segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

De Márcio Catunda sobre Fernando Pessoa

 

    Fernando Pessoa, por Almada Negreiros. Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa


FERNANDO PESSOA NO ALTAR DA PALAVRA

Márcio Catunda

Dia 24 de novembro de 2023. Peguei um táxi e disse ao motorista que iria à Casa de Fernando Pessoa: Rua Coelho da Rocha, 18. O taxista não sabia o caminho. Brinquei: o Poeta esta à minha espera. Ele telefona para um colega e se informa do itinerário. Depois me pergunta se o Sr. Fernando Pessoa já fal’ceu, fal’ceu?
Sim, respondo eu, sem esnobar. Digo-lhe apenas que já faz tempo, e que o Senhor Poeta Fernando Pessoa é uma grande glória da Língua Portuguesa.
A autoestrada A-5 percorre um trecho, em que aparece, à esquerda, sobre o Viaduto Duarte Pacheco, o Aqueduto das Águas Livres, como um painel de janelas, feito com a arte de decorar a paisagem.
Derivamos, em direção ao Campo do Ourique, e logo chegamos.
Senti-me encantado ao regressar à Casa do Poeta, depois de tanto tempo. A visita começou, de cima para baixo, pelo terceiro andar, ao qual se chega de elevador. Ali se encontram informações sobre os heterônimos pessoanos. Painéis, com as qualificações dos heterônimos e os mapas astrais de cada um, revelam uma parte da genialidade do Poeta de imaginação plural, universal.
Álvaro de Campos, engenheiro naval, poeta sensacionalista. Ricardo Reis, médico, discípulo de Horácio: “Coroai-me de rosas e de folhas breves e basta”. Alberto Caeiro: o bucólico, semibudista, quiçá. Bernardo Soares: o desassossegado ajudante de guarda-livros, do Escritório Comercial da Rua dos Douradores, na Baixa.
No retrato, pintado por Almada Negreiros, Pessoa é mostrado com um bigode mínimo, o cigarro, o proverbial café e a Revista Orfeu, nr. 2.
Há vários esboços de rostos do Poeta, desenhados por Júlio Pomar. A biblioteca de Fernando Pessoa, repleta de muitas edições. A máquina de escrever, feita em 1919, que ele usava no Escritório da Moitinho d’Almeida Ltda, à qual prestava serviços (na Rua da Prata).
Há uma cópia da carta, em que Fernando Pessoa explica a Adolfo Casais Monteiro, em 1935, como nasceram Ricardo Reis e Alberto Caeiro (este para “fazer uma partida ao Sá Carneiro”). Ao escrever 30 e tantos poemas a fio, em êxtase (o Guardador de Rebanhos), Pessoa teve a sensação de haver concebido o seu mestre.
Surgiram-lhe outros: o oposto de Caeiro, Álvaro de Campos, com a Ode Triunfal, inicialmente.
Com método e imaginação, Pessoa fixou tudo em moldes de realidade.
No segundo andar está maior parte da Biblioteca: “Ler é sonhar pela mão de outrem”, escrito na parte. Há muitas edições em inglês, de todos os grandes bardos de língua inglesa; livros de Astrologia, Cabala, Teosofia, esoterismo em geral, História, Matemática, Filosofia, Biografias etc.
No primeiro andar está o principal: o dormitório, os óculos, uns cadernos e várias fotografias (em diversas idades). Um retrato, pintado por Adolfo Rodrigues Castañé, em 1912 (o Poeta aos 24 anos).
Várias fotos, desde menino, até à última, de 1935, tirada por Augusto Ferreira Gomes. Outra, com Augusto, na Baixa. Augusto, meu ancestral, jornalista, escritor e poeta.
Encostada à cama, vi a famosa arca, onde Fernando Pessoa guardava a maior parte de sua obra, com 30 mil folhas, que hoje se encontram na Biblioteca Nacional.
A cama de solteiro do Poeta. Edições da revista Orpheu, da qual fez parte o brasileiro Ronald de Carvalho. A decoração original: veem-se muitas folhas manuscritas, coladas ao teto.
Uma sonoridade atribui verossimilhança ao ambiente: barulhos de riscos de lápis, de máquina de escrever e outros.
O Poeta viveu nessa casa até novembro de 1935, de onde saiu para morrer no Hospital de São Luis dos Franceses, a 29 de novembro de 1935.
Tomei conhecimento, pelos funcionários da Casa, de que Dona Manuela Nogueira, ainda vive. Tem 98 anos. Esteve recentemente na Casa. Ela ainda conta histórias do seu tio.
Quando morei em Lisboa, tive o privilégio de assistir a uma palestra, na qual Dona Manuela revelou o fato de o seu tio ilustre haver-se inspirado na sobrinha, ao escrever o poema em que Álvaro de Campos menciona a “pequena suja” que comia chocolates.
Na livraria da Casa de Fernando Pessoa, comprei o livro de João Gaspar Simões, a respeito de Pessoa. Regressei, de ônibus, à Baixa.
Fernando Pessoa nasceu no quarto andar, do edifício número 4, do Largo de São Carlos, no dia 13 de junho de 1888. Foi batizado na Igreja dos Mártires, no dia 21 de junho de 1888, na capela do lado esquerdo de quem entra. Viveu cinco anos no apartamento do Largo de São Carlos, situado em frente ao Teatro Nacional de São Carlos.
O pai de Fernando Pessoa, Joaquim de Seabra Pessoa, adoeceu de tuberculose em 1893. A mãe, Maria Madalena Nogueira, mudou-se, com os dois filhos para a Rua de São Marçal. Depois da morte de seu pai, o Poeta não tardou a partir para a África do Sul, com sua mãe e o padrasto, João Miguel Rosa.
Ferando Pessoa voltou a Lisboa, em 1905, aos 16 anos, e habitou um quarto, de número 8, no Largo do Carmo.
Nos Cafés do Chiado, conheceu Mário de Sá Carneiro. Trabalhou como tradutor de cartas comerciais em diversos escritórios de firmas comerciais, situados na Rua do Ouro, na Rua Augusta, na Rua da Prata, na Rua da Assunção, entre outras. Almoçava num restaurante da Rua dos Douradoures, esquina com a Rua de Santa Justa.
Encontrava-se com Mário de Sá-Carneiro, de 1912 a 1915, intermitentemente, uma vez que, nesse período, Sá-Carneiro viajava e regressava, diversas vezes, a Paris. Eles frequentavam o Café Nicole, situado no Rossio, também bares e restaurantes do Chiado. Em 1915, Sá-Carneiro decidiu morar definitivamente em Paris e lá cometeu o suicídio, com apenas 25 anos.
De 1912 a 1916, Pessoa residiu, sucessivamente, nas ruas Passos Manuel, na casa de sua tia Anica (Ana Luiza Pinheiro Nogueira), Pascoal de Melo, D. Estefânia, Antero de Quental e Almirante Barroso. Esse foi o período de criação dos principais heterônimos.
Em 1920, mudou-se para a Rua Coelho da Rocha, no Campo do Ourique. Será sua morada definitiva, até 27 de novembro de 1935.
Fernando Pessoa tinha 16 anos, quando regressou de Durban a Lisboa. Vinha com o malogrado fito de matricular-se no Curso Superior de Letras. Abandonou-se à solidão visionária. Sob o luar da Graça ou de São Pedro de Alcântara, forjou a utopia mística do Quinto Império. Sá-Carneiro matou-se, em Paris. Mataram o Presidente Sidónio Pais na Estação do Rossio.
À beira-mágoa, sob a chuva oblíqua, restava a Pessoa o desdobrar-se em máscaras. Vigiado por um chefe de ideias estreitas, fez-se Alberto Caeiro, cidadão de província, panteísta, andarilho dos bosques de Sintra; tornou-se Álvaro de Campos, refugiado na metafísica do cotidiano; transformou-se em Ricardo Reis, horaciano, ante a mutação de tudo e a precariedade das percepções. Era um Fernando, entre pessoas, Cavaleiro monge a cismar no mar. Nascera para exegeta de sua instabilidade. Encheu a velha arca de manuscritos.
Irmão do assombro e do êxtase, bebeu angústias na taça do poente. Alma Atlântica, exilada nos campos, pela virtude da palavra transfigurada, desperto, tudo viu além: incêndios no cataclismo da ânsia, sensações nas tardes ermas.
Perdido nos pícaros do segredo. Pórtico partido em delírios. Visionário do vazio e do tédio, adorador de sombras imperecíveis, íntimo vigilante dos abismos. Persona, a materialização do seu sonho. Eleito pelo mal da desventura. Cérebro da raça, no mais alto degrau da escada.

Quarto de Fernando Pessoa, Rua Coelho da Rocha, no Campo do Ourique, Lisboa

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Foi para a língua portuguesa que Fernando Pessoa escreveu ‘Mensagem’, único livro em português de sua autoria publicado em vida

Carlos Adriano
28jun2022 13h09 (01jul2022 07h35)

Fernando Pessoa
Mensagem
Org. Jerónimo Pizarro

Das quatro obras que Fernando Pessoa publicou em vida, três — plaquetas, redigidas e editadas pelo próprio autor — eram em inglês . A outra era Mensagem, coletânea escrita e publicada em português. Por vinte anos, Mensagem, com poemas escritos entre 1913 e 1934, foi uma das variantes de Portugal, título afinal recusado pouco antes de começar a ser vendido, em 1º de dezembro de 1934 — data fixada em relação à independência portuguesa do domínio espanhol (1580-1640) após a morte de D. Sebastião. Segundo o próprio Pessoa, nesses poemas “se resume a história passada, e a promessa da história futura, de Portugal”.


Mensagem, de Fernando Pessoa

A alteração do título deu-se por razão “patriótica e publicitária”: para o amigo Da Cunha Dias, “o nome da nossa pátria estava hoje prostituído a sapatos, como a hotéis a sua maior Dinastia”, que indagava ao poeta: “Quer V. pôr o título do seu livro em analogia com ‘portugalize os seus pés?’”. Fundada em 1897, A Portugal era a fábrica de calçados mais antiga do país, e o luxuoso Aviz Hotel (inaugurado em 1933) portava o nome da principal dinastia portuguesa. Na introdução à edição brasileira de Mensagem, lançada pela Todavia e da qual é organizador, Jerónimo Pizarro propõe que a troca de título pode ter razão anagramática, ao “cifrar versos de Virgílio (Eneida): ‘mens agitat molem’ (o espírito move a matéria) e ainda outras frases latinas, como ‘mens mega’ (alma imensa) e ‘mea gens’ (a minha raça)”.

O livro não deixa de ser “mensagem
numa garrafa” para os pósteros, um salve-se quem souber. Mensagem é um cadinho de pérolas da poesia de língua portuguesa por ser a única coleção de poemas em português organizada e publicada pelo poeta essencialmente diverso, disperso e desorganizado — sua refração em múltiplos heterônimos é apenas um dos reflexos da personalidade alheia a qualquer forma de completude. Assim, para além do valor intrínseco dos poemas, há o que poderia significar para a compreensão da obra um gesto de autoconsciência artística.

Embora o título possa aludir a equívocos, Mensagem é obra de um poeta, e não de um carteiro. Alguns dos melhores poemas de Pessoa estão no livro — como “Os Colombos”:

Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.

Muitos versos de Mensagem estão entre os mais re/conhecidos, como “O mito é o nada que é tudo” (“Ulisses”), “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena” (“Mar português”), “Não sei a hora, mas sei que há a hora” (“A última nau”), “Se ainda há vida ainda não é finda” (“Prece”) e “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro” (“Nevoeiro”).

Outros versos de Mensagem são típicos do Pessoa dos heterônimos, que são hits e moeda corrente nas citações poéticas, apesar da assombração das figuras heráldicas. Investido da função laudatória dos feitos de Portugal, mandando brasa em brasões mas “abundantemente embebido em simbolismo templário e rosicruciano” (segundo o próprio poeta), Pessoa evita que as loas patrióticas afoguem as naus da poesia. Avista-se o risco de momentos maçantes, que não empanam, porém, o lance fulgurante de textos concisos e lapidares — padrões leem-se em versos de “Padrão”: “o esforço é grande e o homem é pequeno”, “a alma é divina e a obra é imperfeita”, “o porto sempre por achar”. Em “Horizonte”, vê-se o verso-divisa à la Paul Klee: “O sonho é ver as formas invisíveis”.

Convicções ideológicas

Mensagem destina-se à época das gloriosas navegações marítimas e à história de Portugal antes e depois da Batalha de Alcácer-Quibir. O mofo do ufanismo não sufoca o lavor artístico. Lançado quase um ano exato antes da morte do autor (30 de novembro de 1935), o livro-barômetro espelha o oximoro político de Pessoa. Se este declamava que sua pátria era a língua portuguesa, Mensagem desfralda o apego a uma noção de nação, sem ilusões: “escrevo meu livro à beira-mágoa” (poema sem título). No estudo Pessoa, Portugal e o futuro (2014), Onésimo Teotónio Almeida trata das “convicções ideológicas” como fundamentos para a compreensão da “mundividência pessoana”.

Mensagem ganhou o Prêmio de Poesia Antero de Quental (nem “um prêmio de consolação” nem “um prêmio de segunda categoria”, adverte Pizarro), em concurso do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) do regime de Salazar, com o qual o poeta manteve relações ambíguas e conflituosas. Vítima da censura, escreveu em 1935 a anti-heroica “Elegia na sombra” (“Lenta, a raça esmorece, e a alegria/ É como uma memória de outrem. Passa/ Um vento frio na nossa nostalgia/ E a nostalgia touca a desgraça.”). Diretor de Deus e o diabo na terra do sol (1964), Glauber Rocha teria se enfurecido ao saber que seu herói Antônio Conselheiro foi banido de um esboço de Mensagem em 1928.

O livro ganhou um prêmio de poesia do regime de Salazar, com o qual o poeta manteve relações ambíguas e conflituosas

Em nota introdutória à sétima edição (Ática, 1959), David Mourão-Ferreira escreveu: 

“Verdadeira imagem de Portugal, com a carne da História sublimada na auréola do mito, a Mensagem constitui, nos tempos modernos, uma das raras possibilidades de sobrevivência da epopeia em verso. [...] A obra foi, todavia, ideada em conjunto, e as três partes em que ela se divide correspondem a um desenho assaz preciso: na primeira — Brasão —, ficam interpretados os seculares motivos dos campos, dos castelos, das quinas, da coroa e do timbre; na segunda — Mar Português —, apresenta-nos ele um políptico do período áureo das navegações portuguesas; por fim, na terceira — O Encoberto —, sabiamente entrelaça os temas do auge e do declínio, da derrota e da esperança”.

É a hora!

A exortação do último verso (“É a hora!”) do último poema (“Nevoeiro”) de Mensagem pode ser lida em visada extemporânea, válida e atual para qualquer momento de crise, como o que ora vivemos. Seria o caso de pensar por que no fim da vida (mesmo que ele não soubesse que morreria dali a um ano, apesar dos avisos de seu médico contra as birutas da birita) Pessoa resolveu publicar justamente esses poemas coligidos com tal teor nacionalista-espiritualista. Se Mensagem não é obra de correio, seria “aquela” thread de tuítes, um dos trending topics mais transados de como Pessoa talvez quisesse organizar parte de sua obra, posto que a maior parte dela ficou inacabada e inacabável?

O livro atualiza o retorno do recalcado mito de D. Sebastião com o poeta assumindo-se profeta de uma ordem sebastianista. Há uma necessidade de notas explicativas a Mensagem, diante da abundância de referências históricas a façanhas e figuras tópicas d’antanho, que evidentemente desnorteiam um leitor de hoje, abandonando-o ao desabono da ignorância e obrigando-o a recorrer ao oráculo Google. Em seu elucidativo posfácio, a professora Ida Alves menciona dois trabalhos brasileiros de 2014 relevantes para a compreensão do livro: a edição de Mensagem organizada por Cleonice Berardinelli, com notas e estudos, e Mensagem, de Pessoa: labirintos de um poema, de Clécio Quesado.

Pizarro afirma que Mensagem difere de Os lusíadas por “não ser assumido pela voz de um vate, mas por uma voz coral”, anunciando “o advento de um ‘super-’ ou ‘supra-Camões’ — termos criados por Pessoa em 1912”. E sugere: “Navegue-se neste livro como se se navegasse num navio, com uma ‘suspensão voluntária da descrença’ que permita aceitar como verdadeiras as figuras evocadas e ainda esse mito, tão bem definido por Pessoa, que ‘é o nada que é tudo’. Navegue-se neste livro não tanto à procura da verdade histórica como em busca de uma verdade poética, isto é, sem esquecer que é a obra de um poeta e de um poeta que tentou manter viva a crença numa grandeza vindoura, embora também conhecesse, e bem, o desengano e o desassossego”.

Grafia antiquada

Ao contrário do que dizem as duas notas introdutórias da edição portuguesa de 1979, com argumentos supostamente encampados pela edição brasileira da Todavia, talvez não seja o caso de ignorar a questão da ortografia original com que Pessoa escreveu Mensagem, ou, ao menos, talvez o seja de ponderar e sopesar. O erudito Pizarro, cujas criteriosas ecdótica e edição crítica com notas (Tinta-da-China, 2020) foram dispensadas pela Todavia, é um rigoroso defensor da conservação da grafia de origem. Mensagem é um poemário cujo tema chama uma língua arcaica e arcaizante. Portanto, não seria mera querela de antigos e modernos. Afinal, a pátria de Pessoa era a língua.

Em sua nota introdutória à sétima edição, Mourão-Ferreira explica: “Pela primeira vez se publica uma edição da Mensagem especialmente dedicada ao povo e à juventude de Portugal. Para isso, actualizou-se-lhe a ortografia, de modo a que não se erguessem, entre a obra e o leitor, supérfluos ou irritantes obstáculos. Neste livro [...], Fernando Pessoa optara deliberadamente por uma grafia já então antiquada, arcaica na acentuação, exuberante de consoantes dobradas, eriçada de agressivos yy e de outras letras constituindo um verdadeiro peso morto. Fê-lo com toda a consciência, e por motivos que lhe pareciam válidos, atento sobretudo ao que neste livro se prende ao passado, e de passado se nutre e se reclama. Toda a obra de Fernando Pessoa é, porém, comparável àquele deus bifronte (a que ele próprio algures se referiu), com uma face que olha o passado e outra que olha para o futuro”.

Em sua nota introdutória à 13ª edição (Ática, 1979), Mourão-Ferreira depõe que, com a atualização da ortografia, Mensagem foi adotado oficialmente para o ensino. “Compreende-se porquê: uma ortografia arcaizante, e em muitos casos arbitrária, apenas contribuiria para criar as maiores confusões no espírito de jovens em idade escolar, ou até de menos jovens semelhantemente desorientáveis.” E ainda argumentou que, apesar de existirem  “vozes discordantes”, animadas pelo “mais inesperado ideal de conservadorismo... ortográfico”, sob a justificativa de ser um “atentado à vontade” do autor, o próprio Pessoa “avalizou todas as possíveis, sob esse aspecto, atualizações dos seus escritos”. 

Se o objetivo seria a “popularização” (cauterizo a cautela do termo com o duplo pleonasmo das aspas e do itálico) ou o apelo de atender estudantes, uma aproximação mais didática à obra foi feita pelo artista baiano (radicado em Brasília) André Luiz Oliveira. Diretor dos filmes Meteorango Kid: herói intergalático (1969), Louco por cinema (1995) e O exu iluminado (2011), Oliveira lançou em 1986 o LP Mensagem, com doze músicas compostas por ele sobre os poemas de Pessoa. Em 2003, veio um CD com mais treze músicas. E, em 2015, o terceiro disco, com dezoito canções, então acondicionado numa caixa de madeira, com os outros dois CDs, dois DVDs, um caderno de imagens e o livro.

‘Mensagem’ tem um tema que chama uma língua arcaizante. Portanto, não seria mera querela de antigos e modernos 

O baú de 2015 traz os 44 poemas de Mensagem, musicados por Oliveira em diversos gêneros, nas vozes de intérpretes como Elizeth Cardoso, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Fagner, Milton Nascimento, Moraes Moreira, Ná Ozzetti, Ney Matogrosso, entre outros artistas brasileiros, portugueses e cabo-verdianos.

D. Sebastião

Nas polêmicas performances da canção “É proibido proibir”, em 1968, Caetano Veloso declamava “D. Sebastião”, poema de Mensagem:

Esperai! Cai no areal e na hora adversa 
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura,
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

Em depoimento num dos DVDs do baú Mensagem, Veloso, que compôs “Os argonautas” (1969; em que cita “navegar é preciso, viver não é preciso”) e “Língua” (1984; que recicla a famosa frase “minha pátria é minha língua”) disse: “Fernando Pessoa é a justificativa da existência da língua portuguesa. Foi para a língua portuguesa que ele escreveu Mensagem”. No poema “Dobrado o Assombro”, dedicado a Antônio Vieira, o “imperador da língua portuguesa”, Pessoa juntou-se a outro gênio da palavra, sob o signo de Walter Benjamin: “No imenso espaço seu de meditar,/ Constelado de forma e de visão”.

















 
Fernando Pessoa transitando por rua de Lisboa

https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2016/01/declaracoes-racistas-de-fernando-pessoa-reacendem-a-discussao-sobre-a-relacao-entre-os-artistas-e-suas-obras-4952826.html

Declarações racistas de 

FernandPessoa reacendem 

a discussão sobre a relação 

entre os artistas e suas obras


Texto racista escrito pelo poeta, reproduzido pelo 

escritor Antonio Carlos Secchin em sua página no 

Facebook, causou estarrecimento nas redes sociais


Causou estarrecimento em muita gente a descoberta de um texto racista escrito pelo poeta Fernando Pessoa (1888 - 1935). A discussão correu as redes sociais depois que o escritor Antonio Carlos Secchin reproduziu um trecho em sua página no Facebook. O estarrecimento certamente ficou por conta da contundência das frases e também porque Fernando Pessoa ocupa um imaginário quase etéreo e mítico dentro da cultura ocidental contemporânea. Para nós, hoje, é difícil aceitar que um artista do calibre do poeta português, que simplesmente reescreveu liricamente a empreitada lusitana, criou complexos heterônimos e se tornou um dos pilares da literatura e da língua portuguesa, fosse capaz de escrever palavras tão assombrosas.

Artista lança caixa com versões musicadas para poemas de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa tinha 28 anos quando escreveu que "a escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo." Anos mais tarde, aos 32 anos, Pessoa escreveu que "a escravidão é lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem escravos, e a outros a escravidão é dada." E ainda próximo de completar 40 anos as ideias racistas ainda persistiam: "Ninguém ainda provou que a abolição da escravatura fosse um bem social (...) quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs?"

Não bastasse isso, ainda encontramos em suas digressões opiniões estarrecedoras sobre as mulheres: "Em relação ao homem, o espírito feminino é mutilado e inferior. O verdadeiro pecado original, ingênito nos homens, é nascer de uma mulher". Os excertos podem ser conferidos no livro Fernando Pessoa: Uma (Quase) Biografia, do pesquisador pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, que procurou fazer uma pesquisa bastante minuciosa sobre a vida do poeta.

Gostar de um artista não significa aderir a suas ideias

O argumento mais recorrente quando autores de séculos passados são julgados por suas posturas preconceituosas e racistas é o de que eles apenas seguiram o pensamento da época e que, portanto, devemos ser cautelosos ao julgarmos tais posturas. No entanto, o argumento pode ser contestado quando levamos em consideração a existência de outros intelectuais contemporâneos a Fernando Pessoa, como Eça de Queiroz, Machado de Assis, Castro Alves, Joaquim Nabuco, que se opunham à escravidão. Certamente, a visão anacrônica é importante porque nos auxilia a compreender os processos ideológicos de uma determinada época. E talvez aí esteja o nó da questão: o de acreditarmos que compreender é o mesmo que absolver ou desculpar.

Não é de hoje que autores assumem posições ideológicas condenáveis. Jorge Luis Borges (1899 - 1986) apoiava declaradamente a ditadura argentina, Ezra Pound (1885 - 1972) e Heidegger  (1889 - 1976) foram simpatizantes do nazismo. No Brasil, temos o já famigerado caso de Monteiro Lobato (1882 - 1948) e sua exaltação à Ku Klux Klan. Embora haja uma diferença bastante acentuada entre Pessoa e Lobato, já que em Lobato é possível percebermos marcas explícitas de racismo dentro da própria produção literária, diferentemente de Pessoa em que suas ideias racistas e misóginas aparecem em textos de opinião.

"Mein Kampf", o pérfido livro de Hitler, cai em domínio público

O caso de Fernando Pessoa reacende a discussão sobre a relação entre os escritores e suas obras e nos faz refletir o quanto suas biografias podem nos influenciar como leitores. Mesmo considerado um grande gênio pela crítica, não se pode esquecer que Fernando Pessoa é fruto de um país colonialista, ou seja, ele está inserido na longa tradição lusitana de exploração colonial. Por volta de 1920, quando Portugal já lamentava sua decadência e as sucessivas perdas das colônias, Fernando Pessoa começa a produzir a complexa e hermética obra poética Mensagem, que no fundo é uma exaltação da epopeia portuguesa, a exaltação das suas conquistas e glórias. Não há como negar que os versos estão imbuídos de um nacionalismo místico. Fazer uma relação direta entre este sentimento ufanista do poeta e suas afirmações racistas e misóginas pode soar superficial, mas é passível de reflexão.  

É doloroso descobrir que um ícone literário tenha um lado tão sombrio. Portanto, o nosso desafio como leitores é o de sabermos separar a obra do autor, pois antes de ser poeta, Fernando é humano com toda a complexidade e contradição que ele carrega. A indignação e a decepção com Fernando Pessoa é válida e necessária porque nos aproxima dele e nos afasta daquela figura mítica e sobrenatural, ao mesmo tempo em que resgata a humanidade que há em nós ao refutarmos seus textos racistas e misóginos. A discussão foi posta, mas não percamos de vista a literatura. Guimarães Rosa já cantava essa pedra: "Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente."

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