Florisvaldo Mattos
Não
há corpo de mulher, nem cheiro de mulher, nem riso de mulher (bem entendido,
bonita!), que se possam comparar à fluidez, ao aroma, à doçura específica de
certos vinhos, sobretudo se se trata de um Château-d´Yquem como este, áureo
sumo de nossa adega, com o brilho e a transparência dos olhos volúveis de um
felino: vinho que bebi, como dádiva de rei, a esse incomparável amigo que é
Diógenes Rebouças.
Começo
com essas palavras que Godofredo Filho (1904-1992) escrevia em seu Diário,
precisamente no dia 10.06.1962, um domingo, para advertir que não irei produzir
uma análise de sua poesia, cuja grandeza, lirismo, sabedoria e requinte outros
de muito mais competência o fizeram, no curso dos eventos comemorativos do
centenário de seu nascimento, que se realizaram em Salvador, pela Academia de
Letras da Bahia, e Feira de Santana, pela Uefs-Uneb. Esse precioso documento
foi confiado, a seu pedido, ao poeta Fernando da Rocha Peres, seu amigo, para
publicação, e que agora vem à luz em idônea e cuidada edição.
Tratarei
apenas de uma parte de sua obra poética - nem por isso menos prestigiosa -, que
também conserva traços memoráveis de sua personalidade, seguindo as pegadas da
descrição que dele fez o jurista e humanista Jaime Junqueira Ayres, ao saudar
em 1971 a publicação de seus Sete Sonetos do Vinho, em que via, além da
palavra e da forma, os reflexos de um "mestre do paladar", avaliando
os sublimados atributos que lhe concedia "um epicurismo praticado nos
clássicos limites do bom gosto e do comedimento".
E,
centrado nos poderes do gosto, manifestava a impressão de que, quem se
beneficiasse dos "esquisitos manjares" do poeta, sentiria que eles
não eram mais que um pretexto para o que efetivamente era "o objeto de seu
culto e sua ternura: os vinhos".
Mais
do que gostar, amar e apreciar, Godofredo Filho venerava o vinho. Conhecia como
ninguém sua história e procedências, auscultava o significado das safras,
discernindo-as, colecionava os oriundos das boas casas vinicultoras, qual este
branco superior evocado em seu diário como "áureo sumo" de sua adega.
Seria
então de espantar se bebidas finas e guloseimas que afagam o paladar não
ocupassem o altar de um perfeito hedonista enogastronômico, como se lê e sente,
em seu poema canônico "Lamento da perdição de Enone" (para ele,
respondendo à curiosidade de alguém, talvez apenas o nome do amor que todos nós
temos no íntimo). Mais do que um nome, um sabor rútilo: "Vinho, aromas,
luzes cruas, / e essas pupilas boiando/ num charco azul de atropina" (na
verdade, um colírio). No entanto, é no colofão que precede a edição princeps
plaquetada, que o poeta manifesta o desejo de "com vinhos mais que vermelhos"
saudar a sua Enone, para desfolhar no chão do tempo "a rosa breve de
seu nome".
Godofredo
Filho tinha no vinho uma fonte de sabedoria. Não era um bebedor contumaz, mas
um verdadeiro apreciador, como registra Jaime Ayres: "apenas bebe o
suficiente para o deleite do paladar, com a delicada moderação com que devem
ser fruídas as coisas boas da vida". Ele mesmo o confessaria a outro
apreciador e seu comparsa, Zittelmann de Oliva, que, em lautos almoços,
costumava lhe conceder momentos de solta conversação, vinhos e boas iguarias.
Pergunta-lhe
onde a verdade dos vinhos, e ele, sábio e sereno, responde: "O vinho tem
muito de sabedoria, não sei se em si ou a que lhe emprestamos. A embriaguez que
o homem, quando se aproxima da divindade, essa embriaguez, em símbolos humanos,
é muita vez trazida pela embriaguez do vinho". Lição de quem vê no vinho
um ser vivo, que possui alma, faz penetrar e desvendar os mistérios da vida,
digo eu.
Entendo
que Godofredo Filho pertence a uma linhagem de poetas sensoriais, que,
exaltando os prazeres do paladar, renderam tributo ao vinho, como um dos mais
altos degraus da criação humana. Desde Homero, passando pelo Virgílio das Bucólicas,
faunos entornando ânforas de vinho em prados e grutas, e por tantos outros,
como o Baudelaire de As Flores do Mal, que o celebrou, dedicando-lhe
cinco poemas consagradores.
Num
deles, pela tarde, a própria "a alma cantava nas garrafas",
dirigindo-se ao homem, a quem tece a sua origem e destino, erguendo-lhe um
brinde fraternal e amável (Un soir, l´âme du vin chantait dans les
bouteilles:/ "Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité, / Sous ma
prison de verre e mês cires vermeilles, / Un chant plein de lumière e de
fraternitè.). Em outro, o vinho faz "o coração abrir-se em gloriosos
projetos" ("Épanche tout son coeur en glorieux projets");
em outro mais, o poeta proclama que nada no mundo vale "o bálsamo que
aflora do ventre" de "uma garrafa profunda", fecundando "o
coração do poeta em júbilo ante os céus" ("Tout cela ne vaut pas,
ô bouteille, / Les baumes pénétrants que ta panse féconde/ Garde au coeur
altéré du poëte pieux"). Finalmente, no último desses poemas, livre
(sem esporas, freio ou rédeas), convida-nos a cavalgar no vinho, que faz o
espaço esplender de vida e adiante abrir-se, na embriaguez, "um céu puro e
fulgurante" (Aujourd´hui l´espace est esplendide! / Sans mors, sans
éperons, sans bride, / Partons à cheval sur le vin/ Pour un ciel féerique et
divin!").
Godofredo,
a meu ver, segue esse translúcido padrão de sensualidade, tal qual o deste
outro francês, Olivier de Serres, em seu remoto Théatre d´agriculture,
de 1600: "Depois do pão vem o vinho, segundo alimento que nos deu o
Criador para sustento da vida e o primeiro celebrado por sua excelência".
Presente do céu, obra de arte, o vinho é por isso, também, obra do homem,
venerado como provindo de ciência temperada pelo instinto e empirismo da
inteligência. Conhecê-lo é aspiração vasta e apaixonante, porém mirá-lo,
perscrutá-lo, sorvê-lo, saboreá-lo, alça-nos a um misto de amor e respeito por
matéria tão transcendental que muito tem a ver com nossos sonhos, nossas
ilusões e nossas fantasias.
Quem
busque conhecer as origens do vinho irá se perder na penumbra dos tempos. Está
no capítulo nono do Gênesis que Noé, após ter desembarcado os animais de sua
Arca, plantou um vinhedo do qual fez vinho, bebeu e se embriagou, o que
comprova que ele, antes da Arca, possuía vinhedos e já sabia fabricar vinho,
dádiva da natureza que acompanha o homem na sua existência sobre a terra com um
estatuto de nobreza que transita do humano ao sagrado com ritos e exaltação.
No
entanto, muitos procuram dar-lhe um ponto de partida que, como nossas vestes e
nossos manjares, se situa nas origens da manufatura, em primitivas técnicas de
exploração econômica, quando o homem percebeu, em algum ponto do Oriente Médio,
a única uva capaz de produzir uma bebida agradável, em estado natural, nascida
simultaneamente com a arte de cultivar, de selecionar plantas, de viver em
comunidade.
Depois,
em razão do ato de ingeri-lo e seus efeitos, o homem passa a atribuir poderes
superiores à embriaguez, que mantém um promíscuo conluio com os sentidos.
Confere à vinha um dom celestial, e logo torna o vinho, dela originário, fonte
de alegria e misticismo, de celebração e festa, para heróis, poetas e artistas,
para reis e conquistadores. Tomado de inspiração e euforia, com ele ergue
libações a divindades sacras e profanas, de onde provêm certamente o amor ao
belo e ao agradável e um sentimento de sempre almejada liberdade. A imagem de
Cristo compartilhando pão e vinho com seus discípulos na Santa Ceia sacraliza a
bebida e lhe outorga caráter indispensável de culto.
A
história prossegue; povos acolhem mais uma criação da mente e da mão do homem,
mas é, como haveria de ser em outros campos, Roma, para onde convergem os
odres, as ânforas e os barris de muitas geografias, que dará ao vinho a
dimensão cultural que valerá para o Ocidente, já que os bárbaros, que iriam
desmontar o Império Romano, o ignoravam. Foram os romanos que difundiram suas
técnicas de plantio, sua fabricação e o prazer de consumi-lo.
Mais
adiante, monges, bispos e missionários cristãos favorecerão a vinicultura tanto
quanto uma ciosa aristocracia de nobres com poder, cultura e riqueza. De um
lado, o vinho compunha com os santos mistérios que não interditavam sabores
capazes de gerar regozijo e entusiasmo; de outro, as pompas palacianas, as
comemorações e os rituais que acompanham a celebração das vitórias na guerra,
ou as uniões entre altivas castas, incentivando imitações e propagando
costumes, o institucionalizaram.
A
burguesia irrompe ambiciosa e vitoriosa, com suas revoluções industriais e
tecnológicas, suas transformações sociais e suas reformas urbanas, conferindo
caráter popular à bebida e estendendo-a às novas classes sociais nos
aglomerados humanos que movimentam as máquinas e, por causa delas, incham as
cidades. A difusão do vinho, o hábito, a sua apreciação e arte de sorvê-lo
configuram um legado e consolidam uma tradição de bem beber e bem comer - uma
liturgia profana se desenvolve ao lado de uma liturgia sacra, representada pelas
festas familiares, reuniões de amigos, eventos públicos, laços amorosos,
confrarias, que elegem o vinho para dar brilho e consagração aos ritos da vida.
Em matéria de bebida, nenhuma outra se lhe compara em prestígio e veneração.
Recolho
em página de jornal douta lição de enólogo francês, Laurent Martinez, professor
da Universidade do Vinho, na região do Ródano-Alpes, sobre a apreciação do
vinho: "De nossos sentidos, usamos basicamente três na degustação: o
paladar, o tato e o olfato. Mas esses três juntos correspondem apenas a 5% do
que usamos normalmente, enquanto a audição é responsável por 25 % e a visão,
por 70%. Nas degustações, usamos copos escuros, para que a visão não
atrapalhe". (Folha de S. Paulo, 30/12/2002, Caderno F, pág. 7;
entrevista ao jornalista Ivan Finotti).
Deduzimos
pela voz da autoridade que o vinho, para ser bem degustado e melhor
apreciado, requer o concurso de todos os sentidos, uns mais diligentes do que
outros, a depender das exigências e sutilezas do apreciador. E como num corolário
sobressai o papel das sensações no prazer de degustá-lo. Elas permitem que se
liberem a mente e as emoções pelas avenidas da fruição vital, já que são
eficazes na forma de apreender o mundo exterior, por meio de estímulos
nervosos.
Não
há como negar, na apreciação do vinho, o grau maior de interveniência das
sensações gustativas, olfativas e visuais, que podem, por especial forma de
articulação, fusão e agrupamento, suscitar a presença das outras duas, a
auditiva e a táctil. O vinho confere sabor ao mundo, há de ter pensado
Godofredo Filho, mas também aroma - e por que não luminosidade, sonoridade,
êxtase à superfície? Tinto ou branco, generoso ou destilado (os conhaques e
outros provindos da uva), o vinho abre ao paladar novos horizontes sensoriais,
institui uma espécie de conluio sensitivo que se manifesta em gradações, para
deleite não só das papilas, mas de todo um conjunto de reações corporais e
mentais, elevadas a um grau inebriante com o concurso das iguarias. A boca, a
língua e o palato são a caixa-de-marcha desse motor transcendental. E tudo se
torna bem mais do que apenas sabor para quem melhor o aprecie.
Antes
de qualquer cientista-enólogo, o poeta Godofredo Filho tinha plena consciência
e conhecimento dessas prodigalidades do vinho. No Diário que está com Fernando
Peres para publicação, ele nos dá disso exemplo cabal, ao confessar, sem
induzir a dúvidas:
Ontem, jantar abundante, variado, fabuloso
nas cores, no gosto, no aroma incomparável. Jantar com os velhos vinhos de
Portugal. Teria sorrido Curcúlio a essa moqueca de curimã, as grandes postas
brancas em labaredas vivas de dendê, de tomates e pimentas vermelhas. Que
incêndio! Que chamas alucinantes a requererem a canção friíssima dos gargalos.
Ó Vinícola de Basto! Ó Celorico de Basto! Apaziguastes-me a língua de onde
escorria, entre chiados, a canção dos glutões, o elogio da boca, do ventre, da
impudicícia da fartura nos bródios. (15.04.1945)
Além
de vasta percuciência em relação aos vinhos, Godofredo a eles devotava também
um sentimento quase de posse. E por isso os queria próximos de si. Para
temperar esta abordagem, recordo episódio em jantar que certa feita o poeta e
dona Carmen, sua mulher, ofereceram a mim, a Fernando da Rocha Peres e a Urânia
Tourinho Peres, em sua casa, na Rua Oito de Dezembro, na Graça. Recebeu-nos de
paletó e gravata borboleta. Mesa farta de iguarias, após um diáfano vinho do
Porto como aperitivo, animando a conversa, para um lagostim ao óleo e salada,
nos brindou com um branco espanhol de Rioja, cuja cepa muito elogiava. Em
seguida, para as carnes, abriu um francês, origem controlada, de Bordeaux.
Garrafa
à sua esquerda, ao servir de vinho os três convivas, lembro, era bastante
parcimonioso. A mim servia, dizendo: "Pouco para Florisvaldo, porque vai
dirigir". "O mesmo para Fernando, porque está acompanhado de Urânia e
também vai dirigir". E para ele próprio todas as doses que a ocasião e a
bebida suscitavam. O vinho devia guardar também atributos palpáveis, daí a
necessária proximidade como que a acariciá-lo.
Por
se tratar de um poeta altamente sensorial, a poesia de Godofredo Filho está
quase inteiramente entranhada de sensações. Elas transitam livremente por uma
ilustre gama de poemas. Optei por abordar esse lado em que, tanto no nível
existencial como no criativo, prevalecem as sensações gustativas, aromáticas e
visuais, que têm nos vinhos, assim como em seguros cardápios enogastronômicos,
a sua preponderância.
Recorro
mais uma vez a seu Diário, na data de 18.02.1967:
Vieram hoje comigo e almoçaram, Paulo e
Nestor Duarte. Não obstante a surpresa, Carmen nos deu mesa farta e comidas de
mágico sabor: ensopado de leitão novo, carne de sol com pirão de
leite, doce de caju em calda. Os vinhos é que foram de minha escolha:
Madeira R (safra de 1928) e um Valpolicella capaz de monarquizar um anarquista.
À tarde, Nestor e Paulo continuaram viagem para "Morro
Belo", e eu me joguei na rede, com todas a janelas escancaradas ao
vento da tarde, ao vento que não cessou um só instante de conversar alto,
esfregando-se ruidosamente na folhagem das velhas mangueiras.
Supremo
luxo da existência, maior expressão de sensualidade e hedonismo, impossível.
Mas, não hedonismo do prazer pelo prazer na forma como se vulgarizou a ética do
epicurismo. Hedonismo professado à Thomas Hobbes (o do Leviatã) que, no
século XVII, considerava que o prazer deve ser obtido e a dor evitada, dentro
de um conceito de Estado, cuja ação consiste em participar dos desejos de cada
um, ao tempo em que lhe faz exigências correlatas sob a forma de deveres. Com base
neste conceito, desenvolveu-se posteriormente a idéia de que a habilidade de
distinguir entre prazer e dor é o único poder psíquico que prevalece (William
Graham Sumner, 1840-1910).
Não
interessa, então, cogitar se tal postura é própria de quem optou por praticar
uma filosofia individualista. É mais um destino vital, um compromisso consigo
mesmo, um estado de alma, como o exemplifica à farta Godofredo nesta passagem
de seu Diário, escrita pelo poeta em 20.04.1967, no Sítio do Guerra:
"Lamentavelmente
não tenho hoje disposição de espírito para a meditação de verdades eternas. E,
muito menos, para a penitência. A um certo embotamento das faculdades nobres,
corresponde em mim, neste momento, a preguiça e uma gula feroz. São dez horas
da manhã. Acabo de ler o Evangelho da Paixão, no texto de São João, e nenhuma
de suas considerações me encaminha para aqueles salutares princípios de onde
fluem a contenção da concupiscência e o desejo de uma vida edificante."
Em
êxtase de ébria fruição hedonista, as sensações reconfiguram o mundo
godofrediano, projetando-se na sua poesia. Reporto-me inicialmente a três
poemas de sua Irmã Poesia (Tempo Brasileiro, 1986), que reúne quase toda
a sua obra poética, "Poema enológico", "Hino ao vinho" e
"De Kháyyám".
No
primeiro, em versos livres não rimados, está o poeta "à margem direita do
Reno", visão, paladar e tato acesos, em terra que confessa de seu sonho,
na cidade vinícola de Rheingau, numa tarde envolta "em frio azul", à
qual volta "sempre com os lábios úmidos". E presta comovente e
fraterna homenagem a um vinho branco alemão geograficamente de boa cepa, com
versos límpidos:
A
taça ao claro céu levanto, esgalga,
O
translúcido copo
De
onde o pálido amigo sorrindo me espreita,
Entre
aromas que traem a ternura secreta
Com
que volto a Rheingau, a terra de meu sonho.
E
"se o cansaço vem" e "em meio à longa viagem" os ânimos lhe
vence, retomará o caminho, buscando outros que façam sobrevinda aurora
possuí-lo dormindo "nos prados de Rheingau", terra de sonho pelo
sabor dos vinhos. Primores líquidos, transparentes, com os quais Godofredo
costumava dialogar, como o faz em seu Diário, em 16.04.1945:
Eulenspiegel, bom dia! Amável, reticente,
burlador, foste quem comigo primeiro falou, nesta manhã desafiante da bruma
interior. Em todo caso, bem melhor que outro encontro, em caracterizações menos
divertidas, quais as que me acostumei a fitar nestes últimos dias. Irei
contigo, sem dúvida, e de novo riremos... Não haverá música, nem cânticos, nem a dança
que adoraríamos. Mas valerá outra compensação. (...) E então, amigo, acabarás
trepando à lâmpada sobre o leito que me espera, e nada mais serei que o
invólucro de tua mágica risada, se a noite for propícia... Eulenspiegel,
bom dia!.
No
outro poema, "Hino ao vinho", depois de lamentar a desventura de ver
sua sede aumentar, cada vez que o vinho, protagonista e interlocutor tratado na
segunda pessoa, some de seu copo, tomado de ânsias, o poeta convoca mais uma
vez a diligência dos sentidos no ato de sorvê-lo:
Esvazio
outras taças: do ambarino
E
áureo, ao violáceo e quase purpurino,
E
então é que te sinto no meu sangue,
Em
lume transmudado e em verso ardente.
Logo
convoca outros poetas também sensualmente aparentados, os persas Hafiz e Omar
Kháyyám, para abonar estas instâncias sensoriais, e invoca "a saudade
aromal" que os faz presentes, em poeira de rosa machucada, enquanto
mergulha nas inebriações proporcionadas pelo vinho tinto, que ressurge "no
clarão das madrugadas/ e no riso escarlate das amadas". No terceiro poema,
já este de propósito intitulado "De Kháyyám", em nova evocação
sensual, ponderativo, o poeta aconselha ao irmão gêmeo: Ergue a taça onde
ambarino vinho/ Dar-te-á o segredo da divina tarde.
Partidário
confesso de um hedonismo que, no plano diuturno da vida, expunha tonalidades
quase monásticas, é na exaltação do vinho que Godofredo Filho transmite um
senso de civilização que irá desembocar na poesia, relacionando o que é próprio
da fria inteligência, no aval ao comedimento, com o lirismo que propaga
satisfação e bom gosto.
Ou
então, a sensação de fartura e de onírica e sensual embriaguez, nesta passagem
de um hedonismo lapidar, escrita em 20.04.1962, uma Sexta-feira da Paixão, já
antes em parte citada:
Mas que vinho sedoso estou bebendo agora, de
uma colheita de fama, um vinho cor de ouro antigo, criado, envelhecido e
engarrafado nas Bodegas Rioja Santiago - Haro - España! Esse néctar, sim, me
levará logo mais ao reino onde
"tout n´est qu´ordre et beauté, luxe calme et volupté", numa
lenta viagem que começo a empreender, a mais amorável deste pobre mundo, com
próximas paradas no vatapá de camarão e numa ardente moqueca de traíras do Rio
Pojuca. Para sorver sumo de tal classe é necessário, antes de tudo, solidão:
para degustá-lo com fervor, consubstanciá-lo em êxtase, traduzir seu gosto
em lassidão de pálpebras descendo ao carinho das mãos azuis do sono.
Desta
forma, chega-nos em 1971 a plaqueta com os Sete Sonetos do Vinho, que
logo obtém recepção laudatória dos admiradores, inclusive neófitos na matéria,
como eu. Perguntaram-lhe, na época, qual dos vinhos que cantara nesses sonetos,
respondendo às exigências de seu sabor, mais lhe fazia bem à alma. Respondeu
convicto, optando justamente pelo primeiro da série: "O Porto, por ser ele
verdadeiramente um vinho solar". No entanto, que eu saiba, não a este, mas
ao quarto da série, o Vinho de Jerez, é que o poeta dedicará um erudito ensaio
carregado de finas observações, exaltando as suas "virtudes
cardeais".
Quando
do lançamento desses sonetos vínicos, Wilson Lins saudou Godofredo Filho,
dedicando-lhe mais de uma crônica. Numa delas, descrevia-o como sobra de um
passado baiano gentil e sentimental, de trinta anos antes, em que os vinhos
"tinham consumo franco, diário, sendo o do Porto o de maior prestígio, o
que estava sempre à mão", diferente de uma época, a que se estava vivendo
então (não muito diversa da atual, digo), "em que a maioria prefere a
bárbara beberagem escocesa", o uísque.
E,
pintava um cenário de nostalgia e urbanidade, que, encoberto por uma penugem de
lamúrias, se perdera nos meandros de um passado gárrulo, pelo qual
desenvoltamente, seletivo e civilizado, transitara o poeta, quando jovem, a
testemunhar:
O baiano daquela época sabia distinguir um
espesso e voluptuoso vinho espanhol, de um leve e vindicativo vinho francês,
delicado, mas traiçoeiro, que, depois de se sentir na boca, subia rápido à
cabeça. Os italianos eram generosos, aqueciam o coração, deixavam a língua
forra. Eram os vinhos preferidos pelos comemorativos tribunos da terra. Os do
Reno apareciam de raro em raro, mas ainda assim eram apreciados pelos que tinham
de feminino. Dispunham, porém, de lugar muito especial na preferência do
baiano, os honrados vinhos portugueses, nunca engarrafados, protegidos das
mudanças de temperatura e da excessiva luz solar em barris apropriados, os
velhos quintos guardados na sombra das adegas quase úmidas. Dentre eles,
sobressaíam os maduros, que, por não serem os mais aconselháveis aos rigores
dos trópicos, eram reservados para os dias frios.
Comentarei
adiante os sete sonetos do vinho, de Godofredo Filho, os quais o crítico
literário Hélio Pólvora, certa feita, em comentário, definiu como “talvez o
ponto mais alto de sua poesia”, esta, em sua ótica, em face de tanto
alumbramento e cristalizações, “presa pela imagística ao sensualismo ibérico”, e
também vinhos provindos de célebres vinhedos e da laboriosa vinicultura lírica
deste saudoso poeta baiano.
No
"Soneto do Vinho do Porto", desfraldam-se de entrada, logo no
primeiro quarteto, todas as sugestões da lavra sensível do poeta, quando os
sentidos comparecem à função, orquestrados e em uníssono, como que atendendo,
honestos e aguerridos, a uma olímpica convocação. E, num encadeamento de eficaz
adjutório, alinham-se a visão e a audição, seguidos do tato e do gosto que se
emparelham, como que irmanados, para abrir caminho ao olfato, fechando-se a
liça com a presença do gustativo. E, açulados todos em ação, ei-los operosos e
febris, na voz do poeta:
Fruto
em verde ou de ígneo e azul, tocado
da
música da alva. Ó tessitura
de
esférico sabor, lúdico aroma
de
pomo etéreo. Os beijos que não são.
Depois,
no segundo quarteto, o vinho é "travo e mel" de "conúbio
vegetal", em "liquefeito olhar das feras bravas". Nos tercetos,
retornam os cinco sentidos, em ciranda de linguagem, pela sugestão líquida do
vinho. E assim "a fulva luz" se transforma "em sumo e veludoso
gosto" e, tornado pedra de desejo, o vinho do Porto "sabe a amor sem
fim", e ao influxo do pôr-do-sol derrama-se em "ocíduo/ clarão que
incide às tardes sobre o Douro". Desta forma, o triunfo dos sentidos
interdita o poema à invasão das abstrações imagéticas.
Antes
de sorver o segundo poema, "Soneto do Vinho Moscatel", convém evocar
o que o poeta, amante confesso dos vinhos generosos, escreve em seu Diário, em 21.01.1945,
um domingo:
Descanso total. Delicioso e farto almoço,
com abundante e generoso vinho. Sesta. A negra cabeleira da Amada propicia-me o
prazer do sono.
Não
há melhor configuração do luxo de existir, em nonchalance, em spleen,
dignos de Baudelaire. O soneto é uma homenagem ao precioso e quase sempre raro
vinho generoso de Favaios, nobre região vinícola de Portugal (o nome deriva da
corruptela do topônimo Flavius, antiga povoação romana). Diz-se desse Moscatel
que algumas de suas safras se tornam indisponíveis no mercado, tal a avidez e
veneração dos que o elegem, com todo o estoque vendido à porta da Adega
Cooperativa de Favaios que o produz à margem do Rio Douro.
"Bonita
cor, atraente, como que a meio caminho entre os tons acobreados e o âmbar, de
intenso aroma a mel". Colhi este testemunho em um de seus apreciadores,
Rui Falcão, após a libação do líquido que uma dessas invulgares garrafas, já
com 28 anos, conservava, vendo também nele descortinarem-se "aroma a
frutos secos, casca de laranja e canela".
Esse
generoso de Favaios, exalta Godofredo Filho, no soneto, "é vinho de ferver
o nosso tino / ou de exsurgir alguém de seus desmaios", juízo que se impôs
após o "gosto exato" obtido do cálice incendiar-lhe os sentidos,
oferecendo-lhe o "mais adamantino / conceito de sabor, no superfino / amor
de amar seu corpo em outros Maios", enquanto perseveram "o aroma, a
cor, a luz do sol a pino". Mas, quando "o fulgor serena, a mansidão /
dulcíflua caricia filiformes papilas rubras". (As "papilas
sábias", a que Fernando da Rocha Peres se refere, num poema recente em
homenagem à memória do amigo). Aqui o visual, o gosto e o tato transitam
lestos, para confinar-se no último terceto, em diálogo com o próprio vinho:
Contigo,
o céu mais perto; a lassidão
azul
do sono; e um beijo, que não mente,
sobre
os lábios da tarde, ardentemente.
O
terceiro poema, "Soneto do Vinho da Madeira", celebra uma das
preferências cimeiras de Godofredo Filho, em cujo Diário comparece com
qualificativos de transcendência, como neste registro de 22.02.1966:
Bebo um velho Madeira, dos que sabem
fabulosamente ampliar os longes, distendendo além dos limites verossímeis a
linha do horizonte. Em mim, pelo menos, o prazer do vinho não acaba no
vinho.
Neste
soneto, entre todos o que mais de perto me toca, pelo sentimento de
ultrapassagem da vida que transmite, a gratidão pelo privilégio de sorvê-lo se
introduz por um diálogo travado entre a visão, o tato e o aroma:
O
olhar castanho e morno das panteras
tens
às vezes na cor. Mas entontece
é
teu perfume: a ronda de quimeras
voltando
a meu caminho que escurece.
E
prossegue a mesma conversação sensorial, já agora com "esferas/ de ébrio
torpor no céu" e "fluidez enorme", que empalidece o ar, para
então chamar à cena o gustativo, que transporta um símbolo de humanidade nos
dois tercetos, impelido pelas "chípreas uvas roxas de onde o mosto/
espúmeo flui"... "de sumarento e sazonado gosto", até a total
sublimação realçada pela rima proparoxítona:
Derramas-te
em meus lábios como um cântico
de
saudade da vida (e de esperança),
vinho
de lava ardente e vento atlântico.
Asseguram
essa façanha os poderes de um vinho generoso oriundo das encostas do lado sul
da Ilha da Madeira, cujo requinte tem posto singular na história da cultura, ao
ponto de damas de cortes européias terem-no usado como perfume, ou ser
eternizado por Shakespeare, numa fala de Falstaaf, na peça Henrique IV, que o fez vender a alma ao Diabo em troca de um pedaço
de capão frio e um copo desse venerado vinho, definido pelos enólogos como
suave, doce e muito aromático, a deixar na língua um travo sedutoramente
amargo, e sobre o qual o escritor Gaspar Frutuoso escrevia, secundo consta, em
1590: "é o melhor que se acha no universo e se leva para a Índia e outras
partes do mundo".
A
alusão no poema às "chípreas uvas roxas" decorre de ser esse vinho
produzido com uvas da casta Malvazia, cujas sementes foram trazidas, em 1444,
da Ilha de Creta, 25 anos depois de descoberta a Ilha da Madeira.
Visão
e tato também ocupam lugar de destaque no poema seguinte, "Soneto do Vinho
de Jerez". Tendo-o como um "mistério de Espanha", reserva de
hedonismo "magicamente perturbador", o poeta define poeticamente essa
requintada bebida originária de Jerez de La Frontera como um "ócio verde,
sem fim", numa contextura vespertina que toma a "forma oblonga/ que o
sumo acaricia", cujo "herodiano palor/ transcende", anoitecendo
aos poucos. Logo se ergue a imagem que o sabor libera, no segundo quarteto:
"Da serrania a fímbria repassada/ é o violáceo contido nessa curva/ de
translúcidos bordos", por onde segue esquivo o supremo líquido. Mas, pela
intervenção já do aroma e do gosto, logo se impregna "do cautério do
chão", do "olor de mirto", em "cal de espuma", até a
hipérbole de parecer um rio (no caso o Tajo, o Tejo, em território espanhol)
"na garganta refluindo". E, finalmente, o inebriado descortino do
sabor:
Como
vens, Palo amargo, sobre a língua
ressequida
no espanto e sangue em jorro
de
um boi de sombra enorme sobre a areia.
Sonorizando
e enobrecendo o decassílabo, "Palo amargo" alude a Palomino Fino, uma
das castas com que se fabricam este generoso de prestígio, às vezes muito seco,
em ouro pálido, cuja gradação alcoólica varia de 15 a 20 graus. As outras uvas
são Pedro Ximénez e Moscatel. No ensaio que escreveu sobre "o velho vinho
que tanto sabe dos segredos deste mundo", proclama Godofredo que, "de
intransferível privilégio da gleba andaluza e da sabedoria do homem que a
lavrou, sabedoria casada à arte insigne dos vinhateiros, originou-se esse
divino mosto fermentado que alimenta e alegra o coração dos homens", o
glorioso de Jerez. E, entusiasta, descreve-o, em algumas de suas apuradas
formas:
"Vinho para todas as horas ou somente
das grandes horas, ei-lo tremendo no cristal oblongo em que o prende o
tormento de nosso amor: Fino,
Amontillado, Oloroso, Dulce, Palo Cortado, que sabemos de tantos nomes e
tão nobres cepas que o fundamentam, sem olvidar a de Pedro Ximénez, que deu
volta ao globo, em fama e glória".
A
referência a Herodes Antipas (22 a.C. - 39 d. C., tetrarca da Galiléia,
obediente ao poder de Roma, diante de quem Jesus compareceu durante seu
processo), neste soneto, embutida no adjetivo herodiano, remete à
sensualidade de Salomé, dois personagens remotos da mitologia bíblica, a cuja
simbologia o poeta recorre com certa familiaridade para realçar um momento de
prazer intenso, como se confirma nesta passagem de seu Diário, registrada em
19.02.1967:
Bebo vinho de Israel: vinho tinto, doce e
forte, dos vinhedos de Richon le Zion, talvez aquele mesmo que incendiou o
coração de Herodes, quando, na festa de Maqueros, prometeu a Salomé, em troca
de uma dança, metade de seu reino. A quem prometeria eu, depois deste
vinho, todos os vales e cidade de meu longínquo, obscuro e ignorado reino?.
Esse turismo culto e sensorial recusa-se a
mudar de clima, quando o poeta, afanoso, decide retomar o cálido azul do Mar
Mediterrâneo, até bordejar o sul da Espanha e aportar às costas da sempre
reverenciada Andaluzia, decantada em versos transparentes:
Guadalquivir de
aromas, dentre o liso
das
paredes polidas do gargalo,
foges
do bojo que te ensombra, ó vinho
do
horizonte da música e de Málaga.
No
"Soneto do Vinho de Málaga", este cristalino quarteto, com que se
inicia, introduz no cenário, encadeadas, sugestões aromáticas, visuais e
sonoras, a que se juntam as gustativas, para que o poeta configure o dulçor
"e a clave de sépia líquida", em que o vinho dormita, num horizonte
festivo da Andaluzia.
Com
ele, pretende homenagear um dos mais requintados vinhos de sobremesa da Costa
do Sol, produzido a partir de um mosto concentrado e desidratado que, segundo
os manuais, lhe confere densidade carmelizada, doçura intensa e cor escura.
Entre os vinhos generosos, o de Málaga é um dos portentos da enogastronomia
internacional, ao lado do Porto, do Madeira e do Moscatel de Setúbal. Godofredo
literalmente o vê dotado das qualidades de "formulário/ do índice claro
das consumações", é "palavra sem letras", conduzida pela flauta
e a mágica de zíngaros, em clima de tardio romantismo.
Em
solos vulcânicos, desde o século XVI, a Hungria Central cultiva um trio de
castas viníferas (Furmint, Hárslevelü e Muscat) que lhe fornece uma bebida,
próxima, para Godofredo, de "danubiano acorde", num dulçor que parece
estancar o desejo "nas bordas do espanto", afogar lentamente "as
pupilas do tédio", o mesmo generoso que Eça de Queirós chamou em "As
Cidades e as Serras" de "rei dos vinhos e vinho dos reis".
O
húngaro líquido, cantado no sexto poema da série, o "Soneto do Vinho de
Tokay", potencialmente aromático e de grande bouquet, existe em
várias modalidades, com diferentes graus de doçura, mas, segundo os
entendidos, o melhor é o Tokay Essência, oriundo de colheitas de elevada
qualidade e igual nível de dulçor. Na linhagem dos generosos, corresponde ao
vinho do Porto. Ao sorver um legítimo Tokay, impelido por sensações visuais,
gustativas e tácteis, o poeta confessa, sem meias-palavras e sem falso pudor,
vislumbrar o ensejo de se perder "no vício sem remédio" que tem o
"sabor de velutíneo beijo".
Sensualmente
descritivo, o segundo quarteto arregimenta sonoridades, para compor, com o
visual e o táctil, a sua sinfonia gustativa:
A
vaga do silêncio agora cruzas
em
placidez dourada. E eis que transbordas
do
côncavo da voz das cornamusas
e
já no poente purpurino acordas.
Encerra-se
a série com o "Soneto do Vinho de Constança". Presumo que, a partir
do título, em que o nome dele constante parece quase hieraticamente evocar um
passado remoto de transgressão, nobreza e tragédia, este poema já por si
constitui um desafio à imaginação. O enigma situa-se na escolha da palavra
Constança e não Constantia, para nomear o vinho celebrado no soneto. É possível
que o autor o tenha feito por força do sistema de rimas. Perguntaram certa
feita a Godofredo quais desses sete decantados vinhos ele possuía em sua adega.
Respondeu que todos, menos o vinho de Constança. E confessou que até ali
(1971), de tão raro, apenas bebera duas vezes na vida desse vinho que teve
grande voga no século XIX, lembrando que os heróis de Balzac com ele muitas
vezes brindavam. A propósito, contou na ocasião uma saborosa e impudica
história. Numa carta escrita a uma das damas de seu tempo, galante, dizia o
barão de Cotegipe (João Maurício Wanderley, Bahia, 1815-Rio de Janeiro,1889, deputado
e ministro do Império): "Sinhá, mando-lhe seis garrafinhas de Constança e
vou comê-la ao jantar". Há uma variante desse episódio em que o galanteio
de Cotegipe inscrevera-se num bilhete dirigido à bela jovem, a ela mandado
sorrateiramente, ao crepúsculo de um almoço festivo.
A
primeira impressão decorre de que Godofredo Filho tinha o Vinho de Constança no
coração, o que se reflete na elocução lírica do poema. É o mais abstrato dos
sete sonetos da série e, por isso, à primeira vista, induza o leitor a vê-lo
como alusão a uma complexa história de amor. Eu próprio fico a indagar por que
Godofredo, nele, não alude à célebre origem do nome do vinho. Pareceu-me
impor-se um silêncio voluntário, por demais íntimo, o que me impeliu, de
imediato, a supor que a sugestão do título se ligava à tragédia de Inês de
Castro, tão decantada, inclusive por Camões em Os Lusíadas ("Estava
linda Inês posta em sossego", diz lá o vate, no Canto III, 120). A
espanhola Constança, nobre de Castela, casou-se em 1340 com dom Pedro, príncipe
herdeiro, depois rei de Portugal, cuja cabeça surtou ante a rara beleza de
outra mulher, Inês, dama de companhia da futura rainha. Amor à primeira vista,
dom Pedro e Inês de Castro tornaram-se amantes e, dessa relação, tiveram quatro
filhos.
O
poeta entrelaça monemas e fonemas, como que fugindo do sensorial na caça ao
espiritual, embriagando-se na "transcendência/ da palavra que extrema o
pensamento/ e é cinza"..., para no final, arrolando nomes fluidos de
mulheres (Lindinalva, Floralva, bruna Clúsia), explicitar numa parelha de
versos o que antes fora metaforicamente "rosa e brilho esquivo de
estrela", sem que ninguém lhe responda:
Ninguém.
Mas, pela treva, tu me chamas
e
eu te espero com vinho de Constança.
Após
a morte de dona Constança, em 1345, a influência da bela Inês sobre dom Pedro
desatou uma guerra de inveja e ciúmes na corte, que culminou com o seu
assassinato a punhaladas, tramado e perpetrado, com o príncipe ausente numa
excursão à caça. A fúria e a vingança de dom Pedro desabaram sobre os
assassinos, tão logo subiu ao trono, em 1347, dois anos depois da morte de Inês
de Castro. Matou os algozes de forma crudelíssima e logo mandou exumar a ossada
da amante, obrigando em seguida no salão do trono a corte, inclusive a nobreza
e o clero, que haviam condenado o romance, a ajoelhar-se diante do esqueleto a
seu lado e a beijar-lhe os ossos da mão.
E
por aí segui, admitindo que o nome constante do título aludia a esta pungente
história de amor e ao indigitado vinho fabricado na Quinta de Dona Constança,
hoje chamada Quinta das Lágrimas, por causa da triste história de Inês de
Castro, induzido pela galante referência do último verso, talvez alusiva ao
prestigioso tinto Pedro & Inês, sem perceber que a esse galope cognitivo se
poderia impor um freio, sensatamente advindo de ponderações arguidas pelo
professor, escritor e educador Edivaldo M. Boaventura, enólogo da estirpe do
poeta, também seu amigo, centradas no conjunto de vinhos generosos que a série
de sonetos conjugava. Para ele, o soneto alude ao Vinho de Constantia,
fabricado na África do Sul, de tradição consagrada, produzido por vinícolas
cuja história remonta ao século XVII, e de fama rubricada no século XIX por
excelsos paladares como o de Napoleão Bonaparte (1765-1821), de Frederico, O Grande,
e do chamado “rei burguês” da França, Luís Felipe de Orleans (1773-1850), mas
também de mosto desfrutado por ícones da mais alta literatura, como os franceses Charles
Baudelaire (1821-1867) e Alexandre Dumas (1802-1870), e até pelo brasileiro
José de Alencar (1829-1877), que o citou num folhetim intitulado A Viuvinha. Produzido em vinícolas
situadas no Vale de Constância (África do Sul), e por isso o seu nome, suas
tricentenárias garrafas de 500 ml hipnotizam preferências mundiais, hoje em
duas matrizes Grood Constantia e Klein Constantia, mantendo-se o nome em latim.
Se
o desafio subsiste, então alea jacta est.
Finalizo
reproduzindo outra passagem do Diário
desse infatigável hedonista, justamente a que, estando a esbaldar-se em São Cristóvão,
Sergipe, escreve em 03.08.1946:
Jantar
de possesso da gula: feijoada de carne de porco, moquecas de peixe e de ostras,
cabrito assado no espeto, e duas garrafas de Collares da Viúva Gomes, branco e
tinto. Depois, fumo, Porto, alegria insensata, e uma dança desenfreada no
sítio... Já esplendia a manhã e cantavam os galos nos jiraus orvalhados, quando
me arredei dos braços de G., de V., de M. S., e de tantas outras moreninhas com
quem partilhei as horas incendiadas dessa noite, no rodopio das valsas
românticas e dos foxes bulhentos...
Quem
tiver fome e aceso paladar feche os olhos.
Bibliografia
Charles
Baudelaire - As Flores do Mal, edição bilíngüe. Tradução, introdução e
notas de Ivan Junqueira; Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.
Notadamente, a parte intitulada Le Vin/O Vinho, com os poemas "L´âme
du vin"; / "A alma do vinho"; "Le vin des
chiffoniers"/ "O vinho dos trapeiros"; "Le vin de
l´assassin "/ "O vinho do assassino"; "Le vin du
solitaire"/ "O vinho do solitário"; "Le vin des
amants"/ "O vinho dos amantes", p. 374 a 387)
Danio
Braga e Celio Alzer - Tradição, conhecimento e prática dos Vinhos; Rio
de Janeiro: José Olympio Editora/Associação Brasileira de Somelliers, 2003.
Florisvaldo
Mattos - Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa. Salvador:
Edições Cidade da Bahia, 2004 (no prelo).
Fundação
Getúlio Vargas, Instituto de Documentação - Dicionário de Ciências Sociais. Coordenador-Geral:
Benedicto Silva. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1986.
Gérard
Debuigne - Larousse des Vins. Paris: Librairie Larousse, 1970.
Godofredo
Filho - Irmã Poesia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador: Secretaria
de Estado da Educação e Cultura da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 1986.
____________
- Diário de Godofredo Filho - Salvador:
EDUFBA; Cento de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia. Organização
de Fernando da Rocha Peres e Vera Rollemberg, 2007. O texto memorialístico de GF
cobre um período de quarenta anos (1942-1982).
____________
- "Mistério Jerezano", ensaio. Jornal da Bahia, 1971.
Jaime
Junqueira Ayres - Sete sonetos do vinho, crônica. Salvador: Tribuna
da Bahia, 20.07.1971.
Joseph Jobé, org. - El Gran
Libro del Vino. Tradução de Eladio Asensio Villa. Barcelona,
Espanha: Editorial Blume, 1975.
Pedro
Lyra - "Um hedonismo instintivista"; ensaio introdutório de Melhores
Poemas de Raul de Leoni. São Paulo: Global Editora, 2002.
Saul
Galvão - Guia dos Vinhos Tintos & Brancos. São Paulo: Editora Códex,
2004.
Wilson
Lins - Os vinhos do Poeta, crônica. Salvador: A Tarde, 20.07.1971.
_________
- Vinhos e comendadores, crônica. A Tarde, 21.08.1971.
Zitelmann
de Oliva et alii - "Canção de amor e vinho de Godofredo
Filho". Entrevista. Salvador: Tribuna da Bahia - Caderno 3, 17 de
julho de 1971 (além de Oliva, participaram como entrevistadores ainda: Jaime
Junqueira Ayres, Carlos Eduardo da Rocha e Bisa Junqueira Ayres).
________________________
Texto
composto e revisto, a partir de palestra pronunciada na ALB, em 28/04/2004.
Acompanham essa publicação os Sete Sonetos do Vinho, de Godofredo Filho, e o poema Godofredo, a ele dedicado pelo autor, escrito em 1992.
SETE SONETOS
DO VINHO
(1971)
SONETO
DO VINHO DO PORTO
Fruto em verde ou de ígneo e azul, tocado
da música da alva. Ó tessitura
de esférico sabor, lúdico aroma
de pomo etéreo. Os beijos que não são.
Desliza em rota insone. E eu te procuro,
ó domador do tédio. E, travo de mel,
e teu conúbio vegetal ressumbram
no liquefeito olhar das feras bravas.
Que do xisto azumbrado a fulva luz
tornada em sumo e veludoso gosto
por sobre a calcedônia do desejo.
Vinho que sabe a amor sem vim, ocíduo
clarão que incide às tardes sobre o Douro,
ou de Andrômeda o riso e o de Canopo.
SONETO DO VINHO MOSCATEL
Incende-se-me o cálice ao Favaios.
Ó gosto exato. Ó mais adamantino
conceito de sabor, no superfino
amor de amar seu corpo em outros maios.
No entanto, só dezembro em Favaios:
o aroma, a cor, a luz do sol a pino.
É vinho de ferver o nosso tino
ou de exsurgir alguém de seus desmaios.
Mas o fulgor serena: a mansidão
dulcíflua caricia filiformes
papilas rubras e as caliciformes.
Contigo, o céu mais perto; a lassidão
azul do sono; e um beijo, que não mente,
sobre os lábios da tarde, ardentemente.
SONETO DO VINHO DA MADEIRA
O olhar castanho e morno das panteras
tens às vezes na cor. Mas entontece
é teu perfume: a ronda de quimeras
voltando a meu caminho que escurece.
Ao meu caminho que escurece... Esferas
de ébrio torpor no céu que agora desce
sobre a fluidez enorme do que eras
no chamalote do ar, que empalidece.
Das chípreas uvas roxas e onde o mosto
espúmeo flui, e a perfeição alcança,
de sumarento e sazonado gosto,
Derramas-te em meus lábios como um cântico
de saudade da vida (e de esperança),
vinho de lava ardente e vento atlântico.
SONETO DO VINHO DE JEREZ
Ócio verde, sem fim. A contextura
de abril nas tardes. E essa forma oblonga
que o sumo acaricia. Herodiano
palor transcende, que anoitece aos poucos.
Da serrania a fímbria repassada
é o violáceo contido nessa curva
de translúcidos bordos (dúctil linha
imaginária de um percurso esquivo).
Do cautério do chão torres magoadas,
e mirto, e cal de muros sobre as pedras,
ó Tajo na garganta refluindo,
Como vens, Palo amargo, sobre a língua
Ressequida no espanto e o sangue em jorro
De um boi de sombra enorme sobra a areia.
SONETO DO VINHO DE MÁLAGA
Guadalquivir de aromas, dentre o liso
das paredes polidas do gargalo,
foges do bojo que te ensombra, ó vinho
do horizonte da música e de Málaga.
Queres meu sangue. E as tranças da cigana
como flabelos, e a palavra exata
que configure teu dulçor e a clave
de sépia líquida em que te adormentas.
Zimbro, não. Mas de zíngaros ainda
a flauta e a mágica. E esse formulário
do índice claro das consumações.
O reverso do tempo consumido,
a palavra sem letras e o conóculo
que herdei do espólio em chamas de Espronceda.
SONETO DO VINHO DE TOKAY
Do veio das palavras inconclusas
e do desejo que estancou nas bordas
do espanto, ó dança estática das musas,
de um quinteto parado sobre as cordas...
A vaga do silêncio agora cruzas
em placidez dourada. E eis que transbordas
do côncavo da voz das cornamusas
e já no poente purpurino acordas.
Esse prisma de flava cor e o ensejo
de me perder no vício sem remédio
de teu sabor de velutíneo beijo,
Ó danubiano acorde (e o mais pungente)
de seda e ciúme... E as pupilas do tédio
que em teu dulçor afogo lentamente.
SONETO DO VINHO DE CONSTANÇA
O limite, vencido. A transcendência
da palavra que extrema o pensamento
e é cinza; fora flama, solta chama
que à tarde azul tornasse, e ela, só, dança
Sobre a raiz absconsa. Que monemas
ou transidos fonemas se entrelaçam
no liso chão da imagem revivida
em rubras helicônias? Dói que alcança
O que emerge entre a rosa e o brilho esquivo
de estrela que anos-luz de poeira rola,
tênue, fugace, sobre a relva mansa.
Lindinalva, Floralva, bruna Clúsia?
Ninguém. Mas, pela treva, tu me chamas
e eu te espero com vinho de Constança.
LADEIRA DA MISERICÓRDIA
Godofredo
Filho
É
ladeira sem princípio
ou
por princípio sem fim.
È
ladeira que começa
onde
eu quisera acabar.
È ladeira da Bahia,
cruel ladeira perdida,
que
por boca da ironia
se diz da Misericórdia.
É ladeira da Bahia.
Por
onde a traçaram vai
ou
de súbito não vai,
torcida
sobre seu corpo,
virada
quase ao contrário,
canyon
por onde os alíseos
se
precipitam silvando
na
trança das urupemas.
Que
de sobrados fantasmas,
varandas
ermas de sonho,
arcos,
muralhas de sombra,
janelas, portais
vazios,
molduras
de pedra suja
sem
apoio de mais nada,
com
rios doidos de vento
saltando
no etéreo golfo
do
inútil azul das tardes!
Ó
vós que passais, ouvi-me
a
efêmera e monocórdia
canção
da negra ladeira
que
é da Misericórdia.
Misericórdia
de quem?
Misericórdia
por quê?
se
eu só (quem lhe deu amor
obscuro
mas imortal),
possa
entender o desvairo,
a esconsa
mágoa, o silêncio
que
oprime seu sonho informe.
Ai,
quero cantar-te agora,
na
solidão desta hora
que
não voltará no tempo
- sombra vã
da eternidade,
cantar-te
o jugo, o tormento
que
faz que durmas de noite
com pálpebras descoladas,
o
obsidente sofrimento
ue
prendo na trama aérea
de
meus versos incorpóreos.
Também
quisera na glória
contigo sobreviver,
como
hoje, no desespero,
te
incorporas ao meu ser
pelo verbo conviver.
Ó inverossímil ladeira,
que
foste o íngreme caminho
por
onde outrora subiram,
coléricos
e espantados,
tantos
negros sofredores
sob
o relho dos feitores,
índios bravos, curumins,
ao
suave clarão dos hinos
de
pastorais cor de aurora
que
iam a dessedentar-se
nas fontes do teu perdão.
Onde
vive o teu perdão?
Ouço-te
as vozes perdidas,
ou
que das festas dos muros,
de
teus paredões enormes,
vão singrando o dorso esquivo
da
maré de teu silêncio:
são
vozes de missionários,
alaridos de corsários,
esporas
de bandeirantes,
lanças
longas, arcabuzes
vazando o crânio da treva,
gemidos
de agonizantes
nos
postigos do Hospital,
saudade daquelas donas
do
Santo Recolhimento,
os
olhos postos no mar;
vozes
bruscas de ouvidores,
de
capitães, de Doutores,
de
Primazes sonolentos,
e
de Vice-Reis odientos;
e
também, no teu mistério
das
horas de amor celeste,
procissões
de virgens brancas
entre
aromas de alecrim,
gargantilhas
de aleluia
em
cadeirinhas de arruar,
e
o amor que ali teve um dia
um
rei mago de Ajudá.
Misericórdia
por quê?
se
a alva escorre sem ver,
nem
redimir os amantes
que
dormem pelo abandono
dos
mornos beijos viscosos
no
mar dos lençóis desfeitos.
Misericórdia
de quem?
se
esmaga os rostos que dormem
ou
sobre as pedras magoadas
eu
piso gargantas súplices
de
vozes que não escuto.
Ah,
quantos sábados tristes
do
amor estival das terdes
não
rolei nas pedras lisas
de
teu ardente convite,
buscando Lalu dormindo,
afagando
Durvalina,
ou,
na carne incandescida,
sentindo
a pua dos ossos
do prenúncio do esqueleto
de Eva Maria Fernandes.
E quantas noites ungidas
de lua escorrendo insone
sobre os desvãos de teu leito,
não prendi minh´alma enferma
nos muros de teu silêncio,
e tangido ao torvo anseio
de segredos que não digo,
na madrugada morrente
varando portais desertos,
trepei teus jiraus de espanto!
Ah, descesse eu em tais noites
teu funicular de angústia,
sob o riso avermelhado
da gengiva das janelas,
e amargo olvido buscasse
nas ilhas do mar do vinho.
Ou então perquirindo o assombro
de horas tardas de vigília,
ouvisse teu longe canto
no cimo das turvas ilhas,
as ilhas do mar do vinho.
Onde andais, sombras fugidas
da angra de meu carinho?
Onde andais, sombras perdidas
Marfisa, Dalva, Marília?
E as outras mais? Onde estão,
de clorose e de carmim,
glicínias da noite ardente
despetaladas por mim?
Sila, Silu, Clementina,
Eurides nos braços de Elza,
Zezé com seu filho morto,
cantando a canção de Ofélia...
Juracy longa e fragílima,
Que amor abrasou na fulva
nevrose de consunções
e Judith, a flor do ciúme
que a noite acendeu no espanto
das convulsões fesceninas,
Judith que eu redimira
(ó alma, ó clarão da alma!)
Que no dezoito não vejo
na sombra o rosto de Stela,
nem Flaviana anoitece
na tarde de outra janela.
Onde andais sombras sumidas,
Floricéia negra e tantas
que nunca tiveram nome,
espuma das turvas ondas
do mar da dissolução?
Onde andais, sombras perdidas?
E tu, Leonor, pela cova?
Que tal isso lá, menina?
Melhor que nossa ladeira
com sulfa e penicilina?
No reino das águas frias,
quisera dormindo o rosto
de Dionéia Jesus Pires.
Dionéia, dá-me essa taça,
quero beber por teus olhos
no reino das águas frias.
Que vem do mar da ladeira,
entre ondas de urina e pedra,
borboleta comandando
o barco da perdição,
e eu, piloto dessa nave,
à doida rosa-dos-ventos
furando a bruma das saias
de Eva Maria Fernandes...
Ó Nauta que vais escota,
suspende a vela que é tarde,
ó Nauta, vais naufragar:
nos penedos desses peitos,
nos baixios desses púbis,
o barco vai se afundar.
Navegador solitário
dos óstios himenais,
não soçobres teu decoro
na fossa navicular.
Que longe o Porto dos Mastros,
onde alguém debalde espera
a nave que não virá!
Ó Nauta, que vai às ilhas
para esconder teu tormento,
não haverá nesses mares
a ilha do esquecimento?
Que longe o Porto dos Mastros
e o brando lençol macio
da praia do Bogari!
Por aqui só excrescências,
detritos amoniacais
e, em decúbito dorsal,
untada de mornas galas
para estranhos esponsais,
a noiva dos formicidas
com seu bilhete fatal.
Marise, Antônio sumiu.
Amália, a luz se apagou.
O riso daquela boca
o tintureiro lavou.
Escorraçado, esse canto
buscando a torta ladeira
na crina das bebedeiras,
é o canto de um marinheiro
que mares azuis trocara
pelo Biscaia de treva
das pedras desta ladeira.
É um canto de amor desfeito
contrapontando o silêncio
da língua dos enforcados
na trave de teu banheiro.
Ó Dionéia Jesus Pires
afogada na escureza
das ondas do mar sem fim,
também eu vou me afundando
nas ondas do mar do peito
de Eva Maria Fernandes.
Ladeira do meu tormento!
Fojo de animais bifrontes,
pobres cervos desgalhados
que João Batista apascenta
nos verdes quintais da encosta,
vagas enguias lustrosas
que o pesadelo da noite
distende no claro-escuro
do aquário lunar do sono...
Guiovaldo acende uma vela,
Rosa jogou-se à calçada: _
- “Meu lenço de seda branco,
meu pé de manjericão!”
Ron Merino, bofetadas,
um punhal riscando a fundo
teu nome numa canção,
soluços, pragas, risadas,
misturando blues e sambas
das radiolas de aluguel
ao lento noturno rouco
de xaques-xaques e agês
se alando às trilhas longínquas
do Aché do Opô-Afonjá...
Ebó, dendê na farofa,
pimenta no arroz de Haussá.
Nossa Senhora do parto
tem olhos de conta verde
no rosto moreno estanho;
galos de alfazema e nuvem
com bicos de índigo vidro,
e as aéreas naves de âmbar,
partindo a meio o silêncio
das duas da madrugada.
Ladeira que já não subo,
mas que desço agora sem medo
da sombra que vai comigo.
Vereda isenta de arrimo,
caminho solto no tempo.
A lua deitou-se agora
no leito escuso da rua,
tomando a forma das coisas,
das janelas e das tranças
porque os convites obscenos
transmudasse em línguas brancas
segredando-me a ternura
de um conúbio sepulcral.
Hoje, és Padre Nóbrega
para o cartaz das esquinas,
mas foste acaso o caminho
de Mem de Sá, de Vieira,
de Gregório de Mattos Guerra,
comborça de capadócios,
amante de seresteiros,
Xisto da Bahia afagando
na garganta dos violões
modinhas de adormentar
o olhar que não tem mais pálpebras.
Foste rua de prosápia
e hoje és ladeira de negras,
de mulatas sifilíticas,
de soldados e de bêbedos,
rua de míseras putas
ou das sombras que entrevejo
cavalgando desabridos
ginetes de bruma errante.
Ó, esse amor ignora
doque eu só te dei, ó
ladeira
de insone Misericórdia:
amor de carne, de sangue,
de saliva e beijos ácidos,
amor que sobe do fundo
dos pântanos seminais.
Sou eu quem te beija as pedras,
quem, ao pranto convolado,
se adensa no teu mistério;
quem prende à carne dos lábios
macerados de servícia
o amor que não sabe o nome,
e o traduz em luz aurora
de redenção impossível,
por te querer abrasada
nesse amanhã que demora
de alvorecer meu tormento,
ansiando-te violentada
da graça abissal do Cristo,
à flor da chama vermelha
tocando de irreal brancura.
E então és Misericórdia!
Ladeira da minha vida.
Ladeira do meu amor.
LAMENTO DA PERDIÇÃO DE ENONE
Godofredo Filho
Quero fugir e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
Se a noite ao menos pudesse
fazer com que me esquecesse
da fria luz que, no quarto,
sobre o teu corpo morria.
Oh gargantilhas de espanto
na esconsa perdida!
Se a noite ao menos pudesse,
apagar o riso insano
que deste para outros homens,
a esquimose de teu riso
na carne dos transeuntes.
Taça esgalga (negra rosa!)
taça esbelta onde anoitece
o vinho que me delira,
tormento,
lunar delícia
de tantas bocas viciadas
na polpa nutriz dos mundos.
Não dormias, que eu só sei
da luz verde que escorria
sobre os teus seios imersos
no mar moreno do peito.
Girafa que me alucina,
cobra, cobra,
cobra, cobra,
doida mula-sem-cabeça
batendo os cascos de vidro
no rosto do meu desejo...
Quero gritar e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
Se a noite ao menos pudesse,
na sombra do mar do tempo,
perder o lume trigueiro,
mas tão frio, de teus olhos.
Na relva negra do púbis,
de teu púbis -- horto exíguo,
quisera pascer cuidados,
ternuras, canções de lua,
ou bem, anseios magoados
do riço mau das bromélias.
Quisera pascer cuidados...
ou esgueirado pelas bordas
do poço do mundo estéril,
fecundar óvulos mortos.
Enone,
a aurora surgia
das dobras de teu silêncio.
Vinho, aromas, luzes cruas,
e essas pupilas boiando
num charco azul de atropina.
Enone,
a aurora dançava
na festa dos teus cabelos.
Quero fugir e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
Godofredo Filho
I
Vaga, tênue lembrança de um perfume
de flor esguia, delicada e pura,
Mariana entre as frágeis, lindas rosas,
que à tarde o vento mau despetalava.
De vestido azul claro e de sandálias
recurvas, laço rubro nos cabelos,
recordo quando a via, ó enfermeira
silenciosa das fontes do jardim.
Do destino das coisas compungida,
o sinistro mistério aprofundando
da evanescente e efêmera beleza,
Mariana talvez que pressentisse
o mudo horror das rosas derradeiras
que em seu féretro branco morreriam.
II
em que se apartarão, cheios de mágoa,
de mim teus negros olhos, rasos de água,
e essa ternura ingênua e delicada.
Que mais posso dizer? Nem se apagada
sempre, não hoje só, verei a frágua
a salamandra de teu sonho. Trago-a
dentro d´alma, já murcha e mal fanada,
a flor do afeto a que sorrimos ambos,
e a deixaste gelar neste abandono,
no limbo vítreo domais longo sono.
Embora ! O aroma dúlcido dos jambos
sentirei, que me lembra um céu perdido,
ó fruto verde, ó fruto proibido!
(Godofredo Filho, Irmã Poesia – Seleção de Poemas (1923-1986), pp. 245-257,
1987.
GODOFREDO
Florisvaldo Mattos
Sentado na varanda do Infinito
Talvez deguste um vinho de Tokay
E lavre um poema, um pensamento, um rito;
Pelo que de espiral de sonho sai
Da taça, um verso, uma balada, um mito;
Nas alamedas por onde hoje vai
Frases de amor, porém jamais um grito.
Godofredo, oh, insigne Godofredo,
De paletó, chapéu e guarda-chuva,
Sob a copa de rútilo arvoredo,
Ninguém viu mais além do lábio o da uva
Límpido percurso e, logo após, quedo,
o sangue de um crepúsculo sem chuva.
Godofredo, oh, insigne Godofredo.
Ou por trás do ebúrneo fulgor da taça
Capturar, invisível chispa, um canto
De saudade da vida, além da massa
De sabores febris, mosto de espanto
Que nos leve à outra margem e, em nós, rechaça
A aspereza do luto, o tédio e o pranto,
Diferença entre o caçador e a caça.
Foi dito que ao fragor do tempo vence-o
A beleza de um arco retesado,
Ou quase; e, por mais que a palavra incense
O altar do destino, fica o legado
Que inscreveste na face do silêncio.
É o que nos basta – tu e teu passado;
Ajax golpeia cruel agosto, e vence-o.
(Salvador, 23.08.1992)
(Florisvaldo Mattos, A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior; Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado-COPENE, p. 37, 1996,).
GODÔ, O VELHO BRUXO
Cid Seixas
No campo dos pentagramas
sete fonemas sonoros
proclamam em consonância
a convocação da palavra.
Sobre a clareza da folha,
cada som tem um sentido;
aqui o verso tem vida
na pauta do seu dizer.
É a transmutação dos metais
em verbo cortante e preciso
que o Velho Bruxo enleva
no condão da sua pena.
As vinhas estão florindo
por entre os dedos do mágico
que retira do chapéu
os prazeres do sentido.
CID SEIXAS - NOVENTA ANOS DO
MODERNISMO NA FEIRA DE
SANTANA DE GODOFREDO FILHO
Cid Seixas. E-book. Editora Universitária do Livro Digital, 2012.
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