POEMAS SOBRE A CIDADE DA BAHIA
Bahia de Todos os Santos
Jorge de Lima
Bahia,
eu te olho e te ouço
de bordo do meu itazinho pulador,
e sob a mesma noite que nos cobre,
eu sinto o contato de teus membros morenos
e procuro com as mãos, com os lábios,
tudo o que é bom de cingir e beijar!
Para me ver chegar,
os sobrados e as igrejas
subiram nos teus montes e me espiam
de cima com os olhos das janelas acesas.
É o amante que chega!
E as virgens loucas já o esperam
com as lamparinas da Parábola.
E que noite gostosa, que colcha macia,
nos cobre a nós ambos, Bahia!
Teu amigo vem saudoso de ti e estende as mãos
aos pedaços melhores de teu corpo:
tuas ladeiras, teus montes,
as curvas gostosas da cidade mais bonita
do Brasil!
És tão cheia de altos e baixos,
Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e
pimenta-de-cheiro.
Lamento o mau gosto dos teus turistas
que te conhecem de oitiva,
e não vão além de tua Rua Chile asfaltada,
de tuas avenidas que o Seabra alargou.
Tu, como toda mulher, tens os lugares mais sombrios,
mais gostosos:
Baixa dos Sapateiros!
Beco do guindaste dos padres!
Barroquinha!
Tabuão!
Bahia de Todos os Santos,
por que os teus santos
não quiseram mudar o curso inglório
de meus17 anos, nos quais
os teus professores retóricos,
os teus médicos literatos,
injetaram a ampola da água suja
de doutrinas sem fé?
E depois de tanto tempo perdido,
de tanto caminho errado,
teu amigo voltou para os teus braços abertos.
Perdoa! Perdoa! Bahia!
Eu vim rezar nos teus santuários,
eu já sou um homem que tem
afetos por quem pedir e rezar.
E tu que me ensinaste a crer quando eu era
criança,
e depois a descrer,
e hoje a crer outra vez... eu sou um
rio torto e tu és a Bahia do Salvador!
Cobre-me com o lençol de tua noite esburacada
de estrelas, em que a lua abriu um rombo maior.
Bahia,
para olhar as nossas núpcias,
cobre-me com o teu perdão, Bahia!
Tu és católica, tu és a fé, tu és a âncora do
Nordeste; tu és a sempre nova.
Tu és a rainha, tu és a cidade que mostra ao que
chega
ao invés de arranha-céus, cruzes e cruzes,
de braços estendidos para os céus,
e na entrada do porto,
antes do Farol da Barra,
o primeiro Cristo Redentor do Brasil!
Bahia de ruas santas, de Santo Antônio da
Mouraria,
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos
Perdões,
dos fortes bem-aventurados, de São Marcelo, de
Santa Ana,
de Santo Antônio da Barra,
Bahia do Teatro São João e do cinema São
Jerônimo.
Bahia.
BAHIA
DE TODOS OS SANTOS E DE QUASE TODOS OS PECADOS
Gilberto Freyre
Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)
casas trepadas umas por cima das outras
casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra
sair num
retrato de revista ou jornal
(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)
igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras
toda a Bahia é uma maternal cidade gorda
como se dos ventres empinados dos seus montes
dos quais saíram tantas cidades do Brasil
inda outras estivessem para sair
ar mole oleoso
cheiro de comida
cheiro de incenso
cheiro de mulata
bafos quentes de sacristias e cozinhas
panelas fervendo
temperos ardendo
o Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres parindo
cheiro de alfazema
remédios contra sífilis
letreiros como este:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para sempre! Amém!)
automóveis a 30$ a hora
e um ford todo osso sobe qualquer ladeira
saltando pulando tilintando
para depois escorrer sobre o asfalto novo
que branqueja como dentadura postiça em terra
encarnada
(a terra encarnada de 1500)
gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena
cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira que cupim não rói)
sem rostos cor de fiambre
nem corpos cor de peru frio
Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos
picantes
eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras
mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,
tudo à sombra das tuas igrejas
todas cheias de anjinhos bochechudos
sãojoões sãojosés meninozinhosdeus
e com senhoras gordas se confessando a frades mais
magros do que
eu
O padre reprimido que há em mim
se exalta diante de ti Bahia
e perdoa tuas superstições
teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do
Nossossenhores do
Bonfim
e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadoras da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de
Deus
Bahia de Todos os Santos
Salvador
São Salvador
Bahia
Negras velhas da Bahia
vendendo mingau angu acarajé
Negras velhas de xale encarnado
peitos caídos
mães de mulatas mais belas dos Brasis
mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar
a todos os
meninos do Brasil.
Mulatas de mãos quase de anjos
mãos agradando ioiôs
criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando iaiás
dando cafuné nas sinhás
enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos
lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções enfeitados de rendas
estrelas marinhas de prata
tetéias de ouro
balangandãs
presentes de português
óleo de coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
Tomé de Sousa
Tomés de Sousa
padres, negros, caboclos
Mulatas quadrarunas octorunas
a Primeira Missa
os malês
índias nuas
vergonhas raspadas
candomblés santidades heresias sodomias
quase todos os pecados
ranger de camas-de-vento
corpos ardendo suando de gozo
Todos os Santos
missa das seis
comunhão
gênios de Sergipe
bacharéis de pince-nez
literatos que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto
Serpa
mulatos de fala fina
muleques
capoeiras feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua Chile
viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno
brasileiro
às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias
de frades
ruivos e bons
aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o
futuro do Brasil)
a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida
alfazema
cacau.
Extraído de: FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Apresentação de Edson Nery da
Fonseca. Salvador: Fundação das Artes, 1990. 167 p.
Ladeira
da Misericórdia
Godofredo
Filho
É
ladeira sem princípio
ou
por princípio sem fim.
È
ladeira que começa
onde
eu quisera acabar.
È ladeira da Bahia,
cruel ladeira perdida,
que
por boca da ironia
se diz da Misericórdia.
É ladeira da Bahia.
Por
onde a traçaram vai
ou
de súbito não vai,
torcida
sobre seu corpo,
virada
quase ao contrário,
canyon
por onde os alíseos
se
precipitam silvando
na
trança das urupemas.
Que
de sobrados fantasmas,
varandas
ermas de sonho,
arcos,
muralhas de sombra,
janelas, portais
vazios,
molduras
de pedra suja
sem
apoio de mais nada,
com
rios doidos de vento
saltando
no etéreo golfo
do
inútil azul das tardes!
Ó
vós que passais, ouvi-me
a
efêmera e monocórdia
canção
da negra ladeira
que
é da Misericórdia.
Misericórdia
de quem?
Misericórdia
por quê?
se
eu só (quem lhe deu amor
obscuro
mas imortal),
possa
entender o desvairo,
a esconsa
mágoa, o silêncio
que
oprime seu sonho informe.
Ai,
quero cantar-te agora,
na
solidão desta hora
que
não voltará no tempo
- sombra vã
da eternidade,
cantar-te
o jugo, o tormento
que
faz que durmas de noite
com pálpebras descoladas,
o
obsidente sofrimento
que
prendo na trama aérea
de
meus versos incorpóreos.
Também
quisera na glória
contigo sobreviver,
como
hoje, no desespero,
te
incorporas ao meu ser
pelo verbo conviver.
Ó inverossímil ladeira,
que
foste o íngreme caminho
por
onde outrora subiram,
coléricos
e espantados,
tantos
negros sofredores
sob
o relho dos feitores,
índios bravos, curumins,
ao
suave clarão dos hinos
de
pastorais cor de aurora
que
iam a dessedentar-se
nas fontes do teu perdão.
Onde
vive o teu perdão?
Ouço-te
as vozes perdidas,
ou
que das festas dos muros,
de
teus paredões enormes,
vão singrando o dorso esquivo
da
maré de teu silêncio:
são
vozes de missionários,
alaridos de corsários,
esporas
de bandeirantes,
lanças
longas, arcabuzes
vazando o crânio da treva,
gemidos
de agonizantes
nos
postigos do Hospital,
saudade daquelas donas
do
Santo Recolhimento,
os
olhos postos no mar;
vozes
bruscas de ouvidores,
de
capitães, de Doutores,
de
Primazes sonolentos,
e
de Vice-Reis odientos;
e
também, no teu mistério
das
horas de amor celeste,
procissões
de virgens brancas
entre
aromas de alecrim,
gargantilhas
de aleluia
em
cadeirinhas de arruar,
e
o amor que ali teve um dia
um
rei mago de Ajudá.
Misericórdia
por quê?
se
a alva escorre sem ver,
nem
redimir os amantes
que
dormem pelo abandono
dos
mornos beijos viscosos
no
mar dos lençóis desfeitos.
Misericórdia
de quem?
se
esmaga os rostos que dormem
ou
sobre as pedras magoadas
eu
piso gargantas súplices
de
vozes que não escuto.
Ah,
quantos sábados tristes
do
amor estival das terdes
não
rolei nas pedras lisas
de
teu ardente convite,
buscando Lalu dormindo,
afagando
Durvalina,
ou,
na carne incandescida,
sentindo
a pua dos ossos
do prenúncio do esqueleto
de Eva Maria Fernandes.
E quantas noites ungidas
de lua escorrendo insone
sobre os desvãos de teu leito,
não prendi minh´alma enferma
nos muros de teu silêncio,
e tangido ao torvo anseio
de segredos que não digo,
na madrugada morrente
varando portais desertos,
trepei teus jiraus de espanto!
Ah, descesse eu em t
ais noites
teu funicular de angústia,
sob o riso avermelhado
da gengiva das janelas,
e amargo olvido buscasse
nas ilhas do mar do vinho.
Ou então perquirindo o assombro
de horas tardas de vigília,
ouvisse teu longe canto
no cimo das turvas ilhas,
as ilhas do mar do vinho.
Onde andais, sombras fugidas
da angra de meu carinho?
Onde andais, sombras perdidas
Marfisa, Dalva, Marília?
E as outras mais? Onde estão,
de clorose e de carmim,
glicínias da noite ardente
despetaladas por mim?
Sila, Silu, Clementina,
Eurides nos braços de Elza,
Zezé com seu filho morto,
cantando a canção de Ofélia...
Juracy longa e fragílima,
Que amor abrasou na fulva
nevrose de consunções
e Judith, a flor do ciúme
que a noite acendeu no espanto
das convulsões fesceninas,
Judith que eu redimira
(ó alma, ó clarão da alma!)
Que no dezoito não vejo
na sombra o rosto de Stela,
nem Flaviana anoitece
na tarde de outra janela.
Onde andais sombras sumidas,
Floricéia negra e tantas
que nunca tiveram nome,
espuma das turvas ondas
do mar da dissolução?
Onde andais, sombras perdidas?
E tu, Leonor, pela cova?
Que tal isso lá, menina?
Melhor que nossa ladeira
com sulfa e penicilina?
No reino das águas frias,
quisera dormindo o rosto
de Dionéia Jesus Pires.
Dionéia, dá-me essa taça,
quero beber por teus olhos
no reino das águas frias.
Que vem do mar da ladeira,
entre ondas de urina e pedra,
borboleta comandando
o barco da perdição,
e eu, piloto dessa nave,
à doida rosa-dos-ventos
furando a bruma das saias
de Eva Maria Fernandes...
Ó Nauta que vais escota,
suspende a vela que é tarde,
ó Nauta, vais naufragar:
nos penedos desses peitos,
nos baixios desses púbis,
o barco vai se afundar.
Navegador solitário
dos óstios himenais,
não soçobres teu decoro
na fossa navicular.
Que longe o Porto dos Mastros,
onde alguém debalde espera
a nave que não virá!
Ó Nauta, que vai às ilhas
para esconder teu tormento,
não haverá nesses mares
a ilha do esquecimento?
Que longe o Porto dos Mastros
e o brando lençol macio
da praia do Bogari!
Por aqui só excrescências,
detritos amoniacais
e, em decúbito dorsal,
untada de mornas galas
para estranhos esponsais,
a noiva dos formicidas
com seu bilhete fatal.
Marise, Antônio sumiu.
Amália, a luz se apagou.
O riso daquela boca
o tintureiro lavou.
Escorraçado, esse canto
buscando a torta ladeira
na crina das bebedeiras,
é o canto de um marinheiro
que mares azuis trocara
pelo Biscaia de treva
das pedras desta ladeira.
É um canto de amor desfeito
contrapontando o silêncio
da língua dos enforcados
na trave de teu banheiro.
Ó Dionéia Jesus Pires
afogada na escureza
das ondas do mar sem fim,
também eu vou me afundando
nas ondas do mar do peito
de Eva Maria Fernandes.
Ladeira do meu tormento!
Fojo de animais bifrontes,
pobres cervos desgalhados
que João Batista apascenta
nos verdes quintais da encosta,
vagas enguias lustrosas
que o pesadelo da noite
distende no claro-escuro
do aquário lunar do sono...
Guiovaldo acende uma vela,
Rosa jogou-se à calçada: _
- “Meu lenço de seda branco,
meu pé de manjericão!”
Ron Merino, bofetadas,
um punhal riscando a fundo
teu nome numa canção,
soluços, pragas, risadas,
misturando blues e sambas
das radiolas de aluguel
ao lento noturno rouco
de xaques-xaques e agês
se alando às trilhas longínquas
do Aché do Opô Afonjá...
Ebó, dendê na farofa,
pimenta no arroz de Haussá.
Nossa Senhora do parto
tem olhos de conta verde
no rosto moreno estanho;
galos de alfazema e nuvem
com bicos de índigo vidro,
e as aéreas naves de âmbar,
partindo a meio o silêncio
das duas da madrugada.
Ladeira que já não subo,
mas que desço agora sem medo
da sombra que vai comigo.
Vereda isenta de arrimo,
caminho solto no tempo.
A lua deitou-se agora
no leito escuso da rua,
tomando a forma das coisas,
das janelas e das tranças
porque os convites obscenos
transmudasse em línguas brancas
segredando-me a ternura
de um conúbio sepulcral.
Hoje, és Padre Nóbrega
para o cartaz das esquinas,
mas foste acaso o caminho
de Mem de Sá, de Vieira,
de Gregório de Mattos Guerra,
comborça de capadócios,
amante de seresteiros,
Xisto da Bahia afagando
na garganta dos violões
modinhas de adormentar
o olhar que não tem mais pálpebras.
Foste rua de prosápia
e hoje és ladeira de negras,
de mulatas sifilíticas,
de soldados e de bêbedos,
rua de míseras putas
ou das sombras que entrevejo
cavalgando desabridos
ginetes de bruma errante.
Ó, esse amor ignora
do que eu só te dei, ó
ladeira
de insone Misericórdia:
amor de carne, de sangue,
de saliva e beijos ácidos,
amor que sobe do fundo
dos pântanos seminais.
Sou eu quem te beija as pedras,
quem, ao pranto convolado,
se adensa no teu mistério;
quem prende à carne dos lábios
macerados de servícia
o amor que não sabe o nome,
e o traduz em luz aurora
de redenção impossível,
por te querer abrasada
nesse amanhã que demora
de alvorecer meu tormento,
ansiando-te violentada
da graça abissal do Cristo,
à flor da chama vermelha
tocando de irreal brancura.
E então és Misericórdia!
Ladeira da minha vida.
Ladeira do meu amor.
ÉGUA DE JADE
Florisvaldo Mattos
Costumo amanhecer, o
céu vislumbro;
O mar embaixo muge
sossegado,
A orla estriada rege
o som das nuvens;
O vento lança-me aos
olhos (o rosto bebe)
O que sobra das
ondas, claro dorso.
Eu que te procurei
em luas, sol,
Mar e águas todas só
agora te encontro,
No ardor dos pelos,
fulgurantes olhos,
Animal sobre o
oceano debruçado,
Na postura de alguém
que sempre aguarda.
Exaurido me apalpo.
Sei que existes,
De ventre aberto ao
mar, de espera rude.
Navegadores chegam,
embriagados
De sonho, de cobiça
e velhas perdas.
Sei que te ornam algas;
vieste do Oriente.
Ou do Ocidente vens,
em luz de pérola?
Que me enchem de
desvairos cores novas.
A alvorada me beija?
Nem sei se a tenho
Entre teus braços –
trucidantes hastes,
Enlaçando mastros,
extraviadas quilhas.
Foi boa a noite
dentre pesadelos
Ruminados sobre teus
passos, tua
Lenta navegação por
entre torres
Em que te amarram
cordas de silêncio.
Dorme a amada; o mar
urde laborioso.
Estamos sós, eu e
tu. E o mar, testante
(Leguleio de aromas
e vivências)
Do que deixaram
tardos marinheiros
Sobre a terra
límpida, mas exausta,
Os bens que, de alma
apenas, pó restaram.
O mar é o que te
basta; é a tua culpa.
Por isso, nada
esqueces, nada passa:
A memória a
acender-te o labirinto,
A luz a reavivar o
antigo rosto,
Espuma a te invadir
adusto ventre.
Tua baía,
escancarada porta
A quem te penetre
água e terra adentro
– peixes, pássaros,
luas navegantes –,
A boca lúbrica,
emitindo toques
De tambores também
lascivos, urra.
Fica em silêncio que
já te cubro, égua
Fogosa, imersa em
toldo florescente:
Te pego pelo casco,
jade puro;
Te puxo pelas crinas
rutilantes;
Te arranco das
encostas em que pastas.
Vem, vem; se és de
ouro, risco-te nas pedras.
Vem; se és de fogo,
banho-te no mar.
Vem; se és de lua,
lanço-te no céu.
Urras; ah, pela anca
afinal peguei-te,
Égua translúcida da
madrugada.
E após, na lassidão
que disto sobra,
Batida pela brisa
que ressoa
No côncavo de uma
onda, desvaneces,
Além do cais onde
dormitam barcos.
O mar te trouxe;
estrela, o mar te leva.
(Extraído de “Poesia
Reunida e Inéditos”. São Paulo: Escrituras Editora, p. 235, 2011)
URBE DE LUZ TRANSFUSA
Para Agnaldo (Siri) Azevedo, in memoriam
ondas de cor muito mais que arpejos
a cidade desfolha-se em mugidos
hemoptises de ouro muros lavam
farmácia líquida justo a inundar
claustros pátios
iriadas praças
e ao fim praias
mercúrio aí a escorrer de rota veia
desbordantes muito mais que solfejos
alaridos na encosta avarandada
leque de velas
ao largo lúdicas
tufos amarelos
jorram de fímbria agora efervescente
quem sabe ecos de claustrais batalhas
ah, talvez bizâncio entornado tenha
vinhos de missa sangue de mosteiros
que em palácio beberam sentinelas
sorvendo taças e cruzando aljavas
agora dormem
agora dança
salomé de curvas sinuosas em palco
de cristal que urge hipnotizar o antipas
bem ali guardado
bem ali sentado
no seu trono de pórfiro e ametista
ao bruxulear de lâmpadas de azeite
música a derramar-se das estrelas
do fundo lasso lá onde a encosta doira-se
(sol ora revérbero em tela
de passado não passado)
ávidos rostos perscrutam
no horizonte ausentes naus
sob a luz que sugere penitências
nostálgica de flagelos
jardim de miosótis hortênsias muitas
despejados da abóboda replicam
vento solteiro a propagar canções
tangendo violões sulcando areia
logo angustiado som
sobe incrustado de ônix
de laca império vasto
ornado de luz lívida
súbito carne viva de fósforo transida
ou mugir de harpa em crânio paranoico
subindo por um estuar de rampas
a arder num céu de cânhamo vermelho.
NA AJUDA, PERTO DO ANGELUS
A Pedro Moacir Maia
Vellos
e vellas, mentras monean
Silbam
as salves y os padrenuestros.
Rosalia
de Castro
Vagando em horários que induzem à meditação,
No centro da ilustre urbe de caminhos imperfeitos,
Pelas cinco que um agosto rege de cinza e frio,
Ando sobre remotas pedras de um templo ultrajado,
Sítio por onde transitaram pés de cinco séculos.
Ajuda se chama e Sé de Palha foi esta casa
De oração e olvido, que ambição voraz amputou:
Cá sombrias paredes com pinturas descascadas,
Santos em seus nichos, a dialogar com sossegados
Mármores, sob arcadas que aludem a inquisições
E a penas sancionadas pela autoridade do latim.
Um careca no órgão, um cantor de blusa listrada,
Como se de pedra fossem, calmos entoam cânticos.
Luzes mortiças sob imagens sacras em panóplias,
Cenas do evangelho toscas espalham-se no teto,
Escorrem por janelas ancestrais de falso gótico
E o púlpito de madeira lavrada onde ressoam
Veementes sermões, gestos falazes, sagacidades.
Entre jogos de luz e sombra, entre volumes, mesclas
De formas neoclássicas e pungente barroquismo,
Frias flores em altares de círios apagados;
Homens e mulheres, as mãos em prece, a ruminar
Silentes verdades que adubam a razão dos pobres,
Em semblantes de conformismo e vaga transgressão.
Bailam no ar transidos coros de infância e lembranças
De garotas (onde estarão elas?) de seios duros,
Fugazmente apalpados na hora de tanger os sinos,
Aquela depois do Ângelus, nos maios de novena,
Enquanto padre Luiz San Juan a cabeça meneia
E cochila entre as gastas alfaias da sacristia.
(Poesia Reunida e Inéditos, p. 239, 2011)
SOTEROLIMOS
A
Jeovah de Carvalho
A cidade distende o couro crespo
imerso nos gemidos dos telhados;
janelas e portas (fanais da noite),
despejando lamentos sobre pedras,
saem do escuro por uma luz sonora
por onde viaja a goiva do grave Hansen,
retorcem-se cruciais chapas de Mário,
ladeiras onde versos de Godô
formam lagos de esperma flutuante.
Bordéis que torres sacras abençoam
(tudo o que sabemos a fé redime)
nas horas silentes, escoando clamor,
soluço e preces sobre frontes boêmias;
serenas lanças de astros que ornamentam
recintos de dolente passar, ó
pontas soberbas contra o choro agudo
de sacrossantos rostos mendicantes,
faces roídas de infinita espera.
Eretas torres de azulejaria
enferma (e as luxuriosas cornijas?),
que perscrutais pelo céu de amaranto
para antepasto na manhã de ausências?
Que anseios guardais em pedra de lioz?
Aspa da noite, deusa de chavelho,
a lua vem com o ventre pressuroso,
as ladeiras se enroscam e há um torpor
que amortece o tambor nos cabarés.
Tudo isto é obra do oceano que lá embaixo
rola parlamentando com os rochedos.
Lixo da rua, o mesmo dos navios
que lançam do mar tudo que emporcalha
a fímbria muda, a fímbria que admiramos,
dos administradores prometidos
gestos nos poupa, e que só morte esconde.
Tudo é inexorável, e nós sabemos:
um pedaço de mar é o que nos sobra.
A cidade adormece. Lábios boêmios
se cruzam sob marquises enfeitadas
com a luz que salta da burocracia.
Lentos lagos ali de morna esperma,
corredores de espelhos, qualquer coisa
que venha e nos livre das asperezas.
E logo esta mulher que está de costas,
lábios partidos, ombros nus, cidade
descarnada, a pele colada aos ossos.
O clamoroso ventre da montanha,
na noite de gemidos, no cassino,
mulheres seminuas, apostas altas;
na rua iluminada, bondes rangem,
levando bêbados; as rotativas
despacham o noticiário em pacotes:
povos guerreiros de sangrentas vozes,
os pobres nas manchetes de polícia,
As miúdas intrigas de governo.
A vida civilizada de uns poucos
o porto despeja em caixote e pipa.
Sabemos quem são os ricos, o infeliz
amanhã e o próximo morto; sabemos
que tudo permanecerá, ninguém
(gente ou jornal) pergunta se há razão.
Passa a noite, e a manhã há de passar.
A tarde trará cores renovadas,
afastando o que dantes era dúvida.
Os habitantes abandonarão
a pompa dos festins; a roleta, o álcool.
Saímos todos a praticar esportes.
Os capitães estão em polvorosa:
arquivaram as velhas ambições,
o momento não era para festas.
Apenas a cidade amanhecera,
navios foram na costa afundados.
É a manchete do dia, certamente.
(Florisvaldo Mattos, Poesia Reunida e Inéditos, p. 241, 2011)
TEMPOS DE ARLEQUIM
Salvador é Carnaval. Quando cheguei,
Em noite de Segunda-Feira Gorda,
As cores da cidade feiticeira
E os meus olhos na praça fumegavam.
Havia corso e blocos veteranos
(Nomes claros que hoje fazem sonhar).
Sobem os Inocentes em Progresso,
Descem os Mercadores de Bagdá.
No Bob’s Bar, que depois será Cacique,
Param o som travesso e a peraltice
Da guitarra elétrica na fobica;
Uma estrela desponta e, com a luz dela,
A multidão que pula e agita ramos
(A prévia tosca da mamãe-sacode)
Canta, dança, grita, bebe cerveja.
Eu ali que faço? Acompanho o passo.
Batalhas de confete e serpentina,
Pierrôs, lança perfume, colombinas,
Estrelejando o chão da Rua Chile,
Onde desfilam afoxés. (A brisa
É mais um concorrente da folia,
E eu, olhos postos em longínqua trama
De sonhos dando voltas num salão
E numa rua, espelho do infinito.)
Avança por meu tempo de incertezas
A máscara sedutora do passado,
Blocos de rancho fecundando auroras
E o entardecer de etéreas batucadas.
Súbito são morenas de um cordão;
Arlequim invasor da madrugada
Agarra-se à cintura de uma delas
E sobe a praça rumo à Sé que ferve.
(Florisvaldo Mattos, Poesia Reunida e Inéditos, p. 255, 2011)
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