quarta-feira, 25 de outubro de 2023

POEMAS SOBRE A CIDADE DA BAHIA

 

POEMAS SOBRE A CIDADE DA BAHIA

 

Bahia de Todos os Santos

Jorge de Lima

Bahia,
eu te olho e te ouço
de bordo do meu itazinho pulador,
e sob a mesma noite que nos cobre,
eu sinto o contato de teus membros morenos
e procuro com as mãos, com os lábios,
tudo o que é bom de cingir e beijar!

Para me ver chegar,
os sobrados e as igrejas
subiram nos teus montes e me espiam
de cima com os olhos das janelas acesas.

É o amante que chega!
E as virgens loucas já o esperam
com as lamparinas da Parábola.
E que noite gostosa, que colcha macia,
nos cobre a nós ambos, Bahia!
Teu amigo vem saudoso de ti e estende as mãos
aos pedaços melhores de teu corpo:
tuas ladeiras, teus montes,
as curvas gostosas da cidade mais bonita
do Brasil!

És tão cheia de altos e baixos,
Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e pimenta-de-cheiro.

Lamento o mau gosto dos teus turistas
que te conhecem de oitiva,
e não vão além de tua Rua Chile asfaltada,
de tuas avenidas que o Seabra alargou.
Tu, como toda mulher, tens os lugares mais sombrios, mais gostosos:

Baixa dos Sapateiros!
Beco do guindaste dos padres!
Barroquinha!
Tabuão!

Bahia de Todos os Santos,
por que os teus santos
não quiseram mudar o curso inglório
de meus17 anos, nos quais
os teus professores retóricos,
os teus médicos literatos,
injetaram a ampola da água suja
de doutrinas sem fé?
E depois de tanto tempo perdido,
de tanto caminho errado,
teu amigo voltou para os teus braços abertos.

Perdoa! Perdoa! Bahia!

Eu vim rezar nos teus santuários,
eu já sou um homem que tem
afetos por quem pedir e rezar.
E tu que me ensinaste a crer quando eu era criança,
e depois a descrer,
e hoje a crer outra vez... eu sou um
rio torto e tu és a Bahia do Salvador!
Cobre-me com o lençol de tua noite esburacada
de estrelas, em que a lua abriu um rombo maior.

Bahia,
para olhar as nossas núpcias,
cobre-me com o teu perdão, Bahia!
Tu és católica, tu és a fé, tu és a âncora do
Nordeste; tu és a sempre nova.
Tu és a rainha, tu és a cidade que mostra ao que chega
ao invés de arranha-céus, cruzes e cruzes,
de braços estendidos para os céus,
e na entrada do porto,
antes do Farol da Barra,
o primeiro Cristo Redentor do Brasil!

Bahia de ruas santas, de Santo Antônio da Mouraria,
da Verônica, da Oração, da Cruz do Cosme, dos Perdões,
dos fortes bem-aventurados, de São Marcelo, de Santa Ana,
de Santo Antônio da Barra,
Bahia do Teatro São João e do cinema São Jerônimo.
Bahia.

  

BAHIA DE TODOS OS SANTOS E DE QUASE TODOS OS PECADOS

 

 Gilberto Freyre

 

Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)

casas trepadas umas por cima das outras

casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num

retrato de revista ou jornal

(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)

igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras

toda a Bahia é uma maternal cidade gorda

como se dos ventres empinados dos seus montes

dos quais saíram tantas cidades do Brasil

inda outras estivessem para sair

ar mole oleoso

cheiro de comida

cheiro de incenso

cheiro de mulata

bafos quentes de sacristias e cozinhas

panelas fervendo

temperos ardendo

o Santíssimo Sacramento se elevando

mulheres parindo

cheiro de alfazema

remédios contra sífilis

letreiros como este:

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

(Para sempre! Amém!)

automóveis a 30$ a hora

e um ford todo osso sobe qualquer ladeira

saltando pulando tilintando

para depois escorrer sobre o asfalto novo

que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada

(a terra encarnada de 1500)

gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena

cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil

(madeira que cupim não rói)

sem rostos cor de fiambre

nem corpos cor de peru frio

Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes

eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras

mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus

tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,

tudo à sombra das tuas igrejas

todas cheias de anjinhos bochechudos

sãojoões sãojosés meninozinhosdeus

e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que

eu

O padre reprimido que há em mim

se exalta diante de ti Bahia

e perdoa tuas superstições

teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do

Bonfim

e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres

conservadoras da fé uma vez entregue aos santos

multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus

Bahia de Todos os Santos

Salvador

São Salvador

Bahia

Negras velhas da Bahia

vendendo mingau angu acarajé

Negras velhas de xale encarnado

peitos caídos

mães de mulatas mais belas dos Brasis

mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os

meninos do Brasil.

Mulatas de mãos quase de anjos

mãos agradando ioiôs

criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império

penteando iaiás

dando cafuné nas sinhás

enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos

lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim

pés dançando nus nas chinelas sem meia

cabeções enfeitados de rendas

estrelas marinhas de prata

tetéias de ouro

balangandãs

presentes de português

óleo de coco

azeite-de-dendê

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

Tomé de Sousa

Tomés de Sousa

padres, negros, caboclos

Mulatas quadrarunas octorunas

a Primeira Missa

os malês

índias nuas

vergonhas raspadas

candomblés santidades heresias sodomias

quase todos os pecados

ranger de camas-de-vento

corpos ardendo suando de gozo

Todos os Santos

missa das seis

comunhão

gênios de Sergipe

bacharéis de pince-nez

literatos que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa

mulatos de fala fina

muleques

capoeiras feiticeiras

chapéus-do-chile

Rua Chile

viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

um dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro

às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades

ruivos e bons

aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)

a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema

cacau.

 

Extraído de: FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Apresentação de Edson Nery da Fonseca.  Salvador: Fundação das Artes, 1990.  167 p.

 

Ladeira da Misericórdia

 

Godofredo Filho

 

É ladeira sem princípio

ou por princípio sem fim.

È ladeira que começa

onde eu quisera acabar.

 

È ladeira da Bahia,

cruel ladeira perdida,

que por boca da ironia

se diz da Misericórdia.

 

É ladeira da Bahia.

 

Por onde a traçaram vai

ou de súbito não vai,

torcida sobre seu corpo,

virada quase ao contrário,

canyon por onde os alíseos

se precipitam silvando

na trança das urupemas.

 

Que de sobrados fantasmas,

varandas ermas de sonho,

arcos, muralhas de sombra, 

janelas, portais vazios,

molduras de pedra suja

sem apoio de mais nada,

com rios doidos de vento

saltando no etéreo golfo

do inútil azul das tardes!

 

Ó vós que passais, ouvi-me

a efêmera e monocórdia

canção da negra ladeira

que é da Misericórdia.

 

Misericórdia de quem?

Misericórdia por quê?

se eu só (quem lhe deu amor

obscuro mas imortal),

possa entender o desvairo,

a esconsa mágoa, o silêncio

que oprime seu sonho informe.

 

Ai, quero cantar-te agora,

na solidão desta hora

que não voltará no tempo

- sombra vã da eternidade,

cantar-te o jugo, o tormento

que faz que durmas de noite

com pálpebras descoladas,

o obsidente sofrimento

que prendo na trama aérea

de meus versos incorpóreos.

 

Também quisera na glória

contigo sobreviver,

como hoje, no desespero,

te incorporas ao meu ser

pelo verbo conviver.

 

Ó inverossímil ladeira,

que foste o íngreme caminho

por onde outrora subiram,

coléricos e espantados,

tantos negros sofredores

sob o relho dos feitores,

índios bravos, curumins,

ao suave clarão dos hinos

de pastorais cor de aurora

que iam a dessedentar-se

nas fontes do teu perdão.

 

Onde vive o teu perdão?

 

Ouço-te as vozes perdidas,

ou que das festas dos muros,

de teus paredões enormes,

vão singrando o dorso esquivo

da maré de teu silêncio:

são vozes de missionários,

alaridos de corsários,

esporas de bandeirantes,

lanças longas, arcabuzes

vazando o crânio da treva,

gemidos de agonizantes

nos postigos do Hospital,

saudade daquelas donas

do Santo Recolhimento,

os olhos postos no mar;

 

vozes bruscas de ouvidores,

de capitães, de Doutores,

de Primazes sonolentos,

e de Vice-Reis odientos;

e também, no teu mistério

das horas de amor celeste,

procissões de virgens brancas

entre aromas de alecrim,

gargantilhas de aleluia

em cadeirinhas de arruar,

e o amor que ali teve um dia

um rei mago de Ajudá.

 

Misericórdia por quê?

se a alva escorre sem ver,

nem redimir os amantes

que dormem pelo abandono

dos mornos beijos viscosos

no mar dos lençóis desfeitos.

 

Misericórdia de quem?

se esmaga os rostos que dormem

ou sobre as pedras magoadas

eu piso gargantas súplices

de vozes que não escuto.

 

Ah, quantos sábados tristes

do amor estival das terdes

não rolei nas pedras lisas

de teu ardente convite,

buscando Lalu dormindo,

afagando Durvalina,

ou, na carne incandescida,

sentindo a pua dos ossos

do prenúncio do esqueleto

de Eva Maria Fernandes.

 

E quantas noites ungidas

de lua escorrendo insone

sobre os desvãos de teu leito,

não prendi minh´alma enferma

nos muros de teu silêncio,

e tangido ao torvo anseio

de segredos que não digo,

na madrugada morrente

varando portais desertos,

trepei teus jiraus de espanto!

 

Ah, descesse eu em t

ais noites

teu funicular de angústia,

sob o riso avermelhado

da gengiva das janelas,

e amargo olvido buscasse

nas ilhas do mar do vinho.

 

Ou então perquirindo o assombro

de horas tardas de vigília,

ouvisse teu longe canto

no cimo das turvas ilhas,

as ilhas do mar do vinho.

 

Onde andais, sombras fugidas

da angra de meu carinho?

Onde andais, sombras perdidas

Marfisa, Dalva, Marília?

 

E as outras mais? Onde estão,

de clorose e de carmim,

glicínias da noite ardente

despetaladas por mim?

 

Sila, Silu, Clementina,

Eurides nos braços de Elza,

Zezé com seu filho morto,

cantando a canção de Ofélia... 

 

Juracy longa e fragílima,

Que amor abrasou na fulva

nevrose de consunções

e Judith, a flor do ciúme

que a noite acendeu no espanto

das convulsões fesceninas, 

Judith que eu redimira

(ó alma, ó clarão da alma!)

 

Que no dezoito não vejo

na sombra o rosto de Stela,

nem Flaviana anoitece

na tarde de outra janela.

 

Onde andais sombras sumidas,

Floricéia negra e tantas

que nunca tiveram nome,

espuma das turvas ondas

do mar da dissolução?

 

Onde andais, sombras perdidas?

 

E tu, Leonor, pela cova?

Que tal isso lá, menina?

Melhor que nossa ladeira

com sulfa e penicilina?

 

No reino das águas frias,

quisera dormindo o rosto

de Dionéia Jesus Pires.

 

Dionéia, dá-me essa taça,

quero beber por teus olhos

no reino das águas frias.

 

Que vem do mar da ladeira,

entre ondas de urina e pedra,

borboleta comandando

o barco da perdição,

e eu, piloto dessa nave,

à doida rosa-dos-ventos

furando a bruma das saias

de Eva Maria Fernandes...

 

Ó Nauta que vais escota,

suspende a vela que é tarde,

ó Nauta, vais naufragar:

nos penedos desses peitos,

nos baixios desses púbis,

o barco vai se afundar.

 

Navegador solitário

dos óstios himenais,

não soçobres teu decoro

na fossa navicular.

 

Que longe o Porto dos Mastros,

onde alguém debalde espera

a nave que não virá!

 

Ó Nauta, que vai às ilhas

para esconder teu tormento,

não haverá nesses mares

a ilha do esquecimento?

 

Que longe o Porto dos Mastros

e o brando lençol macio

da praia do Bogari!

 

Por aqui só excrescências,

detritos amoniacais

e, em decúbito dorsal,

untada de mornas galas

para estranhos esponsais,

a noiva dos formicidas

com seu bilhete fatal.

 

Marise, Antônio sumiu.

Amália, a luz se apagou.

O riso daquela boca

o tintureiro lavou.

 

Escorraçado, esse canto

buscando a torta ladeira

na crina das bebedeiras,

é o canto de um marinheiro

que mares azuis trocara

pelo Biscaia de treva

das pedras desta ladeira.

É um canto de amor desfeito

contrapontando o silêncio

da língua dos enforcados

na trave de teu banheiro.

 

Ó Dionéia Jesus Pires

afogada na escureza

das ondas do mar sem fim,

também eu vou me afundando

nas ondas do mar do peito

de Eva Maria Fernandes.

 

Ladeira do meu tormento!

 

Fojo de animais bifrontes,

pobres cervos desgalhados

que João Batista apascenta

nos verdes quintais da encosta,

vagas enguias lustrosas

que o pesadelo da noite

distende no claro-escuro

do aquário lunar do sono...

 

Guiovaldo acende uma vela,

Rosa jogou-se à calçada: _

- “Meu lenço de seda branco,

meu pé de manjericão!”

 

Ron Merino, bofetadas,

um punhal riscando a fundo

teu nome numa canção,

soluços, pragas, risadas,

misturando blues e sambas

das radiolas de aluguel

ao lento noturno rouco

de xaques-xaques e agês

se alando às trilhas longínquas

do Aché do Opô Afonjá...

 

Ebó, dendê na farofa,

pimenta no arroz de Haussá.

 

Nossa Senhora do parto

tem olhos de conta verde

no rosto moreno estanho;

galos de alfazema e nuvem

com bicos de índigo vidro,

e as aéreas naves de âmbar,

partindo a meio o silêncio

das duas da madrugada.

 

Ladeira que já não subo,

mas que desço agora sem medo

da sombra que vai comigo.

 

Vereda isenta de arrimo,

caminho solto no tempo.

 

A lua deitou-se agora

no leito escuso da rua,

tomando a forma das coisas,

das janelas e das tranças

porque os convites obscenos

transmudasse em línguas brancas

segredando-me a ternura

de um conúbio sepulcral.

 

Hoje, és Padre Nóbrega

para o cartaz das esquinas,

mas foste acaso o caminho

de Mem de Sá, de Vieira,

de Gregório de Mattos Guerra,

comborça de capadócios,

amante de seresteiros,

Xisto da Bahia afagando

na garganta dos violões

modinhas de adormentar

o olhar que não tem mais pálpebras.

 

Foste rua de prosápia

e hoje és ladeira de negras,

de mulatas sifilíticas,

de soldados e de bêbedos,

rua de míseras putas

ou das sombras que entrevejo

cavalgando desabridos

ginetes de bruma errante.

 

Ó, esse amor ignora

do que eu só te dei, ó ladeira

de insone Misericórdia:

amor de carne, de sangue,

de saliva e beijos ácidos,

amor que sobe do fundo

dos pântanos seminais.

 

Sou eu quem te beija as pedras,

quem, ao pranto convolado,

se adensa no teu mistério;

quem prende à carne dos lábios

macerados de servícia

o amor que não sabe o nome,

e o traduz em luz aurora

de redenção impossível,

por te querer abrasada

nesse amanhã que demora

de alvorecer meu tormento,

ansiando-te violentada

da graça abissal do Cristo,

à flor da chama vermelha

tocando de irreal brancura.

 

E então és Misericórdia!

 

Ladeira da minha vida.

Ladeira do meu amor.

 

ÉGUA DE JADE

 

Florisvaldo Mattos

 

Costumo amanhecer, o céu vislumbro;

O mar embaixo muge sossegado,

A orla estriada rege o som das nuvens;

O vento lança-me aos olhos (o rosto bebe)

O que sobra das ondas, claro dorso.

 

Eu que te procurei em luas, sol,

Mar e águas todas só agora te encontro,

No ardor dos pelos, fulgurantes olhos,

Animal sobre o oceano debruçado,

Na postura de alguém que sempre aguarda.

 

Exaurido me apalpo. Sei que existes,

De ventre aberto ao mar, de espera rude.

 

Navegadores chegam, embriagados

De sonho, de cobiça e velhas perdas.

 

Sei que te ornam algas; vieste do Oriente.

Ou do Ocidente vens, em luz de pérola?

Que me enchem de desvairos cores novas.

 

A alvorada me beija? Nem sei se a tenho

Entre teus braços – trucidantes hastes,

Enlaçando mastros, extraviadas quilhas.

 

Foi boa a noite dentre pesadelos

Ruminados sobre teus passos, tua

Lenta navegação por entre torres

Em que te amarram cordas de silêncio.

Dorme a amada; o mar urde laborioso.

 

Estamos sós, eu e tu. E o mar, testante

(Leguleio de aromas e vivências)

Do que deixaram tardos marinheiros

Sobre a terra límpida, mas exausta,

Os bens que, de alma apenas, pó restaram.

 

 

O mar é o que te basta; é a tua culpa.

Por isso, nada esqueces, nada passa:

A memória a acender-te o labirinto,

A luz a reavivar o antigo rosto,

Espuma a te invadir adusto ventre.

 

Tua baía, escancarada porta

A quem te penetre água e terra adentro

– peixes, pássaros, luas navegantes –,

A boca lúbrica, emitindo toques

De tambores também lascivos, urra.

 

Fica em silêncio que já te cubro, égua

Fogosa, imersa em toldo florescente:

Te pego pelo casco, jade puro;

Te puxo pelas crinas rutilantes;

Te arranco das encostas em que pastas.

 

Vem, vem; se és de ouro, risco-te nas pedras.

Vem; se és de fogo, banho-te no mar.

Vem; se és de lua, lanço-te no céu.

Urras; ah, pela anca afinal peguei-te,

Égua translúcida da madrugada.

 

E após, na lassidão que disto sobra,

Batida pela brisa que ressoa

No côncavo de uma onda, desvaneces,

Além do cais onde dormitam barcos.

O mar te trouxe; estrela, o mar te leva.

 

(Extraído de “Poesia Reunida e Inéditos”. São Paulo: Escrituras Editora, p. 235, 2011)


URBE DE LUZ TRANSFUSA

                        Para Agnaldo (Siri) Azevedo, in memoriam

 Florisvaldo Mattos


ondas de cor muito mais que arpejos

a cidade desfolha-se em mugidos

hemoptises de ouro muros lavam

farmácia líquida justo a inundar

claustros pátios

                            iriadas praças

                                                  e ao fim praias

mercúrio aí a escorrer de rota veia

 

desbordantes muito mais que solfejos

alaridos na encosta avarandada

leque de velas

                     ao largo lúdicas

                                               tufos amarelos

jorram de fímbria agora efervescente

quem sabe ecos de claustrais batalhas

 

ah, talvez bizâncio entornado tenha

vinhos de missa sangue de mosteiros

que em palácio beberam sentinelas

sorvendo taças e cruzando aljavas

agora dormem

                          agora dança

salomé de curvas sinuosas em palco

de cristal que urge hipnotizar o antipas

bem ali guardado

bem ali sentado

no seu trono de pórfiro e ametista

ao bruxulear de lâmpadas de azeite

música a derramar-se das estrelas

do fundo lasso lá onde a encosta doira-se

 

(sol ora revérbero em tela

de passado não passado)

 

ávidos rostos perscrutam

no horizonte ausentes naus

sob a luz que sugere penitências

nostálgica de flagelos

 

jardim de miosótis hortênsias muitas

despejados da abóboda replicam

vento solteiro a propagar canções

tangendo violões sulcando areia

 

logo angustiado som

sobe incrustado de ônix

de laca império vasto

ornado de luz lívida

 

súbito carne viva de fósforo transida

ou mugir de harpa em crânio paranoico

subindo por um estuar de rampas

a arder num céu de cânhamo vermelho.


(Poesia Reunida e Inéditos, p. 23 J, 2011) 

 

NA AJUDA, PERTO DO ANGELUS

 

                                       A Pedro Moacir Maia

                                   Vellos e vellas, mentras monean

                                   Silbam as salves y os padrenuestros.

                                                                       Rosalia de Castro

 

Vagando em horários que induzem à meditação,

No centro da ilustre urbe de caminhos imperfeitos,

Pelas cinco que um agosto rege de cinza e frio,

Ando sobre remotas pedras de um templo ultrajado,

Sítio por onde transitaram pés de cinco séculos.

Ajuda se chama e Sé de Palha foi esta casa

De oração e olvido, que ambição voraz amputou:

Cá sombrias paredes com pinturas descascadas,

Santos em seus nichos, a dialogar com sossegados

Mármores, sob arcadas que aludem a inquisições

E a penas sancionadas pela autoridade do latim.

Um careca no órgão, um cantor de blusa listrada,

Como se de pedra fossem, calmos entoam cânticos.

Luzes mortiças sob imagens sacras em panóplias,

Cenas do evangelho toscas espalham-se no teto,

Escorrem por janelas ancestrais de falso gótico

E o púlpito de madeira lavrada onde ressoam

Veementes sermões, gestos falazes, sagacidades.

Entre jogos de luz e sombra, entre volumes, mesclas

De formas neoclássicas e pungente barroquismo,

Frias flores em altares de círios apagados;

Homens e mulheres, as mãos em prece, a ruminar

Silentes verdades que adubam a razão dos pobres,

Em semblantes de conformismo e vaga transgressão.

Bailam no ar transidos coros de infância e lembranças

De garotas (onde estarão elas?) de seios duros,

Fugazmente apalpados na hora de tanger os sinos,

Aquela depois do Ângelus, nos maios de novena,

Enquanto padre Luiz San Juan a cabeça meneia

E cochila entre as gastas alfaias da sacristia. 


(Poesia Reunida e Inéditos, p. 239, 2011) 

 

SOTEROLIMOS

                        A Jeovah de Carvalho

 

A cidade distende o couro crespo                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

imerso nos gemidos dos telhados;

janelas e portas (fanais da noite),

despejando lamentos sobre pedras,

saem do escuro por uma luz sonora

por onde viaja a goiva do grave Hansen,

retorcem-se cruciais chapas de Mário,

ladeiras onde versos de Godô

formam lagos de esperma flutuante.

 

Bordéis que torres sacras abençoam

(tudo o que sabemos a fé redime)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

nas horas silentes, escoando clamor,

soluço e preces sobre frontes boêmias;

serenas lanças de astros que ornamentam

recintos de dolente passar, ó

pontas soberbas contra o choro agudo

de sacrossantos rostos mendicantes,

faces roídas de infinita espera.

 

Eretas torres de azulejaria

enferma (e as luxuriosas cornijas?),

que perscrutais pelo céu de amaranto

para antepasto na manhã de ausências?

Que anseios guardais em pedra de lioz?

Aspa da noite, deusa de chavelho,

a lua vem com o ventre pressuroso,

as ladeiras se enroscam e há um torpor

que amortece o tambor nos cabarés.

 

Tudo isto é obra do oceano que lá embaixo

rola parlamentando com os rochedos.

Lixo da rua, o mesmo dos navios

que lançam do mar tudo que emporcalha

a fímbria muda, a fímbria que admiramos,

dos administradores prometidos

gestos nos poupa, e que só morte esconde.

Tudo é inexorável, e nós sabemos:

um pedaço de mar é o que nos sobra.

 

A cidade adormece. Lábios boêmios

se cruzam sob marquises enfeitadas

com a luz que salta da burocracia.

Lentos lagos ali de morna esperma,

corredores de espelhos, qualquer coisa

que venha e nos livre das asperezas.

E logo esta mulher que está de costas,

lábios partidos, ombros nus, cidade

descarnada, a pele colada aos ossos.

 

O clamoroso ventre da montanha,

na noite de gemidos, no cassino,

mulheres seminuas, apostas altas;

na rua iluminada, bondes rangem,

levando bêbados; as rotativas

despacham o noticiário em pacotes:

povos guerreiros de sangrentas vozes,

os pobres nas manchetes de polícia,

As miúdas intrigas de governo.

 

A vida civilizada de uns poucos

o porto despeja em caixote e pipa.

Sabemos quem são os ricos, o infeliz

amanhã e o próximo morto; sabemos

que tudo permanecerá, ninguém

(gente ou jornal) pergunta se há razão.

Passa a noite, e a manhã há de passar.

A tarde trará cores renovadas,

afastando o que dantes era dúvida.

 

Os habitantes abandonarão

a pompa dos festins; a roleta, o álcool.

Saímos todos a praticar esportes.

Os capitães estão em polvorosa:

arquivaram as velhas ambições,

o momento não era para festas.

Apenas a cidade amanhecera,

navios foram na costa afundados.

É a manchete do dia, certamente.


(Florisvaldo Mattos, Poesia Reunida e Inéditos, p. 241, 2011)


TEMPOS DE ARLEQUIM

 

Salvador é Carnaval. Quando cheguei,

Em noite de Segunda-Feira Gorda,

As cores da cidade feiticeira

E os meus olhos na praça fumegavam.

 

Havia corso e blocos veteranos

(Nomes claros que hoje fazem sonhar).

Sobem os Inocentes em Progresso,

Descem os Mercadores de Bagdá.

 

No Bob’s Bar, que depois será Cacique,

Param o som travesso e a peraltice

Da guitarra elétrica na fobica;

Uma estrela desponta e, com a luz dela,

 

A multidão que pula e agita ramos

(A prévia tosca da mamãe-sacode)

Canta, dança, grita, bebe cerveja.

Eu ali que faço? Acompanho o passo.

 

Batalhas de confete e serpentina,

Pierrôs, lança perfume, colombinas,

Estrelejando o chão da Rua Chile,

Onde desfilam afoxés. (A brisa

 

É mais um concorrente da folia,

E eu, olhos postos em longínqua trama

De sonhos dando voltas num salão

E numa rua, espelho do infinito.)

 

Avança por meu tempo de incertezas

A máscara sedutora do passado,

Blocos de rancho fecundando auroras

E o entardecer de etéreas batucadas.

 

Súbito são morenas de um cordão;

Arlequim invasor da madrugada

Agarra-se à cintura de uma delas

E sobe a praça rumo à Sé que ferve.


(Florisvaldo Mattos, Poesia Reunida e Inéditos, p. 255, 2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário