quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

A POÉTICA DO SUICÍDIO EM SYLVIA PLATH

 


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A POÉTICA DO SUICÍDIO EM SYLVIA PLATH 


Ana Cecília Carvalho


SUMÁRIO 


PREFÁCIO - 15 

INTRODUÇÃO - 17 


PARTE 1


POÉTICA AUTOBIOGRÁFICA 

Capítulo 1 VIDA E OBRA - 31 

Capítulo 2 FAMA PÓSTUMA - 41

Capítulo 3 ESCRITA EM ESPIRAL - 55 

Capítulo 4. A INVENÇÃO DO EU - 67 

Capítulo 5. A REVELAÇÃO NO APAGAMENTO - 77 

Capítulo 6. A VERDADE DA FICÇÃO - 91 

Capítulo 7. ESCRITA COMO REMÉDIO OU VENENO? - 105 


PARTE 2 


POÉTICA DA TRADUÇÃO 


Capítulo 8. TRADUZIR A LÍNGUA EXILADA 125 

Capítulo 9. TRADUÇÃO DA MELANCOLIA 161 PARTE 3 POÉTICA DA MELANCOLIA 

Capítulo 10. LÍNGUA MELANCÓLICA 187 

Capítulo 11. ESCRITA E AFETO 217 

Capítulo 12. VOCALIDADE: POÉTICA DA VOZ 247 

Capítulo 13. “QUE CERIMÔNIA DE PALAVRAS PODERÁ REMENDAR A DESTRUIÇÃO?” 261 

Capítulo 14. POÉTICA DO SUICÍDIO: FRACASSO DA SUBLIMAÇÃO? 273 

NOTAS. 281 

REFERÊNCIAS. 305 

ANEXOS. 325 

1 - Lista dos poemas de Sylvia Plath, citados, traduzidos para o português. 325 

2 - Referências dos poemas traduzidos


2ª edição - Coordenação editorial Michel Gannam 

Direitos autorais - Anne Caroline Silva 

Assistência editorial - Eliane Sousa 

Coordenação de textos - Clarissa da Cunha Vieira Revisão e normalização bibliográfica - Maria do Carmo Leite Ribeiro 

Revisão de provas - Rodrigo Pires Paula e Rubens Silvério Martins 

Atualização ortográfica -Lira Córdova Coordenação gráfica - Fernando Freitas 

Projeto gráfico - Cássio Ribeiro Formatação e montagem de capa - Ederson Ciriaco 

Imagem da capa - Paul Klee, Abenteuer eines Fräuleins, 1922. 

Produção gráfica -Warren Marilac © 2003, A autora © 2003, Editora UFMG 2023 - 2. ed. 

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. 

C331p Carvalho, Ana Cecília. 

 A poética do suicídio em Sylvia Plath / Ana Cecília Carvalho. 2. ed. - Belo Horizonte: Editora UFMG, 2023. 335 p. (Origem) 

 Este livro é uma versão modificada de tese de doutorado em Literatura Comparada, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1998 com o título: “Escrita com fim, escrita sem fim: a poética do suicídio em Sylvia Plath” ISBN: 978-65-5858-103-1 1. Plath, Sylvia - Biografia. 

2. Escritoras americanas – Biografia. 

3. Literatura americana – Séc. XX. 

4. Psicanálise. 

5. Suicídio. I. Título. II. Série. CDD: 929 CDU: 920.72. Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390 

EDITORA UFMG 

Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br


A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro. Descobrir que só a escrita pode nos salvar. Marguerite Duras,  Escrever.

Só escrevo porque há uma voz dentro de mim que não se cala. Sylvia Plath, Letters home. 

A fúria entope a garganta e espalha veneno, mas assim que começo a escrever, ela se dissipa, fluindo através das figuras das letras: escrever como terapia? Sylvia Plath, The unabridged journals of Sylvia Plath. 

A escrita vai muito longe. Até se acabar. Marguerite Duras, Escrever.


NOTA À 2a.  EDIÇÃO 

Vinte anos se passaram desde a primeira edição deste livro, lançado em 2003 e então concebido como uma versão modificada de minha tese de doutorado em Literatura Comparada (linha de pesquisa: Literatura e Psicanálise), defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1998. Para lembrar os sessenta anos da morte de Sylvia Plath, esta nova edição, revista e atualizada, procura manter viva a sua obra e a sua voz. Desde o título, A poética do suicídio em Sylvia Plath, apresento um convite para pensarmos nos limites da escrita literária. Ao aceitar esse convite, o leitor será levado a suspender a idealização que costumamos fazer entre a criação literária e o alívio do sofrimento mental, pois nem tudo é júbilo nos caminhos que transformam esse sofrimento em texto poético e literário. Nesse caminho de mão dupla, na transformação entre vida e obra, existem aspectos que apontam para o que, neste ensaio, denomino de toxidez da escrita, fenômeno que se torna visível em Sylvia Plath, uma escritora que se matou em plena produção literária. É aqui que a psicanálise comparece, para responder às interpelações surgidas diante do autoextermínio e o enigma que ele propõe no contexto da função da escrita criativa.


PREFÁCIO 


Ana Cecília Carvalho é escritora e psicanalista e, como passageira de espaços heteróclitos, passa por litorais, fronteiras e confluências de coisas ou saberes de diversas ordens ou categorias díspares. Entretanto, o que pode sugerir uma impossibilidade torna-se um desafio que surge da experiência com a escrita. O termo experiência, que tem etimologicamente perigo em seu radical, sugere que só enfrentando o risco o intelectual cria novas saídas, por releituras, reinvenções, reinscrições. Este livro trata da escrita de Sylvia Plath, sem se reduzir a uma patografia, pois a autora trabalha no fio da letra, evitando soluções vindas de um raciocínio binário, produzido pela tentação do espelhamento, da analogia que supõe a obra como efeito imediato da vida, numa infindável proliferação de signos e de construções fantasmáticas. No fio da escrita, metonimicamente, Ana Cecília persegue o traço de Sylvia Plath em direção à morte — morte que foi a impossibilidade de estancar o jato de sangue que flui de uma ferida nunca cicatrizada, uma dor de existir que irrompe no ponto insuportável em que a letra exibe o fracasso de sustentar uma vida cujo traço essencial foi a melancolia. O que este livro revela é que a escrita não é sempre remédio, pois não barra de forma cabal as pulsões destrutivas e, entretanto, aquele que escreve pode fazer poesia até a morte, radicalizando a surpreendente intransitividade do ato poético. Enfrentar a vertente trágica da poesia permitiu a Ana Cecília Carvalho criar um estranho conceito, o de poética do suicídio, e, ao mesmo tempo, construir uma leitura em que não se deixou emaranhar pela fascinação narcísica da melancolia, não cedendo à atração medusina de um texto que aponta para águas sombrias sem, entretanto, perder sua eficácia poética. Se é possível falar em travessia da escrita, Ana Cecília fez passagens pelo texto de Plath em suas dimensões imaginária e simbólica, nunca o reduzindo a uma leitura totalizadora, mas, ao contrário, fazendo avançar um saber em aberto sobre a literatura no ponto mesmo em que pulsa a força da letra. Ruth Silviano Brandão INTRODUÇÃO Interpretar, assim como escrever, é abrir sentidos antes insuspeitados. Procede daí, dessa conjunção entre a interpretação e a escrita, a aproximação mutuamente fascinante entre a psicanálise e a literatura. Ambas florescem da mesma raiz que as caracteriza como desvendadoras privilegiadas das expressões originadas no solo inconsciente, e têm como aspecto mais notável o manifestar-se na linguagem, aferrando-se ao seu aspecto essencial, que é o de não ser unívoca, isto é, nunca dizer exatamente tudo. É nesse ponto de onde surge a interpretação — ponto de fragilidade e de força— que psicanálise e literatura se encontram, trabalhando em um terreno em que é impossível não se dizer e, ao mesmo tempo, em que não se pode tudo dizer. A escrita, tanto quanto a interpretação psicanalítica, parece nutrir-se desse impasse. É possível que venha daí a urgência inerente ao ato de escrever. Sua tirania e sua inevitabilidade são, muitas vezes, para o escritor, fenômenos inexplicáveis. Por que se escreve? Para que se escreve? A quem o escritor se dirige quando escreve? São perguntas que o escritor mal ousa se fazer, já que ninguém melhor do que ele sabe da perigosa esterilidade que elas contêm. O escrever parece brotar de uma necessidade inadiável, e são velhos conhecidos dos escritores os temores ligados à interrupção da escrita. “Coisa curiosa, um escritor refletiu Marguerite Duras em um de seus últimos textos no qual discorre sobre o ato de escrever.

1 - “ele é uma contradição absurda, pois escrever é também não falar. É se calar.” 

Duras parecia estar tocando no ponto de tensão próprio do trabalho literário: ponto de impasse e, portanto, de risco. E que risco poderia haver na criação literária? A pergunta não é descabida, sobretudo se nos voltarmos para a reflexão da própria Duras, para quem escrever é “uma forma de pensar, de raciocinar”. Para ela, essa é a função da escrita, na medida em que “permite ao escritor dizer para si mesmo que não é preciso se matar todos os dias, visto que é possível se matar a qualquer dia”.2 Se acatarmos a ponderação de Duras, não estaremos longe de formular a ideia de que existe algo no trabalho de criação que coloca o escritor diante de uma escolha terrível: escrever ou morrer — possibilidade surpreendente, pois indicadora da presença de forças destrutivas no centro do processo de criação. Nosso assombro diante dela torna-se maior quando nos defrontamos com a escrita de alguém que, diferentemente de Marguerite Duras — mas em meio a uma intensa produção criativa, justo no momento em que parecia ter encontrado sua identidade literária —, decidiu interromper a vida com um suicídio, encerrando, assim, a escrita. 

É o caso de Sylvia Plath, escritora americana que se asfixiou com gás em fevereiro de 1963, aos 30 anos, em Londres, onde morava. Com sua morte (ao lado de Virginia Woolf, que se matou por afogamento, em 1941, e Florbela Espanca, poeta portuguesa morta por ingestão de barbitúricos, em 1930), Sylvia Plath passou a ser incluída em um cânone sinistro de escritoras suicidas, segundo o qual criatividade e autoextermínio estão associados de modo enigmático. 

Ao longo do século XX, esse cânone não parou de crescer, também fazendo parte dele Anne Sexton, poeta americana, que se suicidou em 1974, Ana Cristina Cesar, escritora brasileira, que se matou em 1983, e Isabel Marie, psicanalista e escritora nascida na Espanha e radicada na França, que, em 1996, enforcou-se, pouco tempo depois de seu romance La bonne [A criada] ter sido indicado para a prestigiosa lista dos prêmios Goncourt, Femina e Medicis. Certamente não podemos articular do mesmo modo o suicídio de cada uma delas e suas obras tão variadas, pois, como parece evidente, suas vidas transcorreram em contextos históricos, sociais e culturais distintos, e suas problemáticas pessoais eram muito diferentes. Mas talvez fosse proveitoso pensar no tipo de envolvimento talvez existente entre a escrita e o suicídio. 

É impossível, portanto, não levar o suicídio dessas autoras em consideração na leitura dos seus textos. Contudo, um dos perigos, diante do parentesco estabelecido entre elas por causa de seus suicídios, é concluirmos equivocadamente que o fato de todas terem tido o mesmo destino trágico faria com que fossem apagadas as diferenças existentes entre seus textos. Não é minha intenção fazer uma comparação entre as muitas e diferentes construções textuais que essas autoras realizaram, de forma que algo como um perfil da autora suicida fosse traçado. Ainda que isso fosse feito, parece óbvio que as vozes, temas, formas e filiações assim comparadas seriam muito diversas, o que sem dúvida apenas evidenciaria a singularidade de cada uma em seus projetos literários. Isso não nos ajudaria a recolocar a questão do suicídio e sua relação com a escrita, pois, se essa associação existe, provavelmente nada nos autoriza a ligá-la extensivamente a todo o universo das escritoras suicidas. Mesmo assim, o enigma de seus suicídios persiste. 

O caminho que me pareceu mais profícuo foi o que rastreou, dentro do projeto literário de apenas uma delas (no caso, Sylvia Plath), aqueles elementos que testemunham, em sua concretude, as marcas das forças destrutivas que fizeram a autora calar-se repentinamente. São esses traços que exigem do leitor crítico um posicionamento, caso ele se anime a prosseguir em sua análise das autoras suicidas da contemporaneidade. Não obstante, qualquer abordagem que se faça ao texto de alguém que, como Sylvia Plath, matou-se em plena produção literária, dificilmente poderá evitar um curioso efeito de leitura: a impossível dissociação entre o fantasma da biografia da escritora (cujo suicídio funciona como uma presença inarredável) e a construção do texto. 

Parafraseando Freud, produz-se, assim, algo como se a sombra do suicídio da autora tivesse caído permanentemente sobre o texto, de maneira que o leitor se vê à procura dos anúncios desse destino trágico em meio às linhas que lê, campo no qual estariam inscritas as pegadas que, se seguidas, poderiam lhe mostrar o caminho que levou a escritora ao autoextermínio. Talvez não sem razão proliferaram durante algum tempo leituras que utilizavam o texto para compor um diagnóstico da personalidade do autor suicida. O equívoco desse tipo de leitura está em ver-se o texto como uma espécie de teste projetivo da mente supostamente doentia do autor, já que privilegia apenas o aspecto não literário (o suicídio) e lê o texto através dele. Assim sendo, acaba por negligenciar inteiramente todos os aspectos que compõem o complexo da construção textual. 

Por outro lado, provavelmente tentando escapar à fascinação paralisante que a escrita do autor suicida desperta, algumas leituras se voltaram para uma análise puramente formal, ignorando a importância de um elemento como o suicídio e seus antecedentes biográficos. Daí resultou uma leitura desvitalizada do texto, como se fosse possível ignorar a densidade afetiva que mobilizou a escrita e o sofrimento emocional que antecedeu o suicídio. Pode-se, porém, evitar essas dificuldades aparentemente insuperáveis recorrendo-se à mediação daquelas teorias que, privilegiando a enunciação, impedem o mergulho do leitor no imaginário especular do texto. Além disso, esse instrumental teórico não deixa de lado aspectos que ilustram de modo emblemático o intrincamento da vida do autor suicida e sua obra, uma vez que o suicídio parece colocar em questão, a um só tempo, a função, os limites e a eficácia da escrita, e a existência de aspectos mortíferos e destrutivos na criação literária. A questão é ver de que maneira vida e morte aparecem em uma escrita que, não deixando de ser autobiográfica, revela o elemento biográfico como anteparo e fonte, ao mesmo tempo em que testemunha a constante transformação desse mesmo elemento. Nesse sentido, sob a luz das noções freudianas que privilegiam a ideia do conflito pulsional e seus destinos, a escrita de Sylvia Plath parece exemplar, não apenas porque seu aspecto autobiográfico aponta para a indissociação entre vida, morte e obra, como também pela constante preocupação ali revelada a respeito da função e dos limites da escrita. Por mais de uma vez, Sylvia Plath escreveu sobre a faceta terapêutica da escrita. Deixou registrada, por exemplo, a convicção de que a escrita funcionava para ela como alimento, algo tão essencial que a fazia sentir-se plenamente realizada. Refletiu, ainda, sobre a reordenação e restauração do mundo por via da escrita, e seus diários estão repletos de passagens nas quais deixa evidente que considerava sua vida um texto que podia ser sempre reinventado e reescrito. 

Em uma afirmação na qual pareceu reposicionar-se diante dos pressupostos elementares do New Criticism, disse acreditar que o escritor deveria fazer uso de suas mais sofridas experiências, como a loucura e a tortura, mas que deveria transformá-las em texto com uma mente lúcida que desse uma forma a essas experiências. Em um poema escrito quatro dias antes de morrer, diria, porém, que “o jato de sangue é poesia” e “não há nada que o detenha”. Em um artigo sobre a morte de Sylvia Plath, Anne Sexton escreveu: “O suicídio é, afinal, o oposto do poema.” O problema, disse Sexton, é que os suicidas têm uma linguagem especial e, como carpinteiros, só querem saber quais ferramentas usar: nunca perguntam por que construir. Sexton, que se suicidaria nove anos depois de Sylvia Plath, relacionava ainda o precário equilíbrio do suicida a “alguma coisa não dita, o telefone fora do gancho, e o amor, seja lá o que for, uma infecção”.3 

É tentador pensar que Ana Cristina Cesar estabeleceu com Anne Sexton e com Sylvia Plath - de quem, convém lembrar, a escritora brasileira chegou a traduzir alguns poemas - uma espécie de interlocução, ao dizer em seu poema “Contagem regressiva”, escrito poucos meses antes de seu suicídio aos 31 anos: “Os poemas são para nós uma ferida.”4 Se é verdade que o suicídio do escritor parece colocar em questão a função da escrita, ao amarrar em um nó aparentemente indissociável a experiência vivida, a morte e a criação literária, é preciso reconhecer que existem limites no trabalho de transformação operado entre os vários registros de captação de uma experiência. É também por essa razão que a obra de Sylvia Plath presta-se a esse tipo de exame. Seu projeto literário incursionou pelos mais variados gêneros, dos diários à correspondência, do poema ao romance, do conto ao texto teatral e ao ensaio, em uma intertextualidade que problematiza de modo notável uma escrita do eu essencialmente ficcional que, reinventando-se, desestabiliza a identificação de referenciais. Além disso, em uma escrita na qual se encontra a multiplicação incessante do elemento ficcional ao longo de toda uma variedade de gêneros, perfila-se um limite que, ora Sylvia Plath busca ultrapassar, ora busca reencontrar. Esse limite aponta, de um lado, para a necessidade de reordenar, restaurar e reinventar o seu mundo interno ameaçado por um sentido que sempre escapa. Disso provêm as inúmeras possibilidades de “tradução” e representação simbólica que tornaram sua escrita possível. 

De outro lado, esse limite indica, também, que, ao escrever, Sylvia Plath arriscava-se a constantemente enfrentar a resistência que toda experiência interna oferece à significação. O impasse, aqui, sugere um embate insolúvel entre o impulso para dizer e o silêncio que parece existir no interior da linguagem, silêncio indicador da presença da morte. Se seguíssemos as pegadas deixadas pela representação da morte em seu texto, provavelmente veríamos que não serão diferentes das de outros autores (não suicidas) que também ousaram alcançar os limites da palavra, a fim de denunciar o real pela escritura. Não é esse, portanto, o caminho que segui aqui, já que meu interesse era examinar o diálogo que Sylvia Plath promoveu entre seus textos e a maneira como reescreveu sua vida, a fim de obter, nessa poética autobiográfica, os pontos de limite e de tensão de sua escrita. 

Procurei manter-me próxima do que Frieda Hughes apropriadamente sugere a todo aquele que se debruça sobre a obra de sua mãe: embora a escrita e a morte tenham feito de Sylvia Plath um ícone, ela só pode ser definida pelas palavras que deixou.5 Dois eixos estruturam este livro. Um deles privilegia a disposição afetiva que anima a escrita de Sylvia Plath, destacando-se nela um discurso da melancolia. Nada nesse objetivo nos autorizaria, contudo, a utilizar essa escrita para diagnosticar a autora como melancólica. A melancolia que em Sylvia Plath se tornou escrita está apoiada sobre as bordas de um vazio que é central na linguagem, embora em seus textos isso surja associado especificamente a certos significantes que deslizam para evocar a ressonância de perdas pessoais reais ou imaginadas. O outro eixo diz respeito ao intrincamento indissociável dos fios autobiográficos e textuais que sua escrita tece em uma obra onde o ficcional muitas vezes se faz passar pela realidade mais factual. Seu texto buscava reconstruir não uma história verídica, mas uma organização fantasmática. O exame realizado aqui, além de discutir os aspectos supostamente confessionais de sua escrita, privilegia, portanto, o drama de uma subjetividade que parece não existir em outro lugar que não seja o texto. 

O elemento que articula psicanálise e literatura neste trabalho é o exame da finalidade da escrita, tomando-se como base a escrita de Sylvia Plath para uma análise da sua dupla face de escrita terminável e escrita interminável. Nesse sentido, os operadores teóricos do recalcamento e da pulsão foram úteis, pois permitiram que se examinasse o caráter terminável da escrita em sua relação com o recalcamento, assim como sua faceta interminável, que aponta para a iminência do transbordamento pulsional. A escrita de Plath exibe o conflito entre forças construtivas e destrutivas agindo na cena da criação literária. Isso é o que permitiu o redimensionamento do conceito de sublimação, tão caro a uma certa tradição psicanalítica que insiste em vê-lo como aquele que descreve o “caminho feliz” para o sofrimento psíquico. 

O desenvolvimento desta pesquisa permitiu questionar essa opinião clássica, uma vez que a escrita e o destino trágico da poeta descrevem um movimento contrário. Em seus textos, além de não existirem limites rígidos entre a vida e a escrita, a autodestruição e o fracasso da sublimação se insinuam como possibilidades inevitáveis. Não se pode deixar de pensar que, afinal, Freud estava tocando num importante aspecto da criação literária e artística quando perguntou, diante dos aspectos prazerosos da sublimação, por que o sofrimento emocional do artista não era aliviado. Um breve rastreamento do destino literário de Sylvia Plath, desde sua morte, mostrará que sua obra nunca cessou de interessar aos pesquisadores e críticos literários, embora sua divulgação no Brasil ainda seja relativamente pequena. Sua fortuna crítica tem sido, na maior parte, permeada por uma ênfase biográfica que a distingue. 

É assim que, em meados de janeiro de 1998, rompendo um silêncio de mais de três décadas, durante as quais sistematicamente se recusou a conceder entrevistas sobre Sylvia Plath, aquele que foi seu marido, o poeta inglês Ted Hughes, (que viria a falecer em outubro de 1998) publicou o livro Birthday letters (traduzido para o português com o título Cartas de aniversário), reunião de 88 poemas nos quais relata sua vida com ela. Essa publicação imprevista redobrou consideravelmente o interesse da crítica pela vida e obra de Sylvia Plath, fazendo repetir um certo efeito de leitura que é velho conhecido dos estudiosos da escrita plathiana. Esse efeito, cuja oscilação pude sentir diversas vezes durante a realização desta pesquisa, resulta da poética autobiográfica que sustenta sua escrita. Diante dela, o leitor sente-se compelido a “tomar partido” da autora, em detrimento do texto. Assim sendo, é preciso um esforço redobrado, para se desprender do imaginário desse fenômeno, a fim de, ao contrário do que propôs recentemente uma crítica,6 não se arrepiar com o fantasma de Sylvia Plath, e sim com sua poesia. 

A maior parte das leituras do texto plathiano deixa de levar em consideração o fato de que, nessa poética autobiográfica, o eu que ali fala é uma invenção textual. Os exemplos selecionados do vasto universo da crítica literária dedicada à obra de Plath ressaltam, neste livro, o modo como refletem o registro do Imaginário de que são cativos, sobretudo porque a poética autobiográfica da autora levanta uma questão sobre as noções próprias do Imaginário, tais como a identificação, a fantasia e a realidade psíquica. Um aspecto importante aqui examinado é o limite representacional da escrita, uma vez que a poesia de Plath aponta para a indizibilidade no coração da linguagem, “lá onde se entrevê a morte da linguagem”.7 Se existe algo na sua escrita que alcança essa indizibilidade, ao mesmo tempo em que aponta para uma poética do suicídio, estará relacionado provavelmente a dois movimentos distintos. O primeiro movimento é caracterizado por um esforço de metaforização que, não estando de todo ausente em sua poesia, predomina sobretudo em sua escrita ficcional, diarística e epistolar. O segundo, metonímico por excelência, caminha para uma desmetaforização na linguagem e pode ser facilmente encontrado em sua poesia mais tardia, embora já esteja em um trabalho mais antigo, como “Poem for a birthday”, escrito em 1959. Esse segundo movimento coincide com seu suicídio e mostra o ponto de indizibilidade que prevalece na poesia da melancolia que Plath estava produzindo nos últimos meses de sua vida. 

As dificuldades que um leitor de língua portuguesa encontra ao ler a poesia de Sylvia Plath não são menores do que as encontradas por um leitor de língua inglesa. O aspecto “estrangeiro” de sua poesia foi aqui considerado tendo-se em vista que uma questão crucial era ligar o estilo singular da poeta a uma busca nostálgica por uma “terceira língua”, que assoma além da língua oficial adotada por seus pais. Nesse sentido, sua dificuldade em aprender a língua alemã de seus antepassados, a “obscena” língua alemã - tal como ela diria no famoso poema “Daddy” - foi examinada. Todos esses elementos serviram para ilustrar o impacto da língua do exílio e sua ressonância emocional em uma poética da tradução que parece caminhar para o indizível. Sua escrita foi, assim, considerada em um contexto de tradução, não apenas porque escolhi trabalhar com a escrita de uma poeta de língua inglesa, mas, sobretudo, porque se tornou necessário considerar a economia do esforço tradutivo presente no interior da produção textual de Sylvia Plath. 

Uma observação final deve ser feita. Mesmo a obra de Sylvia Plath tendo conquistado crescente e ininterrupto reconhecimento mundial, sua vida e sua obra são relativamente pouco conhecidas do leitor brasileiro, embora existam traduções portuguesas e brasileiras de parte da sua poesia, dos seus diários, romance e contos. Entre essas traduções, encontram-se A redoma de vidro [The bell jar], Johnny Panic e a bíblia dos sonhos [Johnny Panic and the bible of dreams], Mary Ventura e o Nono Reino [Mary Ventura and the Ninth Kingdom: a story], Ariel [Ariel], Os diários de Sylvia Plath (1950-1962) [The unabridged journals of Sylvia Plath]; O livro das camas e outras histórias [The bed book]; O terno tanto faz como ttanto fez [The it-doesn’t-matter suit]. Uma boa amost Cecília Carvalho é escritora e psicanalista e, como passageira de espaços heteróclitos, passa por litorais, fronteiras e confluências de coisas ou saberes de diversas ordens ou categorias díspares. Entretanto, o que pode sugerir uma impossibilidade torna-se um desafio que surge da experiência com a escrita. O termo experiência, que tem etimologicamente perigo em seu radical, sugere que só enfrentando o risco o intelectual cria novas saídas, por releituras, reinvenções, reinscrições. Este livro trata da escrita de Sylvia Plath, sem se reduzir a uma patografia, pois a autora trabalha no fio da letra, evitando soluções vindas de um raciocínio binário, produzido pela tentação do espelhamento, da analogia que supõe a obra como efeito imediato da vida, numa infindável proliferação de signos e de construções fantasmáticas. No fio da escrita, metonimicamente, Ana Cecília persegue o traço de Sylvia Plath em direção à morte — morte que foi a impossibilidade de estancar o jato de sangue que flui de uma ferida nunca cicatrizada, uma dor de existir que irrompe no ponto insuportável em que a letra exibe o fracasso de sustentar uma vida cujo traço essencial foi a melancolia. O que este livro revela é que a escrita não é sempre remédio, pois não barra de forma cabal as pulsões destrutivas e, entretanto, aquele que escreve pode fazer poesia até a morte, radicalizando a surpreendente intransitividade do ato poético. Enfrentar a vertente trágica da poesia permitiu a Ana Cecília Carvalho criar um estranho conceito, o de poética do suicídio, e, ao mesmo tempo, construir uma leitura em que não se deixou emaranhar pela fascinação narcísica da melancolia, não cedendo à atração medusina de um texto que aponta para águas sombrias sem, entretanto, perder sua eficácia poética. Se é possível falar em travessia da escrita, Ana Cecília fez passagens pelo texto de Plath em suas dimensões imaginária e simbólica, nunca o reduzindo a uma leitura totalizadora, mas, ao contrário, fazendo avançar um saber em aberto sobre a literatura no ponto mesmo em que pulsa a força da letra. Ruth Silviano Brandão INTRODUÇÃO Interpretar, assim como escrever, é abrir sentidos antes insuspeitados. Procede daí, dessa conjunção entre a interpretação e a escrita, a aproximação mutuamente fascinante entre a psicanálise e a literatura. Ambas florescem da mesma raiz que as caracteriza como desvendadoras privilegiadas das expressões originadas no solo inconsciente, e têm como aspecto mais notável o manifestar-se na linguagem, aferrando-se ao seu aspecto essencial, que é o de não ser unívoca, isto é, nunca dizer exatamente tudo. É nesse ponto de onde surge a interpretação — ponto de fragilidade e de força— que psicanálise e literatura se encontram, trabalhando em um terreno em que é impossível não se dizer e, ao mesmo tempo, em que não se pode tudo dizer. A escrita, tanto quanto a interpretação psicanalítica, parece nutrir-se desse impasse. É possível que venha daí a urgência inerente ao ato de escrever. Sua tirania e sua inevitabilidade são, muitas vezes, para o escritor, fenômenos inexplicáveis. Por que se escreve? Para que se escreve? A quem o escritor se dirige quando escreve? São perguntas que o escritor mal ousa se fazer, já que ninguém melhor do que ele sabe da perigosa esterilidade que elas contêm. O escrever parece brotar de uma necessidade inadiável, e são velhos conhecidos dos escritores os temores ligados à interrupção da escrita. “Coisa curiosa, um escritor refletiu Marguerite Duras em um de seus últimos textos no qual discorre sobre o ato de escrever.

1 - “ele é uma contradição absurda, pois escrever é também não falar. É se calar.” 

Duras parecia estar tocando no ponto de tensão próprio do trabalho literário: ponto de impasse e, portanto, de risco. E que risco poderia haver na criação literária? A pergunta não é descabida, sobretudo se nos voltarmos para a reflexão da própria Duras, para quem escrever é “uma forma de pensar, de raciocinar”. Para ela, essa é a função da escrita, na medida em que “permite ao escritor dizer para si mesmo que não é preciso se matar todos os dias, visto que é possível se matar a qualquer dia”.2 Se acatarmos a ponderação de Duras, não estaremos longe de formular a ideia de que existe algo no trabalho de criação que coloca o escritor diante de uma escolha terrível: escrever ou morrer — possibilidade surpreendente, pois indicadora da presença de forças destrutivas no centro do processo de criação. Nosso assombro diante dela torna-se maior quando nos defrontamos com a escrita de alguém que, diferentemente de Marguerite Duras — mas em meio a uma intensa produção criativa, justo no momento em que parecia ter encontrado sua identidade literária —, decidiu interromper a vida com um suicídio, encerrando, assim, a escrita. 

É o caso de Sylvia Plath, escritora americana que se asfixiou com gás em fevereiro de 1963, aos 30 anos, em Londres, onde morava. Com sua morte (ao lado de Virginia Woolf, que se matou por afogamento, em 1941, e Florbela Espanca, poeta portuguesa morta por ingestão de barbitúricos, em 1930), Sylvia Plath passou a ser incluída em um cânone sinistro de escritoras suicidas, segundo o qual criatividade e autoextermínio estão associados de modo enigmático. 

Ao longo do século XX, esse cânone não parou de crescer, também fazendo parte dele Anne Sexton, poeta americana, que se suicidou em 1974, Ana Cristina Cesar, escritora brasileira, que se matou em 1983, e Isabel Marie, psicanalista e escritora nascida na Espanha e radicada na França, que, em 1996, enforcou-se, pouco tempo depois de seu romance La bonne [A criada] ter sido indicado para a prestigiosa lista dos prêmios Goncourt, Femina e Medicis. Certamente não podemos articular do mesmo modo o suicídio de cada uma delas e suas obras tão variadas, pois, como parece evidente, suas vidas transcorreram em contextos históricos, sociais e culturais distintos, e suas problemáticas pessoais eram muito diferentes. Mas talvez fosse proveitoso pensar no tipo de envolvimento talvez existente entre a escrita e o suicídio. 

É impossível, portanto, não levar o suicídio dessas autoras em consideração na leitura dos seus textos. Contudo, um dos perigos, diante do parentesco estabelecido entre elas por causa de seus suicídios, é concluirmos equivocadamente que o fato de todas terem tido o mesmo destino trágico faria com que fossem apagadas as diferenças existentes entre seus textos. Não é minha intenção fazer uma comparação entre as muitas e diferentes construções textuais que essas autoras realizaram, de forma que algo como um perfil da autora suicida fosse traçado. Ainda que isso fosse feito, parece óbvio que as vozes, temas, formas e filiações assim comparadas seriam muito diversas, o que sem dúvida apenas evidenciaria a singularidade de cada uma em seus projetos literários. Isso não nos ajudaria a recolocar a questão do suicídio e sua relação com a escrita, pois, se essa associação existe, provavelmente nada nos autoriza a ligá-la extensivamente a todo o universo das escritoras suicidas. Mesmo assim, o enigma de seus suicídios persiste. 

O caminho que me pareceu mais profícuo foi o que rastreou, dentro do projeto literário de apenas uma delas (no caso, Sylvia Plath), aqueles elementos que testemunham, em sua concretude, as marcas das forças destrutivas que fizeram a autora calar-se repentinamente. São esses traços que exigem do leitor crítico um posicionamento, caso ele se anime a prosseguir em sua análise das autoras suicidas da contemporaneidade. Não obstante, qualquer abordagem que se faça ao texto de alguém que, como Sylvia Plath, matou-se em plena produção literária, dificilmente poderá evitar um curioso efeito de leitura: a impossível dissociação entre o fantasma da biografia da escritora (cujo suicídio funciona como uma presença inarredável) e a construção do texto. 

Parafraseando Freud, produz-se, assim, algo como se a sombra do suicídio da autora tivesse caído permanentemente sobre o texto, de maneira que o leitor se vê à procura dos anúncios desse destino trágico em meio às linhas que lê, campo no qual estariam inscritas as pegadas que, se seguidas, poderiam lhe mostrar o caminho que levou a escritora ao autoextermínio. Talvez não sem razão proliferaram durante algum tempo leituras que utilizavam o texto para compor um diagnóstico da personalidade do autor suicida. O equívoco desse tipo de leitura está em ver-se o texto como uma espécie de teste projetivo da mente supostamente doentia do autor, já que privilegia apenas o aspecto não literário (o suicídio) e lê o texto através dele. Assim sendo, acaba por negligenciar inteiramente todos os aspectos que compõem o complexo da construção textual. 

Por outro lado, provavelmente tentando escapar à fascinação paralisante que a escrita do autor suicida desperta, algumas leituras se voltaram para uma análise puramente formal, ignorando a importância de um elemento como o suicídio e seus antecedentes biográficos. Daí resultou uma leitura desvitalizada do texto, como se fosse possível ignorar a densidade afetiva que mobilizou a escrita e o sofrimento emocional que antecedeu o suicídio. Pode-se, porém, evitar essas dificuldades aparentemente insuperáveis recorrendo-se à mediação daquelas teorias que, privilegiando a enunciação, impedem o mergulho do leitor no imaginário especular do texto. Além disso, esse instrumental teórico não deixa de lado aspectos que ilustram de modo emblemático o intrincamento da vida do autor suicida e sua obra, uma vez que o suicídio parece colocar em questão, a um só tempo, a função, os limites e a eficácia da escrita, e a existência de aspectos mortíferos e destrutivos na criação literária. A questão é ver de que maneira vida e morte aparecem em uma escrita que, não deixando de ser autobiográfica, revela o elemento biográfico como anteparo e fonte, ao mesmo tempo em que testemunha a constante transformação desse mesmo elemento. Nesse sentido, sob a luz das noções freudianas que privilegiam a ideia do conflito pulsional e seus destinos, a escrita de Sylvia Plath parece exemplar, não apenas porque seu aspecto autobiográfico aponta para a indissociação entre vida, morte e obra, como também pela constante preocupação ali revelada a respeito da função e dos limites da escrita. Por mais de uma vez, Sylvia Plath escreveu sobre a faceta terapêutica da escrita. Deixou registrada, por exemplo, a convicção de que a escrita funcionava para ela como alimento, algo tão essencial que a fazia sentir-se plenamente realizada. Refletiu, ainda, sobre a reordenação e restauração do mundo por via da escrita, e seus diários estão repletos de passagens nas quais deixa evidente que considerava sua vida um texto que podia ser sempre reinventado e reescrito. 

Em uma afirmação na qual pareceu reposicionar-se diante dos pressupostos elementares do New Criticism, disse acreditar que o escritor deveria fazer uso de suas mais sofridas experiências, como a loucura e a tortura, mas que deveria transformá-las em texto com uma mente lúcida que desse uma forma a essas experiências. Em um poema escrito quatro dias antes de morrer, diria, porém, que “o jato de sangue é poesia” e “não há nada que o detenha”. Em um artigo sobre a morte de Sylvia Plath, Anne Sexton escreveu: “O suicídio é, afinal, o oposto do poema.” O problema, disse Sexton, é que os suicidas têm uma linguagem especial e, como carpinteiros, só querem saber quais ferramentas usar: nunca perguntam por que construir. Sexton, que se suicidaria nove anos depois de Sylvia Plath, relacionava ainda o precário equilíbrio do suicida a “alguma coisa não dita, o telefone fora do gancho, e o amor, seja lá o que for, uma infecção”.3 

É tentador pensar que Ana Cristina Cesar estabeleceu com Anne Sexton e com Sylvia Plath - de quem, convém lembrar, a escritora brasileira chegou a traduzir alguns poemas - uma espécie de interlocução, ao dizer em seu poema “Contagem regressiva”, escrito poucos meses antes de seu suicídio aos 31 anos: “Os poemas são para nós uma ferida.”4 Se é verdade que o suicídio do escritor parece colocar em questão a função da escrita, ao amarrar em um nó aparentemente indissociável a experiência vivida, a morte e a criação literária, é preciso reconhecer que existem limites no trabalho de transformação operado entre os vários registros de captação de uma experiência. É também por essa razão que a obra de Sylvia Plath presta-se a esse tipo de exame. Seu projeto literário incursionou pelos mais variados gêneros, dos diários à correspondência, do poema ao romance, do conto ao texto teatral e ao ensaio, em uma intertextualidade que problematiza de modo notável uma escrita do eu essencialmente ficcional que, reinventando-se, desestabiliza a identificação de referenciais. Além disso, em uma escrita na qual se encontra a multiplicação incessante do elemento ficcional ao longo de toda uma variedade de gêneros, perfila-se um limite que, ora Sylvia Plath busca ultrapassar, ora busca reencontrar. Esse limite aponta, de um lado, para a necessidade de reordenar, restaurar e reinventar o seu mundo interno ameaçado por um sentido que sempre escapa. Disso provêm as inúmeras possibilidades de “tradução” e representação simbólica que tornaram sua escrita possível. 

De outro lado, esse limite indica, também, que, ao escrever, Sylvia Plath arriscava-se a constantemente enfrentar a resistência que toda experiência interna oferece à significação. O impasse, aqui, sugere um embate insolúvel entre o impulso para dizer e o silêncio que parece existir no interior da linguagem, silêncio indicador da presença da morte. Se seguíssemos as pegadas deixadas pela representação da morte em seu texto, provavelmente veríamos que não serão diferentes das de outros autores (não suicidas) que também ousaram alcançar os limites da palavra, a fim de denunciar o real pela escritura. Não é esse, portanto, o caminho que segui aqui, já que meu interesse era examinar o diálogo que Sylvia Plath promoveu entre seus textos e a maneira como reescreveu sua vida, a fim de obter, nessa poética autobiográfica, os pontos de limite e de tensão de sua escrita. 

Procurei manter-me próxima do que Frieda Hughes apropriadamente sugere a todo aquele que se debruça sobre a obra de sua mãe: embora a escrita e a morte tenham feito de Sylvia Plath um ícone, ela só pode ser definida pelas palavras que deixou.5 Dois eixos estruturam este livro. Um deles privilegia a disposição afetiva que anima a escrita de Sylvia Plath, destacando-se nela um discurso da melancolia. Nada nesse objetivo nos autorizaria, contudo, a utilizar essa escrita para diagnosticar a autora como melancólica. A melancolia que em Sylvia Plath se tornou escrita está apoiada sobre as bordas de um vazio que é central na linguagem, embora em seus textos isso surja associado especificamente a certos significantes que deslizam para evocar a ressonância de perdas pessoais reais ou imaginadas. O outro eixo diz respeito ao intrincamento indissociável dos fios autobiográficos e textuais que sua escrita tece em uma obra onde o ficcional muitas vezes se faz passar pela realidade mais factual. Seu texto buscava reconstruir não uma história verídica, mas uma organização fantasmática. O exame realizado aqui, além de discutir os aspectos supostamente confessionais de sua escrita, privilegia, portanto, o drama de uma subjetividade que parece não existir em outro lugar que não seja o texto. 

O elemento que articula psicanálise e literatura neste trabalho é o exame da finalidade da escrita, tomando-se como base a escrita de Sylvia Plath para uma análise da sua dupla face de escrita terminável e escrita interminável. Nesse sentido, os operadores teóricos do recalcamento e da pulsão foram úteis, pois permitiram que se examinasse o caráter terminável da escrita em sua relação com o recalcamento, assim como sua faceta interminável, que aponta para a iminência do transbordamento pulsional. A escrita de Plath exibe o conflito entre forças construtivas e destrutivas agindo na cena da criação literária. Isso é o que permitiu o redimensionamento do conceito de sublimação, tão caro a uma certa tradição psicanalítica que insiste em vê-lo como aquele que descreve o “caminho feliz” para o sofrimento psíquico. 

O desenvolvimento desta pesquisa permitiu questionar essa opinião clássica, uma vez que a escrita e o destino trágico da poeta descrevem um movimento contrário. Em seus textos, além de não existirem limites rígidos entre a vida e a escrita, a autodestruição e o fracasso da sublimação se insinuam como possibilidades inevitáveis. Não se pode deixar de pensar que, afinal, Freud estava tocando num importante aspecto da criação literária e artística quando perguntou, diante dos aspectos prazerosos da sublimação, por que o sofrimento emocional do artista não era aliviado. Um breve rastreamento do destino literário de Sylvia Plath, desde sua morte, mostrará que sua obra nunca cessou de interessar aos pesquisadores e críticos literários, embora sua divulgação no Brasil ainda seja relativamente pequena. Sua fortuna crítica tem sido, na maior parte, permeada por uma ênfase biográfica que a distingue. 

É assim que, em meados de janeiro de 1998, rompendo um silêncio de mais de três décadas, durante as quais sistematicamente se recusou a conceder entrevistas sobre Sylvia Plath, aquele que foi seu marido, o poeta inglês Ted Hughes, (que viria a falecer em outubro de 1998) publicou o livro Birthday letters (traduzido para o português com o título Cartas de aniversário), reunião de 88 poemas nos quais relata sua vida com ela. Essa publicação imprevista redobrou consideravelmente o interesse da crítica pela vida e obra de Sylvia Plath, fazendo repetir um certo efeito de leitura que é velho conhecido dos estudiosos da escrita plathiana. Esse efeito, cuja oscilação pude sentir diversas vezes durante a realização desta pesquisa, resulta da poética autobiográfica que sustenta sua escrita. Diante dela, o leitor sente-se compelido a “tomar partido” da autora, em detrimento do texto. Assim sendo, é preciso um esforço redobrado, para se desprender do imaginário desse fenômeno, a fim de, ao contrário do que propôs recentemente uma crítica,6 não se arrepiar com o fantasma de Sylvia Plath, e sim com sua poesia. 

A maior parte das leituras do texto plathiano deixa de levar em consideração o fato de que, nessa poética autobiográfica, o eu que ali fala é uma invenção textual. Os exemplos selecionados do vasto universo da crítica literária dedicada à obra de Plath ressaltam, neste livro, o modo como refletem o registro do Imaginário de que são cativos, sobretudo porque a poética autobiográfica da autora levanta uma questão sobre as noções próprias do Imaginário, tais como a identificação, a fantasia e a realidade psíquica. Um aspecto importante aqui examinado é o limite representacional da escrita, uma vez que a poesia de Plath aponta para a indizibilidade no coração da linguagem, “lá onde se entrevê a morte da linguagem”.7 Se existe algo na sua escrita que alcança essa indizibilidade, ao mesmo tempo em que aponta para uma poética do suicídio, estará relacionado provavelmente a dois movimentos distintos. O primeiro movimento é caracterizado por um esforço de metaforização que, não estando de todo ausente em sua poesia, predomina sobretudo em sua escrita ficcional, diarística e epistolar. O segundo, metonímico por excelência, caminha para uma desmetaforização na linguagem e pode ser facilmente encontrado em sua poesia mais tardia, embora já esteja em um trabalho mais antigo, como “Poem for a birthday”, escrito em 1959. Esse segundo movimento coincide com seu suicídio e mostra o ponto de indizibilidade que prevalece na poesia da melancolia que Plath estava produzindo nos últimos meses de sua vida. 

As dificuldades que um leitor de língua portuguesa encontra ao ler a poesia de Sylvia Plath não são menores do que as encontradas por um leitor de língua inglesa. O aspecto “estrangeiro” de sua poesia foi aqui considerado tendo-se em vista que uma questão crucial era ligar o estilo singular da poeta a uma busca nostálgica por uma “terceira língua”, que assoma além da língua oficial adotada por seus pais. Nesse sentido, sua dificuldade em aprender a língua alemã de seus antepassados, a “obscena” língua alemã - tal como ela diria no famoso poema “Daddy” - foi examinada. Todos esses elementos serviram para ilustrar o impacto da língua do exílio e sua ressonância emocional em uma poética da tradução que parece caminhar para o indizível. Sua escrita foi, assim, considerada em um contexto de tradução, não apenas porque escolhi trabalhar com a escrita de uma poeta de língua inglesa, mas, sobretudo, porque se tornou necessário considerar a economia do esforço tradutivo presente no interior da produção textual de Sylvia Plath. 

Uma observação final deve ser feita. Mesmo a obra de Sylvia Plath tendo conquistado crescente e ininterrupto reconhecimento mundial, sua vida e sua obra são relativamente pouco conhecidas do leitor brasileiro, embora existam traduções portuguesas e brasileiras de parte da sua poesia, dos seus diários, romance e contos. Entre essas traduções, encontram-se A redoma de vidro [The bell jar], Johnny Panic e a bíblia dos sonhos [Johnny Panic and the bible of dreams], Mary Ventura e o Nono Reino [Mary Ventura and the Ninth Kingdom: a story], Ariel [Ariel], Os diários de Sylvia Plath (1950-1962) [The unabridged journals of Sylvia Plath]; O livro das camas e outras histórias [The bed book]; O terno tanto faz como ttanto fez [The it-doesn’t-matter suit]. Uma boa amostra de sua poesia se encontra, por exemplo, no livro Poemas, e ra de sua poesia se encontra, por exemplo, no livro Poemas, em tradução feita por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, e em Retrato de Sylvia Plath como artista, por Augusto de Campos. Contudo, até o momento ainda não há tradução para o português de Letters home [Cartas para casa]. Em 2023 a Companhia das Letras lançou Poesia reunida, tradução em português do volume Collected poems, agraciado postumamente com o Prêmio Pulitzer em 1981. A relativa escassez na tradução para o português de sua obra poética pode constituir uma dificuldade para o pesquisador, uma vez que as traduções brasileiras e portuguesas consistem - no que se refere à poesia - em apenas algumas poucas amostragens de um corpus muito maior. 

Como se isso não bastasse, existem diferenças significativas entre essas traduções, embora o pesquisador possa sempre justificá-las, sobretudo se se guiar pelas contribuições teóricas contemporâneas da tradução. Tendo essas noções em mente, é possível considerar que as diferenças entre as traduções estejam apenas evidenciando o que há de “insondável” na escrita de Sylvia Plath e que, recriando-a, cada uma à sua maneira, seus tradutores estejam tentando reproduzir o processo de criação feito pela autora em seus embates com a linguagem e seus limites. Eu mesma pude sentir essas dificuldades ao decidir traduzir a maior parte dos poemas trabalhados ou apenas citados neste livro. Empenhei-me nessa tarefa diante de 83 poemas para os quais não havia tradução em português ou quando, se havia, senti que poderia oferecer uma outra proposta de tradução. Infelizmente esse trabalho, que era parte integral da tese de doutoramento em literatura comparada de onde este livro se originou, não pôde ser incluído aqui, uma vez que não obtive permissão dos atuais controladores do espólio de Sylvia Plath para reproduzir no presente volume a minha tradução desses poemas. 

A alegação transmitida pela editora Faber & Faber é de que essa tradução não poderia ser incluída no “contexto” deste livro, embora minha intenção primordial fosse apenas facilitar a leitura do leitor brasileiro e oferecer uma amostra da singularidade da escrita de Sylvia Plath. Procurando respeitar a proibição da editora inglesa, limitei-me a fazer como os outros pesquisadores da obra de Plath, quando se veem às voltas com as dificuldades de censura impostas pelos controladores do espólio da autora. Assim, não incluí neste livro nenhuma citação que extrapole o uso moderado convencional permitido. Não obstante, elaborei no Anexo uma listagem completa das publicações em língua portuguesa, no Brasil e em Portugal, das traduções da poesia de Sylvia Plath. O leitor brasileiro poderá referenciar-se ali para localizar os poemas citados neste livro, além dos seus títulos em português e da numeração das páginas onde se encontram nos Collected poems

As inúmeras paráfrases e recortes que fui obrigada a fazer diante da restrição editorial imposta promovem, lamentavelmente, uma imperdoável mutilação no corpo da escrita de Sylvia Plath e evocam a situação que ela menciona em “Poem for a birthday”. Estou convicta de que nenhuma restrição editorial impedirá que um texto literário continue a proliferar sentidos, que nenhuma interpretação totalizante jamais conseguirá aprisionar. Sylvia Plath sabia melhor do que ninguém que o texto literário é a fantástica “cidade onde os homens são remendados” e nele a poeta sempre “renascerá tão boa quanto nova”.

SELEÇÃO DE POEMAS DE SYLVIA PLATH

(Bilíngue)


Canção da manhã


O amor faz você funcionar como redondo relógio de ouro.
A parteira bateu em seus pés, e seu grito nu
Tomou lugar entre os elementos.

Nossas vozes ecoam, exaltando sua chegada. Estátua nova
Num museu arejado, sua nudez
Assombra nossa segurança. Ficamos ao redor, brancos como paredes.

Sou sua mãe
Tanto quanto a nuvem que destila um espelho que reflete seu lento
Desaparecimento na mão do vento.

À noite toda seu hálito de mariposa
Flutua entre rosas lisas. Acordo e ouço:
Longe, um mar se move em meu ouvido.

Um grito, e cambaleio para fora da cama, vaca obesa e florida
Em minha camisola vitoriana.
Sua boca se abre, limpa como a de um gato. A janela

Embranquece e engole suas estrelas torpes. E agora você ensaia
Seu punhado de notas;
As vogais claras sobem como balões.
.

Morning song


Love set you going like a fat gold watch.
The midwife slapped your footsoles, and your bald cry
Took its place among the elements.

Our voices echo, magnifying your arrival. New statue.
In a drafty museum, your nakedness
Shadows our safety. We stand round blankly as walls.

I’m no more your mother
Than the cloud that distills a mirror to reflect its own slow
Effacement at the wind’s hand.

All night your moth-breath
Flickers among the flat pink roses. I wake to listen:
A far sea moves in my ear.

One cry, and I stumble from bed, cow-heavy and floral
In my Victorian nightgown.
Your mouth opens clean as a cat’s. The window square

Whitens and swallows its dull stars. And now you try
Your handful of notes;
The clear vowels rise like balloons.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Os mensageiros


Palavra de lesma em prato de folha?
Não é minha. Não a aceite.

Ácido acético em lata selada?
Não o aceite. Não é genuíno.

Anel de ouro e nele o sol?
Mentiras. Mentiras e uma dor.

Geada numa folha, o imaculado
Caldeirão, estalando e falando

Sozinho no topo de cada um
Dos nove Alpes negros,

Um distúrbio nos espelhos,
O mar estilhaçando seu cinza –

Amor, amor, minha estação.
.

The couriers


The word of a snail on the plate of a leaf?
It is not mine. Do not accept it.

Acetic acid in a sealed tin?
Do not accept it. It is not genuine.

A ring of gold with the sun in it?
Lies. Lies and a grief.

Frost on a leaf, the immaculate
Cauldron, talking and crackling

All to itself on the top of each
Of nine black Alps.

A disturbance in mirrors,
The sea shattering its grey one —-

Love, love, my season.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Talidomida


Oh, semilua –

Semicérebro, luminosidade –
Negro, mascarado de branco,

Suas escuras
Amputações rastejam e assustam –

Aranhiças, inseguras.
Que luva

Que espécie de couro
Me protegeu

Daquela sombra –
Os botões indeléveis,

Nós nas omoplatas, os
Rostos que

Empurram para ser, arrastando
O podado

Âmnio sangrento das ausências.
Toda noite eu teço

Um espaço para o que me é dado,
Um amor

De dois olhos úmidos e um grito.
Branca secreção

Da indiferença!
Os frutos escuros giram e caem.

O vidro se espatifa,
A imagem

Foge e aborta como gotas de mercúrio.
.

Thalidomide


O half moon—-

Half-brain, luminosity—-
Negro, masked like a white,

Your dark
Amputations crawl and appall—-

Spidery, unsafe.
What glove

What leatheriness
Has protected

Me from that shadow—-
The indelible buds.

Knuckles at shoulder-blades, the
Faces that

Shove into being, dragging
The lopped

Blood-caul of absences.
All night I carpenter

A space for the thing I am given,
A love

Of two wet eyes and a screech.
White spit

Of indifference!
The dark fruits revolve and fall.

The glass cracks across,
The image

Flees and aborts like dropped mercury.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Mulher estéril


Vazia, ecôo até o mínimo passo,
Museu sem estátuas, grandioso, com pilares, pórticos, rotundas.
Em meu pátio uma fonte salta e mergulha em si mesma,
Casta e cega para o mundo. Lírios de mármore
Exalam sua palidez feito perfume.

Me imagino com um grande público,
Mãe de uma branca Nike e vários Apolos de olhos nus.
Em vez disso, os mortos me ferem com atenções, nada pode acontecer.
A lua pousa a mão em minha testa,
Pálida e silenciosa como uma enfermeira.
.

Barren woman


Empty, I echo to the least footfall,
Museum without statues, grand with pillars, porticoes, rotundas.
In my courtyard a fountain leaps and sinks back into itself,
Nun-hearted and blind to the world. Marble lilies
Exhale their pallor like scent.

I imagine myself with a great public,
Mother of a white Nike and several bald-eyed Apollos.
Instead, the dead injure me with attentions, and nothing can happen.
Blank-faced and mum as a nurse.
– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Lady Lazarus


Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —

Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito

Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.

Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —

O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.

Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.

E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.

Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.

Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver

Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.

Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada

Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.

Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.

E muito fácil fazer isso numa cela.
É
muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral

Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:

“Milagre!”
Que me deixa mal.
Há um preço

Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.

E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue

Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.

Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro

Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.

Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —

Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.

Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.
.

Lady Lazarus


I have done it again.
One year in every ten
I manage it —

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify? —

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot —
The big strip tease.
Gentleman , ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I’ve a call.

It’s easy enough to do it in a cell.
It’s easy enough to do it and stay put.
It’s the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:

“A miracle!”
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart —
It really goes.

And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair on my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash —
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there —

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Tulipas


Tulipas são excitáveis demais, é inverno aqui.
Vê como tudo está branco, tão silencioso, coberto de neve.
Aprendo a paz, deitada sozinha em silêncio
Enquanto a luz se espalha nessas paredes brancas, nesta cama, nestas mãos.
Não sou ninguém; não tenho nada a ver com as explosões.
Dei meu nome e minhas roupas às enfermeiras
Minha história ao anestesista e meu corpo aos cirurgiões.

Apoiaram minha cabeça entre o travesseiro e a dobra do lençol
Como um olho entre duas pálpebras brancas que ficassem abertas.
Pupila tola, tudo ela tem que engolir.
As enfermeiras não se cansam de passar, não me incomodam,
Passam como gaivotas no interior, em seus chapéus brancos,
Fazendo coisas com as mãos, uma igual à outra,
Por isso é impossível dizer quantas são.

Fazem de meu corpo um seixo, que elas cuidam como a água
Cuida dos seixos por onde corre, alisando-os com carinho.
Trazem-me o torpor em suas agulhas brilhantes, trazem-me o sono.
Perdida de mim, estou cansada da bagagem toda —
Meu estojo de couro noturno, caixa preta de comprimidos,
Meu marido e minha filha sorriem na foto de família;
Seus sorrisos fisgam minha pele, pequenos anzóis sorridentes.

Deixei coisas escaparem, navio de carga com trinta anos
Teimosamente se prendendo a meu nome e endereço.
Eles me lavaram de minhas associações amorosas.
Assustada e nua sobre a cama de rodas com travesseiros de plástico verde,
Assisti meu aparelho de chá, minhas roupas de linho, meus livros
Submergirem e sumirem, e a água cobrir minha cabeça.
Sou freira agora, nunca fui tão pura.

Não queria flores, só me deitar
De mãos pra cima e completamente vazia.
Quanta liberdade, você não faz idéia —
A paz é tão imensa que entorpece,
E não pergunta nada, um crachá, coisinhas de nada.
É do que se aproximam os mortos, enfim; e os imagino
Fechando suas bocas sobre ela, como hóstia de comunhão.

Tulipas são vermelhas demais, me machucam.
Mesmo através do celofane as ouço respirando
De leve, através de suas faixas brancas, como um bebê terrível.
Sua vermelhidão conversa com minha ferida, elas combinam.
São tão sutis: parecem flutuar, embora sinta seus pesos,
Me aborrecendo com suas súbitas cores e línguas,
Uma dúzia de chumbadas vermelhas presas no pescoço.

Antes ninguém me observava, agora sou observada.
As tulipas se viram para mim, e para a janela às minhas costas
Onde, uma vez por dia, a luz lentamente se dilata e lentamente se dilui,
E me vejo, estendida, ridícula, uma silhueta de papel
Entre o olho do sol e os olhos das tulipas,
E não tenho face, eu que tanto quis me apagar.
As tulipas vívidas devoram meu oxigênio.

Antes de chegarem havia sossego no ar,
Indo e vindo, a cada alento, sem alvoroço.
Mas as tulipas o ocuparam por inteiro, como um alarme.
Agora o ar se enrosca e redemoinha ao seu redor como o rio
Ao redor de um motor enferrujado e submerso.
Elas concentram minha atenção, foi divertido
Brincar e descansar sem compromisso.

As paredes também parecem se aquecer.
Tulipas deviam estar atrás das grades, como feras perigosas;
Elas se abrem como a boca de um grande felino africano,
E estou consciente de meu coração: ele se abre e se fecha,
Seu bojo vermelho viceja de total amor por mim.
A água que provo é morna e salgada, como a do mar,
E vem de um país distante como a saúde.
.

Tulips


The tulips are too excitable, it is winter here.
Look how white everything is, how quiet, how snowed-in.
I am learning peacefulness, lying by myself quietly
As the light lies on these white walls, this bed, these hands.
I am nobody; I have nothing to do with explosions.
I have given my name and my day-clothes up to the nurses
And my history to the anesthetist and my body to surgeons.

They have propped my head between the pillow and the sheet-cuff
Like an eye between two white lids that will not shut.
Stupid pupil, it has to take everything in.
The nurses pass and pass, they are no trouble,
They pass the way gulls pass inland in their white caps,
Doing things with their hands, one just the same as another,
So it is impossible to tell how many there are.

My body is a pebble to them, they tend it as water
Tends to the pebbles it must run over, smoothing them gently.
They bring me numbness in their bright needles, they bring me sleep.
Now I have lost myself I am sick of baggage——
My patent leather overnight case like a black pillbox,
My husband and child smiling out of the family photo;
Their smiles catch onto my skin, little smiling hooks.

I have let things slip, a thirty-year-old cargo boat
stubbornly hanging on to my name and address.
They have swabbed me clear of my loving associations.
Scared and bare on the green plastic-pillowed trolley
I watched my teaset, my bureaus of linen, my books
Sink out of sight, and the water went over my head.
I am a nun now, I have never been so pure.

I didn’t want any flowers, I only wanted
To lie with my hands turned up and be utterly empty.
How free it is, you have no idea how free——
The peacefulness is so big it dazes you,
And it asks nothing, a name tag, a few trinkets.
It is what the dead close on, finally; I imagine them
Shutting their mouths on it, like a Communion tablet.

The tulips are too red in the first place, they hurt me.
Even through the gift paper I could hear them breathe
Lightly, through their white swaddlings, like an awful baby.
Their redness talks to my wound, it corresponds.
They are subtle : they seem to float, though they weigh me down,
Upsetting me with their sudden tongues and their color,
A dozen red lead sinkers round my neck.

Nobody watched me before, now I am watched.
The tulips turn to me, and the window behind me
Where once a day the light slowly widens and slowly thins,
And I see myself, flat, ridiculous, a cut-paper shadow
Between the eye of the sun and the eyes of the tulips,
And I have no face, I have wanted to efface myself.
The vivid tulips eat my oxygen.

Before they came the air was calm enough,
Coming and going, breath by breath, without any fuss.
Then the tulips filled it up like a loud noise.
Now the air snags and eddies round them the way a river
Snags and eddies round a sunken rust-red engine.
They concentrate my attention, that was happy
Playing and resting without committing itself.

The walls, also, seem to be warming themselves.
The tulips should be behind bars like dangerous animals;
They are opening like the mouth of some great African cat,
And I am aware of my heart: it opens and closes
Its bowl of red blooms out of sheer love of me.
The water I taste is warm and salt, like the sea,
And comes from a country far away as health.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Ariel


Estase no escuro.
E um fluir azul sem substância
De rochedos e distâncias.

Leoa de Deus,
Como nos unimos,
Eixo de calcanhares e joelhos! — O sulco

Divide e passa, irmão do
Arco castanho
Do pescoço que não posso pegar,

Olhinegras
Bagas lançam escuros
Ganchos —

Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais

Me arrasta pelos ares —
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.

Godiva
Branca, me descasco —
Mãos mortas, asperezas mortas.

E agora
Espumo com o trigo, um brilho de mares.
O choro da criança

Dissolve-se no muro.
E eu
Sou a flecha,

Orvalho que voa
Suicida, e de uma vez avança
Contra o olho

Vermelho, caldeirão da manhã.
.

Ariel


Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God’s lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! — The furrow

Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks —

Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else

Hauls me through air —
Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White
Godiva, I unpeel —
Dead hands, dead stringencies.

And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child’s cry

Melts in the wall.
And I
Am the arrow,

The dew that flies
Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

A coragem de calar


A coragem da boca fechada, apesar da artilharia!
A linha rósea e quieta, um verme, exposto ao sol.
E há discos negros por trás, discos do ultraje,
E o ultraje de um céu, e os discos de seu cérebro.
Os discos giram, querem ser ouvidos,

Carregados, como estão, de adultérios.
Adultérios, maus-tratos, deserções e hipocrisia,
A agulha viajando em sua ranhura,
Fera prateada entre dois cânions escuros,
Um grande cirurgião, um tatuador agora,

Tatuando mais e mais as mesmas tristes queixas,
As cobras, os bebês, as tetas
Nas sereias e garotas de sonho.
O cirurgião está calado, não fala nada.
Já viu muitas mortes, suas mãos estão repletas.

Assim giram os discos do cérebro, como bocas de canhão.
E há aquela foice antiga, a língua,
Incansável, roxa. Deve ser cortada fora?
Tem nove caudas, é perigosa.
E o barulho que rouba do ar, quando começa.

Não, a língua também foi deixada de lado
Pendurada na biblioteca entre gravuras de Rangoon
E cabeças de raposas, lontras e coelhos mortos.
É um objeto maravilhoso –
Quantas coisas penetrou em outros tempos!

Mas e os olhos, os olhos, os olhos?
Espelhos matam e conversam, são quartos terríveis
Onde a tortura prossegue e só se pode olhar.
O rosto que habitava este espelho é o de um homem morto.
Não se preocupe com os olhos –

Podem ser brancos e tímidos, não são delatores,
Seus raios mortais se dobraram como bandeiras
De um país que não se conhece mais,
Uma independência obstinada
Insolvente entre as montanhas.
.

The courage of shutting-up


The courage of the shut mouth, in spite of artillery!
The line pink and quiet, a worm, basking.
There are black disks behind it, the disks of outrage,
And the outrage of a sky, the lined brain of it.
The disks revolve, they ask to be heard—

Loaded, as they are, with accounts of bastardies.
Bastardies, usages, desertions and doubleness,
The needle journeying in its groove,
Silver beast between two dark canyons,
A great surgeon, now a tattooist,

Tattooing over and over the same blue grievances,
The snakes, the babies, the tits
On mermaids and two-legged dreamgirls.
The surgeon is quiet, he does not speak.
He has seen too much death, his hands are full of it.

So the disks of the brain revolve, like the muzzles of cannon.
Then there is that antique billhook, the tongue,
Indefatigable, purple. Must it be cut out?
It has nine tails, it is dangerous.
And the noise it flays from the air, once it gets going!

No, the tongue, too, has been put by,
Hung up in the library with the engravings of Rangoon
And the fox heads, the otter heads, the heads of dead rabbits.
It is a marvelous object—
The things it has pierced in its time.

But how about the eyes, the eyes, the eyes?
Mirrors can kill and talk, they are terrible rooms
In which a torture goes on one can only watch.
The face that lived in this mirror is the face of a dead man.
Do not worry about the eyes—

They may be white and shy, they are no stool pigeons,
Their death rays folded like flags
Of a country no longer heard of,
An obstinate independency
Insolvent among the mountains.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Gulliver


Sobre seu corpo as nuvens passam
Altas, altas e geladas
E um tanto finas, como se

Flutuassem num vidro invisível.
Diferentes dos cisnes,
Não têm reflexos;

Diferentes de você,
Sem cordas para te prender.
Tudo bem, tudo azul. Diferentes de você –

Você aí, de costas,
Olhos grudados no céu.
Os homens-aranhas te pegaram,

Lançando e enrolando suas frágeis algemas,
Suas seduções –
Tantas sedas.

Como eles te odeiam.
Eles conversam no vale dos seus dedos, minúsculos vermes.
Fariam você dormir em seus armários,

Este dedo e aquele, uma relíquia.
Cai fora!
Cai fora, sete-léguas, como aquelas distâncias

Que se movem num Crivelli, intocáveis.
Deixe que este olho vire águia,
A sombra de seu lábio, um abismo.
.

Gulliver


Over your body the clouds go
High, high and icily
And a little flat, as if they

Floated on a glass that was invisible.
Unlike swans,
Having no reflections;

Unlike you,
With no strings attached.
All cool, all blue. Unlike you—

You, there on your back,
Eyes to the sky.
The spider-men have caught you,

Winding and twining their petty fetters,
Their bribes—
So many silks.

How they hate you.
They converse in the valley of your fingers, they are inchworms.
They would have you sleep in their cabinets,

This toe and that toe, a relic.
Step off!
Step off seven leagues, like those distances

That revolve in Crivelli, untouchable.
Let this eye be an eagle,
The shadow of his lip, an abyss.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Medusa


Longe dessa península de boquilhas petrificadas,
Olhos revirados por varetas brancas,
Orelhas absorvendo as incoerências marinhas,
Você abriga sua cabeça débil — bola divina,
Lente de piedades,

Seus parasitas
Abastecem suas células selvagens à sombra de minha quilha,
Empurradas como corações,
Estigmas vermelhos bem no centro,
Cavalgando a contracorrente até o ponto de partida mais próximo,

Arrastando seus cabelos de Jesus.
Escapei, me pergunto?
Minha mente sopra até você,
Umbigo de velhos mariscos, cabo Atlântico,
Se mantendo, parece, em estado de milagrosa conservação.

Em todo caso, você está sempre ali,
Respiração trêmula no fim da minha linha,
Curva de água pulando
Em meu caniço, ofuscante e agradecida,
Tocando e sugando.

Não chamei você.
Não chamei você mesmo.
No entanto, no entanto
Você navegou em minha direção,
Obesa e vermelha, uma placenta

Paralisando amantes impetuosos.
Luz de naja
Espremendo o hálito das rubras campânulas
Da fúcsia. Sem poder respirar,
Morta e sem dinheiro,

Superexposta, como num raio x.
Quem você pensa que é?
Hóstia de comunhão? Maria Carpideira?
Não vou tirar nenhum pedaço desse seu corpo,
Garrafa aonde vivo,

Vaticano terrível.
O sal quente me mata de enjôo.
Imaturos como eunucos, seus desejos
Sibilam para meus pecados.
Fora, fora, coleante tentáculo!

Não há mais nada entre nós.
.

Medusa


Off that landspit of stony mouth-plugs,
Eyes rolled by white sticks,
Ears cupping the sea’s incoherences,
You house your unnerving head—God-ball,
Lens of mercies,

Your stooges
Plying their wild cells in my keel’s shadow,
Pushing by like hearts,
Red stigmata at the very center,
Riding the rip tide to the nearest point of departure,

Dragging their Jesus hair.
Did I escape, I wonder?
My mind winds to you
Old barnacled umbilicus, Atlantic cable,
Keeping itself, it seems, in a state of miraculous repair.

In any case, you are always there,
Tremulous breath at the end of my line,
Curve of water upleaping
To my water rod, dazzling and grateful,
Touching and sucking.

I didn’t call you.
I didn’t call you at all.
Nevertheless, nevertheless
You steamed to me over the sea,
Fat and red, a placenta

Paralyzing the kicking lovers.
Cobra light
Squeezing the breath from the blood bells
Of the fuchsia. I could draw no breath,
Dead and moneyless,

Overexposed, like an X-ray.
Who do you think you are?
A Communion wafer? Blubbery Mary?
I shall take no bite of your body,
Bottle in which I live,

Ghastly Vatican.
I am sick to death of hot salt.
Green as eunuchs, your wishes
Hiss at my sins.
Off, off, eely tentacle!

There is nothing between us.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

A lua e o teixo


Esta é a luz da mente, fria e planetária.
As árvores da mente são negras. A luz, azul.
Gramados descarregam suas mágoas em meus pés como se eu fosse Deus,
Arranhando meus tornozelos, murmurando sua humildade.
Névoas vaporosas e espitituais habitam este lugar
Separado de minha casa por uma fileira de lápides.
Simplesmente não posso ver onde vão dar.

A lua não tem porta. É uma face em seu pleno direito,
Branca como os nós dos dedos, terrivelmente incomodada.
Arrasta o mar atrás de si como um crime sujo; está quieta,
A boca aberta em total desespero. Moro aqui.
Duas vezes aos domingos os sinos assustam o céu –
Oito grandes línguas afirmam a Ressurreição.
E no final, sobriamente, badalam seus nomes.

O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica.
Os olhos se elevam e encontram a lua.
A lua é minha mãe. Não é doce como Maria.
Suas vestes azuis libertam pequenos morcegos e corujas.
Se eu ainda acreditasse na ternura –
O rosto da efígie, suavizado por velas,
Derramando, sobre mim, seus olhos meigos.

Tenho caído pelo caminho. Nuvens florescem
Azuis e místicas sobre a face das estrelas.
Na igreja, os santos serão todos azuis,
Flutuando sobre bancos frios com delicados pés,
Suas mãos e faces duras de santidade.
A lua não vê nada disto. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é escuridão – escuridão e silêncio.
.

The moon and the yew tree


This is the light of the mind, cold and planetary
The trees of the mind are black. The light is blue.
The grasses unload their griefs on my feet as if I were God
Prickling my ankles and murmuring of their humility
Fumy, spiritous mists inhabit this place.
Separated from my house by a row of headstones.
I simply cannot see where there is to get to.

The moon is no door. It is a face in its own right,
White as a knuckle and terribly upset.
It drags the sea after it like a dark crime; it is quiet
With the O-gape of complete despair. I live here.
Twice on Sunday, the bells startle the sky —
Eight great tongues affirming the Resurrection
At the end, they soberly bong out their names.

The yew tree points up, it has a Gothic shape.
The eyes lift after it and find the moon.
The moon is my mother. She is not sweet like Mary.
Her blue garments unloose small bats and owls.
How I would like to believe in tenderness –
The face of the effigy, gentled by candles,
Bending, on me in particular, its mild eyes.

I have fallen a long way. Clouds are flowering
Blue and mystical over the face of the stars
Inside the church, the saints will all be blue,
Floating on their delicate feet over the cold pews,
Their hands and faces stiff with holiness.
The moon sees nothing of this. She is bald and wild.

And the message of the yew tree is blackness – blackness and silence.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Rival


Se a lua sorrisse, pareceria com você.
Você também deixa a impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são bons em roubar luz alheia.
A boca da lua se lamenta ao mundo; a sua é insensível,

E seu maior dom é fazer tudo virar pedra.
Desperto num mausoléu; você está aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Malicioso como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco para dizer algo irrespondível.

A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas insatifações, por outro lado,
Chegam pelo correio com regularidade encantadora,
Brancas e vazias, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Passeando pela África, talvez, mas pensando em mim.
.

The rival


If the moon smiled, she would resemble you.
You leave the same impression
Of something beautiful, but annihilating.
Both of you are great light borrowers.
Her O-mouth grieves at the world; yours is unaffected,

And your first gift is making stone out of everything.
I wake to a mausoleum; you are here,
Ticking your fingers on the marble table, looking for cigarettes,
Spiteful as a woman, but not so nervous,
And dying to say something unanswerable.

The moon, too, abuses her subjects,
But in the daytime she is ridiculous.
Your dissatisfactions, on the other hand,
Arrive through the mailslot with loving regularity,
White and blank, expansive as carbon monoxide.

No day is safe from news of you,
Walking about in Africa maybe, but thinking of me.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

40 graus de febre


Pura? O que significa isso?
As línguas do inferno
São torpes, torpes como as três

Línguas do torpe, obeso Cerberus
Que arfa ao portão. Incapaz
De lamber e limpar

O membro em febre, o pecado, o pecado.
Crepita a chama.
O indelével aroma

De vela apagada!
Amor, amor, a fumaça rola
De mim como a echarpe de Isadora, e temo

Que uma das portas se ancore na roda.
Uma fumaça tão amarela e sombria
Faz de si seu elemento. Não vai subir,

Mas girar ao redor do globo
Asfixiando o idoso e o humilde,
O indefeso

Bebê na estufa de seu berço,
Orquídea pálida
Suspensa em seu jardim suspenso no ar,

Diabólico leopardo!
A radiação o embranqueceu
E o matou em uma hora.

Engordurando os corpos dos adúlteros
Como as cinzas de Hiroshima que os devoram.
O pecado. O pecado.

Meu bem, passei a noite
Me virando, indo e vindo, indo e vindo.
Os lençóis opressivos como beijos de um devasso.

Três dias. Três noites.
Limonada, canja
Aguada, água me deixa enjoada.

Sou pura demais para você ou qualquer outro.
Seu corpo
Me magoa como o mundo magoa Deus. Sou uma lanterna –

Minha cabeça uma lua
De papel japonês, minha pele folheada a ouro
Infinitamente delicada e infinitamente cara.

Meu calor não te choca. Nem minha luz.
Sou, sozinha, uma camélia imensa
Ardendo e indo e vindo, gozo a gozo.

Acho que estou subindo,
Acho que posso levantar –
Contas de metal ardente voam, e eu, amor, eu

Sou uma virgem pura
De acetileno
Cuidada por rosas,

Por beijos, por querubins,
Por qualquer dessas coisas róseas.
Não você, nem ele

Nem ele, nem ele
(Meus eus se dissolvem, anáguas de puta velha) –
Ao Paraíso.
.

Fever 103°


Pure? What does it mean?
The tongues of hell
Are dull, dull as the triple

Tongues of dull, fat Cerberus
Who wheezes at the gate. Incapable
Of licking clean

The aguey tendon, the sin, the sin.
The tinder cries.
The indelible smell

Of a snuffed candle!
Love, love, the low smokes roll
From me like Isadora’s scarves, I’m in a fright

One scarf will catch and anchor in the wheel,
Such yellow sullen smokes
Make their own element. They will not rise,

But trundle round the globe
Choking the aged and the meek,
The weak

Hothouse baby in its crib,
The ghastly orchid
Hanging its hanging garden in the air,

Devilish leopard!
Radiation turned it white
And killed it in an hour.

Greasing the bodies of adulterers
Like Hiroshima ash and eating in.
The sin. The sin.

Darling, all night
I have been flickering, off, on, off, on.
The sheets grow heavy as a lecher’s kiss.

Three days. Three nights.
Lemon water, chicken
Water, water make me retch.

I am too pure for you or anyone.
Your body
Hurts me as the world hurts God. I am a lantern——

My head a moon
Of Japanese paper, my gold beaten skin
Infinitely delicate and infinitely expensive.

Does not my heat astound you! And my light!
All by myself I am a huge camellia
Glowing and coming and going, flush on flush.

I think I am going up,
I think I may rise——
The beads of hot metal fly, and I love, I

Am a pure acetylene
Virgin
Attended by roses,

By kisses, by cherubim,
By whatever these pink things mean!
Not you, nor him

Nor him, nor him
(My selves dissolving, old whore petticoats)——
To Paradise.


– Sylvia Plath, no livro “Ariel” (edição fac-simile).. [tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo] Campinas-SP: Verus Editora, 2007.

§

Espelho


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro –
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor de rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Enxerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.
.

Mirror


I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, just truthful –
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.

23 October 1961


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

Papoulas em julho


Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês fazem mal?

Vocês se mexem. Não posso tocá-las.
Meto as mãos entre as chamas. Nada me queima.

E me cansa ficar aqui olhando
Vocês se mexendo assim, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.

Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde estão seus ópios, suas cápsulas que enjoam?

Se eu pudesse sangrar, ou dormir! –
Se minha boca se unisse a essa ferida!

Ou se seus licores me sedassem, nessa cápsula de vidro.
Entorpecendo e acalmando.

Mas sem cor. Incolor.
.

Poppies in july


Little poppies, little hell flames,
Do you do no harm?

You flicker. I cannot touch you.
I put my hands among the flames. Nothing burns

And it exhausts me to watch you
Flickering like that, wrinkly and clear red, like the skin of a mouth.

A mouth just bloodied.
Little bloody skirts!

There are fumes I cannot touch.
Where are your opiates, your nauseous capsules?

If I could bleed, or sleep! –
If my mouth could marry a hurt like that!

Or your liquors seep to me, in this glass capsule,
Dulling and stilling.

But colorless. Colorless.

20 July 1962


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

Lesbos


Safadeza na cozinha!
As batatas sibilam.
Isso é Hollywood, sem janelas,
A luz fluorescente oscila como uma enxaqueca terrível.
Nas portas, tiras de papel –
Cortinas de teatro, o cabelo crespo da viúva.
E eu, Amor, sou uma mentirosa patológica,
E minha filha – olhe só pra ela, de cara no assoalho,
Fantoche sem cordas, tremendo até sumir –
Como é esquizofrênica,
Sua cara corada e pálida, em pânico:
Você botou os gatos dela pra fora da janela
Numa caixa com areia
Onde podem vomitar e cagar e miar sem que ela possa ouvir.
Você diz que não suporta mais,
A putinha.
Você queimou suas válvulas como um rádio velho
Limpo de vozes e história, o ruído novo
Da estática.
Você diz que eu afogaria os gatinhos. Que fedor!
Você diz que eu afogaria minha filha.
Ela vai cortar a garganta aos dez se não pirar aos dois.
O sorriso do bebê, lesma obesa,
Nos losangos lustrados de linóleo laranja.
Você podia comê-lo. É um menino.
Você diz que seu marido não é bom pra você.
Sua mãe judia vigia seu sexo como jóia.
Você tem um bebê, eu tenho dois.
Eu bem podia me sentar numa rocha e me pentear.
Podia usar colã de tigresa e ter um affair.
A gente bem que podia se ver na outra vida, se ver no ar,
Só eu e você.

Porém há um cheiro de banha e cocô de bebê.
Estou dopada e enjoada depois do último sonífero.
Fumaça de cozinha, fumaça infernal
Nos sobrevoa, rivais venenosas,
Nossos ossos, nossos pelos.
Te xingo de Órfã, órfã. Você está doente.

O sol te dá úlcera, o vento, tuberculose.
Um dia você foi bonita.
Em Nova York, em Hollywood, os homens te diziam: “Acabou?
Gata, você é demais!”.
Você servia, servia, servia pro papel.
E o marido brocha sai pra tomar um café.
Tento segurá-lo, não saio,
Relâmpago para um velho pára-raio,
Os banhos ácidos, um céu inteiro cheio de você.
Ele despenca da colina de plástico.
Trem desgovernado. Faíscas azuis se espalham,
Trincando como quartzo em milhões de pedacinhos.

O jóia! Ó valiosa!
Naquela noite a lua
Arrastou seu saco de sangue, animal
Doente
Por sobre as luzes do cais.
Então voltava ao crescente,
Dura, branca e ausente.
Na areia o brilho das escamas me matava de medo.
A gente as apanhava aos montes, curtindo,
Modelando-as como massa, um corpo mulato,
Grãos de seda.
Um cachorro pegou seu marido cachorro. E se mandou.

Agora estou quieta, ódio
Até o pescoço,
Grosso, grosso
Não falo nisso. Empacoto batatas como roupas finas,
Empacoto os bebês,
Empacoto os gatos doentes.
Oh, ampola de ácido,
É de amor que você está cheia. Você sabe quem você odeia.
Ele ruge e arrasta as correntes pelo portão
Que se abre pro mar
Onde ele invade, preto e branco,
E o vomita de volta.
Você o enche com seus papos profundos, como um jarro.
Você está um trapo.

Sua voz, meu brinco,
Voa e suga, morcego que ama sangue.
Isso é isso. Aquilo é aquilo.
Você escuta atrás da porta,
Bruxa triste. “Toda mulher é uma puta.
Não consigo dialogar.”

Vejo seu fino décor
Te fechando como o punho de um bebê
Ou uma anêmona, esse mar.
Meu bem, cleptomaníaco.
Ainda estou crua.
Quem sabe um dia eu vou voltar.
Você sabe pra que servem as mentiras

Nem no seu paraíso Zen a gente vai se cruzar.
.

Lesbos


Viciousness in the kitchen!
The potatoes hiss.
It is all Hollywood, windowless,
The fluorescent light wincing on and off like a terrible migraine,
Coy paper strips for doors
Stage curtains, a widow’s frizz.
And I, love, am a pathological liar,
And my child look at her, face down on the floor,
Little unstrung puppet, kicking to disappear
Why she is schizophrenic,
Her face is red and white, a panic,
You have stuck her kittens outside your window
In a sort of cement well
Where they crap and puke and cry and she can’t hear.
You say you can’t stand her,
The bastard’s a girl.
You who have blown your tubes like a bad radio
Clear of voices and history, the staticky
Noise of the new.
You say I should drown the kittens. Their smell!
You say I should drown my girl.
She’ll cut her throat at ten if she’s mad at two.
The baby smiles, fat snail,
From the polished lozenges of orange linoleum.
You could eat him. He’s a boy.
You say your husband is just no good to you.
His Jew-Mama guards his sweet sex like a pearl.
You have one baby, I have two.
I should sit on a rock off Cornwall and comb my hair.
I should wear tiger pants, I should have an affair.
We should meet in another life, we should meet in air,
Me and you.

Meanwhile there’s a stink of fat and baby crap.
I’m doped and thick from my last sleeping pill.
The smog of cooking, the smog of hell
Floats our heads, two venemous opposites,
Our bones, our hair.
I call you Orphan, orphan. You are ill.

The sun gives you ulcers, the wind gives you T.B.
Once you were beautiful.
In New York, in Hollywood, the men said: “Through?
Gee baby, you are rare.”
You acted, acted for the thrill.
The impotent husband slumps out for a coffee.
I try to keep him in,
An old pole for the lightning,
The acid baths, the skyfuls off of you.
He lumps it down the plastic cobbled hill,
Flogged trolley. The sparks are blue.
The blue sparks spill,
Splitting like quartz into a million bits.
O jewel! O valuable!
That night the moon
Dragged its blood bag, sick
Animal
Up over the harbor lights.
And then grew normal,
Hard and apart and white.
The scale-sheen on the sand scared me to death.
We kept picking up handfuls, loving it,
Working it like dough, a mulatto body,
The silk grits.
A dog picked up your doggy husband. He went on.

Now I am silent, hate
Up to my neck,
Thick, thick.
I do not speak.
I am packing the hard potatoes like good clothes,
I am packing the babies,
I am packing the sick cats.
O vase of acid,
It is love you are full of. You know who you hate.
He is hugging his ball and chain down by the gate
That opens to the sea
Where it drives in, white and black,
Then spews it back.
Every day you fill him with soul-stuff, like a pitcher.
You are so exhausted.

Your voice my ear-ring,
Flapping and sucking, blood-loving bat.
That is that. That is that.
You peer from the door,
Sad hag. “Every woman’s a whore.
I can’t communicate.”

I see your cute decor
Close on you like the fist of a baby
Or an anemone, that sea
Sweetheart, that kleptomaniac.
I am still raw.
I say I may be back.
You know what lies are for.

Even in your Zen heaven we shan’t meet.

18 October1962


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

Ovelha na névoa


Colinas mergulham na brancura.
Estrelas ou pessoas
Me olham com tristeza, desapontadas comigo.

Um fio de hálito fica no caminho.
Ó, lento
Cavalo cor de ferrugem,

Cascos, sinos doendo –
A manhã toda
Manhã ainda escurecendo,

Essa flor ao relento.
Meus ossos sentem um sossego, os campos
Distantes dissolvem meu coração.

Eles ameaçam
Me abandonar por um céu
Sem estrelas e órfã, água escura.
.

Sheep in fog


The hills step off into whiteness.
People or stars
Regard me sadly, I disappoint them.

The train leaves a line of breath.
O slow
Horse the colour of rust,

Hooves, dolorous bells –
All morning the
Morning has been blackening,

A flower left out.
My bones hold a stillness, the far
Fields melt my heart.

They threaten
To let me through to a heaven
Starless and fatherless, a dark water.

2 December 1962/28 January 1963


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

Os manequins de Munique


Perfeição é terrível, ela não pode ter filhos.
Fria feito hálito de neve, sela seu ventre

Onde os teixos sopram como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida

Ovula suas luas, mês a mês, sem nenhum motivo.
A seiva do sangue é a seiva do amor,

O sacrifício absoluto.
Ou seja: não ídolos mas eu mesma,

Eu e você.
Então, em sua doçura sulfúrica, seus sorrisos

Esses manequins hoje dormem
Em Munique, um necrotério entre Roma e Paris,

Calvos e nus em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja em palitos de prateados,

Insuportáveis, sem mente.
A neve goteja estilhaços de escuridão,

Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e tirar

Sapatos, para lustrá-los com carbono,
Pois neles dedos gordos partem amanhã.

Ah, essas janelas tão familiares,
O laço do bebê, confeito verde-folha,

Grossos alemães cochilam em seu insondável Stolz.
E nos ganchos, telefones negros

Brilham,
Brilham e digerem

Mas sem voz. A neve não tem voz.
.

The Munich mannequins


Perfection is terrible, it cannot have children.
Cold as snow breath, it tamps the womb

Where the yew trees blow like hydras,
The tree of life and the tree of life

Unloosing their moons, month after month, to no purpose.
The blood flood is the flood of love,

The absolute sacrifice.
It means no more idols but me,

Me and you.
So, in their sulphur loveliness, in their smiles

These mannequins lean tonight
In Munich, morgue between Paris and Rome,

Naked and bald in their turs,
Orange lollies on silver sacks.

Intolerable, without mind.
The snow drops its pieces of darkness,

Nobody’s about. In the hotels
Hands will be opening doors and setting

Down shoes for a polish of carbon
Into which broad toes will go tomorrow.

O the domesticity of these windows,
The baby lace, the green leaved confectionary,

The thick Germans slumbering in their bottomless Stoiz.
And the black phones on hooks

Glittering
Glittering and digesting

Voicelessness. The snow has no voice.

28 January 1963


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

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Sylvia Plath

Criança


O olho claro é a coisa mais bonita em você.
Quem dera enchê-lo de patos e cores,
Zôo do novo,

Nomes em que você pensa –
Campânula-de-abril, Cachimbo-de-índio,
Pequenino

Caule sem espinhos,
Lago em cujas margens, imagens
Pudessem ser clássicas e imensas

Não esse tenso
Torcer de mãos, esse teto
Escuro e sem estrela.
.

Child


Your clear eye is the one absolutely beautiful thing.
I want to fill it with color and ducks,
The zoo of the new

Whose names you meditate –
April snowdrop, Indian pipe,
Little

Stalk without wrinkle,
Pool in which images
Should be grand and classical

Not this troublous
Wringing of hands, this dark
Ceiling without a star.

28 January 1963


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

Balões


Desde o Natal estão com a gente,
Claros e inocentes,
Bichos de alma oval,
Tomando metade do espaço,
Movendo e roçando sua seda

Invisível, o ar os leva,
Gritando e estourando
Quando feridos, murchando até o fim, em convulsão.
Cabeça de gato amarela, peixe azul –
Em vez de uma mobília velha

Com que luas estranhas convivemos:
Esteiras, paredes brancas,
E estes globos peregrinos
Cheios de ar leve, verde ou vinho,
Divertindo

O coração como desejos ou pavões
Livres, abençoando
O antigo chão com suas penas
Folheadas em metal.
Seu irmão caçula

Está fazendo
O balão miar feito um gatinho.
Parece ver
Do outro lado um mundo cor-de-rosa, comestível,
Ele morde,

E cai
Pra trás, jarra cheia,
Contemplando um mundo claro como água.
Um trapo vermelho
Sobra em seus dedinhos.
.

Balloons


Since Christmas they have lived with us,
Guileless and clear,
Oval soul-animals,
Taking up half the space,
Moving and rubbing on the silk

Invisible air drifts,
Giving a shriek and pop
When attacked, then scooting to rest, barely trembling.
Yellow cathead, blue fish –
Such queer moons we live with

Instead of dead furniture!
Straw mats, white walls
And these traveling
Globes of thin air, red, green,
Delighting

The heart like wishes or free
Peacocks blessing
Old ground with a feather
Beaten in starry metals.
Your small

Brother is making
His balloon squeak like a cat.
Seeming to see
A funny pink world he might eat on the other side of it,
He bites,

Then sits
Back, fat jug
Contemplating a world clear as water.
A red
Shred in his little fist.

5 February 1963


– Sylvia Plath, em “Poemas – Sylvia Plath”. [organização, tradução, ensaios e notas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça]. São Paulo: Iluminuras, 2007.

§

Palavras


Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
.

Words


Axes
After whose stroke the wood rings,
And the echoes!
Echoes travelling
Off from the center like horses.

The sap
Wells like tears, like the
Water striving
To re-estabilish its mirror
Over the rock

That drops and turns,
A white skull,
Eaten by weedy greens
Years later I
Encounter them on the road —

Words dry and riderless,
The indefatigable hoof-taps.
While
From the bottom of the pool, fixed stars
Govern a life.


– Sylvia Plath, em “Critica e tradução: Ana Cristina Cesar”. 1ª ed., São Paulo: Ática, 1999.

§

A chegada da caixa de abelhas*


Encomendei esta caixa de madeira
Clara, exata, quase um fardo para carregar.
Eu diria que é um ataúde de um anão ou
De um bebê quadrado
Não fosse o barulho ensurdecedor que dela escapa.

Está trancada, é perigosa.
Tenho de passar a noite com ela e
Não consigo me afastar.
Não tem janelas, não posso ver o que há dentro.
Apenas uma pequena grade e nenhuma saída.

Espio pela grade.
Está escuro, escuro.
Enxame de mãos africanas
Mínimas, encolhidas para exportação,
Negro em negro, escalando com fúria.

Como deixá-las sair?
É o barulho que mais me apavora,
As sílabas ininteligíveis.
São como uma turba romana,
Pequenas, insignificantes como indivíduos, mas meu deus, juntas!

Escuto esse latim furioso.
Não sou um César.
Simplesmente encomendei uma caixa de maníacos.
Podem ser devolvidos.
Podem morrer, não preciso alimentá-los, sou a dona.

Me pergunto se têm fome.
Me pergunto se me esqueceriam
Se eu abrisse as trancas e me afastasse e virasse árvore.
Há laburnos, colunatas louras,
Anáguas de cerejas.

Poderiam imediatamente ignorar-me.
No meu vestido lunar e véu funerário
Não sou uma fonte de mel.
Por que então recorrer a mim?
Amanhã serei Deus, o generoso – vou libertá-los.

A caixa é apenas temporária.
.

The arrival of the bee box


I ordered this, clean wood box
Square as a chair and almost too heavy to lift.
I would say it was the coffin of a midget
Or a square baby
Were there not such a din in it.

The box is locked, it is dangerous.
I have to live with it overnight
And I can’t keep away from it.
There are no windows, so I can’t see what is in there.
There is only a little grid, no exit.

I put my eye to the grid.
It is dark, dark,
With the swarmy feeling of African hands
Minute and shrunk for export,
Black on black, angrily clambering.

How can I let them out?
It is the noise that appalls me most of all,
The unintelligible syllables.
It is like a Roman mob,
Small, taken one by one, but my god, together!

I lay my ear to furious Latin.
I am not a Caesar.
I have simply ordered a box of maniacs.
They can be sent back.
They can die, I need feed them nothing, I am the owner.

I wonder how hungry they are.
I wonder if they would forget me
If I just undid the locks and stood back and turned into a tree.
There is the laburnum, its blond colonnades,
And the petticoats of the cherry.

They might ignore me immediately
In my moon suit and funeral veil.
I am no source of honey
So why should they turn on me?
Tomorrow I will be sweet God, I will set them free.

The box is only temporary.


– Sylvia Plath, em “Critica e tradução: Ana Cristina Cesar”. 1ª ed., São Paulo: Ática, 1999.
* Tradução Ana Cristina Cesar e Ana Cândida Perez

§

Elmo* **


Para Ruth Fainlight

Eu conheço o fundo, ela diz. Eu conheço com minha mais profunda raiz:
É o que tu temes
Eu não temo: estive lá.

É o mar o que tu ouves em mim,
Sua insatisfação?
Ou a voz do nada, tua loucura?

O amor é uma sombra.
Como mentes e choras por ele.
Ouve: são seus cascos: fugiu como um cavalo.

A noite inteira galoparei assim, impetuosa,
Até que tua cabeça seja uma pedra, teu travesseiro um descampado,
Ecoando, ecoando.

Ou devo trazer-te o som do veneno?
É a chuva este silêncio.
E esse é seu fruto: branco, como arsênico.

Sofri a atrocidade do pôr-do-sol
Calcinada até a raiz
Minhas vermelhas entranhas queimadas como garras de arame

Agora me desfaço em pedaços que voam como projéteis
Vento tão violento
Não tolera nenhum amparo: terei de gritar
…………………………………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………………

Esse grito mora em mim
Toda noite ele escapa,
Procurando, com as garras, alguma coisa para amar.

Vivo ameaçado por este ser escuro
Que dorme em mim;
O dia inteiro sinto seus macios, malignos movimentos

Nuvens passam e se dispersam.
Serão essas as faces do amor, essas pálidas irremediáveis?
É para isso que meu coração se agita?

Sou incapaz de mais conhecimento.
Quem é esse, esse rosto
Assassino em seu estrangular de ramos?
Seu beijo ácido de serpente
Petrifica o desejo. São lentos, erros isolados
Que matam, que matam, que matam.
.

Elm
For Ruth Fainlight

I know the bottom, she says. I know it with my great tap root:
It is what you fear.
I do not fear it: I have been there.

Is it the sea you hear in me,
Its dissatisfactions?
Or the voice of nothing, that was your madness?

Love is a shadow.
How you lie and cry after it
Listen: these are its hooves: it has gone off, like a horse.

All night I shall gallop thus, impetuously,
Till your head is a stone, your pillow a little turf,
Echoing, echoing.

Or shall I bring you the sound of poisons?
This is rain now, this big hush.
And this is the fruit of it: tin-white, like arsenic.

I have suffered the atrocity of sunsets.
Scorched to the root
My red filaments burn and stand, a hand of wires.

Now I break up in pieces that fly about like clubs.
A wind of such violence
Will tolerate no bystanding: I must shriek.

The moon, also, is merciless: she would drag me
Cruelly, being barren.
Her radiance scathes me. Or perhaps I have caught her.

I let her go. I let her go
Diminished and flat, as after radical surgery.
How your bad dreams possess and endow me.

I am inhabited by a cry.
Nightly it flaps out
Looking, with its hooks, for something to love.

I am terrified by this dark thing
That sleeps in me;
All day I feel its soft, feathery turnings, its malignity.

Clouds pass and disperse.
Are those the faces of love, those pale irretrievables?
Is it for such I agitate my heart?

I am incapable of more knowledge.
What is this, this face
So murderous in its strangle of branches?——

Its snaky acids hiss.
It petrifies the will. These are the isolate, slow faults
That kill, that kill, that kill.


– Sylvia Plath, em “Critica e tradução: Ana Cristina Cesar”. 1ª ed., São Paulo: Ática, 1999.
* Tradução Ana Cristina Cesar e Ana Cândida Perez
** A tradução encontrada omite os seguintes tercetos: “The moon, also, is merciless: she would drag me/ Cruelly, being barren./ Her radiance scathes me. Or perhaps I have caught her.// I let her go. I let her go/ Diminished and flat, as after radical surgery./ How your bad dreams possess and endow me.”

§

Outono de Rã


O verão envelhece, mãe impiedosa.
Os insetos vão escassos, esquálidos.
Em nossos lares palustres nós apenas
Coaxamos e definhamos.

As manhas se dissipam em sonolência.
O sol brilha pachorrento
Entre caniços ocos. As moscas não chegam a nós.
O charco nos repugna.

A geada cobre até aranhas. Obviamente
O deus da plenitude
Está morando longe daqui. Nosso povo rareia
Lamentavelmente.
.

Frog autumn


Summer grows old, cold-blooded mother.
The insects are scant, skinny.
In these palustral homes we only
Croak and wither.

Mornings dissipate in somnolence.
The sun brightens tardily
Among the pithless reeds. Flies fail us.
he fen sickens.

Frost drops even the spider. Clearly
The genius of plenitude
Houses himself elsewhwere. Our folk thin
Lamentably.


– Sylvia Plath, em “Antologia da nova poesia norte-americana”. [seleção e tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

§

Colher amoras


Ninguém nas veredas e nada, nada além das amoras,
Amoras de ambos os lados, embora mais à direita
Uma aléia de amoras descendo em curva e um mar
Se alçando lá no fim. Amoras
Grandes como o meu polegar e a silenciar como olhos
De ébano nas sebes, gordas
De sumo azul-vermelho. O sumo esbanjam entre meus dedos.
Eu não pedira esta fraternidade de sangue: — elas na certa me amam.
E se acomodam em meu jarro, achatando-se os lados.

No alto, as gralhas negras, revoada cacofônica
— Pedaços de papel queimado girando num céu a pleno.
É delas a única voz protestando, protestando…
Acho que o mar não aparecera.
As campinas altas e verdes resplandecem como acesas por dentro.
Chego a um arbusto cheio de amoras tão maduras que o arbusto é de moscas
Pendentes, suas barrigas verde-azuladas e os vitrais das asas numa tela chinesa.
A festa de mel das amoras alvoroçou-as. Elas acreditam no céu.
Uma curva mais: amoras e arbustos terminam.

Tudo o que vem agora é o mar.
De entre dois morros uma súbita brisa se afunila em direção a mim
E me esbofeteia a face.
Esses montes são muito verdes e doces para quem provou sal.
Entre eles, sigo a trilha das ovelhas. Numa última curva
Alcanço a face norte dos montes, cor de lararja e rocha
E a face olha para nada, nada exceto um grande espaço
De luzes brancas metálicas; nada exceto um ruído de ferramentas sobre a prata,
Os golpes e golpes contra um metal intratável.
.

Blackberrying


Nobody in the lane, and nothing, nothing but blackberries,
Blackberries on either side, though on the right mainly,
A blackberry alley, going down in hooks, and a sea
Somewhere at the end of it, heaving. Blackberries
Big as the ball of my thumb, and dumb as eyes
Ebon in the hedges, fat
With blue-red juices. These they squander on my fingers.
I had not asked for such a blood sisterhood; they must love me.
They accommodate themselves to my milkbottle, flattening their sides.

Overhead go the choughs in black, cacophonous flocks—
Bits of burnt paper wheeling in a blown sky.
Theirs is the only voice, protesting, protesting.
I do not think the sea will appear at all.
The high, green meadows are glowing, as if lit from within.
I come to one bush of berries so ripe it is a bush of flies,
Hanging their bluegreen bellies and their wing panes in a Chinese screen.
The honey-feast of the berries has stunned them; they believe in heaven.
One more hook, and the berries and bushes end.

The only thing to come now is the sea.
From between two hills a sudden wind funnels at me,
Slapping its phantom laundry in my face.
These hills are too green and sweet to have tasted salt.
I follow the sheep path between them. A last hook brings me
To the hills’ northern face, and the face is orange rock
That looks out on nothing, nothing but a great space
Of white and pewter lights, and a din like silversmiths
Beating and beating at an intractable metal.


– Sylvia Plath, em “Antologia da nova poesia norte-americana”. [seleção e tradução de Jorge Wanderley]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

§

Apreensões


Existe este muro branco, acima do qual o céu se faz —
Infinito, verde, todo intocável.
Anjos nadam ali, a as estrelas, em indiferença também.
Eles são meu meio. O sol se esvai neste muro, sangrando suas luzes.

Um muro cinza agora, arranhado a sangrento.
Não há como escapar da mente?
Passos atrás de mim espiralam poço adentro.
Não há árvores nem aces neste mundo,
Só existe um azedume.

Este muro vermelho recua continuamente:
Um punho vermelho, abrindo a fechando,
Dois sacos de papel cinza —
É disco que eu sou feita, disco a de um terror
De rodar sob crazes a uma chuva de pietás.

Num muro negro, pássaros inidentificáveis
Giram suas cabeças a gritam.
Não se fala de imortalidade entre eles!
Frios brancos nos alcançam:
Movem-se com pressa.
.

Apprehensions


There is this white wall, above which the sky creates itself –
Infinite, green, utterly untouchable.
Angels swim in it, and the stars, in indifference also.
They are my medium.
The sun dissolves on this wall, bleeding its lights.

A gray wall now, clawed and bloody.
Is there no way out of the mind?
Steps at my back spiral into a well.
There are no trees or birds in this world,
There is only sourness.

This red wall winces continually:
A red fist, opening and closing,
Two gray, papery bags –
This is what I am made of, this and a terror
Of being wheeled off under crosses and a rain of pietas.

On a black wall, unidentifiable birds
Swivel thier heads and cry.
There is no talk of immortality among these!
Cold blanks approach us:
They move in a hurry.


– Sylvia Plath, em “Sylvia Plath – XXI poemas”. [tradução de Ronald Polito e Deisa Chamahum Chaves]. Mariana/MG: Editora Livre, 1994.

§

Asilo de velhas


Fendidas em negro, feito besouros,
Frágeis como cerâmica antiga
Que um sopro faria em pedaços,
As velhas se arrrastam aqui
Para o sol nas rochas ou
Se escoram contra o muro
Cujas pedras guardam algum calor.

Agulhas tecem num ave-adunco
Contraponto a suas vozes:
Filhos, filhas, filhas a filhos,
Distantes a frios como fotos,
Netos que ninguém conhece.
A idade gasta o melhor pano negro
Vermelho-ferrugem ou verde como líquens.

Ao grito-da-conga os velhos fantasmas juntam-se
Para enxotá-las da relva.
De camas em fileiras como caixões
As senhoras de touca riem.
E a Morte, aquele abutre de cabeça branca.
Estaca em halls onde o pavio da vela
Encurta quando respiram.
.

Old ladies’ home


Sharded in black, like beetles,
Frail as antique earthenwear
One breath might shiver to bits,
The old women creep out here
To sun on the rocks or prop
Themselves up against the wall
Whose stones keep a little heat.

Needles knit in a bird-beaked
Counterpoint to their voices:
Sons, daughters, daughters and sons,
Distant and cold as photos,
Grandchildren nobody knows.
Age wears the best black fabric
Rust-red or green as lichens.

At owl-call the old ghosts flock
To hustle them off the lawn.
From beds boxed-in like coffins
The bonneted ladies grin.
And Death, that bald-head buzzard,
Stalls in halls where the lamp wick

Shortens with each breath drawn.


– Sylvia Plath, em “Sylvia Plath – XXI poemas”. [tradução de Ronald Polito e Deisa Chamahum Chaves]. Mariana/MG: Editora Livre, 1994.

§

As túlipas


As túlipas são demasiado sensíveis; é inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apercebendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
[nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
[enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo aos
[cirurgiões.

Apoiaram-me a cabeça entre as almofadas e a dobra do lençol
como um olho entre duas pálpebras brancas que jamais
[se fecham.
Estúpida pupila, ela que tem de estar atenta tudo.
As enfermeiras vão e vêm, não perturbam,
passam com as suas toucas brancas como gaivotas voando
[para terra,
com as mãos sempre ocupadas, todas idênticas,
sendo assim impossível dizer quantas são.

Para elas o meu corpo é um seixo, tratam-no como a água
trata os seixos sobre os quais corre, polindo-os suavemente.
Trazem-me o torpor nas suas agulhas reluzentes,
[trazem-me o sono.
Neste momento perdi-me, estou cansada das minhas bagagens…
A minha maleta de couro como uma caixa de pílulas
[negra,
o marido e a filha sorrindo-me do retrato de família;
os seus sorrisos penetram-me na pele, como pequenos
[anzóis sorridentes.

Deixei a vida correr, um velho cargueiro com trinta anos
agarrando-se obstinadamente ao meu nome e endereço.
Limparam-me de todas as minhas associações afectivas.
Aterrada e nua sobre a maca acolchoada de plástico
[verde
vi o meu serviço de chá, as minhas cómodas de roupa
[branca, os meus livros
afundarem-se até os perder de vista, e a água cobriu-me
[a cabeça.
Sou uma freira agora, nunca fui tão pura.

Não queria flores, apenas queria
estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
[toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
[libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
[bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram; imagino-os
introduzindo-as na boca como se fossem hóstias.

Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
[bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
[meu corpo.

Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim como a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
[lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
[recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.

Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
[ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.

Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
[perigosos;
abrem-se como a boca de um felino africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
[me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de um país tão longínquo como a saúde.
.

Tulips


The tulips are too excitable, it is winter here.
Look how white everything is, how quiet, how snowed-in.
I am learning peacefulness, lying by myself quietly
As the light lies on these white walls, this bed, these hands.
I am nobody; I have nothing to do with explosions.
I have given my name and my day-clothes up to the nurses
And my history to the anesthetist and my body to surgeons.

They have propped my head between the pillow and the sheet-cuff
Like an eye between two white lids that will not shut.
Stupid pupil, it has to take everything in.
The nurses pass and pass, they are no trouble,
They pass the way gulls pass inland in their white caps,
Doing things with their hands, one just the same as another,
So it is impossible to tell how many there are.

My body is a pebble to them, they tend it as water
Tends to the pebbles it must run over, smoothing them gently.
They bring me numbness in their bright needles, they bring me sleep.
Now I have lost myself I am sick of baggage——
My patent leather overnight case like a black pillbox,
My husband and child smiling out of the family photo;
Their smiles catch onto my skin, little smiling hooks.

I have let things slip, a thirty-year-old cargo boat
stubbornly hanging on to my name and address.
They have swabbed me clear of my loving associations.
Scared and bare on the green plastic-pillowed trolley
I watched my teaset, my bureaus of linen, my books
Sink out of sight, and the water went over my head.
I am a nun now, I have never been so pure.

I didn’t want any flowers, I only wanted
To lie with my hands turned up and be utterly empty.
How free it is, you have no idea how free——
The peacefulness is so big it dazes you,
And it asks nothing, a name tag, a few trinkets.
It is what the dead close on, finally; I imagine them
Shutting their mouths on it, like a Communion tablet.

The tulips are too red in the first place, they hurt me.
Even through the gift paper I could hear them breathe
Lightly, through their white swaddlings, like an awful baby.
Their redness talks to my wound, it corresponds.
They are subtle : they seem to float, though they weigh me down,
Upsetting me with their sudden tongues and their color,
A dozen red lead sinkers round my neck.

Nobody watched me before, now I am watched.
The tulips turn to me, and the window behind me
Where once a day the light slowly widens and slowly thins,
And I see myself, flat, ridiculous, a cut-paper shadow
Between the eye of the sun and the eyes of the tulips,
And I have no face, I have wanted to efface myself.
The vivid tulips eat my oxygen.

Before they came the air was calm enough,
Coming and going, breath by breath, without any fuss.
Then the tulips filled it up like a loud noise.
Now the air snags and eddies round them the way a river
Snags and eddies round a sunken rust-red engine.
They concentrate my attention, that was happy
Playing and resting without committing itself.

The walls, also, seem to be warming themselves.
The tulips should be behind bars like dangerous animals;
They are opening like the mouth of some great African cat,
And I am aware of my heart: it opens and closes
Its bowl of red blooms out of sheer love of me.
The water I taste is warm and salt, like the sea,
And comes from a country far away as health.


– Sylvia Plath, em “Pela água” (Crossing the Water). Sylvia Plath. [tradução de Maria de Lurdes Guimarães]. Lisboa: Editora Assírio e Alvim, 1990.





Sylvia Plath (Boston27 de outubro de 1932 — Londres11 de fevereiro de 1963) foi uma poetaromancista e contista norte-americana.

Reconhecida principalmente por sua obra poética, Sylvia Plath escreveu também um romance semi-autobiográficoBrasilA Redoma de Vidro / Portugal: A Campânula de Vidro ("The Bell Jar"), sob o pseudônimo Victoria Lucas, com detalhes do histórico de sua luta contra a depressão. Assim como Anne Sexton, Sylvia Plath é creditada por dar continuidade ao gênero de poesia confessional, iniciado por Robert Lowell e W. D. Snodgrass.[1][2]

Biografia

Infância

Filha de Aurelia Schober Plath, da primeira geração norte-americana de uma família austríaca, e de Otto Emile Plath, um imigrante de Grabow, Alemanha. O pai trabalhava como professor de zoologia e alemão na Universidade de Boston, sendo também um notável especialista em abelhas. A mãe de Sylvia era vinte e um anos mais nova que o marido. Em 1935, nasceu o segundo filho, Warren. A família mudou-se para Winthrop, Massachusetts, em 1936, durante a Grande Depressão. Sylvia, então com quatro anos de idade, passaria em Johnson Avenue grande parte de sua infância. A mãe de Sylvia, Aurelia, crescera em Winthrop, e seus avós maternos, os Schobers, viveram em uma parte da cidade, de nome Point Shirley, mencionada na poesia de Plath. Sylvia publicou seu primeiro poema em Winthrop, na sessão infantil de Boston Herald, aos oito anos de idade.

Otto Plath morre em 5 de novembro de 1940, uma semana e meia após o aniversário de oito anos de Sylvia, devido a complicações seguidas à amputação de uma das pernas em decorrência de diabetes. A doença já era tratável nessa época, porém ele não havia recebido o tratamento necessário, tendo diagnosticado a doença por conta própria. Otto ficara doente pouco tempo após a morte de um amigo próximo, de câncer no pulmão, e devido às similaridades entre os sintomas de seu amigo e seus próprios sintomas, Otto estava convencido de que também sofria da doença, e não buscou o tratamento, fazendo com que sua verdadeira doença progredisse criticamente. O pai de Sylvia Plath está enterrado no cemitério de Winthrop, onde sua lápide continua a atrair leitores de um dos poemas mais famosos de Plath, "Papai" ("Daddy"). Aurelia Plath, então, muda-se com seus pais e as crianças, para a rua Elmwood 26, em Wellesley, Massachusetts, em 1942.

Anos na faculdade

Durante o verão após seu terceiro ano na faculdade, Plath trabalhou como editora convidada na revista "Mademoiselle" e morou por um mês na cidade de Nova Iorque. A experiência não foi nada do que Sylvia esperava, começando então uma reviravolta em sua visão sobre si própria e sobre a vida. Muitos dos eventos ocorridos naquele verão inspiraram o seu único romanceA Redoma de Vidro. No seu primeiro ano em Smith College, Sylvia tentara o suicídio pela primeira vez, tomando uma overdose de narcóticos. Detalhes sobre outras tentativas, documentadas oficialmente ou não em seu histórico médico, estão presentes no livro em forma de crônica. Após esse episódio, Plath esteve internada por breve período em uma instituição psiquiátrica, onde recebeu terapia de eletrochoques. Sua estada no hospital McLean foi financiada por Olive Higgins Prouty, também responsável pela bolsa concedida à Plath para arcar com as despesas de seus anos em Smith College. Sylvia recupera-se de seu estado satisfatoriamente, formando-se em Smith College com louvor em 1955. Aluna brilhante, obteve bolsa integral fullbright na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde continuou a escrever poesia ativamente, publicando seu trabalho ocasionalmente no jornal Varsity, organizado por estudantes principalmente. No final de fevereiro de 1955, na festa de lançamento da "St. Botolph's Review", em Cambridge, conhece o jovem poeta britânico Ted Hughes, o que Plath afirmou em uma carta à mãe ser paixão imediata, visto que já acompanhava e admirava seu trabalho literário. Casaram-se em uma pequena cerimônia no dia 16 de junho de 1955.

Casamento e filhos

Fitzroy Road 23, Londres, onde Plath se matou.

O jovem casal de poetas passou o período de julho de 1957 a outubro de 1959 vivendo e trabalhando nos Estados Unidos, onde Plath lecionava inglês em Smith.

Mudaram-se para Boston, onde Plath assistia aos seminários do poeta Robert Lowell. Além de Sylvia, a poeta Anne Sexton também frequentou esses seminários. Nessa época, Plath e Hughes conhecem também W. S. Merwin, que admirou o trabalho do casal, firmando amizade com Sylvia e Ted por toda a sua vida.

Com a descoberta da gravidez de Plath, o casal muda-se de volta para a Inglaterra, vivendo em Chalcot Square, próximo à área Primrose Hill de Regent's Park, em Londres. O casal fixa-se então, na pequena cidade de North Tawton, em Devon. Nessa época, é publicada a primeira coletânea de poemas de Sylvia Plath, chamada "The Colossus". Em fevereiro de 1961, Plath sofre um aborto, que seria um dos seus temas principais, presente em grande número de poemas.

O casamento de Plath com Ted Hughes começa, então, a enfrentar muitos obstáculos, particularmente a relação extra-conjugal de Hughes com Assia Wevill, e o casal separa-se no final de 1962. Plath, então, retorna a Londres com seus dois filhos, Frieda e Nicholas, de três anos e um ano, respectivamente, alugando um apartamento na rua Fitzroy n° 23 (a apenas alguns quarteirões do apartamento em que havia morado com o marido, em Chalcot Square), no prédio onde W. B. Yeats também havia morado. Plath agradou-se do fato, considerando um bom presságio. Ali escreve o "A Redoma de Vidro", seu único romance.

Suicídio

Túmulo de Sylvia Plath no St Thomas A. Beckett Churchyard, Heptonstall, West YorkshireInglaterra

Na manhã de 11 de fevereiro de 1963, Plath veda completamente o quarto das crianças com toalhas molhadas e roupas, deixando leite e pão perto de suas camas, tendo o cuidado de abrir as janelas do quarto, ainda que em meio a uma forte nevasca. De seguida, toma uma grande quantidade de narcóticos, deitando logo após a cabeça sobre uma toalha no interior do forno, com o gás ligado, morrendo passado pouco tempo.

Na manhã seguinte, foi encontrada pela enfermeira que havia contratado, Myra Norris, que, quando chegou ao apartamento, sentiu um cheiro muito forte de gás. Pediu ajuda. A porta foi arrombada. O quarto das crianças estava gelado, e ambas com muito frio.

Em 16 de março de 2009, o seu filho Nicholas Hughes (biólogo marinho e professor universitário em FairbanksAlasca), em consequência de uma depressão, também cometeu suicídio, enforcando-se em sua casa. Não era casado e não tinha filhos.

Diários

Plath manteve o hábito de escrever em diários, desde a idade de 11 anos, até ao seu suicídio. Seus diários da fase adulta, começando com os seus anos como caloura em Smith College em 1950, foram publicados primeiramente em 1980, editados por Frances McCullough. Em 1982, quando o Smith College recuperou os diários que faltavam, Ted Hughes os selou até 11 de fevereiro de 2013, decorridos 50 anos da morte de Sylvia.

Em 1998, pouco antes de sua morte, Hughes liberou os manuscritos, passando-os para Frieda e Nicholas, que os repassaram para Karen V. Kukil, para serem editados. Kukil termina a edição em dezembro de 1999 e, no anos de 2000, os Diários são publicados pela editora Anchor Books, com o título The Unabridged Journals of Sylvia Plath. De acordo com a contracapa, dois terços dos Unabridged Journals eram materiais novos. A escritora americana Joyce Carol Oates descreve a publicação como um "genuíno evento literário".

Hughes foi alvo de muito criticismo, pelo papel que desempenhou destruindo a última parte dos diários de Plath, que continham escritos desde o inverno de 1962 até à sua morte. Ele se defende, afirmando que os havia destruído em um ato de proteção de seus filhos e que o esquecimento para ele era uma parte essencial da sua sobrevivência.

Obras



FOLHA DE SP

Como Sylvia Plath ressurge muito além da poeta suicida em novos livros

Romance e coletânea inédita ampliam compreensão de uma escritora cuja morte virou chave para sua literatura


Anna Virginia Balloussier
SÃO PAULO

Sylvia Plath não ganhou um obituário do New York Times quando morreu, uma praxe para todo autor do seu calibre, e até abaixo dele. Outro jornal, o conterrâneo Boston Globe, dedicou oito burocráticas linhas à morte da senhora Hughes —preferiram usar seu nome de casada. O breve texto destacou os laços familiares da "esposa de Ted Hughes" e "mãe de Frieda e Nicholas".

E cá estamos, 60 anos depois, com Plath em seu devido lugar: uma das maiores vozes literárias do século 20, relembrada por uma série de lançamentos que chegam às livrarias brasileiras. Pela Companhia das Letras saem uma coletânea completa de sua poesia e "Euforia", romance em que a sueca Elin Cullhed assume o ponto de vista da escritora americana para narrar seus últimos dias.

Foto da capa de 'Diários de Sylvia Plath: 1950-1962', publicada pela Globo Livros, em 2017
Foto da capa de 'Diários de Sylvia Plath: 1950-1962', publicada pela Globo Livros, em 2017 - Reprodução

A Biblioteca Azul lança ainda uma edição especial de "A Redoma de Vidro", único romance da autora, que o publicou sob o pseudônimo Victoria Lucas semanas antes de se suicidar. A tradução é da poeta Ana Guadalupe.

Plath tinha 30 anos quando deixou leite e pão para a filha de quase três anos e o filho de um ano, tampou as frestas das portas com pano e ligou o gás. Foi encontrada morta no chão de sua cozinha na manhã de 11 de fevereiro de 1963.

As crianças dormiam no andar de cima da casa que já tivera o poeta irlandês W. B. Yeats como morador, em Londres. Ela havia se mudado para a cidade após ser abandonada pelo marido, Ted Hughes, também ele um dos grandes poetas da língua inglesa.

A amante dele, Assia Wevill, era uma judia que deixou a Alemanha nazista em 1934 e se matou seis anos depois da mesma forma, com gás, mas levando junto a filha Shura, 4. Em 2009 foi Nicholas, o caçula de Plath e Hughes, quem tirou a própria vida. Enforcou-se aos 47 anos.

Muito da escrita visceral que eternizou Plath vem de temporadas sombrias, sobretudo seus últimos meses de vida. "Lady Lazarus", um de seus poemas mais ilustres, confunde-se com um epitáfio. "Essa mulher-que-sorri", que tal qual gato tem "sete vidas para viver", sugere três tentativas de suicídio.

"Dying is an art, like everything else. I do it exceptionally well", diz a certo ponto. Na tradução da poeta Marília Garcia: "Morrer é uma arte, como tudo. É algo que conheço a fundo".

Sylvia Plath virou um ícone para várias gerações, transpassando a fronteira literária para entrar na cultura pop. Frases suas viraram tatuagem, com destaque para "I am. I am. I am." —"eu sou, eu sou, eu sou", em português—, de "A Redoma de Vidro".

A escritora chegou a aparecer em "Os Simpsons", como leitura preferencial de Lisa, a filha intelectual da família. Em 2003 veio uma cinebiografia com Gwyneth Paltrow.

Sofreu múltiplas rejeições em vida, contudo. Seu romance, por exemplo, não agradou editores. Um deles escreveu à "sra. Ted Hughes" para dizer que até gostou da primeira parte de "A Redoma de Vidro", mas lamentou a segunda. Outra deu parecer semelhante: "Eu não estava nem um pouco preparada, como leitora, para aceitar a extensão da doença [mental] e a tentativa de suicídio [da protagonista]".

Talvez a história da poeta tivesse outro arremate "se ela vivesse um pouco mais e tivesse experimentado os movimentos feministas", diz Cullhed.

Anos após se suicidar, aborto e divórcio deixaram de ser tabu em vários cantos do mundo, aponta a sueca. "Por isso é tão trágico, ela estava na beira, mas parte antes dessa nova era".

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