse artigo, terá proeminência a análise de um dos três poemas do ciclo Révolte (Abel e Caim), cujo estudo não confirma o adjetivo de poésie pure aos versos de Baudelaire. Esses poemas tiveram a sua inspiração sobre os aspectos sociais, culturais e políticos das diferentes “cidades do modernismo”, exemplo,  Londres,  Viena, Praga, Berlim, Paris ou  São  Petersburgo, entre  outras,  consultar:

BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.  São Paulo: Editora Brasiliense, 1989; BERMAN, M. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; BRADBURY, M.; MCFARLANE, J.  (Orgs.). Modernismo: guia geral (1890-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1989; OEHLER, D. Um socialista hermético. Sobre a polêmica baudelairiana entre Benjamin e Brecht. Revista Praga: estudos marxistas. São Paulo: Editora Hucitec, São Paulo, nº 5, mai. 1998; WILLIANS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Os outros dois poemas são “A negação de São Pedro” e “As Litanias de Satã, entre as revoltas de 1848 e o golpe de Estado de 1851, e são dirigidos contra a burguesia do século XIX. Outro poema, "O Cisne", pertencente ao ciclo Tableaux Parisiens, examina a destruição da velha Paris. Seus  melhores  escritos parisienses  pertencem  exatamente ao período em que, sob a autoridade de Napoleão III e a direção de Haussmann, a cidade estava sendo remodelada e reconstruída de forma  sistemática.  Enquanto trabalha  em  Paris, a  tarefa  da modernização da cidade  seguia seu  curso, lado  a lado com ele, sobre sua cabeça e sobre seus pés. Ele pôde ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista desta tarefa em  curso;  seus escritos  parisienses  expressam o  drama  e  o trauma    implicados. Baudelaire  nos  mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como  a  modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da  alma dos seus cidadãos. (Berman, 1986: 143).

2. Intelectuais tomam a defesa de um proletariado cada vez mais numeroso   

  A industrialização legou à Paris de meados do século XIX um aumento considerável da sua população urbana e, consequentemente, uma intensificação do tráfego. Por conseguinte, a exemplo de outras cidades europeias que haviam tomado contato com a  indústria moderna, a capital da França estava enfrentando as dificuldades de circulação,  sendo assolada, inclusive, por frequentes epidemias. A reforma urbana de Paris foi pensada como uma solução para os problemas mencionados acima. Luís Napoleão (1808-1873), que estivera exilado na capital inglesa, presenciou as reformas londrinas e aplicou-as à Paris quando subiu ao trono francês (1852-1870).

Para obter êxito, no entanto, necessitava de um administrador agressivo: encontrou  Haussmann e portanto, o triunfo. Juntos eles construíram a Paris moderna, em três programas integrados de demolição e construção, entre 1853 e 1870. (Needell, 1993: 50-1).

  Os três programas citados se resumiam em melhorar a circulação do tráfego,  extinguindo as ruas estreitas ao criar os bulevares circulares. Essas novas vias largas e arborizadas - os bulevares - tomaram o lugar dos antigos “bairros tradicionais da classe operária, superpovoados e insalubres”, oferecendo uma diminuição do congestionamento, “levando  ar e luz à cidade”, além de eliminar os principais focos da epidemia de cólera. Também a reforma parisiense contribuiu para o embelezamento da cidade ao erigir grandes edifícios e monumentos, “sendo o mais famoso dele a Ópera, marca registrada do Segundo Império.” (Idem: 51).

Paris estava mais iluminada, o tráfego intenso e fluindo com facilidade, a multidão aglomerava-se nas suas ruas. A cidade tornou-se um espaço excepcional para o observador, revelando os seus conflitos e as suas profundas divisões de classe, transformando-se no palco dos novos problemas sociais que surgiram com a consolidação do capitalismo moderno. Mesmo antes da reforma urbana, Charles Baudelaire já havia se inserido no turbilhão político e econômico que  estava  oferecendo novos contornos a Paris, participando ativamente das manifestações que agitaram aquela cidade em fevereiro de 1848. O ano de 1848 começou tenso: Luís Napoleão se recusara a levar adiante a reforma eleitoral. [...] intelectuais tomam a defesa de um proletariado cada vez mais  numeroso, e denunciam veementemente os que eles consideravam um autoritarismo insuportável.

O festim de protesto, que deve ocorrer em 22 de fevereiro de 1848  em  Paris, é  proibido. Imediatamente, ante as forças da ordem, organiza-se uma manifestação, com  vitrines quebradas, barricadas improvisadas e trocas de tiros. No dia seguinte, a agitação toma conta da cidade toda. Luta-se no faubourg Sant-Antoine, no bairro  das  escolas, na rua Saint-Honoré, na rua de Valois... As tropas de reforço convocadas começam a  intervir. Alguns soldados remanescentes se recusam a atirar nos rebeldes. Baudelaire  e  alguns amigos, Champfleury, Promayet, Toubin, correm de um lado para outro e se misturam aos insurretos, com gritos encorajadores. Excitado ao ver aquela desordem, Charles tem a impressão de que é a sociedade toda, com suas hierarquias estúpidas, suas leis coercitivas, suas fortunas escandalosas, com todos os seus tabeliões, todos os seus ministros, todos os seus juizes, todos os seus generais, é tal sociedade que recebe o açoite.

Para ele, não se trata de um confronto entre republicanos e monarquistas, mas entre jovens loucos por independência e a crosta da ordem estabelecida, entre a fantasia e a rotina, entre o gênio e o cofre-forte. Quando ele chega ao bulevar do Temple com seus companheiros, várias exclamações de alegria jorram da multidão. O que está  acontecendo?  Vitória: o Ministério Guizot acaba de pedir  demissão, o poder capitula! Instantaneamente as lojas reabrem as portas, bandeiras tricolores aparecem nas janelas,  os  soldados se confraternizam com os amotinados e centenas de bocas clamam A  Marselhesa e O Canto dos Girondinos. (Troyat, 1995: 125-126).

Charles Baudelaire, em fevereiro de 1848, estava ao lado dos rebeldes vitoriosos. Em  junho do mesmo ano, ainda nas fileiras insurretas, o poeta conheceu a derrota. A gravata vermelha que o autor vestia nas sublevações de fevereiro foi rasgada pelas investidas de Luís Napoleão, em dezembro de 1851, contra a imprensa, as reuniões populares e pelo decreto do estado de sítio. No umbral da Revolução de Fevereiro, a república social apareceu como uma  frase, como  uma profecia. Nas jornadas de junho de 1848 foi afogada no sangue do proletariado de Paris, mas ronda os subsequentes atos da peça  como um fantasma. A república democrática anuncia o seu advento. A 13 de junho de 1849 é dispersada juntamente com sua pequena burguesia, que se pôs em fuga, mas que, na corrida, se vangloria com redobrada arrogância. A república parlamentar, juntamente com a burguesia, apossa-se de todo o cenário; goza a vida em toda a sua plenitude. (...) A burguesia francesa rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador. (Marx, 1992: 110).

3. Raça de Caim, teus parcos dentes rangem de fome e privação

O poema "Abel e Caim" retoma um tema mítico sobre a origem do cativeiro. Noé, após ter se embriagado com vinho, foi encontrado nu em sua tenda pela própria prole. Os filhos de Noé que saíram da arca eram Sem, Cam e Jafet. Cam era o pai de Canaã. Estes eram os três filhos de Noé. É por eles que foi povoada toda a terra. Noé, que era agricultor, plantou uma vinha. Tendo bebido vinho, embriagou-se, e apareceu nu no meio de sua tenda. Cam, o pai de Canaã, vendo a nudez de seu pai, saiu e foi contá-lo aos seus dois irmãos. Mas, Sem e Jafet, tomando uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e foram cobrir a nudez do seu pai, andando de costas; e não viram a nudez de seu pai, pois que tinham os seus rostos voltados. Quando Noé despertou de sua embriaguez, soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo. “Maldito seja Canaã, disse ele; que ele seja o último dos escravos de seus irmãos!” E acrescentou: “Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja teu escravo! Que Deus dilate a Jafet; e este habite nas tendas de Sem,  e  Canaã seja teu escravo! (Bíblia  Sagrada, 1994: 56 - Gênesis, 9, 18-27)3

Segundo Alfredo Bosi, autor de onde extraímos essa ideia da “danação original” de Canaã, o mito de Cam foi largamente utilizado nos séculos XVI, XVII e XVIII para justificar o trabalho compulsório nas colônias de além-mar. Noé abençoou Cana, que era filho de Cam, porque não podia amaldiçoar seu pai, que antes fôra abençoado por Deus. Tanto a igreja católica como a protestante da época, “conformadas” com o  tráfico negreiro que  impulsionava a  economia mercantil europeia, fizeram ressurgir o mito bíblico para justificar a sangrenta escravidão moderna. Aquele mito ajudava a  consolidar ideologicamente a exploração desumana infligida aos filhos do continente negro. Castro Alves, em sua Vozes d’  África, dialoga com o “deus-vingador” que permitiu a prescrição da maldição aos descendentes de Canaã. 

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!

É, pois, teu peito eterno, inexaurível 

De vingança e rancor?... 

E o que é que fiz, Senhor? Que torvo crime

Eu cometi jamais que assim me oprime

Teu gládio vingador?! (Alves apud Bosi, 1995: 258-259).

Castro  Alves, em 1868, apropriou-se do mito de Cam para combater a escravidão e  engrossar as  fileiras a favor do abolicionismo. Em contrapartida, Charles  Baudelaire utilizará aquele mito para se opor à propriedade privada, considerada  pelo autor como a  portadora da desigualdade moderna entre os homens. Em Charles Baudelaire, as classes sociais - que no seu momento histórico se delineiam mais claramente e entram em conflito nas ruas de Paris - serão consideradas metaforicamente através do mito da “danação original”.

Raça de Abel, frui, come e dorme,

Deus te sorri bondosamente.

Raça de Caim, no lodo informe

Roja-te e morre amargamente.

Raça de Abel, teu sacrifício

Doce é ao nariz do Serafim

Raça de Caim, teu suplício 

Quando afinal há de ter fim? (Baudelaire, 1985a: 419).

As indagações frementes de Castro Alves (“Não basta inda de dor, ó Deus terrível?”) e de Charles Baudelaire (“Raça de Caim, teu suplício / Quando afinal há de ter fim?”), cada uma a seu modo, podem colocar em dúvida a celebrada ideia da “emancipação humana” que surgiu com  mais força após a Revolução Francesa de 1789. No caso específico de Charles Baudelaire, a cidade moderna (enquanto espaço que articula os princípios elementares da modernidade, isto é, a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a propriedade) produz as contradições que repelem a ideia de uma “fraternidade universal”.

A fraternité, a fraternidade das classes adversárias, das quais uma explora a outra (...) “é  na verdade a guerra do trabalho e do capital”, escreve Marx após a sangrenta repressão  da primeira revolução proletária da história, em junho de 1848. Abel  e Caim não diz outra  coisa - o mesmo valendo, de forma cifrada, para toda a obra de Baudelaire. O poema citado implica que a fraternidade será ainda e sempre homicida enquanto o princípio da desigualdade - metaforicamente falando: o Deus de Abel; concretamente: a propriedade privada - não for superado. É por isso que o ciclo Révolte concentra-se naquele  Deus que a burguesia criou à sua imagem e semelhança. (OEHLER, 1998, p. 98).

Ao tentarmos decifrar as imagens do poema Abel e Caim, podemos supor que a “raça de  Abel” é o símbolo da classe social que detém o domínio da propriedade privada, enquanto a “raça de Caim” é o elemento que descreve a classe social destituída de posses.

Raça de Abel, tuas sementes 

E teus rebanhos férteis são

Raça de Caim, teus parcos dentes

Rangem de fome e privação


Raça de Abel, teu ventre aquece

Junto à lareira patriarcal

Raça de Caim, treme e padece

Em teu covil, pobre chacal!


Raça de Abel, goza e pulula!

Teu ouro é pródigo em rebentos;

Raça de Caim, refreia a gula,

Ó coração que arde em tormentos!

Raça de Abel, cresces e brotas

Como os insetos do arvoredo;

Raça de Caim, por ínvias rotas,

Arrasta os teus à infâmia e ao medo. (Baudelaire, 1985: 421).

As “ínvias rotas”, sobre as  quais a população pobre de  Paris se  movia,

contrastavam profundamente com os bulevares, símbolos da  modernização da velha cidade parisiense. "Os Olhos dos Pobres" - pequeno poema em prosa que figura no livro intitulado O Spleen de Paris - reflete o espaço urbano onde ocorriam os conflitos entre as classes sociais. Esses conflitos aconteciam no âmbito da cidade, a qual se tornou uma síntese excepcional da própria sociedade moderna, expondo, ao mesmo tempo, o seu progresso e a sua miséria.

Plantado diante de nós, na  calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício da empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos (...) Os olhos dos pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.” (...) Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa  sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?” Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

(BAUDELAIRE, 1985b: 84-85).

A  cidade reformada - cheia de luz e largas avenidas - convive com o pauperismo e a opressão. Aos pobres é vedado o acesso  à  liberdade, à igualdade, à fraternidade e à propriedade. Segundo  Dolf Oehler, é “a relação dialética entre opressão e libertação, afirmada desde a primeira estrofe, que constitui o cerne de Le Cygne.” (Oehler, 1998: 102).

4. No pó banhava as asas cheias de aflição

O poema Abel e Caim remete ao período em que a luta de classes, na cidade de Paris, ganhava contornos nítidos. Este poema nos remete a um período  heroico da revolução, o qual se desmantela com a derrota do proletariado em junho de 1848. Por outro lado, o poema "O Cisne": [...]  não é poesia de agitação como os poemas dos tempos heroicos da luta de classes. A revolução fracassou, e o uso do adynaton,  figura retórica da impossibilidade, funciona como perífrase do absurdo inescapável  daquele heroísmo. (Oehler, 1998: 104).

De início, podemos constatar que a imagem do cisne pode ser associada ao proletariado parisiense que lutou em 1848. Em junho daquele ano, diversas oficinas que empregavam os trabalhadores fecharam as suas portas, privando-os das necessidades mais básicas. O  estrondo das armas na batalha vinha acompanhado do grito “Pão ou Morte!”, e a invocação da revolução deveria cair sobre a população como uma tempestade.

Um cisne que escapava enfim ao cativeiro

E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,

As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro.

Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,

No pó banhava as asas cheias de aflição,

E dizia, a evocar o seu lago natal:

Água, quando cairás?

Quando soarás trovão?

Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,

Tal qual homem de Ovídio, às vezes num impulso,

Erguer-se para o céu cruelmente azul e irônico,

A cabeça a emergir do pescoço convulso,

Como se a Deus lançasse um desafio agônico! (Baudelaire, 1985a: 327).

  Vários  autores, dentre eles Gustave Flaubert (1821-1880) no romance intitulado A Educação Sentimental, contrastaram o céu azul daqueles dias de junho com a cor do  sangue que escorria pelas ruas da cidade de Paris. A primeira parte do citado poema, que transcrevemos acima, aproxima-se do tema da revolta em Abel e Caim, pois o Deus da burguesia - a propriedade privada - é desafiado nos versos dos dois poemas: “Raça de Caim, sobe ao espaço / E Deus enfim deita por terra!” [Abel e Caim]; “A cabeça a emergir do pescoço convulso, / Como se a Deus lançasse um desafio agônico!” [O  Cisne]. Todavia, como já indicamos ligeiramente, a segunda parte  do poema  perde o  calor heroico da revolução, uma vez que as revoluções proletárias foram afogadas em sangue.

Uma impressão nostálgica domina a segunda parte de "O Cisne".  As saudades da Paris anterior à reforma urbana afloram nos sentimentos do poeta.

Paris muda! mas nada em minha nostalgia

Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,

Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,

E essas lembranças pesam mais do que os rochedos. (Baudelaire, 1985: 327).

Também o exílio infligido  aos insurretos que lutaram nas barricadas é relatado desalentadamente: as barricadas que deram abrigo ao povo que lutava pela  República e pela Liberdade, depois da reforma urbana - reforma que construiu os grandes bulevares como uma estratégia anti-revolucionária, pois as ruas largas facilitavam a movimentação da  artilharia e da cavalaria - foram extintas assim como a promessa revolucionária: “Também diante do Louvre uma imagem me oprime: / Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi, / Qual exilado, tão ridículo e sublime, / Roído de um desejo infindo!” (Baudelaire, 1985: 329).

É provável que os versos seguintes possuam uma percepção profunda dos efeitos  da  revolução de 1848. Os ideais de 1848 proclamavam a “igualdade universal e a abolição da escravatura”. Enquanto os prisioneiros políticos eram mandados para a África, os negros faziam o caminho inverso: vinham das colônias para a metrópole francesa como trabalhadores portadores de mão-de-obra barata. É essa situação que exprime os versos finais de "O Cisne".

E penso nessa negra, enferma e emagrecida,

Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,

Os velhos coqueirais de uma África esquecida

Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil;

Em alguém que perdeu o que o tempo não traz

Nunca mais, nunca mais! nos que mamam na Dor

E das lágrimas bebem qual loba voraz!

Nos órfãos que definham mais do que uma flor!

Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,

Uma lembrança antiga me ressoa infinda!

Penso em marujos esquecidos numa praia,

Nos párias, nos galés...  e em outros mais ainda!  (BAUDELAIRE, 1985, p. 329).


5. Considerações Finais

  Através  da pequena análise que procuramos  empreender sobre os poemas "Abel e Caim" e "O Cisne", do poeta francês Charles Baudelaire, podemos entender a cidade moderna como um  terreno privilegiado para  expressarmos alguns dos elementos que constituem a modernidade. As novas relações sociais que emergiram após as revoluções de 1848 na França demonstraram que a cidade é o locus da civilização moderna; dos seus conflitos e da sua organização social. Foi nela que Baudelaire montou o seu “laboratório”; foi nela que o poeta retirou as suas impressões sobre a realidade social que o cercava, exprimindo alguns dos caracteres fundamentais que marcaram o seu período histórico.

Caminhamos ainda mais para trás, é possível lembrar que durante a revolução de 1848, uma revolução simultaneamente parisiense, francesa e europeia, viviam em Paris Auguste Comte, Alexis de Tocqueville, Karl Marx e Charles Baudelaire, além de outros pensadores,  escritores,  artistas, filósofos.  se haviam criado algumas das condições sociais e culturais que talvez tenham constituído um clima propício à emergência do “positivismo” e do “marxismo”. Nessa  época  são bastante evidentes as condições e as consequências dos processos de secularização e individuação, ao lado da urbanização, industrialização e modernização. Formam-se mais nitidamente  as classes  sociais e continua  a organizar-se o povo, enquanto coletividade de cidadãos. São transformações em curso em muitas partes do  mundo, metropolitanas e coloniais, ainda que mais evidentes em grandes cidades como Londres, Paris, Berlim, Nova York e outras. Esse o contexto em que Marx irá dizer que o gerente de banco se transformará no confesso do homem moderno. Contexto esse que se tornará ainda mais evidente a observação de Hegel, ao dizer que a leitura diária do jornal passou a ser a oração matinal do homem moderno. Estava em  curso  o “desencantamento  do  mundo”, que se desenvolvia bastante no longo dos tempos modernos, intensificava-se a partir do Iluminismo e irá ser codificado por Max Weber na transição do século dezenove ao vinte. (Ianni, 1996: 10).

RERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE,  Charles. As  Flores do  Mal.  Rio de  Janeiro:  Editora Nova Fronteira, 1985a.

___________________O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1985b.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

BERMAN, Marshal.  Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BÍBLIA SAGRADA. 90. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1994.

BOSI, Alfredo. Sob o Signo de Cam. In: Dialética da Colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

BRADBURY, M. E MCFARLANE, J. (Orgs.). Modernismo: guia geral (1890-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

IANNI, Octavio. Cidade e Modernidade. São Paulo: SESC, São Paulo, 12 nov. 1996.

MARX, K. Classes Sociais e Bonapartismo. In:  IANNI, Octavio. (Org.) e FERNANDES, Florestan. (Coord.). Marx. São Paulo: Editora Ática, 1992.

NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

OEHLER, Dolf. Um socialista  hermético: sobre a polêmica baudelairiana entre Benjamin e Brecht. Revista Praga: estudos marxistas. São Paulo: Editora Hucitec, n. 5, mai. 1998.

TROYAT, Henry. Baudelaire. São Paulo: Editora Scritta, 1995.

WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


RESUMO: O principal objetivo do presente artigo é relacionar algumas das mudanças materiais e políticas ocorridas na Paris do século XIX (as revoltas de 1848, o golpe de Estado de 1851 e o período em  que  Haussmann e Luís Napoleão construíram a “Paris moderna”, 1853-1870) com a análise de alguns escritos do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867).


PALAVRAS-CHAVE: Charles Baudelaire; Cidade e Modernidade; Crítica Literária e Social.


* Carlos Henrique Gileno. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Diretor Geral do Instituto Matonense Municipal de Ensino Superior (IMMES - Matão/SP). Professor Substituto da Universidade Estadual Paulista (FCL - Campus de Araraquara).


OPINIÕES QUE ESSAS POSTAGENS ESTIMULARAM

 

1 - De Heloísa Prazeres (19.01.2024)

 Bom dia, caro Florisvaldo.

Obrigada pela partilha de suas reflexões, sempre alentadas e inspiradoras. Retorno, tentando alguma contribuição.

Leaves of Grass (1855) é um dos livros seminais da literatura moderna; introduziu o verso livre, o tratamento poético da vida cotidiana, os progressos técnicos das grandes cidades e o amor não romântico. Suas quatro primeiras edições (1855, 1856, 1861,1867) sublinham o caráter engajado do projeto poético de Whitman, que não visava à mera aclimatação da poesia europeia no Novo Mundo, mas sim à constituição formal de uma poesia norte-americana adequada à realidade de seu país, segundo seus estudiosos.

 Com efeito, caro Florisvaldo, fiel ao tom de prosa (adotado nos versos livres de Whitman), vivendo o período de transformação industrial de seu país, Walt Whitman produziu obra poética escrita em versos de métrica livre, linguagem vibrante e musicalidade própria. Seus poemas apresentam enumerações de imagens pulsantes, que pregam a valorização dos sentidos e exaltam a vida moderna e a democracia.

Confirma-se, amigo, a sua qualidade como proponente de múltiplas abordagens e associações literárias.

Com efeito, o interesse na poesia de Whitman perpassa pela consciência de muitos; ele produziu obra poética original, escrita em versos de métrica livre, linguagem vibrante e musicalidade própria. conforme você observa, trazendo a atualidade dos temas e a referencialidade de Baudelaire, outro farol da modernidade.

Como sugestão, lembro que se pode entender, também, por exemplo, por que Álvaro de Campos (FP) dirige-se a ele, no poema “Saudação a Whitman”.

Lembro aqui a influência de Whitman sobre o poeta, heterônimo, Álvaro de Campos, que é declarada pelo próprio Pessoa; ainda que, entre os dois, haja diferenças, identificadas pelo português, ao afirmar:

 “Álvaro de Campos definiu-se excelentemente como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá dentro; há nele toda a pujança da sensação intelectual emocional e física que caracteriza Whitman; mas nele verificou-se o traço preciosamente oposto.”

Tendo lido um pouco mais sobre a presença de Whitman, contemporaneamente, encontro que, observa-se a revisão histórica de Leaves of Grass centrada quase que exclusivamente na experiência social norte-americana e na própria tradição crítica brasileira, na qual se consolidou um importante corpo de conceitos e debates acerca da posição periférica das literaturas do Novo Mundo em relação à Europa.

O que  permite tanto colocar a literatura de Whitman em um quadro mais abrangente de formação literária, como nela observar questões comuns às experiências brasileira e norte-americana para a consolidação de seu sistema literário, tais como, o caráter empenhado da elite literária; a busca de novas formas; a representação e afirmação, na lírica, do indivíduo e da natureza do país; as questões éticas e econômicas ligadas ao problema da escravidão e a relação ambígua e contraditória com os movimentos literários europeus.

 A opção de escolha e o criativo destaque do tema revelam a sua preocupação e respectiva percepção sobre a importância de Walt Whitman para a poesia moderna, ao mesmo tempo em que atestam a sua fértil ligação com a escrita literária.

Parabéns, sempre! Obrigada.

Abraços.

 

2 – Cyro de Mattos (20.01.2024):

 Poeta Florisvaldo, só agora vejo seu precioso informe sobre o poema célebre “A Um Estranho”, de Walt Whitman, em paralelo com “A Uma Passante”, de Baudelaire, aludindo na sua observação lúcida como se tocam no tema da solidão na multidão. 

Seu comentário me fez lembrar meu tempo de leitor adolescente quando comecei a conhecer estes dois gigantes da poética universal, influenciadores de movimentos de vanguarda com a chegada de novos tempos no século XX.  Sempre retorno ao poeta celebrativo dos tempos modernos na América e no mundo. E a outros do mesmo naipe, de timbre poético gigantesco, como Baudelaire, Garcia Lorca, Rilke, Fernando Pessoa e Robert Frost.

A leitura de Folhas de Relva, obra-prima de Walt Whitman, incentivou-me a escrever o Cancioneiro do Cacau, livro que me rendeu o Prêmio Nacional de Poesia Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores (RIO), Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Genova, Itália, o Emílio Moura, da Academia Mineira de Letras, e foi Finalista do Jabuti. 

Obrigado, Florisvaldo, por me acender a lembrança da melhor poesia no século XIX, com Walt Whitman e outros magníficos bardos, donos da razão lógica e da razão mágica postas a serviço do verso como poucos. 

Um abraço.

Cyro de Mattos


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Ante as correlações reunidas a propósito de Walt Whitmann e Charles Baudelaire, faz sentido reproduzir a ode de Álvaro de Campos, pujante heterônimo de Fernando Pessoa. É o que vai reproduzido abaixo.
reproduzido abaixo.

Fernando Pessoa (1888-1935), pintura de Almada Negreiros 

Álvaro de Campos
 
Saudação a Walt Whitman

 
Portugal Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a adversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contágio a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gêmeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas, 
Homero do insaisissable de flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor, 
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura! incubo de todos os gestos
Espasmo pra dentro de todos os objetos-força, 
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares...

Quantas vezes eu beijo o teu retrato!
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá —,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito

Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica.
Nos teus ver sos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No teto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do teto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha?  Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Pra frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa!  Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstrata do corpo fazendo maelstroms na alma...

Arre!  Vamos lá pra frente! 
Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente Não faz diferença
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma
Infinito!  Universo!  Meta sem meta!  Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho .
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço ...)
Agora, sim, partamos, vá lá pra frente.

Numa grande marche aux flabeux-todas-as-cidades-da-Europa,
Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço
Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!
Não quero intervalos no mundo!

Quero a contigüidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstrato auge no fim cie mim e de tudo!
 
 

Clímax a ferro e motores!
Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!
Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!
 
Ponham-me grilhetas só para eu as partir!

Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso,

As mãos apertaram-me no escuro,
Morri temporariamente de senti-lo,
Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere privado,
E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,
Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,
Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

He calls Walt:

Porta pra tudo!
Ponte pra tudo!
Estrada pra tudo!
Tua alma omnívora,
Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher, 
Tua alma os dois onde estão dois,
Tua alma o um que são dois quando dois são um, 
Tua alma seta, raio, espaço,
Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York, 
Brooklyn Ferry à tarde,
Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,
Libertad!  Democracy!  Século vinte ao longe!
PUM! pum! pum! pum! pum!
PUM!
Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,
O sujeito e o objeto, o ativo e o passivo,
Aqui e ali, em toda a parte tu,
Círculo fechando todas as possibilidades de sentir, 
Marco miliário de todas as coisas que podem ser,
Deus Termo de todos os objetos que se imaginem e és tu!  
Tu Hora,
Tu Minuto,
Tu Segundo!
Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido, 
Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento, 
Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente, 
Carimbo em todas as cartas,
Nome em todos os endereços,
Mercadoria entregue, devolvida, seguindo... 
Comboio de sensações a alma-quilômetros à hora, 
À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro, 
Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa
Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica —
Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra.

Heia que eu vou chamar
Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te
Todo o formilhamento humano do Universo,
Todos os modos de todas as emoções
Todos os feitios de todos os pensamentos,
Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.
Heia que eu grito
E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam
Com uma algaravia metafisica e real,
Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,
Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,
Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.



11-6-1915
1ª versão inc.: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.
   RJ: Avenida Central, após a reforma Pereira Passos (1903-1906)

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