segunda-feira, 25 de setembro de 2023

· POETAS DA BAHIA / Anos 1970. QUEM?

 

    Conjunto de poetas, em pose de 1970, após reunião, em que se discutiram diversos aspectos da poesia, regional, nacional e internacional. Da esquerda para a direita, são: Cid Seixas, Erthos Albino de Souza, Fernando da Rocha Peres, Carlos Cunha, Florisvaldo Mattos, Antônio Brasileiro, Adelmo Oliveira e Ruy Espinheira Filho.

CID SEIXAS

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/cid_seixas.html

CID SEIXAS FRAGA FILHO

 

Professor universitário, escritor e jornalista. Antes de se dedicar à carreira docente, atuou na imprensa como repórter, copy desk e editor, trabalhando em rádio, jornal e televisão. Fundou e dirigiu um dos mais qualificados suplementos literários, o Jornal de Cultura, publicado na Bahia pelos Diários Associados. Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Católica do Salvador (1976), Mestre em Letras e Lingüística pela Universidade Federal da Bahia (1980) e Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (1990). Atualmente é Professor Titular  aposentado  da Universidade Federal da Bahia, onde trabalhou ativamente na reestruturação do Mestrado em Letras e no plano inicial de implantação do Doutorado. Exerceu as funções de Chefe e de Vice-Chefe do Departamento de Letras Vernáculas, bem como de Vice-Coordenador da Pós-Graduação. Como consultor, na área de educação, elaborou os currículos de alguns cursos universitários, sendo co-responsável pela implantação do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana, onde é Professor e fundador de Légua & meia: revista de literatura e diversidade cultural. Foi coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu do CEDAP em parceria com a Faculdade São Luís de França. Tem experiência de ensino e pesquisa na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada e Literatura Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, poesia, literatura baiana, literatura e cultura. Atuou ainda nas áreas de linguística e de psicanálise, assim como em jornalismo e comunicação. Na área de editoração, dedica-se a planejamento editorial e projeto de livros e publicações. Além de colaborações tanto em jornais quanto em revistas especializadas, entre os quais O Estado de S. Paulo e a Colóquio Letras, de Lisboa assinou, durante cinco anos, a coluna Leitura Crítica, no jornal A Tarde. Além de artigos, ensaios e outros textos, publicou duas dezenas de livros e plaquetes, entre obras de criação, teoria e crítica, destacando-se O Espelho de Narciso (Civilização Brasileira), Triste Bahia (Coleção Letras da Bahia), O lugar da linguagem da teoria freudiana (Casa de Jorge Amado), O espelho infiel (Diadorim), O trovadorismo galaico-português (UEFS), Os riscos da cabra cega: recortes de crítica ligeira (PPgLDC) etc. Atualmente vem publicando livros eletrônicos na internet, além de coordenar o projeto E-Book.Br (Editora Universitária do Livro Digital) e o site e o blog . E-mail: cidseixas@yahoo.com.br (Texto informado pelo autor)  Extraído de http://buscatextual.cnpq.br/

II


O não:
ao sema perdido
no frio do corpo
a fé
cun
dar
um óvulo
             morto.

Cinza
sobre o cio,
potro castrado
em pasto farto
de fêmea,
parto
sem dor
ou lembrança do desejo.

 

XIII

0 sim:
ao sema
ou se
men
te(s)
que sabe(s) gerar

desejo incontido
no branco
               papel
                                 en
                                çol     
ou tema
de tecer constante.

Deuses não somos:
por isso
santificamos o prazer
(nosso)
bem maior.  



SOLILÓQUIO DE S. FRANCISCO DE ASSIS

 

Vezes sem conta converso Contigo.

Atento, me ouves, sem dizer palavra.

Às vezes, escutas, distraída Mente, como quem olha uma folha que, lento, o vento embala e a calma balança.

Converso Contigo

mas Tu não respondes.

E meus amigos me chamam de louco.

 

Só rindo sozinho

sei que não sou louco

 

porque posso ouvir a Voz do Silêncio.

 

 



                      

"Cada coisa que existe,
na outra, busca igualdade
(até mesmo a mentira
se encontra na verdade)."

 

        Correntezear

       1


Narrando noturnos contos,
rouco, de tanto roçar
pelas pedra do redor,
vai o rio — rumo: mar.

Franco na sua linguagem
(nascida neste lugar)
que, por seca de sentido,
só nós sabemos falar.

2


Sua linguagem é líquida,
apenas, no linguajar:
quente, raivoso e rápido,
quando se põe a rolar.

Seguindo a gente daqui,
ela é bem irregular:
suave no simples ouvir,
seca no significar.

 

 

       Didática do rio

1

       Do rio o molde da fala
levas (sem saber, guardado):
líquido e saltitante,
por pedras interpelado.

Deste modo não entonas
único e reto dizer;
modulas, em cachoeiras,
como os rios sabem fazer.

2

       Do rio, a fala ligeira
como se fosse corrente
de água (que se aperta
na margem) quando fluente.

Do rio, o fugir constante,
o sempre ficar em mim:
qual ritmo impassível
de um compasso sem fim.


ERHOS ALBINO DE SOUZA

GILFRANCISCO [*]

A Dalila Machado (1947-2021)

Conheci o poeta Erthos Albino de Souza nos anos 70 na Livraria Literarte, que ficava na Av. Sete de Setembro, 750, Galeria do edifício Santo Amaro, loja 11 de propriedade de Getúlio Santana, experiente vendedor de livros, havia trabalhado em todas as livrarias da capital baiana, ex-juiz classista e hoje proprietário do restaurante Extudo. A livraria era um celeiro de intelectuais jovens e da velha guarda, em frente estava a Graúna de Eduardo Sarno, o melhor Sebo na cidade. A Literarte chegou a publicar algumas plaquetas como Perfil e Sobrenome, Edilene Matos, col. Hipocampo, 1978 e Me Segura qu’eu vou dar um traço, Nildão, edição Literarte/Global, 1980. A Literarte era ponto obrigatório da intelectualidade soteropolitana, todos visitavam diariamente, não para comprar livros, mas para papear, saber das novidades, para ouvir as piadas indecentes do poeta da cavalaria, Carlos Sampaio (1942-1993) ou com sorte encontrar o contista do coelho azul de Jaboatão, Altamirando Borges Camacam e ouvir Rimbaud num bom francês.

Tudo começou por causas das pesquisas que desenvolvíamos paralelamente sobre o poeta simbolista baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), eu havia conseguido a certidão de óbito em que confirmava ter ele nascido em Salvador e outros documentos. Foi um grande achado, porque em seguida o cartório que ficava na Ladeira da Poeira foi incendiado. Todo o material por mim localizado na época sobre Kilkerry para a 2ª edição (1985), não pode ser incluído em virtude da edição da Brasiliense encontrar-se em sua fase final de impressão, mas todo esse material de pesquisa anterior a 1985 e outros posteriormente localizados durante a continuação das pesquisas, foram remetidos a Augusto de Campos, para inclusão numa próxima edição. ¹

Fizemos uma boa amizade e passei a frequentar suas duas moradias, tinha o cuidado de telefonar antes para saber em quais dos dois apartamentos se encontrava e se podia me receber. Um apartamento ficava no bairro da Barra, no Edifício Marques de Pombal, Alameda Antunes, 17/402 e sua outra residência no bairro da Pituba, próximo ao Supermercado Paes Mendonça. Em ambos, os apartamentos estavam abarrotados de livros, revistas, discos, pastas cheias de recortes de periódicos e filmes. Em nossos encontros discutíamos sobre música, literatura, mostrava as novidades adquiridas além das dissertações e teses recebidas de vários professores universitários as quais havia colaborado com alguma informação ou no fornecimento de material. Ele me dava muitas dicas para as pesquisas, inclusive na ajuda sobre Sosígenes Costa, livro que publiquei em 2001, pela Fundação Cidade de Ilhéus, na gestão de Hélio Pólvora.

————————————–

¹ Todos esses documentos localizados por mim, durante anos de pesquisas estão no livro, Pedro Kilkerry: maldito entre malditos, GILFRANCISCO. Edições GFS, coleção BASE nº13, Aracaju, 2022.

Homem afável e acolhedor, Erthos estava sempre atendendo as solicitações dos acadêmicos, era um colecionador, tinha recursos financeiros para adquirir qualquer livro raro que se encontrasse em catálogo ou não. Tinha todas as edições dos Sertões, todas as edições dos livros de Guimarães Rosa, todas as edições de Sousândrade, além dos livros dos irmãos Campos. As revistas Modernistas tinham todas: Novíssima; A Revista; Estética; Klaxon; Festa; Verde; Leite Crioulo, Antropofágica; sem falar nas baianas, Samba; Arco-Flexa; Seiva; Cadernos da Bahia. Não se negava a fornecer material, sempre tirava cópia xerox do que fosse solicitado. Algumas dessas revistas hoje em meu poder foram doadas por sua irmã.

Revista Código – Fotos: Reprodução

Dessa amizade que se fortalecia com o passar dos anos, os constantes encontros em eventos: lançamentos, shows e telefonemas em que discutíamos sobre literatura: Kilkerry, Sosígenes Costa, Sousândrade, Maiakóvski, Augusto e Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman e outros. Erthos tinha muitos amigos no Sul do país e hospedava-os quando em visita à Salvador. Em sua residência, conheci vários dos seus amigos, entre eles Arnaldo Antunes, Paulo Leminski e Carlos Àvila.

Erthos vivia entre os milhares de livros que lhe põem em contato com o mundo, com a morte, com a vida. Estava sempre cercado por gatos angorás e siameses, confinados à área do apartamento. O cheiro forte de urina dos animais não me permite demorar por muito tempo no ambiente. Eu tinha medo dos gatos, eram grandes, peludos, caudas longas, olhos azulados outros esverdeados, houve época em que tinha mais de quatro e ficavam inquietos no sofá ou entre as pernas dos inocentes visitantes. Eu tremia em ver aquela língua áspera me lambendo, mordendo os cadarços dos tênis, aquelas unhas retráteis, aquela habilidade em saltar, trepar, espreitar sua presa. Ele retirava os animais, mas retornavam sempre, determinados a me assustar. Não sei por que os poetas têm tanta adoração por felinos: Ezra Pound, Haroldo de Campos, Guimarães Rosa, Nelson Ascher, Antônio Carlos Viana e tantos outros. Jantamos algumas vezes juntos, mas eu morria de medo, com os felinos subindo à mesa desfilando entre pratos, copos e xícaras. Meu coração andava a mil.. de A/Z.

Apesar de ser uma pessoa reservada, educada, atenciosa e de pouca fala, Erthos sempre atendeu a todos os que procuravam, fornecendo inclusive suas primeiras edições raríssimas para publicação de edição fac-similar e cópias de textos raros para professores ou pesquisadores de todo o país. Quando a professora da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica do Salvador Ìvia Iracema Duarte Alves preparava a sua tese de doutorado sobre Eugênio Gomes, publicada em 2007 com o título de Visões de Espelhos – o percurso da crítica de Eugênio Gomes, pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia/Academia de Letras da Bahia, fui eu quem a levou à casa de Erthos Albino, recebendo dele alguns exemplares em duplicatas de livros de Eugênio Gomes. Em dedicatória ela registra: ”Gil. Este livro também você/ participou. Se não tivesse você e Erthos provavelmente/ não seria tão alentado/com um abraço”.

Sua redescoberta do poeta Pedro Kilkerry, contributo maior para a história da literatura baiana, in Revisão de Kilkerry (1970), Augusto de Campos, Fundo Estadual de Cultura – São Paulo, reeditado (1985), 2ª edição revista e aumentada pela Editora Brasiliense, com uma bibliografia sobre Kilkerry, organizada por ele, permitindo que novos estudos sobre o poeta simbolista fossem realizados. O pioneirismo na computação gráfica do engenheiro Erthos Albino de Souza, presente na edição Mallarmé, Augusto, Haroldo de Campos e Decio Pignatari, 1974, Editora Perspectiva, com as variações gráficas que integram seu poema Le tombeau de Mallarmé. Foi ele que financiou a edição Re/Visão de Sousandrade, Textos críticos, Antologia, Glossário, Biobibliografia, com a colaboração especial de Luiz Costa Lima e Erthos Albino, São Paulo, Ed. Invenção, 1964. Erthos foi quem mais colaborou para a reabilitação do poeta Sousândrade fornecendo aos irmãos Campos as edições originais editadas em Londres, além da crescente fortuna crítica de Sousândrade organizada por ele e incluída no livro Revisão de Sousândrade a partir da 2ª edição, de 1982, Editora Nova Fronteira. Erthos.

Também participa do levantamento bibliográfico/pesquisa de textos do livro Pagu:vida-obra (Patrícia Galvão), Augusto de Campos, Editora Brasiliense, 1982, figura lendária mas ainda escassamente conhecida. Foi ainda o responsável pela manutenção da Revista Código, publicação independente surgida nos anos 70, totalizando 12 números, 1974/1990. Também publicou pela Editora Código 20 Poemas de Cummings (1990), traduzidos por Carlos Loria e Casa Clara (1991), livro de poesia do mesmo tradutor.

Quando Erthos Albino de Souza ficou doente eu já estava residindo em Aracaju, mas fiz duas ou três visitas em 1997/1998, época em que cursava o mestrado na Universidade Federal da Bahia. Logo que soube que ele havia sido diagnosticado com o Mal de Alzheime, fui visitá-lo. A doença é terrível (demência pré-senil que se manifesta por volta dos 50 anos e se caracteriza por uma deterioração intelectual profunda), mas sua empregada que trabalhava com ele há muitos anos, não comunicou a família, aos parentes que moravam em Minas Gerais nem à sua irmã que vivia nos Estados Unidos da América do Norte. A doença é degenerativa, mas no início pode ser controlada, mas segundo sua irmã só tomou conhecimento tempos depois, quando já estava num estágio avançado.

Quando estive com ele pela última vez, não falava nem ouvia, ficava estático com um olhar profundo, perdido na sua imensa escuridão, fixo que ninguém consegue esquecer, como que buscasse o segredo dos azuis. Sentado no sofá da sala, tentava falar, mas nada… o que saia era um som inaudível. O corpo tremia, agitava-se. Sua irmã e uma enfermeira acompanhante tentavam colocar em sua boca um medicamento, que conseguiram depois de sucessivas investidas. Devido a sua vida discreta a irmã não sabia nada da sua vida privada, nem mesmo que ele era homossexual. Nunca desconfiaram dos reais motivos que o levaram a vir para Salvador. Durante a conversa que mantivemos por alguns dias, ela perguntou pelos amigos que haviam sumido, deixaram de telefonar. Disse-lhe que eram poucos. Ela estava completamente atônita, tinha que resolver os problemas e tencionava levá-lo para Minas Gerais, a fim de ficar próximo aos familiares, em seguida retornar para os Estados Unidos.

Combinamos um novo encontro para no dia seguinte irmos até o apartamento da Barra, porque ela continuava à procura de documentos dos imóveis. Ao chegarmos, disse-me que o professor Fernando da Rocha Peres havia estado com ela juntamente com José Mindlin (1914-2010), ambos, amigos de Erthos, pois Mindlin estava interessado na compra da Biblioteca, ofereceu um valor, segundo ela irrisório pela quantidade de volumes, além dos títulos raros. Ela me revelou o valor, realmente era muito baixo, muito abaixo do mercado livreiro. Não discuti os pormenores. Nesta visita Fernando Peres levou um livro que pelo formato e data de publicação segundo ela, era coisa rara e que certamente teria um bom preço no mercado. Este volume tinha relação com a igreja. Quando ela me falou perguntando o que achava, disse-lhe que telefonasse e pedisse a devolução do volume levado. Soube depois tratar-se de uma raridade do século XV.

Ficamos arrumando as raridades. Separei alguns livros e revistas modernistas que tinha interesse e pedi autorização para levá-las. De repente ela remexendo num dos guarda-roupas de um dos três quartos do apartamento, localizou dezenas de revistas gay (publicação estrangeira), quase desmaiou ao manuseá-las. Voltou-se para mim e perguntou o que faço? Por que isso está aqui? Toco fogo? Retornou ao quarto e disse-me: eu não sabia que meu irmão era gay. Sentou-se e por alguns minutos ficou em silêncio.

Posso assegurar que sua irmã já desconfiasse, pois quando perguntou a empregada pelas amigas dele e ela, nada lhe respondeu.

A princípio não quis aceitar a condição sexual do irmão e me interpelou, queria saber com quem ele vivia, se eu conhecia a pessoa, essas coisas de família…. Sem alternativa passei a relatar o que realmente sabia e alguns amigos mais próximos também sabiam da opção sexual, como Luciano Diniz (1948-2004), poeta e sociólogo, André Luys Sãntos (1960-1982) programador visual e poeta místico, pop, punk, como bem disse Antônio Risério, mas eram poucos. Disse-lhe que Erthos tinha um velho romance com um motorista de táxi que era casado, tinha filhos, mas era muito discreto, poucas vezes encontrei em seu apartamento e quando chegava alguma visita ele estava sempre de saída.

Eu sabia que Erthou o ajudava financeiramente, encontrei ambos algumas vezes nos Mares, no setor de discos do Supermercado Paes Mendonça, bem próximo do local em que trabalhava cuja sede da Petrobras ficava na Avenida Jiquitaia, em frente à antiga fábrica da Coca Cola. Ela queria saber mais detalhes que eu desconhecia, como por exemplo: onde ele morava. Passei uns quatro dias com ela, entre os apartamentos da Barra e Pituba. Ela havia colocado à venda ambos os apartamentos, porque pretendia interná-lo numa Casa de Saúde apropriada em Minas. Num desses dias em que nos estávamos procurando documentos dos imóveis, talões de cheques, aplicações, cadernetas de poupança, localizamos uma procuração emitida por Erthos para o seu companheiro receber o salário da Petrobras e movimentar a conta bancária. Na verdade, ele vinha já algum tempo recebendo seus vencimentos.

Eu estava ajudando porque ela não tinha uma pessoa para acompanhá-la nessas tarefas, era uma senhora de quase sessenta anos. Eu querendo sair da história, mas não conseguia. Testemunhei várias discussões entre ela e o ex- companheiro de Erthos. Não me recordo no momento seu nome, mas tinha cara de mocinho, ingênuo, mas era bandido, ousado, atrevido ao ponto de já estar providenciando a venda dos imóveis. Na nossa presença ele adentrou o apartamento levando consigo um provável comprador, se dizendo proprietário. Após discutirem ela pediu para que ele se retirasse e alertou o interessado pela aquisição do imóvel. A irmã de Erthos, afirmou que ele não era o proprietário.

Estes incidentes ocorreram bem próximos da sua morte. Ela chegou a propor a ele um valor bastante significativo na época, mas ele queria um dos apartamentos justificando merecedor por cuidar de Erthos por todos aqueles anos, o que não era verdade. Não sei o fim da história, nem se Mindlin adquiriu a Biblioteca. Retornei à Aracaju e até hoje não tenho nenhuma notícia sobre sua irmã. Em 2004, estive com o poeta Arnaldo Antunes em Aracaju, durante uma coletiva, e aproveitamos esse reencontro para falarmos sobre o poeta Erthos estudioso da literatura, o homem prestativo, generoso, amigo, um bom camarada.

Bibliófilo, poeta e artista gráfico, Erthos utilizou a física e a matemática em sua criação poética, é um dos primeiros autores brasileiros a utilizar o computador na elaboração dos seus poemas. Sua participação no Concretismo na Bahia é tida como o maior representante, basta ver o poema geométrio Crisálida Risal (1967) e suas colaborações nas revistas: Atlas; Artéria; Polém; Qorpo Estranho; Revista da Bahia; Exu; Muda; Invenção; Código. Erthos Albino de Souza nasceu em Ubá (Minas Gerais em 1932) e faleceu em julho (Juiz de Fora em 2000). Após sua morte, sob curadoria de Augusto de Campos e André Vallias reuniram sua Poesia Visual, numa exposição: Erthos Albino de Souza – Poesia: do dáctilo ao digito, Instituto Moreira Salles – IMS – RJ. Na mostra estão reunidos trabalhos desde os primeiros poemas gráficos feitos com máquina de escrever (década de 60), até as impressões em computador (cartões perfurados), anos 70.

———————–

[*] É jornalista e escritor. E-mailgilfrancisco.santos@gmail.com



FERNANDO DA ROCHA PERES

    F. R. Peres, um dos membros da Geração Mapa (1957-1965)

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/fernando_da_rocha_peres.html

 

Nasceu em Salvador (27.11.1936) e vem participando da vida baiana desde 1957, quando fundou, juntamente com Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares, as Jogralescas (poesia teatralizada), a revista Mapa, as Edições Macunaíma e a Iemanjá Filmes. Professor de História da Universidade Federal da Bahia  desde 1972. Foi eleito membro da Academia de Letras da Bahia em 1987.

 

 

 


Carnavalendo

 

         para Caetano Veloso

 


Na praça a coisa

caetanave:

rampante na multidão.

No som o trino

eletrofante,

e a voz no ouvido

conduz os saltos

do povaréu.

Profana musa carnavalina

abençoai, (amor) talhada

a carne tenra

a boca terna

as mãos mulatas

de Durvalina,

as coxas negras

de Josinete

a nuca branca

de Maria das Dores.

E a quarta-feira

de cruz na testa

(se ainda ha padres!)

refaz o mundo

no seu lugar.

Só na Bahia

(misericordia!)

começa tudo

no próximo ensaio

da Timbalada

de Carlos Brown.

 

 

Caixa n° 3

 

Recontar uma vida

não é ferver sopa de letrinhas.

Sabe a um novo parto,

(placentário e natural)

saindo para o mundo sem vontade,

nem fraldas.

As sentenças valem cada susto ou revelação:

andar, estudar, amar, morrer...

E a poesia não conta?

Pergunte ao bem-te-vi da criança,

ao desalento da adolescência
ao furor da maturidade.

Se tens coragem (re)abra seu abc,

sua tábua de lugar íntimo,

e cuspa seus dejetos.

Recontar uma vida

não é fazer quebra-cabeça,

mas é cruzar palavras.

 

 

I- Morteus

 

A morte adjetiva:

suave, passarinheira ou quem diria.

A morte é o envelhecer

ou grito súbito

(a voz de um tenor não registra)

do tempo na ampulheta

horizontal;

o que não passa e virá.

 

A morte adjetiva:

brutal, mímica, inconveniente.

A morte é o descamar

unhas, pedregulhos, bile.

Violeta e ocre,

cores no corpo distendido

ao finalíssimo suspiro.

Morteus!

 

 

Tempo / Objeto VII

 

         para José Saramago

 

Criação alada

quase inconsútil

não diria pássaro,

mas forma voadora.

Passarola ou delírio:

sonho irrealizado

de um Gusmão avoengo.

Coisa elefante

ônibus que aviona

entre oceanos.

Reflexos de um prodígio

no céu de chumbo.

Chove!

 

 

 

CANTO

 

          (para Silvia La Regina, amiga italiana)

 

Quem não leu

já perdeu, o livro

que Pessoa disse.

E Verde o poeta

(Cesário de nome)

se o galo canta,

na madrugada

verdadeiramente.

 

E o canto insiste,

leiam poesia! Penas,

assim apenas, no grito

que ressoa ao renascer.

 

 

QUESTÃO

 

Que hão de dizer

de mim, Cesário, depois

que você chegou de longa

e inesperada, antiga

viagem transatlântica?

 

A casa é sua,

o quintal também.

Há verde e vento e sol

esperando o poeta na Bahia,

em Pedras do Rio.

 

Sou um colega, assim,

neste século de merda

que inicia o nada. Nem

mesmo os mistérios das mulheres

são iguais ao cálido seio, velado,

carnosas coisas inconsabidas.

 

 

ENTREVISTA II

 

l

 

— Que serviço

presta a poesia?

 

— Ora vejam só,

ela liberta a palavra.

 

II

 

— Quanto vale

a boa poesia?

— Lembre-se do dito:

"vale quanto pesa".

 

III

 

— Que trabalho

têm os poetas?

— Dizem as Escrituras*:

dar "nome as coisas".

 

IV

 

— E quais são "as coisas"?

— Tudo que há nos ares,

nas águas, na terra.

Tudo que um Deus criou,

tudo que o homem inventa.

 

Gênesis.II-10.20

 

 

 

         segunda versão do antipoema

                   FERNANDO DA ROCHA PERES

 

         este é o antipoema,
         dardo no versejar,
         mais que fuga do lírico,
         é lúcida definição.
         certamente procuro
         a exata metáfora,
         para um tempo surdo e obscuro.
         (a lição dos poetas
         agoniza nos manuais.)
         há um silêncio grave
         um esvaziamento
         uma guerra
         uma bestialidade que se insinua.
         este é o antipoema,
         seta no alvo, na palavra.
         mais que medo dos homens,
         é lírica denunciação.

  

Soneto

(1958)

 

Impregnado gesto ausente a mim
no tempo. Carinho de exata mácula
sua mão ilude o restante, e fica
tecendo, dominando, o que há de bom.
 

Fiel ao puro, indizível quase,
antigamente eu era ou fui.
Hoje sopro de memória o que houve
quando sabia exatamente nada.
 


Mas de amar não se conta, aqui,
senão a trágica condição além
do amor, o que vem na trama.
 

De há muito o gesto não vibra
na pele. Carinho de exata mácula
sua mão ilude o restante, e passa.

 

 

 

Rurais IV

(1964)

 

Nítidas esporas
sangram meu destino:
galope maldito
de cavalo cambaio.

 

A estrada é mentira
se o traçado for feito
sem que eu participe
do mapa divisório.

 

Restará um curral
de animais patéticos
rejeitando a forragem;
caldo de bruxedos.

 


FERNANDO DA ROCHA PERES FALA 

SOBRE SI MESMO E A SUA GERAÇÃO


Ao SESC/SÃO PAULO, o poeta e historiador fala sobre a posição da intelectualidade baiana no cenário brasileiro e a pesquisa a respeito da obra de Gregório de Matos

(POSTADO EM 


Poeta e historiador, Fernando da Rocha Peres participa da vida cultural baiana desde 1957, quando fundou, com Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares, as Jogralescas (poesia teatralizada), a revista Mapa, a Yemanjá Filmes e as edições Macunaíma. Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) desde 1972, Fernando publicou, entre outros livros, Poemas Bissextos (Macunaíma, 1972), Gregório de Mattos: O Poeta Devorador (Manati, 2004) e Memória da Sé (3ª ed., Corrupio, 2009). Nesta entrevista, ele fala das pesquisas sobre o poeta Gregório de Matos e a trajetória intelectual que construiu entre a poesia e a história: “Posso dizer que o magistério e a história me deram o pão para a vida, e a poesia me deu o sabor intelectual”.


- Como é ser um intelectual, poeta e historiador morando fora do eixo Rio-São Paulo? 


- O diálogo, para quem faz essa escolha de aqui permanecer, é muito fechado. É um diálogo entre pares locais. Não há diálogo com o sul. Esse diálogo tornou-se muito estreito na medida em que mudaram as relações interpessoais. Elas hoje são mais mecânicas do que físicas, digamos assim. Eu, há muitos anos, tive amigos no sul, que de certo modo me enriqueceram e contribuíram para o meu desenvolvimento intelectual. Havia um contato, que era extremamente pessoal, na medida em que nós trocávamos cartas, objetos, figurinhas, e isso deixou de existir. Eu sou de uma geração considerada envelhecida. É evidente que se torna difícil, para quem fez essa opção de ficar aqui, tornar-se conhecido. Nossas ideias, nossos textos e publicações ficam aqui, porque hoje em dia não existe mais crítica literária, existe resenha. Resenhistas muito comprometidos com interesses editoriais, e isso cria certo embaraço, para não ser mais agressivo. Recentemente publiquei um livro de poesia e não saiu uma resenha fora da Bahia. Ninguém se abalou em escrever.

- Salvador sempre teve uma vida intelectual muito aguerrida. Você mesmo fez parte da mesma geração de Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares. Você acha que hoje isso mudou?


Não há mais uma geração como aquela. Morreram os protagonistas e alguns já estão à beira de partirem. Aquela vibração morreu porque nós não temos mais um suplemento cultural. O último foi o do jornal A Tarde, que por medidas de economia fechou. Era o único respiradouro onde os intelectuais locais poderiam publicar os seus poemas, ensaios, contos e assim por diante. Hoje nós temos, por exemplo, um grande contista baiano chamado Hélio Pólvora, que mora na Bahia. Porque veio para cá, será que Hélio Polvora está sendo esquecido? Na minha opinião ele deveria estar na Academia Brasileira de Letras, com condições de concorrer, porque a obra dele é válida. Então isto aqui se fechou, como eu disse.

- Você disse que os jornais deixaram de ter suplementos literários. Além disso, você observa também massificação cultural?


- Massificação cultural é uma das razões, na medida em que hoje, neste país, os leitores têm condições mínimas de qualidade. Mas o grande desastre, que considero significativo, é a má qualidade do ensino que se prática hoje no Brasil. Esse não é um problema só da Bahia. A Bahia é um local que sofre desse problema, talvez pela razão muito significativa de que a nossa geração foi substituída por uma geração voltada para a massificação musical. Hoje, quando se fala em personalidades da cultura baiana, o referencial são os músicos e os intérpretes masculinos e femininos. Ninguém se lembra mais, por exemplo, do Otávio Mangabeira, do Castro Alves. Jorge Amado vai sendo esquecido com o tempo. Dorival Caymmi também estava sendo esquecido, agora houve um revival, devido ao centenário dele. Então a massificação e a má qualidade do ensino refletem na produção cultural porque já não há mais uma interlocução com o docente. Eu tive professores que foram, além de professores, orientadores, pessoas amigas com quem eu me encontrava nas livrarias, nos clubes de cinema. A cidade não tem mais um clube de cinema.

- A Bahia produziu autores, músicos, pintores, que ajudaram a dar uma cara para o Brasil, a criar esse imaginário. Você concorda que, hoje, isso se reduziu a uma carnavalização?


- Hoje, a galeria brasileira e baiana é composta dos grandes interpretes da nossa música popular, seja ela MPB, tropicália, axé. É aí que estão as grandes figuras da nossa cultura baiana. As outras coisas perderam a razão de ser perante o público, seja ele jovem, principalmente, ou de meia-idade, na medida em que esse fenômeno vem decorrendo há muitos anos. Eu posso dizer isso e não estou lamentando o fato de ter ficado aqui, porque eu vivo cercado dos meus livros, das coisas que publiquei, nesse endereço razoável, e o que eu posso esperar mais? Reconhecimento, se vier, será póstumo. Em vida não há, porque o sul nos ignora atualmente. Ou nós somos de péssima qualidade ou eles são muito melhores e, por isso mesmo, cuidam dos seus pares e das suas crias, nos seus pastos.

- Você estudou muito o poeta satírico do período colonial Gregório de Matos, que unia na linguagem expressões dos dialetos indígenas e africanos. Isso era, na sua interpretação, uma questão cultural, algo relacionado ao período barroco, ou havia um viés de crítica ao que se dava naquele momento na Bahia?


- Ele usa expressões da língua dos índios e africanos, mas usa também expressões em latim, francês e espanhol. Isso de certo modo tem a ver com o aproveitamento que o poeta passa a fazer de determinadas palavras no contexto em que ele está querendo escrever. A poesia satírica se presta muito ao uso dessas expressões de natureza estranha à própria língua em que o poeta constituiu a sua formação, e por isso mesmo ele usa determinado termo quando o considera apropriado, seja na língua tupi, kimbundu, que é a língua angolana... O estoque vocabular de Gregório é muito grande.

- Gregório de Matos fazia uma espécie de poesia mestiça, mas era um cidadão cuja família era proprietária de terras. Como era a convivência dele com os negros daquele período?


Tenho que tomar cuidado para dizer se havia preconceito ou não, porque esse assunto está muito em ebulição. Não considero a poesia de Gregório de Matos preconceituosa. É um retrato em versos da realidade das circunstâncias daquele momento do Brasil. Aqui existia um regime escravocrata. Ele nasceu em uma família de proprietários rurais, foi criado em meio àquele horror que era o regime escravocrata para com os índios e os africanos. Ele viu aquilo, cresceu vendo aquilo, não podia entender de outra maneira. Por ser um crítico, o poeta captava a maneira comportamental do sujeito, fosse negro ou branco, e caía em cima com os seus versos impiedosos. Ele tanto caía em cima dos negros e das negras como caía em cima dos governadores, dos poderosos, dos clérigos. Enfim, era um poeta de musa violenta, agressiva.

- Em relação à poesia que se praticava naquele momento, ele é um caso único de usar a poesia como instrumento de crítica?


Essa poesia violentamente satírica é uma tradição na cultura ocidental. Não só em Portugal e na Espanha, mas também na França, na Alemanha, existem poetas que se tornaram notáveis e célebres por isso. Não se tem notícia da existência de outro poeta natural daqui que fizesse o mesmo na época. Têm-se notícias da presença de portugueses como o Tomás Pinto Brandão, que escreveu poemas nessa linha satírica, crítica, erótica. Outros, como o Manuel Botelho de Oliveira, contemporâneo do Gregório, não era satírico e, por isso mesmo, publicou seus versos. Gregório nunca publicou em vida. Ele tinha consciência de que se reunisse seus poemas eles seriam recusados, mesmo aqueles de natureza religiosa ou amorosa.

- Naquele momento na Bahia o Gregório é uma pessoa da elite, mas critica as autoridades, que são basicamente representantes dos portugueses aqui. Você vê nisso uma afirmação de nacionalidade?


- Eu não acredito nisso. Existem livros que insistem muito nessa ideia, mas ele fazia aquilo porque via, não se conformava e criticava. Ele fazia porque o viés mais significativo da criação poética dele era criticar determinadas situações, criticar o outro. Tanto que você pode conceber que ele foi desembargador da relação eclesiástica, posição criada por Dom Pedro II. Ele ocupou durante certo tempo o cargo porque tinha se formado em direito eclesiástico e veio a compor uma relação eclesiástica. Ele não quis vestir batina, não quis entrar nas regras do arcebispado do qual ele passa a fazer parte. Muda o arcebispo, o novo tenta convencê-lo a se comportar dentro dos padrões da igreja, ele se recusa e perde o cargo. Então ele começa a escrever poemas virulentos contra a própria instituição da qual ele participou, a atacar os colegas desembargadores, a ponto de chamar o capítulo da sé de “um presépio de bestas”. É uma postura extremamente ambígua, para não dizer oportunista. Ele tanto elogiava o sujeito como, se não tinha o valimento desejado, ele partia para criticar, atacar. Era uma questão de comportamento e, dentro dessa elite, ele era um ser discrepante e se comportava dessa maneira.

Naquele momento do Brasil Colônia a poesia era muito praticada. Existia um status nisso?
Quem não era poeta estava em um mato sem cachorro. Isso dava status. Ser literário conferia a um cidadão uma condição que ia além de ser um bacharel. Todo mundo era bacharel e poeta, e isso continuou durante muitos anos na nossa cultura. Pelo menos até a primeira metade do século 20 havia essa aproximação entre o letrado e a poesia. Ser poeta era algo muito importante na vida de uma pessoa.

- Isso era algo particular à Bahia ou ocorria também em outros lugares?


- Era comum, mas é que a gente desconhece a história da nossa literatura. Em Pernambuco nós tínhamos o Bento Teixeira, por exemplo. Nos outros estados, em outras capitanias, se desconhece porque há poucos registros. A Bahia era a capital do Brasil e aqui se concentrava a administração, a igreja, e só depois é que outras localidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco vão tomar corpo. A Bahia foi, pelo menos durante o século 16, o local de referência do Brasil de então. Chegou a dizer-se que a Bahia era a cabeça do Brasil. Hoje ela perdeu essa significação e, o que é pior, perdeu-se este acato às coisas do intelecto. Hoje em dia as coisas da criação, seja ela intelectual de que maneira for, estão mais concentradas nas mídias atuais, na música, no teatro, na novela de televisão. O próprio romance brasileiro está perdendo qualidade.

- Há quem diga que uma das razões para a poesia manter a qualidade é que ela não entrou na roda da indústria cultural. Você vê da mesma maneira?


- A poesia deixou de ser algo de interesse na indústria cultural e tem esse vigor talvez por isso, por essa frustração dos poetas. Talvez porque seja mais factível mexer com a palavra poética do que com a palavra em prosa. É muito difícil você inovar em prosa. O último grande inovador da prosa brasileira foi Guimarães Rosa. Antes dele, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto e alguns outros. Não havia essa indústria cultural esmagadora que nos impinge estes best sellers.

-  Quanto à sua trajetória como historiador e poeta, você diria que o poeta tem curiosidade pela história ou a história leva à curiosidade pela poesia?

- O meu lance, digamos assim, para com a poesia vem primeiro. Meu interesse pela história veio pela convivência que tive com alguns familiares, principalmente com um tio-avô médico, que lidava com questões da história da Bahia. Ele tinha uma bela biblioteca e, ao morrer, deixou muita coisa em São Paulo e muito pouca coisa aqui na Bahia. Eu tive a oportunidade de manusear o que ficou aqui quando era adolescente. Nessa biblioteca um dia eu encontrei um envelope cheio de documentos, manuscritos, correspondências, recortes de jornais e fotografias, e isso me interessou. Eu era adolescente e guardei esse envelope. Alguns anos depois, já formado em Direito e trabalhando na Universidade Federal da Bahia, fui chamado para ser professor “horista”, o chamado “taxi teacher”. Lecionando, fui pressionado a fazer concurso e me lembrei então daquele envelope. Fui juntar as pepitas que estavam nele e vi que aquilo podia dar um trabalho, um livro, uma tese. Sentei, escrevi e defendi a tese. Depois fui para Portugal com a bolsa de estudos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e fiz a pesquisa sobre Gregório de Matos. Sou um historiador com certas restrições pessoais. Não me estendo muito fora das minhas competências. Um historiador que foi antes um professor e, por isso mesmo, posso dizer que o magistério e a história me deram o pão para a vida, e a poesia me deu o sabor intelectual. Com isso eu não estou descartando, em hipótese alguma, a satisfação de ter tido um relativo sucesso com os livros sobre a Memória da Sé, com o Gregório de Matos e o meu trabalho sobre o Antônio Conselheiro.

Você, Paulo Gil Soares e Glauber Rocha fizeram diversas coisas juntos. Como se deu esse encontro?
Nós nos encontramos em um colégio público da Bahia de muita qualidade. Lá eu tive o privilégio de ter grandes professores e encontrar gente de muita inquietação. Gente que estava ali não só para estudar, mas também para criar, e encontrei com Glauber Rocha, Paulo Gil, Fred Souza Castro, entre vários outros. O convívio da juventude inquieta não degenerou; pelo contrário, cresceu e deu no que deu. Nós resolvemos fazer teatro e montamos espetáculos de teatro com a poesia moderna brasileira, e encenamos Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Pedro Nava, João Cabral de Melo Neto, Gregório de Matos, Cecília Meireles, muita gente. E isso fez com que nós montássemos sete espetáculos aqui na Bahia, de muito sucesso, mas era uma coisa de jovens de 18, 20 anos. Formamos um grupo extenso, com participação também de mulheres, e a partir daí partimos para fundar uma empresa de cinema, que não deu certo, mas fez com que Glauber fosse para o Rio de Janeiro e se tornou lá o tribuna do cinema novo brasileiro. Paulo Gil foi para São Paulo e trabalhou na rede Globo, fez cinema. Calasans, que fazia os nossos cenários, se transformou em artista plástico. O grupo cresceu, amadureceu.

Havia uma estética comum nesse grupo?
Havia a estética da inquietação, da modernidade, porque nós tivemos que nos suprir do nosso passado cultural. Esse é o grande problema hoje. Nós tínhamos lastro cultural familiar, escolar, de convívio com pessoas. Havia toda uma base. Nós precisávamos nos reunir para fazer agitação, política. Era uma inquietação muito significativa porque havia um substrato que levava a uma inquietação diferente da de hoje, que paira no vazio midiático.

“É evidente que se torna difícil, para quem fez essa opção de ficar aqui [em Salvador], tornar-se conhecido. Nossas ideias, nossos textos e publicações ficam aqui”


“Hoje, quando se fala em personalidades da cultura baiana, o referencial são os músicos e os intérpretes masculinos e femininos. Ninguém se lembra mais, por exemplo, do Otávio Mangabeira, Castro Alves. Jorge Amado vai sendo esquecido com o tempo”

“Não considero a poesia
de Gregório de Matos preconceituosa.
É um retrato em versos da realidade
das circunstâncias daquele momento do Brasil”


“Chegou-se a dizer que a Bahia era a cabeça do Brasil. Hoje ela perdeu essa significação e, o que é pior, perdeu-se este acato às coisas do intelecto”




 


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