In vino veritas, sim.
https://atarde.com.br/opiniao/in-vino-veritas-na-poesia-desde-baudelaire-1264391
Erupção do Vesúvio, que matou Plínio, o Velho, em Pompeia, 79Com esse parágrafo, o professor-titular de Gastro-Hepatologia, da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal da Bahia, Raymundo Paraná, abriu seu artigo de fundamento ponderativo e crítico, publicado no jornal A Tarde, edição de 28/02/2024, contra a nuvem vulcânica de horrores, que na atualidade vem lançando, “na escuridão da noite”, sobre a mentalidade coletiva lavas capazes de forjar “um cidadão temente, submisso e destituído de senso crítico, para entender que é ele mesmo seu algoz”, como aconteceu com Caio Plínio Segundo, que morreu em Pompeia, atingido pela erupção do Vesúvio, em 79, d.C, com 56 anos de idade.
Esse lema veio à tona na Idade Média, evocado por bispos, que cultivavam vindimas e, delas, auferiam proveitos pessoais e místicos, mas já apontavam paralelo em versos de Horácio e em Plinio, o Velho, como tradução de um provérbio originado na Grécia, pelas mãos do citado poeta Alceu, que, ao se assentar no prestígio do Latim, ganharia o mundo, ao ser aclamado em banquetes, como alegre exaltação ao amor e à bebida. Segundo o testemunho de Alceu, em grego o provérbio dizia: Vinho, meu filho, e verdade. E, segundo inúmeras fontes, foi citado por Platão, Teócrito e Plutarco, entre outros. Numa delas (Renzo Tozi, Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, 1991), todos esses ditos que ganharam o mundo, desde a Idade Média, "fazem referência à liberdade com que o bêbado sempre se expressa". aludindo a um trecho de O Banquete, de Platão, citado por estudiosos, que menciona "a sacralidade e a inviolabilidade dos pactos sancionados com o vinho".
Daí para frente, espalhou-se pela Europa, por todo o Ocidente, ao ponto de surgirem variantes, ainda em latim, tais como Vinum laetificat cor homininis (o vinho alegra o coração dos homens), com fundamento na Ilíada, de Homero, e nos Salmos, como um espelho da mente; Nunc est bibendum (Agora é preciso beber). pescado numa ode de Horácio, e Inter pocula (Entre as taças), cuja fonte é um trecho das Geórgicas, de Virgílio e, para mim, a clara origem de nosso popular tim-tim.
Tanto esse lema latino se propalou por todas as línguas modernas, especialmente entre as neolatinas, ao ponto de, na França, tornar-se significativa esta: Avant Noé les hommes, n´ayant que de l´eau à boire, ne pouvaient trouver la verité ("Antes de Noé, os homens, não tendo senão água para beber, não podiam encontrar a verdade"), sendo lógico que a solução seria a bebida, desde que Noé, segundo narrativas, assentadas no Gênesis, ao descer da Arca, seu primeiro lavor foi plantar uma vindima.
Passei então a imaginar a presença do vinho na arte, com maior força na poesia e, de início, logo me veio à mente a famosa separatriz, Le vin (O vinho) que consta da obra As Flores do Mal (1857), de Charles Baudelaire, celebrando as virtudes dessa bebida para a vida humana, mas me vi subitamente instigado a buscar a incidência dessa insigne bebida em poetas de algumas línguas, incluso em português, além do francês imperador da modernidade, em tradução do saudoso poeta e crítico literário Ivan Junqueira.
Nesta venturosa temeridade, resolvi também me fixar na figura do naturalista romano Plínio, o Velho, ao recobrar do grego e plantá-lo no Latim esse lema, e, ante tamanha bem-sucedida escolha, lembrar-me a infelicidade que dele se apossou, estando na praia, quando a tragédia da erupção do Vesúvio, levou-o a morrer, desde que na condição de almirante da frota de Miseno, decidiu deixar no porto seus marinheiros, para inteirar-se do horror que se abatera sobre Pompeia.
A partir dessa trágica memoria, subitamente me veio à mente dramático poema de Ruy Espinheira Filho, que tem como referência o destino fatal de Plínio o Velho, naturalista empenhado em descobrir os segredos da natureza, que morreu desamparado pela ciência, sob as chamas do Vesúvio e os gases venenosos despejados pela que ficou com o apelido em latim de nubem inusitata (nuvem inusitada, desconhecida).É desse heroico poema que transcrevo alguns excertos adiante. (Florisvaldo Mattos)
VIAGEM
PLIÍNIO O VELHO E A NUVEM MISTERIOSA, SEGUNDO PLINIO O MOÇO
Ruy Espinheira Filho
I
Era o nono dia
Antes das calendas de setembro.
Embora comandasse a frota
Plínio o Velho apenas estava
Em Miseno
Posto em sossego.
Tomara um banho de sol
em seguida um banho frio
comera reclinado uma leve refeição
agora estudava. E foi quando
cerca da sétima hora
a mãe de seu sobrinho
Plínio o Moço
indicou-lhe ao longe a aparição.
E ele pediu as sandálias
e subiu a um lugar de onde poderia
ver melhor
o que se elevava e se abria
como uma estranha árvore
no horizonte..
II
Acesa a chama da alma
das interrogações da ciência
Plínio o Velho pediu que preparassem
uma liburna
para ver de perto a
nubem inusitata
como escreveria seu sobrinho a Tácito
25 anos mais tarde
(...)
III
E lá se foi
até que começaram a vir
pedras e cinzas sobre as naves
quando
contra conselhos do seu piloto
manda o Velho manobrar
a Stabia
observando que a sorte
ajuda os corajosos. Lá
ao medo de Pomponiano
abraçou-o
conformou-o
encorajou-o
fez-se conduzir ao banho
depois reclinou-se e jantou
alegremente
dizendo que aquelas labaredas
não passavam de fogos acesos
por camponeses em fuga
e que lhes queimavam os casebres. E assim ditas
tais palavras
foi descansar
dormir profundamente
enquanto o pátio de acesso ao quarto
subia tanto
com as sujas nuvens que desciam
que um pouco mais lhe impediria
a saída. E quando então
saiu
a casa se movia
dançava
e todos puseram travesseiros na cabeça
atados em lenços E em meio às vozes
do medo
o Velho era a razão
mais forte. E foram à praia
porém o mar não se submeteu
ao almirante. Era tudo noite
em pleno dia. E ali, na praia,
o Velho
deitou-se sobre um lençol
e bebeu duas vezes água fresca
mas um cheiro de enxofre pôs em fuga as pessoas
que o acordaram
e ele
apoiando-se em dois servos levantou-se
para logo cair. E quando
voltou a luz do dia
(o terceiro desde que o vira
pela última vez)
seu corpo foi encontrado
ileso
coberto pelas vestes
como se estivesse apenas
adormecido.
(...)
Fora-se o Velho
até ali
nas ondas
sem nada saber
da estranha árvore no céu.
Sem nada desconfiar
do engano da sua ciência.
Sem nada pressentir
da morte à sua espera
na praia. A morte
sem heroísmo algum
talvez apenas
um especialmente incômodo
desapontamento.
(...)
E um herói há de ser sempre
heroico
e heroicamente findar.
(...)
Aquele ilustre
Ali
No sono da morte
desamparado pela ciência
e pelos deuses
que nenhum dele o advertira das fúrias
da Terra
(...)
Ruy Espinheira Filho. Estação Infinita e outras estações. Poesia Reunida (1966-2012)
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, págs. 550 a 555, 2012.
Charles Baudelaire, retrato do realista francês Gustave CourbetEmbriagai-vos!
Deveis andar sempre embriagados. Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é preciso que vos embriagueis sem descanso.
Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.
E si, alguma vez, nos degraus de um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, despertardes com a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo que gene, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão:
- É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!
O VINHO DOS AMANTES
Charles Baudelaire
Hoje o espaço é esplêndido!
Charles Baudelaire
O olhar tão singular de um mulher galante
Que para nós desliza à feição de alvo raio
Que a Lua ondeando envia ao lago num desmaio,
Quando ela vem banhar a beleza hesitante;
A última ficha às mãos do último jogador,
Um beijo libertino da magra Adelina,
Os sons de uma canção enervante de fina,
Como o grito a morrer de desumana dor,
Isto não valerá, ó garrafa profunda,
Os bálsamos de amor que na pança fecunda
Guardas ao coração dos pobre poetas teus!
Tu lhe dás esperança e vida e mocidade;
– E o orgulho, este tesouro da mendicidade,
Que nos torna triunfais, semelhantes a Deus.
O VINHO DO ASSASSINO
Charles Baudelaire
Livre! Minha mulher é morta!
Bebo o que o cálice contém.
Quando eu voltava sem vintém,
Gritava só der ver-me à porta.
Tenho de um rei todo o esplendor;
O ar é puro, o céu admirável…
Tínhamos verão tão amável
Quando eu caí morto de amor!
A sede atroz que me faz louco
Quem a pudera amortecer?
Só o vinho que pode caber
Na sua tumba e não é pouco;
E joguei-a de um poço ao fundo,
Joguei mesmo em seguida a corda
Como os calhaus de sua borda.
– Há de esquecer-se dela o mundo!
Por nossas juras de alegria,
(E não juramos nunca em vão!)
Para nossa conciliação
Como aos tempos de nossa orgia,
Implorei dela uma entrevista
À tarde numa estrada escura,
E veio a aluada criatura!
(Todo o mundo é louco ou artista).
Ainda ela era a mais garrida,
Embora bem fatigada! E
Eu ainda a amava; eis por que
Lhe disse: parte desta vida!
Quem me compreenderá? Um somente,
Do mundo da embriagues, mesquinho,
Pensará, nas noites de doente,
Fazer um sudário do vinho?
Este crápula tão traiçoeiro
Mas do que as máquinas do inferno,
Jamais, em verão ou inverno,
Conheceu o amor verdadeiro,
Com os seus negros alvoroços,
Seu cortejo infernal de espantos,
Seus frascos de veneno e os prantos
De seus ruídos de cadeia e de ossos!
Eis-me liberto e satisfeito!
Irei beber muito esta tarde;
Depois, sem medo e sem alarde,
Farei deste solo o meu leito,
E dormirei bem como um cão!
Um carros de rodas pesadas
Cheio de pedras das calçadas
Um enraivecido vagão,
Partir-me-ão a fronte que odeia
– Um prêmio dos delitos meu –
Mas zombo de tudo, de Deus,
De Satanás, da Santa Ceia!
O VINHO DOS TRAPEIROS
Charles Baudelaire
Muita vez ao rubor de um revérbero e a um vento,
Que à chama sempre é um golpe e o cristal um tormento,
Bem num velho arrabalde, amargo labirinto
De humanidade a arder em fermentos de instinto,
Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta,
Nos muros a apoiar-se e como faz um poeta,
E sem se incomodar com os guardas descuidosos,
Abre o seu coração em projetos gloriosos.
Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime,
Exaltando a virtude, abominado o crime,
E sob o firmamento – um pálio de esplendor –
Embriagar-se à luz de seu próprio valor.
Estes, que a vida em casa enche de desenganos,
Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,
Derreados sob montões de detritos hostis,
Confuso material que vomita Paria,
Voltam, cheios de odor de pipas e barrancos,
E seguem-nos os que a vida tornou tão brancos,
Bigodes a tombar como velhos pendões;
Os arcos triunfais, as flores, os clarões
Se erguem diante do olhar, ó solene magia!
E na ensurdecedora e luminosa orgia
Do clarim e do sol, do grito e do tambor,
Eles trazem a glória ao povo ébrio de amor!
E assim é que através desse terrestre solo,
O vinho é ouro a rolar, fascinante Pactolo;
Pela garganta humana ele canta os seus feitos
E reina por seus dons como os reis mais perfeitos.
E para o ódio afogar e embalar o ócio imenso
Desta velhice atroz que assim morre em silêncio ,
Gerou o sono, Deus, de remorso tocado;
O homem o vinho criou, filho do sol sagrado.
Charles Baudelaire:
“O vinho é parecido com o homem”
O vinho na obra do poeta Charles Baudelaire que influenciou uma geração de escritores modernos
Lucas Bertolo
"Uma noite, a alma do vinho nas garrafas cantava:
“Homem, em tua direção vou, cara fatalidade,
Nessa prisão de vidro e lacre em que estava,
Um canto pleno de luz e de fraternidade! […]
Sobre ti eu escorrerei, vegetal ambrosia,
Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,
Para que do nosso amor nasça a poesia
Que brotará até Deus como uma rara flor!”
"A Alma do Vinho", primeira e última estrofes
*traduções por Lucas Bertolo
Charles Baudelaire, poeta da vida moderna e do desencanto do mundo, foi um dos autores do seu tempo que mais versos compôs sobre o vinho.
Viveu (brevemente, pois morreu aos 46 anos) em meados dos anos 1800, período conturbado da história francesa, que esteve às voltas com a monarquia e o período de Napoleão III. Como era comum na época, especialmente entre artistas, consumia ópio. Diz-se que bebia pouco, era comedido, no entanto.
Na segunda metade do século XIX, havia mais de 2,5 milhões de hectares de vinhedos na França, o que representava mais da metade da produção mundial de vinho. A vitivinicultura era a ocupação de 1,5 milhões de famílias e, indiretamente, o sustento de 6 milhões de franceses, ou 20% da população do país.
Na mesma época, uma praga vinda da América, a filoxera, começa a se espalhar pelos vinhedos europeus, devastando a indústria e cultura do vinho por quase meio século.
Baudelaire publica a sua obra máxima, “As Flores do Mal”, em 1857, dois anos depois da famosa classificação de Bordeaux e poucos antes da primeira infestação da filoxera na França, e dedica ao vinho uma seção com cinco poemas. O livro foi censurado imediatamente à sua publicação, e Baudelaire condenado sob acusação de insultar os bons costumes. Tachados de obscenos, satânicos e insanos, os seus versos influenciaram poetas como Arthur Rimbaud, Cruz e Sousa, e movimentos artísticos e literários como o surrealismo de André Breton e o modernismo brasileiro.
Alma do vinho
Em “A Alma do Vinho”, poema citado na abertura e que faz parte da seção dedicada ao vinho em “As Flores do Mal” (com outras quatro poesias), Baudelaire dá voz e alma ao vinho, que canta sua razão de ser, suas provações, seus prazeres. No poema, é o vinho que sente alegria imensa ao descer pela “goela de um homem exausto de tanto trabalhar”. E é desse encontro, desse amor entre homem e vinho, que nasce a poesia.
A “chanson à boire” (canção de beber) foi temática muito comum nos repertórios dos poetas em cuja sensibilidade ainda se fazia presente certo romantismo. De Victor Hugo à Théophile Gautier, passando por Leconte de Lisle, Gérard de Nerval e Théodore de Banville, todos cantaram os deleites do vinho ou os agrumes da ebriedade. Na poética de Baudelaire, entretanto, o vinho tem outro alcance de sentidos e significados: a embriaguez mundana, a melancolia da vida moderna (o spleen), e a indignidade de, bêbado, “dormir como um cão”, de certa feita emaranha-se com um embevecimento libertino e com o êxtase de um banquete romano. O vinho em Baudelaire é como o phármakon dos gregos antigos: a um só tempo veneno e antídoto.
"Vens do céu profundo ou sais do precipício,
Ó Beleza? teu olhar, infernal e divino,
Confusamente verte o bem e o malefício,
E pode-se por isso comparar-te ao vinho."
Hino à Beleza, primeira estrofe
No poema supracitado, o vinho é comparado à própria Beleza, nas contradições de sua completude. E está neste entrelaçar de imagens contraditórias a verdade do vinho para Baudelaire: vertem-se céu e precipício, o bem e o malefício. É o delírio báquico nas garrafas a dissolver a dor humana, assimilando e transformando-a, ora em repouso, ora em revolta. O vinho do assassino e o dos amantes (que mereceram poemas em “As Flores do Mal”) é um só vinho, seja para “apaziguar um remorso, evocar uma lembrança, afogar as mágoas ou construir um castelo na Espanha”.
» A relação do escritor Goethe com o vinho
» Vinícola italiana produz vinhos de vinhedo do Leonardo da Vinci
Embriague-se
“É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo, é a única questão. Para não sentir o fardo horrível do tempo que esmaga nossos ombros e nos enverga para a terra, é preciso embriagar-se sem descanso. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à sua escolha. Mas embriague-se!” (Embriague-se, primeiro parágrafo, pertencente ao livro Petits Poèmes en Prose).
O convite à embriaguez contínua de Baudelaire, para além de certo entorpecimento imobilizador, é o convite à suspensão do tempo da vida do trabalho. O leitor é convocado a sonhar acordado, a construir os próprios horizontes, a tornar-se autônomo através do vinho, da poesia ou da virtude, e não um “escravo martirizado do Tempo”. A embriaguez em Baudelaire é uma tomada de posição diante do mundo: como se lê um poema, bebe-se para aplacar uma sede da alma.
"Para afogar o rancor e a indolência embalar
De todos estes velhos que morrem calados,
Deus, com remorso, o sonho tratou de criar;
O Homem então fez o Vinho, do Sol filho sagrado!"
O vinho dos trapeiros, última estrofe
Baudelaire inicia “O vinho dos trapeiros” (As Flores do Mal) com os belíssimos versos: “no coração de um velho bairro, labirinto lamacento / onde a humanidade se agita em tempestuoso fermento”. É um poema sobre trabalhadores voltando para casa com seus barris de vinho, a caminho de uma “luminosa orgia”. Um dos trapeiros, trôpego como um poeta, “embriaga-se dos esplendores de sua própria virtude”. Na última estrofe do poema, Baudelaire compõe inusitadas contraposições: um Deus, com remorso, para afogar o rancor dos pobres e velhos cria o sono; o Homem então cria o vinho, que “traz a glória ao povo embriagado de amor”. A criação humana, com matizes de paganismo às avessas (o vinho é, no poema, filho de Apolo, do Sol, e não de Dionísio), supera a criação do remordido Deus cristão.
Vinho é igual ao homem
Em Paraísos Artificiais, obra sobre os efeitos do ópio, do haxixe e do vinho, Baudelaire defende que “o vinho é parecido com o homem: não se sabe nunca até que ponto podemos estimá-lo ou desprezá-lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantas ações sublimes ou crimes monstruosos é capaz. Não sejamos então mais cruéis com ele do que com nós mesmos, devemos tratá-lo como nosso igual”. O vinho, ao assumir posição de equidade com o homem, assume também o que há de “fugitivo, transitório e contingente” nos humores humanos. É “no ouro de seu tinto vapor, como um sol poente em um céu nebuloso” (O veneno, primeira estrofe, últimos versos).
Àqueles avessos ao vinho ou à poesia, Baudelaire deixa um recado: “Muitas pessoas me acharão, sem dúvida, um indulgente: ‘Você inocenta a embriaguez, você personifica o crápula’. Admito que diante dos benefícios eu não tenho coragem de contar as queixas. Aliás, eu disse que o vinho era similar ao homem, e concordei que os seus crimes eram iguais às suas virtudes. Melhor não posso fazer. Mas tenho uma outra ideia: se o vinho desaparecesse da produção humana, creio que ele faria um vazio à saúde e ao intelecto do planeta, uma ausência, uma imperfeição muito mais horrível que todos os excessos e desvios com que responsabilizamos o vinho. […] Um homem que não bebe senão água tem um segredo a esconder dos seus iguais” (Do Vinho e do Haxixe, parte II)
Gustavo Bartolo é tradutor e estudante de filosofia na Universidade Federal de São Paulo.
Link: https://brasilescola.uol.com.br/.../charles-baudelaire.htm
Baco, a célebre pintura do barroco italiano Caravaggio
“Um
homem que só bebe água tem um segredo a esconder de seus semelhantes.”
Charles Baudelaire
GODOFREDO
FILHO (1904-1992)
SETE
SONETOS DO VINHO
(1971)
SONETO
DO VINHO DO PORTO
Fruto
em verde ou de ígneo e azul, tocado
da
música da alva. Ó tessitura
de
esférico sabor, lúdico aroma
de
pomo etéreo. Os beijos que não são.
Desliza
em rota insone. E eu te procuro,
ó
domador do tédio. E, travo de mel,
e
teu conúbio vegetal ressumbram
no
liquefeito olhar das feras bravas.
Que
do xisto azumbrado a fulva luz
tornada
em sumo e veludoso gosto
por
sobre a calcedônia do desejo.
Vinho
que sabe a amor sem fim,
ocíduo
clarão
que incide às tardes sobre o Douro,
ou
de Andrômeda o riso e o de Canopo.
SONETO DO VINHO MOSCATEL
Incende-se-me
o cálice ao Favaios.
Ó
gosto exato. Ó mais adamantino
conceito
de sabor, no superfino
amor
de amar seu corpo em outros maios.
No
entanto, só dezembro em Favaios:
o
aroma, a cor, a luz do sol a pino.
É
vinho de ferver o nosso tino
ou
de exsurgir alguém de seus desmaios.
Mas
o fulgor serena: a mansidão
dulcíflua
caricia filiformes
papilas
rubras e as caliciformes.
Contigo,
o céu mais perto; a lassidão
azul
do sono; e um beijo, que não mente,
sobre
os lábios da tarde, ardentemente.
SONETO DO VINHO DA MADEIRA
O
olhar castanho e morno das panteras
tens
às vezes na cor. Mas entontece
é
teu perfume: a ronda de quimeras
voltando
a meu caminho que escurece.
Ao
meu caminho que escurece… Esferas
de
ébrio torpor no céu que agora desce
sobre
a fluidez enorme do que eras
no
chamalote do ar, que empalidece.
Das
chípreas uvas roxas e onde o mosto
espúmeo
flui, e a perfeição alcança,
de
sumarento e sazonado gosto,
Derramas-te
em meus lábios como um cântico
de
saudade da vida (e de esperança),
vinho
de lava ardente e vento atlântico.
SONETO DO VINHO DE JEREZ
Ócio
verde, sem fim. A contextura
de
abril nas tardes. E essa forma oblonga
que
o sumo acaricia. Herodiano
palor
transcende, que anoitece aos poucos.
Da
serrania a fímbria repassada
é o
violáceo contido nessa curva
de
translúcidos bordos (dúctil linha
imaginária
de um percurso esquivo).
Do
cautério do chão torres magoadas,
e
mirto, e cal de muros sobre as pedras,
ó
Tajo na garganta refluindo,
Como
vens, Palo amargo, sobre a língua
Ressequida
no espanto e o sangue em jorro
De
um boi de sombra enorme sobra a areia.
SONETO DO VINHO DE MÁLAGA
Guadalquivir
de aromas, dentre o liso
das
paredes polidas do gargalo,
foges
do bojo que te ensombra, ó vinho
do
horizonte da música e de Málaga.
Queres
meu sangue. E as tranças da cigana
como
flabelos, e a palavra exata
que
configure teu dulçor e a clave
de
sépia líquida em que te adormentas.
Zimbro,
não. Mas de zíngaros ainda
a
flauta e a mágica. E esse formulário
do
índice claro das consumações.
O
reverso do tempo consumido,
a
palavra sem letras e o conóculo
que
herdei do espólio em chamas de Espronceda.
SONETO DO VINHO DE TOKAY
Do
veio das palavras inconclusas
e do
desejo que estancou nas bordas
do
espanto, ó dança estática das musas,
de
um quinteto parado sobre as cordas…
A
vaga do silêncio agora cruzas
em
placidez dourada. E eis que transbordas
do côncavo
da voz das cornamusas
e já
no poente purpurino acordas.
Esse
prisma de flava cor e o ensejo
de
me perder no vício sem remédio
de
teu sabor de velutíneo beijo,
Ó
danubiano acorde (e o mais pungente)
de
seda e ciúme… E as pupilas do tédio
que
em teu dulçor afogo lentamente.
SONETO DO VINHO DE CONSTANÇA
O
limite, vencido. A transcendência
da
palavra que extrema o pensamento
e é
cinza; fora flama, solta chama
que
à tarde azul tornasse, e ela, só, dança
Sobre
a raiz absconsa. Que monemas
ou transidos
fonemas se entrelaçam
no
liso chão da imagem revivida
em
rubras helicônias? Dói que alcança
O
que emerge entre a rosa e o brilho esquivo
de
estrela que anos-luz de poeira rola,
tênue,
fugace, sobre a relva mansa.
Lindinalva,
Floralva, Bruna Clúsia?
Ninguém.
Mas, pela treva, tu me chamas
e eu
te espero com vinho de Constança.
(Godofredo Filho, Irmã Poesia – Seleção de Poemas. 1923-1986, pp. 245-257, 1987).
GODOFREDO HEDONISTA: SABOR E SABERES DO VINHO
Por Florisvaldo Mattos. Link
https://florisvaldomattos.blogspot.com/2024/03/godofredo-hedonista-sabor-e-saberes-do.html
JAIR
GRAMACHO (1930-2003)
FALO
EM COUSAS...
Falo em cousas comuns, ultrapassadas:
O tédio, a solidão, e esta besteira
Que se chama tristeza. Que outro queira
E faça cousas atualizadas.
Vem, meu amor. Difícil conseguir
Fugir à sombra do edifício e vir
Ao que somente leva e nunca traz
Caminho. Outro não era o gosto, o vinho.
FEITO
EMOÇÃO...
Jair
Gramacho
Feito emoção ao pé da escada,
Sozinho;
Uma gota de sangue derramada
No coração de branco linho.
Junto da acácia que sombreia a estrada,
Porção de areia colorida a vinho;
Pena branca na curva abandonada,
Mais outra cobre o colo do caminho.
Noutra orla, prenhe de incerteza e quase,
A lua pálida vestindo gaze
Na areia adormece um ar de pomba.
Já mais distante, ou perto, ninguém sabe...
A pequenez de ninho que não cabe
Tanta sombra!
Jair
Gramacho. Sonetos de Edênia e de Bizâncio,
Salvador: Imprensa Oficial, 1959.
RUY ESPINHEIRA FILHO
SONETO DO AMIGO MORTO
A Mário Vieira da Silva
In memoriam
Abre o vinho e nos serve o amigo morto,
e brindamos com doce alma de Porto.
Rico de vinhos, sempre, o amigo morto:
de Argentina, do Chile, França e Porto.
Tão jovem que ele está!... Bebo do Porto,
fitando com ternura o amigo morto.
Corado, alegre, o claro amigo morto
presta homenagens às marés do Porto.
Um cálice, e outro, e outro... O amigo morto
segue em viagem aos portos que há no Porto.
Tão bem vai navegando, o amigo morto,
que sorrio, admirando-o, porto a porto,
perguntando-me, à luz da alma do Porto,
se acaso não sou eu o amigo morto!
Ruy
Espinheira Filho. Nova Antologia Poética
(1966-2017). São Paulo: Editora Patuá, p. 266, 2018.
NA QUIETUDE DA NOITE
Ruy Espinheira Filho
Na quietude da noite,
pensamento aqui e além,
eu vou bebendo o meu vinho
(dizem que o vinho faz bem).
Vou meditando naquilo
que da memória vem
como em ondas de alegrias
e de tristezas também.
Tristezas... Que, com suas perdas
nos obscurecem... Mas quem
em sua vida mais sofre
dessas trevas? Ah, ninguém.
Sinto: a quietude da noite
quietude já não mais tem.
Tomo um gole profundo
(dizem que o vinho faz bem).
Sim, porque ao pensar na visa
um tanto de mal nos vem.
Que assim são todas as vidas.
Dizem que esquecer faz bem...
O que é absurdo tremendo,
porque sem memória quem
pode ter alguma vida?
Não, ninguém, ninguém, ninguém.
E sigo pensando aqui:
se nós sofremos por quem
perdemos, outras lembranças
lembram-se de nós também.
Como se lembrem de mim,
vindo de há pouco e também
de longe. E bebo outro gole
(dizem que o vinho faz bem).
Respiro recordações
de tudo o que veio ou vem
do imponderável das horas
que chamam de hoje e de além
no tempo... A memória dança,
como carícia me vem.
Eu brindo a ela e eis que o vinho
me faz cada vez mais bem...
Ruy
Espinheira Filho, a invenção da poesia
& outros poemas. Rio de Janeiro / São Paulo: Editora Record, p. 33, 2023.
SONETO
A DEZ DIAS DE COMPLETAR 60 ANOS
Ruy Espinheira Filho
Esta saudade: a manhã que aporta
como um filhote de dragão marinho
cujo olhar se compõe em terso vinho.
E logo eis que o vinho é árduo. E então aporta
a noite. velas tintas de outro vinho
em que se esgarça a luz do azul-marinho
como que num sabor de lua morta.
E assim é: lago obscuro, um vago vinho
em marulha a voz de outras idades
a recontar os contos do caminho
até este dia: suores, vanidades
- tudo valeu. Um vinho que chora os vinhos
Idos em que se embriaga: estas saudades.
Ruy Espinheira Filho. Estação Infinita e outras estações. Poesia Reunida (1966-2012)
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, pág. 347, 2012.
Dionísio, deus grego do vinho e da embriaguez, irmã da loucuraUAÇAÍ MAGALHÃES LOPES
Ao Professor Florisvaldo Mattos
(Um sonetinho inglês de volta ao
alazão para ir buscar o Vinho do Porto)
VAMOS BRINDAR NOSSO PORTO
Jamais serás derrotado,
pois de mim és professor.
Contigo sou premiado,
companheiro e trovador.
Amanhã, nós brindaremos
este nosso versejar.
Ora, ambos já vencemos,
resta o prazer de brindar!
E que venham os amigos,
amanhã, à confraria.
A vida, dizem os antigos,
é vivida a cada dia.
Se o que vive estar morto.
Vamos brindar nosso Porto!
(Quarta-feira, 7 de maio de 2014, 21h03, in Tertúlia Democrática, entre telúrica e gustativa. Ilustrações de Valtério Salles. Bahia: Mondrongo, 2019.
FLORISVALDO MATTOS
(Para o cruzado Uaçaí Magalhães
Lopes, pelo sonetinho modelo
inglês, de volta para o
curral)
GUSTATIVO VENCEDOR
Não abandonei o terreiro,
por não poder ser o primeiro,
venha logo companheiro,
o seu cavalo ligeiro.
Com um nobre Porto na mão,
estou certo que virão
provar do vinho do irmão
os que disso dão lição.
Com o Porto na confraria,
haverás de ver um dia
quanto vale essa alegria
de ter-te por companhia.
Sei
que saio derrotado,
mas,
de palato premiado.
(Quarta-feira, 7 de maio de 2014. 13h44). in Tertúlia Democrática, entre telúrica e gustativa. Ilustrações de Valtério Salles. Bahia: Mondrongo, 2019.
DURAÇÃO
DO AROMA
Não morrem no campo as flores.
Pacíficas continuam
arquiteturas de angústia
dissolvendo-se no chão
amoroso das searas.
Como nuvens distraídas
ficam no solo. Ali somente,
um sofrimento que vem,
uma esperança que vai
da boca dos camponeses
ao chão que abriga o silêncio.
Não é pranto, nem flor. É vinho.
De amarelo outono e lábios
pranto vinho e flores ficam
incrustrados no lamento.
De sangue batendo aos pingos
na superfície das horas
vai seu perfume durando
nas colheitas. Sobrevive
no suor dos músculos tão
sofridos de cicatrizes,
com um hálito de cinza
prenhe de soluço verde.
Prossegue na dor reunida
à ferrugem dos arados,
a melancolia de olhos,
de pele sacrificada
e ternura corrompida
de arames e privações.
Que venha o vento brandindo
foices de lua no campo
e corte cercas corte o rio
e das chuvas n caminho
corte horizonte de linho.
Entre abelhas e madeiras
no coração das florestas
corte as flores e o vizinho
aroma das madrugadas.
Corte pranto dos vaqueiros
corte rastro dos cavalos
e de quem sofre sozinho
corte a voz molhada e fria.
Que venha vento soprando
ferraduras de amargura
decepe haste das flores
com o alfanje da agonia.
Fria lâmina de sombra
inevitável traspasse
o dorso branco do dia.
e o que fica suado na terra
não é pranto nem flor. É vinho.
Sobrevivência do aroma
no lamento desses rostos,
dessas chuvas no caminho,
não morrem no campo as flores
perduram constituídas
de soluços como o vinho.
Florisvaldo Mattos. Reverdor. Bahia: Edições Macunaíma, 1965.
ITABUNA, 1950
(Bar, Jazz, Bogart)
Tinha tempo bastante a desfrutar
Konstantinos Kaváfis (1863-1033)
Florisvaldo Mattos
Baco adora quando desço a praça
Adami, caminho do Elite Bar.
Lá (no bar de Emetério), busco o morno
canto, próximo às mesas da sinuca;
observo os jogadores do apostado,
os ases das tacadas. O maior,
Zito Maleiro, já tuberculoso,
captura a solidão da bola sete;
o infinito resvala sobre o verde
espaço de luz acabando o jogo.
No ambiente etéreo, Raleu, um Gable
de cabaré no rosto juvenil,
confere ares de sonho ao botequim.
O garçom vem. Peço um vinho do Porto.
Ali, flagro o soluço do gargalo,
o intumescimento da taça e o rubro
trincolejar do vidro satisfeito.
As vitrinas do balcão, as prateleiras
alojando garrafas de bebidas.
A roda de gamão; o espelho e o rádio
Philips. Na sequência das notícias,
um julgado de saxes e trompete:
Duke Ellington, atacando “Perdido”,
acende um risco de néon na noite.
Sorvo o vinho do Porto, calmamente.
Atento o ouvido para o andar de cima,
ouço o ruído abafado da roleta
na sensação das coisas clandestinas.
Chegaram os amigos. Planejamos
o que faremos do frescor da noite.
Saímos. Vamos pela Rua da Lama,
em direção à Zona, ao Bar de Juca.
Lá ficamos até de madrugada.
Por que pensar na ciência dos abismos,
se temos muito tempo pela frente?
Antes fazemos hora, indo ao cinema.
Subimos a praça. Nunca perdemos
em nossa idade um filme de Bogart.
(Florisvaldo Mattos. A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996)
Um país de doçuras, aromas e
verdes
Edivaldo M. Boaventura (1935-2018)
edivaldoboaventura@terra.com.br
De volta da peregrinação à Terra Santa, passei
por Lisboa. E fui determinado ao Alto Douro Vinhateiro. Há muito que desejava
fazer a rota do vinho do Porto. A caminho conheci Tarouca, famoso mosteiro de
Císter, fundado em 1152, onde
encontrei-me com Santa Umbelina, irmã de São Bernardo.
Depois
dessa pausa medieval, cheguei ao Peso da Régua, centro produtor do precioso
néctar. Visto que a liberal cidade do Porto não produz sequer uma só gota de
vinho, mas o engarrafa e comercializa na Vila Nova de Gaia. É no moderníssimo
Museu do Douro, museu de território, que se percebe a história, a grandiosidade
e a magia da mais antiga região demarcada do mundo e do seu generoso vinho.
Na
Quinta da Pacheca, sorvi a paisagem verde bem trabalhada de socalcos de xisto,
enquanto deliciava um bacalhau branco harmonizado com um aromático chardonnay. Bem em frente, as vinhas,
como se fossem roseiras, erguem-se em
altos canteiros de pedra. Por todos os lados, serras arredondadas e riscadas
com círculos concêntricos superpostos de parreiras. O Alto Douro Vinhateiro é
um país de doçuras e aromas do adamado Porto e do melífero vinho de Favaios.
Envolvido por esses generosos
líquidos lusitanos, continuei a interminável busca do vinho de Constantia, para pagar uma obrigação
enóloga ao poeta agrário. Não encontrando esse raro huguenote da África do
Sul, que adoçou o exílio de Napoleão em
Santa Helena, amortizei a dívida com o confrade Florisvaldo Matos com um Porto
da Quinta da Pacheca Tawny 20 anos.
O itinerário serpenteava o rio
Douro. Deixei passar a Real Companhia, a Quinta do Ledo, do Panascal, para
alcançar o Pinhão. No outro dia, saí cedo para o desejado encontro com Favaios,
o moscatel do Douro, que os romanos chamavam uva apiária. A casta moscatel galego branco exige 500 metros de
altura para produzir o vinho Favaios. E a vila de Favaios é uma ilha de mel num
país de doçuras. No seu didático Museu do Vinho e do Pão, encontrei o famoso
trigo de quatro pontas. Postado na varanda do andar superior, deslumbrado com o
planalto verdejante, fiquei surpreso ao receber uma mágica taça dourada que degustei com o olhar preso no
infinito: “Qualquer caminho leva a toda a parte. Qualquer ponto é o centro do
infinito”. Chamo Fernando Pessoa. Ao sair para a adega, recolhi o verso
bíblico: “O vinho alegra o coração do homem”, com o complemento do grande
Goethe: “e a alegria é a mãe de todas as virtudes”.
Atravessando os vinhedos da
Região Demarcada do Douro, fui ainda ao encontro da Quinta da Avessada. Um
museu, diria quase que natural, flui do chão vivo, equipado e bem arrumado com
tudo que faz surgir o generoso vinho de Favaios. Grandes espaços cobertos com
equipamentos prolongam a exposição ao ar livre com convidativo restaurante.
O Alto Douro Vinhateiro mostra
a sua alta cultura enóloga e gastronômica com bons restaurantes, produtivas quintas
com lojas de vinhos e instrutivos museus. E a serra da Estrela com o seu famoso
queijo e a judaica Belmonte aponta no
horizonte dos desejos.
Região do Alto Douro, onde se situam 10 vinícolas em Portugal
RONALD
DE CARVALHO (1893-1935)
Como
um vinho pagão num vaso de Corinto
A lâmpada abre, no ar, como um lírio vermelho,
No ar que se afasta mais, por melhor acolhê-la.
E o clarão que estremeça ao fundo de um espelho
Lembra, na água de um tanque a sombra de uma estrela.
Entra pela janela um perfume indistinto;
E pálida, e subtil, de dentro da memória,
Como um vinho pagão num vaso de Corinto,
Exsurge, ainda uma vez, tua fôrma ilusória!
Por que não vieste mais, na noite sossegada,
Encher as leves mãos com o luar que fere e ofusca,
E, de novo, sorver a áurea espuma gelada
De um cântaro romano, ou de uma taça etrusca?
Esqueceste a aflição das manhãs de promessa
E das tardes de horror, quando a alma é uma grilheta.
Ah! Tudo foi em vão, tudo passou depressa,
Como o sói no céu calmo, e a areia na ampulheta...
Ficaste, pela vida, esquecida e distante,
Como fica esquecido e distante o passado!
Foste a hora mais feliz que parou no quadrante,
O poente mais lilás de um dia mais dourado...
Nos parques de veludo, onde as arvores bolem,
Sobe um leve rumor de repuxos e ramos,
Há mais astros no azul, nas flores há mais pólen,
Por que não vieste mais? Como nós nos amamos.
Ronald
de Carvalho, Poemas e Sonetos. (Obra premiada
pela Academia Brasileira de Letras). Rio de Janeiro: Leite Ribeiro &
Megarilho Editores, 1919.
MANUEL BANDEIRA (1896-1968)
BACANAL
Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada.
A gargalhar em doudo assomo…
Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!
Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?…
– Vinhos!… o vinho que é meu fraco!…
Evoé Baco!
O alfanje rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!…
Evoé Momo!
A Lira etérea, a grande Lira!…
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!
VINICIUS DE MORAES (1913-1980)
o SACRIFÍCIO DO VINHO
Contra o crepúsculo
O vinho assoma, exulta, sobreleva
Muda o cristal da tarde em rubra pompa
Ganha som, ganha sangue, ganha seios
Contra o crepúsculo o vinho
Menstrua a tarde.
Ah, eu quero beber do vinho em grandes haustos
Eu quero os longos dedos líquidos
Sobre meus olhos, eu quero
A úmida língua...
O céu da minha boca
É uma cúpula imensa para a acústica
Do vinho, e seu eco de púrpura...
O cantochão do vinho
Cresce, vermelho, entre muralhas súbitas
Carregado de incenso e paciência.
As sinetas litúrgicas
Erguern a taça ardente contra a tarde
E o vinho, transubstanciado, bate asas
Voa para o poente
O vinho...
Uma coisa é o vinho branco
O primeiro vinho, linfa da aurora impúbere
Sobre a morte dos peixes.
Mas contra a noite ei-lo que se levanta
Varado pelas setas do poente
Transverberado, o vinho...
E o seu sangue se espalha pelas ruas
Inunda as casas, pinta os muros, fere
As serpentes do tédio; dentro
Da noite o vinho
Luta como um Laocoonte
O vinho...
Ah, eu quero beijar a boca moribunda
Fechar os olhos pânicos
Beber a áspera morte
Do vinho...
CARLOS DRUMMONE DE ANDRADE
DESEJOS
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho.
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.
SOSÍGENES COSTA (1901-1968)
OS PÁSSAROS DE BRONZE
Sosígenes Costa
Bronze
no ocaso e vinhos no horizonte.
E
o mar de bronze e sobre o bronze os vinhos.
No
rei das aves o poder do arconte
e
o sangue azul nos rubros passarinhos.
No
meu telhado eu vejo em vossa fronte,
meu
cardeal, o rubro entre os arminhos.
Pintou
Bronzino esses três reis da fonte:
bronze
nas asas, no diadema os vinhos.
O
bronze imperial lá está na ponte.
E
o bronze voa e esses três reis sozinhos.
Bronzes
ao longe e outros no mar defronte.
E
o bronze abrasa os pássaros marinhos.
E
os reis do ocaso, as aves de Belmonte,
cantando ostentam seus brasões e arminhos.
(1959)
RAIMUNDO CORREIA (1859-1911)
O VINHO DE HEBE
Hebe risonha, os deuses majestosos
As taças estendiam-lhe, ruidosos,
E ela, passando, as taças lhes enchia...
A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossa taça estendemos-lhe, vazia...
E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa...
Passa, e não torna atrás o seu caminho.
Nós chamamo-la em vão; em nossos lábios
Restam apenas tímidos ressábios,
Como recordações daquele vinho.
In: CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Org. pref. e notas Múcio Leão. São Paulo: Ed. Nacional, 1948. v.1, p.4
Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício
as tentações suplanta,
E invejo o
sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o
vício não faísca!
Se eu pudesse ser
puro! Se eu pudesse,
Depois de
embebedado deste vinho,
Sair da vida puro
como o arminho
Que os cabelos dos
velhos embranquece!
Porque cumpri o
universal ditame?!
Pois se eu sabia
onde morava o Vício,
Porque não evitei o
precipício
Estrangulando a
minha carne infame?!
Até que dia o
intoxicado aroma
Das paixões torpes
sorverei contente?
E os dias correrão
eternamente?!
E eu nunca sairei
desta Sodoma?!
MÁRIO QUINTANA (1906-1994)
DO SABOR DAS COISAS
Por mais raro que seja,
Ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho
E silencioso amigo...
Servo sem dor de um desolado intuito
Servo sem dor de um desolado intuito,
De nada creias ou descreias muito.
O mesmo faz que penses ou não penses.
Tudo é irreal, anónimo e fortuito.
Não sejas curioso do amplo mundo.
Ele é menos extenso do que fundo.
E o que não sabes nem saberás nunca
É isso o mais real e o mais profundo.
Troca por vinho o amor que não terás.
O que esperas, perene o esperarás.
O que bebes, tu bebes. Olha as rosas.
Morto, que rosas é que cheirarás?
Vendo o tumulto inconsciente em que anda
A humanidade de uma a outra banda,
Não te nasce a vontade de dormir?
Não te cresce o desprezo de quem manda?
Duas vezes no ano, diz quem sabe,
Em Nishapor, onde me o mundo cabe,
Florem as rosas. Sobre mim sepulto
Essa dupla anuidade não acabe!
Traze o vinho, que o vinho, dizem, é
O que alegra a alma e o que, em perfeita fé,
Traz o sangue de um Deus ao corpo e à alma.
Mas, seja como for, bebe e não sê.
Com seus cavalos imperiais calcando
Os campos que o labor esteve lavrando,
Passa o César de aqui. Mais tarde, morto,
Renasce a erva, nos campos alastrando.
Goza o Sultão de amor em quantidade.
Goza o Vizir amor em qualidade.
Não gozo amor nenhum. Tragam-me vinho
E gozo de ser nada em liberdade.
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).
FLORBELA ESPANCA
Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...
Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...
Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!
JORGE LUIS BORGES (1899-1986)
SONETO DEL VINO
¿En qué reino, en qué siglo, bajo qué silenciosa
Conjunción de los astros, en qué secreto día
Que el mármol no ha salvado, surgió la valerosa
Y singular idea de inventar la alegría?
Con otoños de oro la inventaron. El vino
Fluye rojo a lo largo de las generaciones
Como el río del tiempo y en el arduo camino
Nos prodiga su música, su fuego y sus leones.
En la noche del júbilo o en la jornada adversa
Exalta la alegría o mitiga el espanto
Y el ditirambo nuevo que este día le canto
Otrora lo cantaron el árabe y el persa.
Vino, enséñame el arte de ver mi propia historia
Como si ésta ya fuera ceniza en la memoria.
SONETO DO VINHO
Tradução de Anderson Braga Horta
Em que reino, em que tempo e sob que silenciosa
Conjunção planetária, em que secreto dia
Que o mármor não guardou, surgiu a generosa
E única inspiração de inventar a alegria?
Ah! com outonos de ouro a inventaram. O vinho
Vermelho e ardente flui banhando as gerações
Como o rio do tempo, e em seu árduo caminho
Seu cântico nos doa, e seu fogo e seus leões.
Na jubilosa noite e na jornada adversa
Ele exalta a alegria ou suaviza o espanto.
E o ditirambo que hoje, efusivo, lhe canto
Disse-o o árabe uma vez, cantou-o outrora o persa.
Vinho, ensina-me a ver a minha própria história
Como se fora já cinza e pó na memória.
ODE AO VINHO
Vinho da cor do dia,
vinho da cor da noite,
vinho com pés de púrpura
ou sangue de topázio,
vinho,
rutilante filho
da terra,
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um antigo veludo,
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso,
marinho,
jamais coubeste numa taça,
numa canção, num homem,
num coro, tens o sentido gregário,
ou pelo menos, comum.
Às vezes
alimentas-te de recordações
mortais,
na tua onda
vamos de tumba em tumba,
canteiro de gelado sepulcro,
e choramos
transitórias lágrimas,
mas
o teu formoso
traje de Primavera
é diferente,
o coração sobe aos ramos,
o vento move o dia,
nada fica
dentro da tua imóvel alma.
O vinho
move a Primavera,
cresce como uma planta de alegria,
os muros desmoronam-se,
os penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarro de vinho no deserto
com a doce amada minha,
disse o velho poeta.
Que o cântaro de vinho
ao peso do amor afogue o seu beijo.
Meu amor, subitamente
a tua nádega
é curva plena
da taça,
o teu peito o cacho,
a luz do álcool a tua cabeleira,
as uvas os teus mamilos,
o teu umbigo o selo puro
estampado no teu ventre de ânfora,
e o teu amor a cascata
de vinho perene,
a claridade que inunda os meus sentidos,
o esplendor terrestre da vida.
Mas tu, vinho da vida, não és
somente amor,
escaldante beijo
ou coração queimado,
és também
amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
Amo, quando se fala
à mesa, da luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que o Outono trabalhou
até encher de vinho as vasilhas
e que o músculo homem aprenda,
no cerimonial do seu negócio,
a recordar a terra e os seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.
Tradução de Luis Pignatelli
in Odes Elementares, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977.
FRANCISCO CARVALHO (1927-2013)
26
não sou adivinho
nada sei do tempo e do seu linho
nada sei das ágoras
nem do Teorema de Pitágoras
nada sei do esqueleto
ou das vértebras do soneto
nada sei do filho pródigo
nem das malícias do código
nada sei da morte
nem quando beberei do seu vinho.
Francisco Carvalho, Os Exílios do Homem (1997
ADALBERTO MULLER
POESIA
E VINHO
Como conter a embriaguez do vinho
No curto espaço temporal de um verso?
Como retas um traço em pergaminho
Tão sutil que se esboroa em tempo adverso?
A arte é uma Dama que distrai a morte
Enquanto se atira aos braços da vida.
Não seja o verso entregue à pura sorte,
Nem surja apenas do suor da lida.
Que nele circule a seiva das veias,
Espesso fluxo que num corte jorre;
Mas tenha o rigor e a trama das teias,
E inspire lucidez, mesmo de porre.
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