quarta-feira, 6 de março de 2024

GODOFREDO HEDONISTA: SABOR E SABERES DO VINHO

 


Florisvaldo Mattos 

 

Não há corpo de mulher, nem cheiro de mulher, nem riso de mulher (bem entendido, bonita!), que se possam comparar à fluidez, ao aroma, à doçura específica de certos vinhos, sobretudo se se trata de um Château-d´Yquem como este, áureo sumo de nossa adega, com o brilho e a transparência dos olhos volúveis de um felino: vinho que bebi, como dádiva de rei, a esse incomparável amigo que é Diógenes Rebouças.

 

Começo com essas palavras que Godofredo Filho (1904-1992) escrevia em seu Diário, precisamente no dia 10.06.1962, um domingo, para advertir que não irei produzir uma análise de sua poesia, cuja grandeza, lirismo, sabedoria e requinte outros de muito mais competência o fizeram, no curso dos eventos comemorativos do centenário de seu nascimento, que se realizaram em Salvador, pela Academia de Letras da Bahia, e Feira de Santana, pela Uefs-Uneb. Esse precioso documento foi confiado, a seu pedido, ao poeta Fernando da Rocha Peres, seu amigo, para publicação, e que agora vem à luz em idônea e cuidada edição.

Tratarei apenas de uma parte de sua obra poética - nem por isso menos prestigiosa -, que também conserva traços memoráveis de sua personalidade, seguindo as pegadas da descrição que dele fez o jurista e humanista Jaime Junqueira Ayres, ao saudar em 1971 a publicação de seus Sete Sonetos do Vinho, em que via, além da palavra e da forma, os reflexos de um "mestre do paladar", avaliando os sublimados atributos que lhe concedia "um epicurismo praticado nos clássicos limites do bom gosto e do comedimento".

E, centrado nos poderes do gosto, manifestava a impressão de que, quem se beneficiasse dos "esquisitos manjares" do poeta, sentiria que eles não eram mais que um pretexto para o que efetivamente era "o objeto de seu culto e sua ternura: os vinhos".

Mais do que gostar, amar e apreciar, Godofredo Filho venerava o vinho. Conhecia como ninguém sua história e procedências, auscultava o significado das safras, discernindo-as, colecionava os oriundos das boas casas vinicultoras, qual este branco superior evocado em seu diário como "áureo sumo" de sua adega.

Seria então de espantar se bebidas finas e guloseimas que afagam o paladar não ocupassem o altar de um perfeito hedonista enogastronômico, como se lê e sente, em seu poema canônico "Lamento da perdição de Enone" (para ele, respondendo à curiosidade de alguém, talvez apenas o nome do amor que todos nós temos no íntimo). Mais do que um nome, um sabor rútilo: "Vinho, aromas, luzes cruas, / e essas pupilas boiando/ num charco azul de atropina" (na verdade, um colírio). No entanto, é no colofão que precede a edição princeps plaquetada, que o poeta manifesta o desejo de "com vinhos mais que vermelhos" saudar a sua Enone, para desfolhar no chão do tempo "a rosa breve de seu nome".

Godofredo Filho tinha no vinho uma fonte de sabedoria. Não era um bebedor contumaz, mas um verdadeiro apreciador, como registra Jaime Ayres: "apenas bebe o suficiente para o deleite do paladar, com a delicada moderação com que devem ser fruídas as coisas boas da vida". Ele mesmo o confessaria a outro apreciador e seu comparsa, Zittelmann de Oliva, que, em lautos almoços, costumava lhe conceder momentos de solta conversação, vinhos e boas iguarias.

Pergunta-lhe onde a verdade dos vinhos, e ele, sábio e sereno, responde: "O vinho tem muito de sabedoria, não sei se em si ou a que lhe emprestamos. A embriaguez que o homem, quando se aproxima da divindade, essa embriaguez, em símbolos humanos, é muita vez trazida pela embriaguez do vinho". Lição de quem vê no vinho um ser vivo, que possui alma, faz penetrar e desvendar os mistérios da vida, digo eu.

Entendo que Godofredo Filho pertence a uma linhagem de poetas sensoriais, que, exaltando os prazeres do paladar, renderam tributo ao vinho, como um dos mais altos degraus da criação humana. Desde Homero, passando pelo Virgílio das Bucólicas, faunos entornando ânforas de vinho em prados e grutas, e por tantos outros, como o Baudelaire de As Flores do Mal, que o celebrou, dedicando-lhe cinco poemas consagradores.

Num deles, pela tarde, a própria "a alma cantava nas garrafas", dirigindo-se ao homem, a quem tece a sua origem e destino, erguendo-lhe um brinde fraternal e amável (Un soir, l´âme du vin chantait dans les bouteilles:/ "Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité, / Sous ma prison de verre e mês cires vermeilles, / Un chant plein de lumière e de fraternitè.). Em outro, o vinho faz "o coração abrir-se em gloriosos projetos" ("Épanche tout son coeur en glorieux projets"); em outro mais, o poeta proclama que nada no mundo vale "o bálsamo que aflora do ventre" de "uma garrafa profunda", fecundando "o coração do poeta em júbilo ante os céus" ("Tout cela ne vaut pas, ô bouteille, / Les baumes pénétrants que ta panse féconde/ Garde au coeur altéré du poëte pieux"). Finalmente, no último desses poemas, livre (sem esporas, freio ou rédeas), convida-nos a cavalgar no vinho, que faz o espaço esplender de vida e adiante abrir-se, na embriaguez, "um céu puro e fulgurante" (Aujourd´hui l´espace est esplendide! / Sans mors, sans éperons, sans bride, / Partons à cheval sur le vin/ Pour un ciel féerique et divin!").

Godofredo, a meu ver, segue esse translúcido padrão de sensualidade, tal qual o deste outro francês, Olivier de Serres, em seu remoto Théatre d´agriculture, de 1600: "Depois do pão vem o vinho, segundo alimento que nos deu o Criador para sustento da vida e o primeiro celebrado por sua excelência".

  Presente do céu, obra de arte, o vinho é por isso, também, obra do homem, venerado como provindo de ciência temperada pelo instinto e empirismo da inteligência. Conhecê-lo é aspiração vasta e apaixonante, porém mirá-lo, perscrutá-lo, sorvê-lo, saboreá-lo, alça-nos a um misto de amor e respeito por matéria tão transcendental que muito tem a ver com nossos sonhos, nossas ilusões e nossas fantasias.

 

Quem busque conhecer as origens do vinho irá se perder na penumbra dos tempos. Está no capítulo nono do Gênesis que Noé, após ter desembarcado os animais de sua Arca, plantou um vinhedo do qual fez vinho, bebeu e se embriagou, o que comprova que ele, antes da Arca, possuía vinhedos e já sabia fabricar vinho, dádiva da natureza que acompanha o homem na sua existência sobre a terra com um estatuto de nobreza que transita do humano ao sagrado com ritos e exaltação.

No entanto, muitos procuram dar-lhe um ponto de partida que, como nossas vestes e nossos manjares, se situa nas origens da manufatura, em primitivas técnicas de exploração econômica, quando o homem percebeu, em algum ponto do Oriente Médio, a única uva capaz de produzir uma bebida agradável, em estado natural, nascida simultaneamente com a arte de cultivar, de selecionar plantas, de viver em comunidade.

Depois, em razão do ato de ingeri-lo e seus efeitos, o homem passa a atribuir poderes superiores à embriaguez, que mantém um promíscuo conluio com os sentidos. Confere à vinha um dom celestial, e logo torna o vinho, dela originário, fonte de alegria e misticismo, de celebração e festa, para heróis, poetas e artistas, para reis e conquistadores. Tomado de inspiração e euforia, com ele ergue libações a divindades sacras e profanas, de onde provêm certamente o amor ao belo e ao agradável e um sentimento de sempre almejada liberdade. A imagem de Cristo compartilhando pão e vinho com seus discípulos na Santa Ceia sacraliza a bebida e lhe outorga caráter indispensável de culto.

A história prossegue; povos acolhem mais uma criação da mente e da mão do homem, mas é, como haveria de ser em outros campos, Roma, para onde convergem os odres, as ânforas e os barris de muitas geografias, que dará ao vinho a dimensão cultural que valerá para o Ocidente, já que os bárbaros, que iriam desmontar o Império Romano, o ignoravam. Foram os romanos que difundiram suas técnicas de plantio, sua fabricação e o prazer de consumi-lo.

Mais adiante, monges, bispos e missionários cristãos favorecerão a vinicultura tanto quanto uma ciosa aristocracia de nobres com poder, cultura e riqueza. De um lado, o vinho compunha com os santos mistérios que não interditavam sabores capazes de gerar regozijo e entusiasmo; de outro, as pompas palacianas, as comemorações e os rituais que acompanham a celebração das vitórias na guerra, ou as uniões entre altivas castas, incentivando imitações e propagando costumes, o institucionalizaram.

A burguesia irrompe ambiciosa e vitoriosa, com suas revoluções industriais e tecnológicas, suas transformações sociais e suas reformas urbanas, conferindo caráter popular à bebida e estendendo-a às novas classes sociais nos aglomerados humanos que movimentam as máquinas e, por causa delas, incham as cidades. A difusão do vinho, o hábito, a sua apreciação e arte de sorvê-lo configuram um legado e consolidam uma tradição de bem beber e bem comer - uma liturgia profana se desenvolve ao lado de uma liturgia sacra, representada pelas festas familiares, reuniões de amigos, eventos públicos, laços amorosos, confrarias, que elegem o vinho para dar brilho e consagração aos ritos da vida. Em matéria de bebida, nenhuma outra se lhe compara em prestígio e veneração.

 

Recolho em página de jornal douta lição de enólogo francês, Laurent Martinez, professor da Universidade do Vinho, na região do Ródano-Alpes, sobre a apreciação do vinho: "De nossos sentidos, usamos basicamente três na degustação: o paladar, o tato e o olfato. Mas esses três juntos correspondem apenas a 5% do que usamos normalmente, enquanto a audição é responsável por 25 % e a visão, por 70%. Nas degustações, usamos copos escuros, para que a visão não atrapalhe". (Folha de S. Paulo, 30/12/2002, Caderno F, pág. 7; entrevista ao jornalista Ivan Finotti).

 Deduzimos pela voz da autoridade que o vinho, para ser bem degustado e melhor apreciado, requer o concurso de todos os sentidos, uns mais diligentes do que outros, a depender das exigências e sutilezas do apreciador. E como num corolário sobressai o papel das sensações no prazer de degustá-lo. Elas permitem que se liberem a mente e as emoções pelas avenidas da fruição vital, já que são eficazes na forma de apreender o mundo exterior, por meio de estímulos nervosos.

 Não há como negar, na apreciação do vinho, o grau maior de interveniência das sensações gustativas, olfativas e visuais, que podem, por especial forma de articulação, fusão e agrupamento, suscitar a presença das outras duas, a auditiva e a táctil. O vinho confere sabor ao mundo, há de ter pensado Godofredo Filho, mas também aroma - e por que não luminosidade, sonoridade, êxtase à superfície? Tinto ou branco, generoso ou destilado (os conhaques e outros provindos da uva), o vinho abre ao paladar novos horizontes sensoriais, institui uma espécie de conluio sensitivo que se manifesta em gradações, para deleite não só das papilas, mas de todo um conjunto de reações corporais e mentais, elevadas a um grau inebriante com o concurso das iguarias. A boca, a língua e o palato são a caixa-de-marcha desse motor transcendental. E tudo se torna bem mais do que apenas sabor para quem melhor o aprecie.

Antes de qualquer cientista-enólogo, o poeta Godofredo Filho tinha plena consciência e conhecimento dessas prodigalidades do vinho. No Diário que está com Fernando Peres para publicação, ele nos dá disso exemplo cabal, ao confessar, sem induzir a dúvidas:

Ontem, jantar abundante, variado, fabuloso nas cores, no gosto, no aroma incomparável. Jantar com os velhos vinhos de Portugal. Teria sorrido Curcúlio a essa moqueca de curimã, as grandes postas brancas em labaredas vivas de dendê, de tomates e pimentas vermelhas. Que incêndio! Que chamas alucinantes a requererem a canção friíssima dos gargalos. Ó Vinícola de Basto! Ó Celorico de Basto! Apaziguastes-me a língua de onde escorria, entre chiados, a canção dos glutões, o elogio da boca, do ventre, da impudicícia da fartura nos bródios. (15.04.1945)

Além de vasta percuciência em relação aos vinhos, Godofredo a eles devotava também um sentimento quase de posse. E por isso os queria próximos de si. Para temperar esta abordagem, recordo episódio em jantar que certa feita o poeta e dona Carmen, sua mulher, ofereceram a mim, a Fernando da Rocha Peres e a Urânia Tourinho Peres, em sua casa, na Rua Oito de Dezembro, na Graça. Recebeu-nos de paletó e gravata borboleta. Mesa farta de iguarias, após um diáfano vinho do Porto como aperitivo, animando a conversa, para um lagostim ao óleo e salada, nos brindou com um branco espanhol de Rioja, cuja cepa muito elogiava. Em seguida, para as carnes, abriu um francês, origem controlada, de Bordeaux.

Garrafa à sua esquerda, ao servir de vinho os três convivas, lembro, era bastante parcimonioso. A mim servia, dizendo: "Pouco para Florisvaldo, porque vai dirigir". "O mesmo para Fernando, porque está acompanhado de Urânia e também vai dirigir". E para ele próprio todas as doses que a ocasião e a bebida suscitavam. O vinho devia guardar também atributos palpáveis, daí a necessária proximidade como que a acariciá-lo.

Por se tratar de um poeta altamente sensorial, a poesia de Godofredo Filho está quase inteiramente entranhada de sensações. Elas transitam livremente por uma ilustre gama de poemas. Optei por abordar esse lado em que, tanto no nível existencial como no criativo, prevalecem as sensações gustativas, aromáticas e visuais, que têm nos vinhos, assim como em seguros cardápios enogastronômicos, a sua preponderância. 

Recorro mais uma vez a seu Diário, na data de 18.02.1967:

Vieram hoje comigo e almoçaram, Paulo e Nestor Duarte. Não obstante a surpresa, Carmen nos deu mesa farta e comidas de mágico sabor: ensopado de leitão novo, carne de sol com pirão de leite, doce de caju em calda. Os vinhos é que foram de minha escolha: Madeira R (safra de 1928) e um Valpolicella capaz de monarquizar um anarquista. À tarde, Nestor e Paulo continuaram viagem para "Morro Belo", e eu me joguei na rede, com todas a janelas escancaradas ao vento da tarde, ao vento que não cessou um só instante de conversar alto, esfregando-se ruidosamente na folhagem das velhas mangueiras.

Supremo luxo da existência, maior expressão de sensualidade e hedonismo, impossível. Mas, não hedonismo do prazer pelo prazer na forma como se vulgarizou a ética do epicurismo. Hedonismo professado à Thomas Hobbes (o do Leviatã) que, no século XVII, considerava que o prazer deve ser obtido e a dor evitada, dentro de um conceito de Estado, cuja ação consiste em participar dos desejos de cada um, ao tempo em que lhe faz exigências correlatas sob a forma de deveres. Com base neste conceito, desenvolveu-se posteriormente a idéia de que a habilidade de distinguir entre prazer e dor é o único poder psíquico que prevalece (William Graham Sumner, 1840-1910).

Não interessa, então, cogitar se tal postura é própria de quem optou por praticar uma filosofia individualista. É mais um destino vital, um compromisso consigo mesmo, um estado de alma, como o exemplifica à farta Godofredo nesta passagem de seu Diário, escrita pelo poeta em 20.04.1967, no Sítio do Guerra:

"Lamentavelmente não tenho hoje disposição de espírito para a meditação de verdades eternas. E, muito menos, para a penitência. A um certo embotamento das faculdades nobres, corresponde em mim, neste momento, a preguiça e uma gula feroz. São dez horas da manhã. Acabo de ler o Evangelho da Paixão, no texto de São João, e nenhuma de suas considerações me encaminha para aqueles salutares princípios de onde fluem a contenção da concupiscência e o desejo de uma vida edificante."

   

Em êxtase de ébria fruição hedonista, as sensações reconfiguram o mundo godofrediano, projetando-se na sua poesia. Reporto-me inicialmente a três poemas de sua Irmã Poesia (Tempo Brasileiro, 1986), que reúne quase toda a sua obra poética, "Poema enológico", "Hino ao vinho" e "De Kháyyám".

No primeiro, em versos livres não rimados, está o poeta "à margem direita do Reno", visão, paladar e tato acesos, em terra que confessa de seu sonho, na cidade vinícola de Rheingau, numa tarde envolta "em frio azul", à qual volta "sempre com os lábios úmidos". E presta comovente e fraterna homenagem a um vinho branco alemão geograficamente de boa cepa, com versos límpidos:

A taça ao claro céu levanto, esgalga,

O translúcido copo

De onde o pálido amigo sorrindo me espreita,

Entre aromas que traem a ternura secreta

Com que volto a Rheingau, a terra de meu sonho.

 E "se o cansaço vem" e "em meio à longa viagem" os ânimos lhe vence, retomará o caminho, buscando outros que façam sobrevinda aurora possuí-lo dormindo "nos prados de Rheingau", terra de sonho pelo sabor dos vinhos. Primores líquidos, transparentes, com os quais Godofredo costumava dialogar, como o faz em seu Diário, em 16.04.1945:

Eulenspiegel, bom dia! Amável, reticente, burlador, foste quem comigo primeiro falou, nesta manhã desafiante da bruma interior. Em todo caso, bem melhor que outro encontro, em caracterizações menos divertidas, quais as que me acostumei a fitar nestes últimos dias. Irei contigo, sem dúvida, e de novo riremos...  Não haverá música, nem cânticos, nem a dança que adoraríamos. Mas valerá outra compensação. (...) E então, amigo, acabarás trepando à lâmpada sobre o leito que me espera, e nada mais serei que o invólucro de tua mágica risada, se a noite for propícia... Eulenspiegel, bom dia!.

No outro poema, "Hino ao vinho", depois de lamentar a desventura de ver sua sede aumentar, cada vez que o vinho, protagonista e interlocutor tratado na segunda pessoa, some de seu copo, tomado de ânsias, o poeta convoca mais uma vez a diligência dos sentidos no ato de sorvê-lo:

Esvazio outras taças: do ambarino

E áureo, ao violáceo e quase purpurino,

E então é que te sinto no meu sangue,

Em lume transmudado e em verso ardente.

Logo convoca outros poetas também sensualmente aparentados, os persas Hafiz e Omar Kháyyám, para abonar estas instâncias sensoriais, e invoca "a saudade aromal" que os faz presentes, em poeira de rosa machucada, enquanto mergulha nas inebriações proporcionadas pelo vinho tinto, que ressurge "no clarão das madrugadas/ e no riso escarlate das amadas". No terceiro poema, já este de propósito intitulado "De Kháyyám", em nova evocação sensual, ponderativo, o poeta aconselha ao irmão gêmeo: Ergue a taça onde ambarino vinho/ Dar-te-á o segredo da divina tarde.

 Partidário confesso de um hedonismo que, no plano diuturno da vida, expunha tonalidades quase monásticas, é na exaltação do vinho que Godofredo Filho transmite um senso de civilização que irá desembocar na poesia, relacionando o que é próprio da fria inteligência, no aval ao comedimento, com o lirismo que propaga satisfação e bom gosto.

Ou então, a sensação de fartura e de onírica e sensual embriaguez, nesta passagem de um hedonismo lapidar, escrita em 20.04.1962, uma Sexta-feira da Paixão, já antes em parte citada:

Mas que vinho sedoso estou bebendo agora, de uma colheita de fama, um vinho cor de ouro antigo, criado, envelhecido e engarrafado nas Bodegas Rioja Santiago - Haro - España! Esse néctar, sim, me levará logo mais ao reino onde "tout n´est qu´ordre et beauté, luxe calme et volupté", numa lenta viagem que começo a empreender, a mais amorável deste pobre mundo, com próximas paradas no vatapá de camarão e numa ardente moqueca de traíras do Rio Pojuca. Para sorver sumo de tal classe é necessário, antes de tudo, solidão: para degustá-lo com fervor, consubstanciá-lo em êxtase, traduzir seu gosto em lassidão de pálpebras descendo ao carinho das mãos azuis do sono.

Desta forma, chega-nos em 1971 a plaqueta com os Sete Sonetos do Vinho, que logo obtém recepção laudatória dos admiradores, inclusive neófitos na matéria, como eu. Perguntaram-lhe, na época, qual dos vinhos que cantara nesses sonetos, respondendo às exigências de seu sabor, mais lhe fazia bem à alma. Respondeu convicto, optando justamente pelo primeiro da série: "O Porto, por ser ele verdadeiramente um vinho solar". No entanto, que eu saiba, não a este, mas ao quarto da série, o Vinho de Jerez, é que o poeta dedicará um erudito ensaio carregado de finas observações, exaltando as suas "virtudes cardeais". 

Quando do lançamento desses sonetos vínicos, Wilson Lins saudou Godofredo Filho, dedicando-lhe mais de uma crônica. Numa delas, descrevia-o como sobra de um passado baiano gentil e sentimental, de trinta anos antes, em que os vinhos "tinham consumo franco, diário, sendo o do Porto o de maior prestígio, o que estava sempre à mão", diferente de uma época, a que se estava vivendo então (não muito diversa da atual, digo), "em que a maioria prefere a bárbara beberagem escocesa", o uísque.   

E, pintava um cenário de nostalgia e urbanidade, que, encoberto por uma penugem de lamúrias, se perdera nos meandros de um passado gárrulo, pelo qual desenvoltamente, seletivo e civilizado, transitara o poeta, quando jovem, a testemunhar:

O baiano daquela época sabia distinguir um espesso e voluptuoso vinho espanhol, de um leve e vindicativo vinho francês, delicado, mas traiçoeiro, que, depois de se sentir na boca, subia rápido à cabeça. Os italianos eram generosos, aqueciam o coração, deixavam a língua forra. Eram os vinhos preferidos pelos comemorativos tribunos da terra. Os do Reno apareciam de raro em raro, mas ainda assim eram apreciados pelos que tinham de feminino. Dispunham, porém, de lugar muito especial na preferência do baiano, os honrados vinhos portugueses, nunca engarrafados, protegidos das mudanças de temperatura e da excessiva luz solar em barris apropriados, os velhos quintos guardados na sombra das adegas quase úmidas. Dentre eles, sobressaíam os maduros, que, por não serem os mais aconselháveis aos rigores dos trópicos, eram reservados para os dias frios.

 

Comentarei adiante os sete sonetos do vinho, de Godofredo Filho, os quais o crítico literário Hélio Pólvora, certa feita, em comentário, definiu como “talvez o ponto mais alto de sua poesia”, esta, em sua ótica, em face de tanto alumbramento e cristalizações, “presa pela imagística ao sensualismo ibérico”, e também vinhos provindos de célebres vinhedos e da laboriosa vinicultura lírica deste saudoso poeta baiano.

No "Soneto do Vinho do Porto", desfraldam-se de entrada, logo no primeiro quarteto, todas as sugestões da lavra sensível do poeta, quando os sentidos comparecem à função, orquestrados e em uníssono, como que atendendo, honestos e aguerridos, a uma olímpica convocação. E, num encadeamento de eficaz adjutório, alinham-se a visão e a audição, seguidos do tato e do gosto que se emparelham, como que irmanados, para abrir caminho ao olfato, fechando-se a liça com a presença do gustativo. E, açulados todos em ação, ei-los operosos e febris, na voz do poeta:

Fruto em verde ou de ígneo e azul, tocado

da música da alva. Ó tessitura

de esférico sabor, lúdico aroma

de pomo etéreo. Os beijos que não são.

Depois, no segundo quarteto, o vinho é "travo e mel" de "conúbio vegetal", em "liquefeito olhar das feras bravas". Nos tercetos, retornam os cinco sentidos, em ciranda de linguagem, pela sugestão líquida do vinho. E assim "a fulva luz" se transforma "em sumo e veludoso gosto" e, tornado pedra de desejo, o vinho do Porto "sabe a amor sem fim", e ao influxo do pôr-do-sol derrama-se em "ocíduo/ clarão que incide às tardes sobre o Douro". Desta forma, o triunfo dos sentidos interdita o poema à invasão das abstrações imagéticas.

 

Antes de sorver o segundo poema, "Soneto do Vinho Moscatel", convém evocar o que o poeta, amante confesso dos vinhos generosos, escreve em seu Diário, em 21.01.1945, um domingo:

Descanso total. Delicioso e farto almoço, com abundante e generoso vinho. Sesta. A negra cabeleira da Amada propicia-me o prazer do sono.

Não há melhor configuração do luxo de existir, em nonchalance, em spleen, dignos de Baudelaire. O soneto é uma homenagem ao precioso e quase sempre raro vinho generoso de Favaios, nobre região vinícola de Portugal (o nome deriva da corruptela do topônimo Flavius, antiga povoação romana). Diz-se desse Moscatel que algumas de suas safras se tornam indisponíveis no mercado, tal a avidez e veneração dos que o elegem, com todo o estoque vendido à porta da Adega Cooperativa de Favaios que o produz à margem do Rio Douro.

"Bonita cor, atraente, como que a meio caminho entre os tons acobreados e o âmbar, de intenso aroma a mel". Colhi este testemunho em um de seus apreciadores, Rui Falcão, após a libação do líquido que uma dessas invulgares garrafas, já com 28 anos, conservava, vendo também nele descortinarem-se "aroma a frutos secos, casca de laranja e canela".

Esse generoso de Favaios, exalta Godofredo Filho, no soneto, "é vinho de ferver o nosso tino / ou de exsurgir alguém de seus desmaios", juízo que se impôs após o "gosto exato" obtido do cálice incendiar-lhe os sentidos, oferecendo-lhe o "mais adamantino / conceito de sabor, no superfino / amor de amar seu corpo em outros Maios", enquanto perseveram "o aroma, a cor, a luz do sol a pino". Mas, quando "o fulgor serena, a mansidão / dulcíflua caricia filiformes papilas rubras". (As "papilas sábias", a que Fernando da Rocha Peres se refere, num poema recente em homenagem à memória do amigo). Aqui o visual, o gosto e o tato transitam lestos, para confinar-se no último terceto, em diálogo com o próprio vinho:

Contigo, o céu mais perto; a lassidão

azul do sono; e um beijo, que não mente,

sobre os lábios da tarde, ardentemente.

 

O terceiro poema, "Soneto do Vinho da Madeira", celebra uma das preferências cimeiras de Godofredo Filho, em cujo Diário comparece com qualificativos de transcendência, como neste registro de 22.02.1966:

Bebo um velho Madeira, dos que sabem fabulosamente ampliar os longes, distendendo além dos limites verossímeis a linha do horizonte. Em mim, pelo menos, o prazer do vinho não acaba no vinho.

Neste soneto, entre todos o que mais de perto me toca, pelo sentimento de ultrapassagem da vida que transmite, a gratidão pelo privilégio de sorvê-lo se introduz por um diálogo travado entre a visão, o tato e o aroma:

O olhar castanho e morno das panteras

tens às vezes na cor. Mas entontece  

é teu perfume: a ronda de quimeras

voltando a meu caminho que escurece.

 E prossegue a mesma conversação sensorial, já agora com "esferas/ de ébrio torpor no céu" e "fluidez enorme", que empalidece o ar, para então chamar à cena o gustativo, que transporta um símbolo de humanidade nos dois tercetos, impelido pelas "chípreas uvas roxas de onde o mosto/ espúmeo flui"... "de sumarento e sazonado gosto", até a total sublimação realçada pela rima proparoxítona:

Derramas-te em meus lábios como um cântico

de saudade da vida (e de esperança),

vinho de lava ardente e vento atlântico.

Asseguram essa façanha os poderes de um vinho generoso oriundo das encostas do lado sul da Ilha da Madeira, cujo requinte tem posto singular na história da cultura, ao ponto de damas de cortes européias terem-no usado como perfume, ou ser eternizado por Shakespeare, numa fala de Falstaaf, na peça Henrique IV, que o fez vender a alma ao Diabo em troca de um pedaço de capão frio e um copo desse venerado vinho, definido pelos enólogos como suave, doce e muito aromático, a deixar na língua um travo sedutoramente amargo, e sobre o qual o escritor Gaspar Frutuoso escrevia, secundo consta, em 1590: "é o melhor que se acha no universo e se leva para a Índia e outras partes do mundo".

A alusão no poema às "chípreas uvas roxas" decorre de ser esse vinho produzido com uvas da casta Malvazia, cujas sementes foram trazidas, em 1444, da Ilha de Creta, 25 anos depois de descoberta a Ilha da Madeira. 

Visão e tato também ocupam lugar de destaque no poema seguinte, "Soneto do Vinho de Jerez". Tendo-o como um "mistério de Espanha", reserva de hedonismo "magicamente perturbador", o poeta define poeticamente essa requintada bebida originária de Jerez de La Frontera como um "ócio verde, sem fim", numa contextura vespertina que toma a "forma oblonga/ que o sumo acaricia", cujo "herodiano palor/ transcende", anoitecendo aos poucos. Logo se ergue a imagem que o sabor libera, no segundo quarteto: "Da serrania a fímbria repassada/ é o violáceo contido nessa curva/ de translúcidos bordos", por onde segue esquivo o supremo líquido. Mas, pela intervenção já do aroma e do gosto, logo se impregna "do cautério do chão", do "olor de mirto", em "cal de espuma", até a hipérbole de parecer um rio (no caso o Tajo, o Tejo, em território espanhol) "na garganta refluindo". E, finalmente, o inebriado descortino do sabor:

Como vens, Palo amargo, sobre a língua

ressequida no espanto e sangue em jorro

de um boi de sombra enorme sobre a areia.

 

Sonorizando e enobrecendo o decassílabo, "Palo amargo" alude a Palomino Fino, uma das castas com que se fabricam este generoso de prestígio, às vezes muito seco, em ouro pálido, cuja gradação alcoólica varia de 15 a 20 graus. As outras uvas são Pedro Ximénez e Moscatel. No ensaio que escreveu sobre "o velho vinho que tanto sabe dos segredos deste mundo", proclama Godofredo que, "de intransferível privilégio da gleba andaluza e da sabedoria do homem que a lavrou, sabedoria casada à arte insigne dos vinhateiros, originou-se esse divino mosto fermentado que alimenta e alegra o coração dos homens", o glorioso de Jerez. E, entusiasta, descreve-o, em algumas de suas apuradas formas:

 "Vinho para todas as horas ou somente das grandes horas, ei-lo  tremendo no cristal oblongo em que o prende o tormento de nosso amor: Fino, Amontillado, Oloroso, Dulce, Palo Cortado, que sabemos de tantos nomes e tão nobres cepas que o fundamentam, sem olvidar a de Pedro Ximénez, que deu volta ao globo, em fama e glória".    

A referência a Herodes Antipas (22 a.C. - 39 d. C., tetrarca da Galiléia, obediente ao poder de Roma, diante de quem Jesus compareceu durante seu processo), neste soneto, embutida no adjetivo herodiano, remete à sensualidade de Salomé, dois personagens remotos da mitologia bíblica, a cuja simbologia o poeta recorre com certa familiaridade para realçar um momento de prazer intenso, como se confirma nesta passagem de seu Diário, registrada em 19.02.1967:

Bebo vinho de Israel: vinho tinto, doce e forte, dos vinhedos de Richon le Zion, talvez aquele mesmo que incendiou o coração de Herodes, quando, na festa de Maqueros, prometeu a Salomé, em troca de uma dança, metade de seu  reino. A quem prometeria eu, depois deste vinho, todos os vales e cidade de meu longínquo, obscuro e ignorado reino?.

Esse turismo culto e sensorial recusa-se a mudar de clima, quando o poeta, afanoso, decide retomar o cálido azul do Mar Mediterrâneo, até bordejar o sul da Espanha e aportar às costas da sempre reverenciada Andaluzia, decantada em versos transparentes:

 Guadalquivir de aromas, dentre o liso

das paredes polidas do gargalo,

foges do bojo que te ensombra, ó vinho

do horizonte da música e de Málaga.

No "Soneto do Vinho de Málaga", este cristalino quarteto, com que se inicia, introduz no cenário, encadeadas, sugestões aromáticas, visuais e sonoras, a que se juntam as gustativas, para que o poeta configure o dulçor "e a clave de sépia líquida", em que o vinho dormita, num horizonte festivo da Andaluzia.

Com ele, pretende homenagear um dos mais requintados vinhos de sobremesa da Costa do Sol, produzido a partir de um mosto concentrado e desidratado que, segundo os manuais, lhe confere densidade carmelizada, doçura intensa e cor escura. Entre os vinhos generosos, o de Málaga é um dos portentos da enogastronomia internacional, ao lado do Porto, do Madeira e do Moscatel de Setúbal. Godofredo literalmente o vê dotado das qualidades de "formulário/ do índice claro das consumações", é "palavra sem letras", conduzida pela flauta e a mágica de zíngaros, em clima de tardio romantismo.

Em solos vulcânicos, desde o século XVI, a Hungria Central cultiva um trio de castas viníferas (Furmint, Hárslevelü e Muscat) que lhe fornece uma bebida, próxima, para Godofredo, de "danubiano acorde", num dulçor que parece estancar o desejo "nas bordas do espanto", afogar lentamente "as pupilas do tédio", o mesmo generoso que Eça de Queirós chamou em "As Cidades e as Serras" de "rei dos vinhos e vinho dos reis".

O húngaro líquido, cantado no sexto poema da série, o "Soneto do Vinho de Tokay", potencialmente aromático e de grande bouquet, existe em várias modalidades, com diferentes graus de doçura, mas, segundo os entendidos, o melhor é o Tokay Essência, oriundo de colheitas de elevada qualidade e igual nível de dulçor. Na linhagem dos generosos, corresponde ao vinho do Porto. Ao sorver um legítimo Tokay, impelido por sensações visuais, gustativas e tácteis, o poeta confessa, sem meias-palavras e sem falso pudor, vislumbrar o ensejo de se perder "no vício sem remédio" que tem o "sabor de velutíneo beijo".

Sensualmente descritivo, o segundo quarteto arregimenta sonoridades, para compor, com o visual e o táctil, a sua sinfonia gustativa:

A vaga do silêncio agora cruzas

em placidez dourada. E eis que transbordas

do côncavo da voz das cornamusas

e já no poente purpurino acordas.

 

Encerra-se a série com o "Soneto do Vinho de Constança". Presumo que, a partir do título, em que o nome dele constante parece quase hieraticamente evocar um passado remoto de transgressão, nobreza e tragédia, este poema já por si constitui um desafio à imaginação. O enigma situa-se na escolha da palavra Constança e não Constantia, para nomear o vinho celebrado no soneto. É possível que o autor o tenha feito por força do sistema de rimas. Perguntaram certa feita a Godofredo quais desses sete decantados vinhos ele possuía em sua adega. Respondeu que todos, menos o vinho de Constança. E confessou que até ali (1971), de tão raro, apenas bebera duas vezes na vida desse vinho que teve grande voga no século XIX, lembrando que os heróis de Balzac com ele muitas vezes brindavam. A propósito, contou na ocasião uma saborosa e impudica história. Numa carta escrita a uma das damas de seu tempo, galante, dizia o barão de Cotegipe (João Maurício Wanderley, Bahia, 1815-Rio de Janeiro,1889, deputado e ministro do Império): "Sinhá, mando-lhe seis garrafinhas de Constança e vou comê-la ao jantar". Há uma variante desse episódio em que o galanteio de Cotegipe inscrevera-se num bilhete dirigido à bela jovem, a ela mandado sorrateiramente, ao crepúsculo de um almoço festivo.

A primeira impressão decorre de que Godofredo Filho tinha o Vinho de Constança no coração, o que se reflete na elocução lírica do poema. É o mais abstrato dos sete sonetos da série e, por isso, à primeira vista, induza o leitor a vê-lo como alusão a uma complexa história de amor. Eu próprio fico a indagar por que Godofredo, nele, não alude à célebre origem do nome do vinho. Pareceu-me impor-se um silêncio voluntário, por demais íntimo, o que me impeliu, de imediato, a supor que a sugestão do título se ligava à tragédia de Inês de Castro, tão decantada, inclusive por Camões em Os Lusíadas ("Estava linda Inês posta em sossego", diz lá o vate, no Canto III, 120). A espanhola Constança, nobre de Castela, casou-se em 1340 com dom Pedro, príncipe herdeiro, depois rei de Portugal, cuja cabeça surtou ante a rara beleza de outra mulher, Inês, dama de companhia da futura rainha. Amor à primeira vista, dom Pedro e Inês de Castro tornaram-se amantes e, dessa relação, tiveram quatro filhos.

O poeta entrelaça monemas e fonemas, como que fugindo do sensorial na caça ao espiritual, embriagando-se na "transcendência/ da palavra que extrema o pensamento/ e é cinza"..., para no final, arrolando nomes fluidos de mulheres (Lindinalva, Floralva, bruna Clúsia), explicitar numa parelha de versos o que antes fora metaforicamente "rosa e brilho esquivo de estrela", sem que ninguém lhe responda:

Ninguém. Mas, pela treva, tu me chamas

e eu te espero com vinho de Constança.

Após a morte de dona Constança, em 1345, a influência da bela Inês sobre dom Pedro desatou uma guerra de inveja e ciúmes na corte, que culminou com o seu assassinato a punhaladas, tramado e perpetrado, com o príncipe ausente numa excursão à caça. A fúria e a vingança de dom Pedro desabaram sobre os assassinos, tão logo subiu ao trono, em 1347, dois anos depois da morte de Inês de Castro. Matou os algozes de forma crudelíssima e logo mandou exumar a ossada da amante, obrigando em seguida no salão do trono a corte, inclusive a nobreza e o clero, que haviam condenado o romance, a ajoelhar-se diante do esqueleto a seu lado e a beijar-lhe os ossos da mão.

E por aí segui, admitindo que o nome constante do título aludia a esta pungente história de amor e ao indigitado vinho fabricado na Quinta de Dona Constança, hoje chamada Quinta das Lágrimas, por causa da triste história de Inês de Castro, induzido pela galante referência do último verso, talvez alusiva ao prestigioso tinto Pedro & Inês, sem perceber que a esse galope cognitivo se poderia impor um freio, sensatamente advindo de ponderações arguidas pelo professor, escritor e educador Edivaldo M. Boaventura, enólogo da estirpe do poeta, também seu amigo, centradas no conjunto de vinhos generosos que a série de sonetos conjugava. Para ele, o soneto alude ao Vinho de Constantia, fabricado na África do Sul, de tradição consagrada, produzido por vinícolas cuja história remonta ao século XVII, e de fama rubricada no século XIX por excelsos paladares como o de Napoleão Bonaparte (1765-1821), de Frederico, O Grande, e do chamado “rei burguês” da França, Luís Felipe de Orleans (1773-1850), mas também de mosto desfrutado por ícones da mais alta  literatura, como os franceses Charles Baudelaire (1821-1867) e Alexandre Dumas (1802-1870), e até pelo brasileiro José de Alencar (1829-1877), que o citou num folhetim intitulado A Viuvinha. Produzido em vinícolas situadas no Vale de Constância (África do Sul), e por isso o seu nome, suas tricentenárias garrafas de 500 ml hipnotizam preferências mundiais, hoje em duas matrizes Grood Constantia e Klein Constantia, mantendo-se o nome em latim. 

Se o desafio subsiste, então alea jacta est.

 Finalizo reproduzindo outra passagem do Diário desse infatigável hedonista, justamente a que, estando a esbaldar-se em São Cristóvão, Sergipe, escreve em 03.08.1946:

Jantar de possesso da gula: feijoada de carne de porco, moquecas de peixe e de ostras, cabrito assado no espeto, e duas garrafas de Collares da Viúva Gomes, branco e tinto. Depois, fumo, Porto, alegria insensata, e uma dança desenfreada no sítio... Já esplendia a manhã e cantavam os galos nos jiraus orvalhados, quando me arredei dos braços de G., de V., de M. S., e de tantas outras moreninhas com quem partilhei as horas incendiadas dessa noite, no rodopio das valsas românticas e dos foxes bulhentos...

Quem tiver fome e aceso paladar feche os olhos.

 

Bibliografia

Charles Baudelaire - As Flores do Mal, edição bilíngüe. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira; Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985. Notadamente, a parte intitulada Le Vin/O Vinho, com os poemas "L´âme du vin"; / "A alma do vinho"; "Le vin des chiffoniers"/ "O vinho dos trapeiros"; "Le vin de l´assassin "/ "O vinho do assassino"; "Le vin du solitaire"/ "O vinho do solitário"; "Le vin des amants"/ "O vinho dos amantes", p. 374 a 387)

Danio Braga e Celio Alzer - Tradição, conhecimento e prática dos Vinhos; Rio de Janeiro: José Olympio Editora/Associação Brasileira de Somelliers, 2003.

Florisvaldo Mattos - Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa. Salvador: Edições Cidade da Bahia, 2004 (no prelo).

Fundação Getúlio Vargas, Instituto de Documentação - Dicionário de Ciências Sociais. Coordenador-Geral: Benedicto Silva. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1986.

Gérard Debuigne - Larousse des Vins. Paris: Librairie Larousse, 1970.

Godofredo Filho - Irmã Poesia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Salvador: Secretaria de Estado da Educação e Cultura da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 1986.

____________  - Diário de Godofredo Filho - Salvador: EDUFBA; Cento de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia. Organização de Fernando da Rocha Peres e Vera Rollemberg, 2007. O texto memorialístico de GF cobre um período de quarenta anos (1942-1982).

____________  -  "Mistério Jerezano", ensaio. Jornal da Bahia, 1971.

Jaime Junqueira Ayres - Sete sonetos do vinho, crônica. Salvador: Tribuna da Bahia, 20.07.1971.

Joseph Jobé, org. - El Gran Libro del Vino. Tradução de Eladio Asensio Villa. Barcelona, Espanha: Editorial Blume, 1975.

Pedro Lyra - "Um hedonismo instintivista"; ensaio introdutório de Melhores Poemas de Raul de Leoni. São Paulo: Global Editora, 2002.

Saul Galvão - Guia dos Vinhos Tintos & Brancos. São Paulo: Editora Códex, 2004.

Wilson Lins - Os vinhos do Poeta, crônica. Salvador: A Tarde, 20.07.1971.

 _________ - Vinhos e comendadores, crônica. A Tarde, 21.08.1971.

Zitelmann de Oliva et alii - "Canção de amor e vinho de Godofredo Filho". Entrevista. Salvador: Tribuna da Bahia - Caderno 3, 17 de julho de 1971 (além de Oliva, participaram como entrevistadores ainda: Jaime Junqueira Ayres, Carlos Eduardo da Rocha e Bisa Junqueira Ayres).

________________________

 Texto composto e revisto, a partir de palestra pronunciada na ALB, em 28/04/2004. Acompanham essa publicação os Sete Sonetos do Vinho, de Godofredo Filho, e o poema Godofredo, a ele dedicado pelo autor, escrito em 1992.

 

 

SETE SONETOS DO VINHO

            (1971)

 

            SONETO DO VINHO DO PORTO

 

Fruto em verde ou de ígneo e azul, tocado

da música da alva. Ó tessitura

de esférico sabor, lúdico aroma

de pomo etéreo. Os beijos que não são.

 

 

Desliza em rota insone. E eu te procuro,

ó domador do tédio. E, travo de mel,

e teu conúbio vegetal ressumbram

no liquefeito olhar das feras bravas.

 

Que do xisto azumbrado a fulva luz

tornada em sumo e veludoso gosto

por sobre a calcedônia do desejo.

 

Vinho que sabe a amor sem vim, ocíduo

clarão que incide às tardes sobre o Douro,

ou de Andrômeda o riso e o de Canopo.

 

            SONETO DO VINHO MOSCATEL

 

Incende-se-me o cálice ao Favaios.

Ó gosto exato. Ó mais adamantino

conceito de sabor, no superfino

amor de amar seu corpo em outros maios.

 

No entanto, só dezembro em Favaios:

o aroma, a cor, a luz do sol a pino.

É vinho de ferver o nosso tino

ou de exsurgir alguém de seus desmaios.

 

Mas o fulgor serena: a mansidão

dulcíflua caricia filiformes

papilas rubras e as caliciformes.

 

Contigo, o céu mais perto; a lassidão

azul do sono; e um beijo, que não mente,

sobre os lábios da tarde, ardentemente.

 

            SONETO DO VINHO DA MADEIRA

 

O olhar castanho e morno das panteras

tens às vezes na cor. Mas entontece

é teu perfume: a ronda de quimeras

voltando a meu caminho que escurece.

 

Ao meu caminho que escurece... Esferas

de ébrio torpor no céu que agora desce

sobre a fluidez enorme do que eras

no chamalote do ar, que empalidece.

 

Das chípreas uvas roxas e onde o mosto

espúmeo flui, e a perfeição alcança,

de sumarento e sazonado gosto,

 

Derramas-te em meus lábios como um cântico

de saudade da vida (e de esperança),

vinho de lava ardente e vento atlântico.

 

            SONETO DO VINHO DE JEREZ

 

Ócio verde, sem fim. A contextura

de abril nas tardes. E essa forma oblonga

que o sumo acaricia. Herodiano

palor transcende, que anoitece aos poucos.

 

Da serrania a fímbria repassada

é o violáceo contido nessa curva

de translúcidos bordos (dúctil linha

imaginária de um percurso esquivo).

 

Do cautério do chão torres magoadas,

e mirto, e cal de muros sobre as pedras,

ó Tajo na garganta refluindo,

 

Como vens, Palo amargo, sobre a língua

Ressequida no espanto e o sangue em jorro

De um boi de sombra enorme sobra a areia.

 

            SONETO DO VINHO DE MÁLAGA

 

Guadalquivir de aromas, dentre o liso

das paredes polidas do gargalo,

foges do bojo que te ensombra, ó vinho

do horizonte da música e de Málaga.

 

Queres meu sangue. E as tranças da cigana

como flabelos, e a palavra exata

que configure teu dulçor e a clave

de sépia líquida em que te adormentas.

 

Zimbro, não. Mas de zíngaros ainda

a flauta e a mágica. E esse formulário

do índice claro das consumações.

 

O reverso do tempo consumido,

a palavra sem letras e o conóculo

que herdei do espólio em chamas de Espronceda.

 

            SONETO DO VINHO DE TOKAY

 

Do veio das palavras inconclusas

e do desejo que estancou nas bordas

do espanto, ó dança estática das musas,

de um quinteto parado sobre as cordas...

 

A vaga do silêncio agora cruzas

em placidez dourada. E eis que transbordas

do côncavo da voz das cornamusas

e já no poente purpurino acordas.

 

Esse prisma de flava cor e o ensejo

de me perder no vício sem remédio

de teu sabor de velutíneo beijo,

 

Ó danubiano acorde (e o mais pungente)

de seda e ciúme... E as pupilas do tédio

que em teu dulçor afogo lentamente.

 

            SONETO DO VINHO DE CONSTANÇA

 

O limite, vencido. A transcendência

da palavra que extrema o pensamento

e é cinza; fora flama, solta chama

que à tarde azul tornasse, e ela, só, dança

 

Sobre a raiz absconsa. Que monemas

ou transidos fonemas se entrelaçam

no liso chão da imagem revivida

em rubras helicônias? Dói que alcança

 

O que emerge entre a rosa e o brilho esquivo

de estrela que anos-luz de poeira rola,

tênue, fugace, sobre a relva mansa.

 

Lindinalva, Floralva, bruna Clúsia?

Ninguém. Mas, pela treva, tu me chamas

e eu te espero com vinho de Constança.

 


LADEIRA DA MISERICÓRDIA

 

Godofredo Filho

 

É ladeira sem princípio

ou por princípio sem fim.

È ladeira que começa

onde eu quisera acabar.

 

È ladeira da Bahia,

cruel ladeira perdida,

que por boca da ironia

se diz da Misericórdia.

 

É ladeira da Bahia.

 

Por onde a traçaram vai

ou de súbito não vai,

torcida sobre seu corpo,

virada quase ao contrário,

canyon por onde os alíseos

se precipitam silvando

na trança das urupemas.

 

Que de sobrados fantasmas,

varandas ermas de sonho,

arcos, muralhas de sombra, 

janelas, portais vazios,

molduras de pedra suja

sem apoio de mais nada,

com rios doidos de vento

saltando no etéreo golfo

do inútil azul das tardes!

 

Ó vós que passais, ouvi-me

a efêmera e monocórdia

canção da negra ladeira

que é da Misericórdia.

 

Misericórdia de quem?

Misericórdia por quê?

se eu só (quem lhe deu amor

obscuro mas imortal),

possa entender o desvairo,

a esconsa mágoa, o silêncio

que oprime seu sonho informe.

 

Ai, quero cantar-te agora,

na solidão desta hora

que não voltará no tempo

- sombra vã da eternidade,

cantar-te o jugo, o tormento

que faz que durmas de noite

com pálpebras descoladas,

o obsidente sofrimento

ue prendo na trama aérea

de meus versos incorpóreos.

 

Também quisera na glória

contigo sobreviver,

como hoje, no desespero,

te incorporas ao meu ser

pelo verbo conviver.

 

Ó inverossímil ladeira,

que foste o íngreme caminho

por onde outrora subiram,

coléricos e espantados,

tantos negros sofredores

sob o relho dos feitores,

índios bravos, curumins,

ao suave clarão dos hinos

de pastorais cor de aurora

que iam a dessedentar-se

nas fontes do teu perdão.

 

Onde vive o teu perdão?

 

Ouço-te as vozes perdidas,

ou que das festas dos muros,

de teus paredões enormes,

vão singrando o dorso esquivo

da maré de teu silêncio:

são vozes de missionários,

alaridos de corsários,

esporas de bandeirantes,

lanças longas, arcabuzes

vazando o crânio da treva,

gemidos de agonizantes

nos postigos do Hospital,

saudade daquelas donas

do Santo Recolhimento,

os olhos postos no mar;

 

vozes bruscas de ouvidores,

de capitães, de Doutores,

de Primazes sonolentos,

e de Vice-Reis odientos;

e também, no teu mistério

das horas de amor celeste,

procissões de virgens brancas

entre aromas de alecrim,

gargantilhas de aleluia

em cadeirinhas de arruar,

e o amor que ali teve um dia

um rei mago de Ajudá.

 

Misericórdia por quê?

se a alva escorre sem ver,

nem redimir os amantes

que dormem pelo abandono

dos mornos beijos viscosos

no mar dos lençóis desfeitos.

 

Misericórdia de quem?

se esmaga os rostos que dormem

ou sobre as pedras magoadas

eu piso gargantas súplices

de vozes que não escuto.

 

Ah, quantos sábados tristes

do amor estival das terdes

não rolei nas pedras lisas

de teu ardente convite,

buscando Lalu dormindo,

afagando Durvalina,

ou, na carne incandescida,

sentindo a pua dos ossos

do prenúncio do esqueleto

de Eva Maria Fernandes.

 

E quantas noites ungidas

de lua escorrendo insone

sobre os desvãos de teu leito,

não prendi minh´alma enferma

nos muros de teu silêncio,

e tangido ao torvo anseio

de segredos que não digo,

na madrugada morrente

varando portais desertos,

trepei teus jiraus de espanto!


Ah, descesse eu em tais noites

teu funicular de angústia,

sob o riso avermelhado

da gengiva das janelas,

e amargo olvido buscasse

nas ilhas do mar do vinho.

 

Ou então perquirindo o assombro

de horas tardas de vigília,

ouvisse teu longe canto

no cimo das turvas ilhas,

as ilhas do mar do vinho.

 

Onde andais, sombras fugidas

da angra de meu carinho?

Onde andais, sombras perdidas

Marfisa, Dalva, Marília?

 

E as outras mais? Onde estão,

de clorose e de carmim,

glicínias da noite ardente

despetaladas por mim?

 

Sila, Silu, Clementina,

Eurides nos braços de Elza,

Zezé com seu filho morto,

cantando a canção de Ofélia... 

 

Juracy longa e fragílima,

Que amor abrasou na fulva

nevrose de consunções

e Judith, a flor do ciúme

que a noite acendeu no espanto

das convulsões fesceninas, 

Judith que eu redimira

(ó alma, ó clarão da alma!)

 

Que no dezoito não vejo

na sombra o rosto de Stela,

nem Flaviana anoitece

na tarde de outra janela.

 

Onde andais sombras sumidas,

Floricéia negra e tantas

que nunca tiveram nome,

espuma das turvas ondas

do mar da dissolução?

 

Onde andais, sombras perdidas?

 

E tu, Leonor, pela cova?

Que tal isso lá, menina?

Melhor que nossa ladeira

com sulfa e penicilina?

 

No reino das águas frias,

quisera dormindo o rosto

de Dionéia Jesus Pires.

 

Dionéia, dá-me essa taça,

quero beber por teus olhos

no reino das águas frias.

 

Que vem do mar da ladeira,

entre ondas de urina e pedra,

borboleta comandando

o barco da perdição,

e eu, piloto dessa nave,

à doida rosa-dos-ventos

furando a bruma das saias

de Eva Maria Fernandes...

 

Ó Nauta que vais escota,

suspende a vela que é tarde,

ó Nauta, vais naufragar:

nos penedos desses peitos,

nos baixios desses púbis,

o barco vai se afundar.

 

Navegador solitário

dos óstios himenais,

não soçobres teu decoro

na fossa navicular.

 

Que longe o Porto dos Mastros,

onde alguém debalde espera

a nave que não virá!

 

Ó Nauta, que vai às ilhas

para esconder teu tormento,

não haverá nesses mares

a ilha do esquecimento?

 

Que longe o Porto dos Mastros

e o brando lençol macio

da praia do Bogari!

 

Por aqui só excrescências,

detritos amoniacais

e, em decúbito dorsal,

untada de mornas galas

para estranhos esponsais,

a noiva dos formicidas

com seu bilhete fatal.

 

Marise, Antônio sumiu.

Amália, a luz se apagou.

O riso daquela boca

o tintureiro lavou.

 

Escorraçado, esse canto

buscando a torta ladeira

na crina das bebedeiras,

é o canto de um marinheiro

que mares azuis trocara

pelo Biscaia de treva

das pedras desta ladeira.

É um canto de amor desfeito

contrapontando o silêncio

da língua dos enforcados

na trave de teu banheiro.

 

Ó Dionéia Jesus Pires

afogada na escureza

das ondas do mar sem fim,

também eu vou me afundando

nas ondas do mar do peito

de Eva Maria Fernandes.

 

Ladeira do meu tormento!

 

Fojo de animais bifrontes,

pobres cervos desgalhados

que João Batista apascenta

nos verdes quintais da encosta,

vagas enguias lustrosas

que o pesadelo da noite

distende no claro-escuro

do aquário lunar do sono...

 

Guiovaldo acende uma vela,

Rosa jogou-se à calçada: _

- “Meu lenço de seda branco,

meu pé de manjericão!”

 

 Ron Merino, bofetadas,

um punhal riscando a fundo

teu nome numa canção,

soluços, pragas, risadas,

misturando blues e sambas

das radiolas de aluguel

ao lento noturno rouco

de xaques-xaques e agês

se alando às trilhas longínquas

do Aché do Opô-Afonjá...

 

Ebó, dendê na farofa,

pimenta no arroz de Haussá.

 

Nossa Senhora do parto

tem olhos de conta verde

no rosto moreno estanho;

galos de alfazema e nuvem

com bicos de índigo vidro,

e as aéreas naves de âmbar,

partindo a meio o silêncio

das duas da madrugada.

 

Ladeira que já não subo,

mas que desço agora sem medo

da sombra que vai comigo.

 

Vereda isenta de arrimo,

caminho solto no tempo.

 

A lua deitou-se agora

no leito escuso da rua,

tomando a forma das coisas,

das janelas e das tranças

porque os convites obscenos

transmudasse em línguas brancas

segredando-me a ternura

de um conúbio sepulcral.

 

Hoje, és Padre Nóbrega

para o cartaz das esquinas,

mas foste acaso o caminho

de Mem de Sá, de Vieira,

de Gregório de Mattos Guerra,

comborça de capadócios,

amante de seresteiros,

Xisto da Bahia afagando

na garganta dos violões

modinhas de adormentar

o olhar que não tem mais pálpebras.

 

Foste rua de prosápia

e hoje és ladeira de negras,

de mulatas sifilíticas,

de soldados e de bêbedos,

rua de míseras putas

ou das sombras que entrevejo

cavalgando desabridos

ginetes de bruma errante.

 

Ó, esse amor ignora

doque eu só te dei, ó ladeira

de insone Misericórdia:

amor de carne, de sangue,

de saliva e beijos ácidos,

amor que sobe do fundo

dos pântanos seminais.

 

Sou eu quem te beija as pedras,

quem, ao pranto convolado,

se adensa no teu mistério;

quem prende à carne dos lábios

macerados de servícia

o amor que não sabe o nome,

e o traduz em luz aurora

de redenção impossível,

por te querer abrasada

nesse amanhã que demora

de alvorecer meu tormento,

ansiando-te violentada

da graça abissal do Cristo,

à flor da chama vermelha

tocando de irreal brancura.

 

E então és Misericórdia!

 

Ladeira da minha vida.

Ladeira do meu amor.


LAMENTO DA PERDIÇÃO DE ENONE



Godofredo Filho

 

 

Quero fugir e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
 


Se a noite ao menos pudesse
fazer com que me esquecesse
da fria luz que, no quarto,
sobre o teu corpo morria.
 


Oh gargantilhas de espanto
na esconsa perdida!
 


Se a noite ao menos pudesse,
apagar o riso insano
que deste para outros homens,
a esquimose de teu riso
na carne dos transeuntes.
 


Taça esgalga (negra rosa!)
taça esbelta onde anoitece
o vinho que me delira,
tormento,
lunar delícia
de tantas bocas viciadas
na polpa nutriz dos mundos.
 


Não dormias, que eu só sei
da luz verde que escorria
sobre os teus seios imersos
no mar moreno do peito.
Girafa que me alucina,
cobra, cobra,
cobra, cobra,
doida mula-sem-cabeça
batendo os cascos de vidro
no rosto do meu desejo...
 


Quero gritar e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.
 


Se a noite ao menos pudesse,
na sombra do mar do tempo,
perder o lume trigueiro,
mas tão frio, de teus olhos.
 


Na relva negra do púbis,
de teu púbis -- horto exíguo,
quisera pascer cuidados,
ternuras, canções de lua,
ou bem, anseios magoados
do riço mau das bromélias.
 


Quisera pascer cuidados...
ou esgueirado pelas bordas
do poço do mundo estéril,
fecundar óvulos mortos.
 


Enone,
a aurora surgia
das dobras de teu silêncio.
 


Vinho, aromas, luzes cruas,
e essas pupilas boiando
num charco azul de atropina.
 


Enone,
a aurora dançava
na festa dos teus cabelos.
 


Quero fugir e não posso.
Quero correr e me sinto
colado no chão da esquina.



DOIS SONÊTOS À PERDIÇÃO DE MARIANA


Godofredo Filho



I


Vaga, tênue lembrança de um perfume
de flor esguia, delicada e pura,
Mariana entre as frágeis, lindas rosas,
que à tarde o vento mau despetalava.

De vestido azul claro e de sandálias
recurvas, laço rubro nos cabelos,
recordo quando a via, ó enfermeira
silenciosa das fontes do jardim.

Do destino das coisas compungida,
o sinistro mistério aprofundando
da evanescente e efêmera beleza,

Mariana talvez que pressentisse
o mudo horror das rosas derradeiras
que em seu féretro branco morreriam.


II


Penso no amargo instante, ó alta Amada,
em que se apartarão, cheios de mágoa,
de mim teus negros olhos, rasos de água,
e essa ternura ingênua e delicada.

Que mais posso dizer? Nem se apagada
sempre, não hoje só, verei a frágua
a salamandra de teu sonho. Trago-a
dentro d´alma, já murcha e mal fanada,

a flor do afeto a que sorrimos ambos,
e a deixaste gelar neste abandono,
no limbo vítreo domais longo sono.

Embora ! O aroma dúlcido dos jambos
sentirei, que me lembra um céu perdido,
ó fruto verde, ó fruto proibido!


(Godofredo Filho, Irmã Poesia – Seleção de Poemas (1923-1986), pp. 245-257, 1987.    

  

GODOFREDO


Florisvaldo Mattos

 

Sentado na varanda do Infinito

Talvez deguste um vinho de Tokay

E lavre um poema, um pensamento, um rito;

Pelo que de espiral de sonho sai

Da taça, um verso, uma balada, um mito;

Nas alamedas por onde hoje vai

Frases de amor, porém jamais um grito.

 

Godofredo, oh, insigne Godofredo,

De paletó, chapéu e guarda-chuva,

Sob a copa de rútilo arvoredo,

Ninguém viu mais além do lábio o da uva

Límpido percurso e, logo após, quedo,

o sangue de um crepúsculo sem chuva.

Godofredo, oh, insigne Godofredo.

 

Ou por trás do ebúrneo fulgor da taça

Capturar, invisível chispa, um canto

De saudade da vida, além da massa

De sabores febris, mosto de espanto

Que nos leve à outra margem e, em nós, rechaça

A aspereza do luto, o tédio e o pranto,

Diferença entre o caçador e a caça.

 

Foi dito que ao fragor do tempo vence-o

A beleza de um arco retesado,

Ou quase; e, por mais que a palavra incense

O altar do destino, fica o legado

Que inscreveste na face do silêncio.

É o que nos basta – tu e teu passado;

Ajax golpeia cruel agosto, e vence-o.

 

(Salvador, 23.08.1992)

 

(Florisvaldo Mattos, A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior; Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado-COPENE, p. 37, 1996,).


GODÔ, O VELHO BRUXO


 Cid Seixas


No campo dos pentagramas 

sete fonemas sonoros 

proclamam em consonância  

a convocação da palavra. 

Sobre a clareza da folha, 

cada som tem um sentido;    

aqui o verso tem vida 

na pauta do seu dizer. 

É a transmutação dos metais   

em verbo cortante e preciso 

que o Velho Bruxo enleva

 no condão da sua pena. 

As vinhas estão florindo 

por entre os dedos do mágico 

que retira do chapéu 

os prazeres do sentido. 


CID SEIXAS - NOVENTA ANOS DO 

MODERNISMO NA FEIRA DE 

SANTANA DE GODOFREDO FILHO


Cid Seixas. E-book. Editora Universitária do Livro Digital, 2012.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

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