Charles Baudelaire (1821-1867). Retrato do poeta por Gustave Courbet (1849), detalhe |
BAUDELAIRE, DE PARIS
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https://leiamaisba.com.br/2013/02/21/baudelaire-de-paris-salvador
GERALDO MAYRINK
Baudelaire e seus demônios
"Há em todo homem, e a toda hora, duas postulações simultâneas, uma
a Deus e outra a satanás. A invocação a Deus, ou espiritualidade, é um desejo
de assunção; a invocação a satanás, ou animalidade, é o prazer de cair".
Fazer o Mal para o Mal, praticar expressamente o contrário daquilo que se acredita ser o Bem, querer o que não se quer: eis, num resumo melancólico, mas também grandioso, a vida de Charles Baudelaire.
Primeiro ele sentiu
“no seu coração de criança” um êxtase pela vida, para mais tarde horrorizar-se
com ela. Depois fingiu escolher um Deus que o protegesse, mas apenas para se
entregar ainda mais a um Demônio que lhe dava prazer. Jurou a verdade e pregou
a mentira. Defendeu o trabalho produtivo da sua sociedade capitalista em
ascensão, mas jamais trabalhou: era um preguiçoso que confessava, tristemente,
“o caráter inútil das coisas”. Se vestiu as melhores roupas e frequentou os
ambientes mais finos, era nas tavernas e nos corpos das mendigas que encontrava
os seus motivos de gozo. Dizem que não mereceu a vida que teve: morreu cedo,
insatisfeito com o mundo e com ele mesmo, deixando uma obra de poesia e de
crítica que poucos entenderam na época. Essa obra é hoje um dos marcos da
literatura. São, muito justamente, As flores do mal. Que espécie de
maldições, torturas e angústias se ocultava sob esse título de grande beleza?
Para saber isso, já foram escritos mais livros do que toda a obra de
Baudelaire. As perguntas começam na infância do poeta.
Bom aluno, filho
mimado de uma mãe que adorou mesmo quando se dispunha a criticá-la, o primeiro
acontecimento importante na vida de Charles Baudelaire foi o casamento dessa
mãe adorada com um general que jamais o aceitou. Seria isso verdade? Ou apenas
a primeira mentira do menino ressentido, que via desaparecer a sua relação
privilegiada e única? “Meu marido adorava Charles” – diria
mais tarde sua mãe, numa carta a um amigo em 1868. “Admirava-lhe a
inteligência, queria para ele os mais altos postos da vida social; isso não era
impossível, pois o duque de Orléans era amigo do meu marido. Ficamos
estarrecidos quando Charles recusou tudo que queríamos fazer por ele e nos
comunicou seu desejo de ser autor. Que desencantamento! Que tristeza!
Resolvemos então mandá-lo viajar.” Era um rompimento, mas Baudelaire não o suportou.
Quando a viagem começou – ele tinha então 20 anos – já pensava em voltar, o que
fez dez meses antes do previsto. Que fez nessa viagem? Primeiro, descobriu o
prazer de outras paisagens, que celebraria na sua obra mas jamais tratou de
repetir. Encontrou, também, uma babá preta e se apaixonou por ela. Mimado,
ficava horas exposto ao sol, queixando-se de dor de barriga, para que ela
viesse socorrê-lo. Pegou uma sífilis que nunca mais o abandonou. Mas cantou a
amada em verso:
Au pays parfumé que
le soleil caresse
Une dame créole aux charmes ignorés
No país perfumado que o sol festeja
Uma dama crioula e de encanto ignorado
É certo que fez
poemas desde os seus tempos de colégio. À une dame créole já
revela alguns temas de As flores do mal (como o simbolismo do
perfume e do encanto de uma beleza insólita), mas Baudelaire ainda não os
levava bastante a sério para que fossem publicados. Não é o poeta, mas o
crítico de pintura que será editado primeiro. Quatro anos depois da viagem ele
escrevia um ensaio, “Le Salon de 1845”. Alguns meses depois, lia-se sobre a
capa de uma publicação de Pierre Dupont o anúncio de um volume de versos de
Baudelaire, chamado Les Lesbiennes (As lésbicas). O anúncio
foi repetido no volume do ano seguinte, Salon de 1846. Crítico e
poeta, aos 24 anos Baudelaire já tinha estabelecido a dupla orientação de sua
obra: a reflexão e a emoção, o pensamento estético e a criação poética.
Como era ele nessa
época? Primeiro é preciso dizer que não usava um fio de roupa que não fosse
absolutamente impecável. Sempre de preto, a toda hora, durante toda a estação,
tinha uma ligeira barba que não lhe alterava as feições. Falava calmamente e
com grande dignidade, usando com inteligência sua voz ritmada, eloquente e
muito bonita. Cabelos pretos, cortados muito baixo – ao contrário da moda – e
cerrados na juventude, rareando na velhice. Olhos castanhos claros, muito
suaves. Era de um dandismo sóbrio, mas aos olhos de seu amigo Théophile Gautier
– a quem dedicou As flores do mal – algo endomingado e meio desagradável
“ao verdadeiro gentleman”. Mas era um verdadeiro gentleman, ao contrário do que
se divulgou sobre ele. Ao ser apresentado a uma senhora de Paris, quando sua
fama de poeta maldito já correra a cidade, ouviu dela o seguinte:
– Mas o senhor é
tão educado, tão fino! Pensava que fosse um bêbado!
Essa fama, sabe-se hoje de onde veio. A 1º de junho de 1855 começa a história das Flores do mal, livro destinado a revolucionar a poesia francesa. É quando a Revue des Deux Mondes publica dezoito poemas sob o título geral de Fleurs du mal, que fora sugerido a Baudelaire por seu amigo Hyppolite Babou. Outro amigo de Baudelaire, o editor Poulet-Malassis, compra os poemas e os edita em 1857. Então a polícia intervém. Um artigo venenoso, publicado no Figaro, atrai atenções indesejáveis e espalha-se o boato de que o livro “é mais do que podre”. A 20 de agosto, seis poemas (as chamadas “Pièces condamnées”) são obrigados a sair do livro. Várias outras edições desgostaram Baudelaire, que não as deixou sair. Ele começou uma luta com sua própria obra: corrigia e mudava tudo, acrescentava novas peças e, por causa disso, trocava constantemente de editor. A última edição que viu publicada foi a segunda, em 1861. A morte impediu que conseguisse uma edição do seu inteiro agrado.
A presença de
certos temas escabrosos nas Flores do mal bastaria, porém,
para que o poeta se transformasse num maldito? Certas imagens torturadas,
algumas descrições chocantes seriam suficientes para que Baudelaire fosse
excluído da república das letras do século passado? Para sabê-lo seria preciso,
primeiro, conhecer o caráter de Baudelaire, e depois o caráter da literatura
que se praticava na época. Como a ética do homem é sempre mais ambígua do que a
moral da literatura, é melhor falar inicialmente do romantismo do qual
Baudelaire é herdeiro, e em seguida tentar compreender o caráter singular do
poeta nas suas relações com a época. Porque Baudelaire, mesmo que tenha tido
poucos amigos em vida, mesmo que fosse um inadaptado nas suas relações com as
pessoas, fazia parte de um movimento geral que, para o melhor ou para o pior,
teve profunda influência no que escreveu.
Esse movimento é o
realismo. Em linhas muito gerais, é correto dizer que ao romantismo, que foi
uma literatura de imaginação e sentimento, seguiu-se o realismo, que foi
sobretudo uma literatura de análise e de crítica. A realidade passa a ser
primordial: o mundo físico é a primeira e principal impressão, as ideias e os
sentimentos são a sua consequência. O ano é 1850. Na poesia, o realismo se
chama parnasianismo. Seus heróis: Leconte de Lisle, Sully Prudhomme, Villiers
de L’Isle Adam, José Maria de Heredia, François Coppée, Léon Dierx, Stéphane
Mallarmé, Paul Verlaine, Catulle Mendès, Théophile Gautier, Théodore de
Banville, Charles Baudelaire. Muito diferentes entre si, tinham algumas coisas
em comum: uma certa impessoalidade, uma certa repugnância pela confissão
pública das dores sentimentais. Mas não queriam ser impassíveis: queriam ser
racionais. Por isso mesmo, instituíram um novo e muitas vezes vigoroso culto da
forma. De todos eles, só três – Mallarmé, Verlaine, Baudelaire – tiveram
influência até os nossos dias.
Se Baudelaire é um
herdeiro do romantismo, é também uma de suas vítimas. A novidade da sua poesia
não era tão radical a ponto de negar o movimento que a precedeu. Seu célebre
poema Bénédiction, escrito por volta de 1850, é um exemplo ilustre
dessa influência que lhe marcou a obra. Como tantos românticos, Baudelaire nos
fala de um contraste nesse seu poema: o poeta é um ser maldito, mas tem uma
vocação sobrenatural. É um dos lugares-comuns mais encontrados no romantismo
(basta lembrar Vigny) e nem por isso Baudelaire o recusou; pelo contrário,
parecia encontrar um certo prazer nele. A poesia geral do realismo, e muito
especialmente a sua, insistia em recolocar os temas que o remetiam ao passado,
a coisas perdidas, a angústias irrecuperáveis. O Baudelaire crítico cedia,
frequentemente, ao Baudelaire romântico: um olhava com grande lucidez a Paris
do seu tempo, o outro demitia-se por completo nos momentos de fraqueza.
Essa divisão,
descrita aqui muito sumariamente, é de grande importância para o entendimento
da vida e da obra de Baudelaire. Ela seria incompreensível e mesmo gratuita, se
não fosse levada em conta a época em que Baudelaire escreveu e o que pretendia
a poesia realista que ele praticava.
Porque, se
Baudelaire não mereceu a vida que teve, também não pôde viver outra vida. A
única que lhe foi dada fez sua glória e seu sofrimento. Não é só uma questão
literária. É possível apresentar alguns dados objetivos a esses 46 anos de
existência do poeta. Do nascimento à morte de Baudelaire, a Europa foi varada
por uma rede de vias férreas, que multiplicou a circulação das riquezas. A
produção capitalista, em plena ascensão, abre a perspectiva de um crescimento
infinito de suas forças e coloca esse crescimento como fim; reserva a maior
parte dos produtos do trabalho para o crescimento dos meios de produzir ainda
mais. Do lado operário, que não era contrário à acumulação, essa operação
deveria ser negada à medida que se limitava às perspectivas do lucro pessoal
dos capitalistas; mas deu-se uma contrapartida importante: suscitou o movimento
proletário. Do lado dos escritores, como punha fim aos esplendores do antigo
regime, substituindo as obras gloriosas do passado por objetos e conceitos
utilitários, provocou o protesto dos românticos e depois dos realistas.
Para o proletário,
o protesto visava o fim da escravidão do homem pelo trabalho. Para o escritor,
tratava-se de evitar que o homem se transformasse num apêndice do útil. Esse
protesto, porém, várias vezes caiu na exaltação ingênua do passado, que se
opunha arbitrariamente ao presente. Baudelaire tirou da inutilidade dos seus
esforços o que outros tiraram da rebelião. Ele está na linha de frente dos que
primeiro pressentiram o advento de novas condições para a produção artística.
Bem antes da definitiva vitória dos meios de comunicação de massa, antes do
predomínio absoluto das técnicas de reprodução, o artista moderno já sentia
escassear em torno de si a experiência em aura.
Essa aura, como o
demonstram os estudos modernos, pode ser definida como o caráter de
originalidade da obra de arte. Original e única, por exemplo, era a estátua
colocada nos templos e que exigia um ritual para que fosse contemplada. Estava
colocada num local propositadamente inacessível, o espectador tinha que
comparecer ao templo ou museu; a estátua se perdia como objeto para que o
espectador estabelecesse uma relação de magia. A Renascença, com seus valores
pagãos, e a Revolução Industrial, com sua produção em massa, modificaram esse
tipo de relação até um ponto em que praticamente o destruíram. A intuição de
Baudelaire, no caso, não foi apenas de perceber esse presente, que de modo tão
violento se opunha ao passado. Baudelaire viu mais longe: para ele, a
decadência de um tipo de experiência artística (a experiência em aura) era
sintoma de uma outra decadência, bem mais grave; era a própria decadência dos
valores autênticos; era a queda da qualidade, em favor dos valores inautênticos
da quantidade. Em suma, uma degradação.
Baudelaire sentiu-o
melhor do que ninguém. Mas estava desarmado para enfrentar essa realidade. Numa
carta à sua mãe, datada de 26 de março de 1853, ele escrevia: “Em suma, esta
semana me foi demonstrado que posso realmente ganhar dinheiro e, se o aplicar
bem, mais dinheiro ainda. Mas as desordens precedentes, mais uma miséria
incessante e um novo déficit a cobrir – em suma, minha tendência sonhadora –
anulou tudo”. Sete anos depois, a 21 de agosto, era ainda o mesmo: “Morrerei
sem ter feito nada durante a vida. Devia 20 mil francos, devo agora 40 mil. Se
tiver a infelicidade de viver ainda durante muito tempo, a dívida pode
duplicar”. Impotente, acaba escolhendo a revolta: “Um homem útil sempre me
pareceu algo horrendo”.
Aqui estão
esboçados os temas da vida perdida, das coisas irreparáveis, dos desejos
insatisfeitos. Mas em outra época escreverá, e dessa vez com orgulho, que a
inutilidade é que lhe parecia horrenda.
Desse orgulho desesperado e dessa impotência declarada é possível tirar algumas lições. A esta altura sabemos que o mal do poeta não nasce exclusivamente do seu caráter ou da sua psicologia particular. Jean-Paul Sartre, que dedicou um volume a Baudelaire, insiste na afirmação de que as atitudes do poeta foram escolhidas. Mas trata-se de um raciocínio destinado a demonstrar a ideia sartriana de que o homem se faz quando escolhe seu próprio destino.itindo que o indivíduo tenha escolhido – replica Georges Bataille –, o sentido daquilo que ele criou é dado socialmente pelas necessidades a de Baudelaire não exprime somente a necessidade individual, mas é consequência de uma tensão material, historicamente dada de fora.
Pintura de Émile Deroy ©ReproduçãoMato-me – escreve
Baudelaire em 1845 – porque sou inútil para os outros e perigoso para mim
mesmo.
Eu, matar-me? –
dirá ele em 1861 – é um absurdo, não é verdade?
Voltamos a encontrar aqui a indecisão de Baudelaire. De agora em diante, olhando mais de perto o que ele escreveu, é possível descobrir que as pressões da sociedade e da época não são as únicas fontes da sua dor. Ele sofria com o mundo exterior, mas era dentro de si mesmo que esse sofrimento se multiplicava e se erguia como uma barreira de horror diante da sua impotência. Trata-se, mais ou menos, do “puro aborrecimento de viver” de que fala Valéry. Sartre chega a afirmar que Baudelaire era um preguiçoso, e na sua preguiça devia haver um aspecto patológico. Prova-o com uma carta de Baudelaire à mãe, de 1857: “[…] o que eu sinto é um imenso desânimo, uma sensação de isolamento insuportável… uma ausência total de desejos, uma impossibilidade de encontrar qualquer distração. O êxito estranho do meu livro e os ódios que provocou interessaram-me durante certo tempo, mas logo depois deixei-me cair outra vez”.
Essa preguiça se
torna mais nítida quando posta ao lado da sensação do tempo que passa: a cada
minuto, somos massacrados pela ideia e pela sensação do tempo. Pouco a pouco o
tempo se transforma numa maldição. Baudelaire chama-o de Inimigo:
Ô douleur! Ô
douleur! Le Temps mange la vie,
Et l’obscur Ennemi que nous ronge le coeur
Du sang que nous perdons croît et se fortifie!
Devora o tempo a
vida, ó suprema agonia,
Se rói o coração o inimigo traidor,
Cresce por se nutrir dessa nossa agonia!
Mais adiante:
“Tenho recordações como quem tem mil anos”. E o tempo, poderosamente
simbolizado num relógio que tudo pode, chega a obcecá-lo:
Horloge! dieu
sinistre, effrayant, impassible
Dont le doigt nous menace et nous dit: “Souviens-toi!”
Les vibrantes Douleurs dans ton coeur plein d’effroi
Se planteront bientôt comme dans une cible
Relógio! deus
sinistro, assustador e calvo
E cujo dedo ameaça a nos dizer: Recorda!
A vibradora dor, que, no medo, transborda,
Será em teu coração fixa como o alvo.
Prisioneiro do
tempo, Baudelaire lamenta as coisas que não fez. Sofre com os projetos, as
ambições e as decisões todos os dias retomados e diariamente desmentidos. Ele
não quer correr junto com esse tempo. Para que se sinta também encarcerado pela
paisagem, vai apenas um passo. A preguiça do poeta se transforma em tédio. Nascem
as visões fúnebres, o medo da morte:
Quand le ciel bas
et lourd pèse comme un couvercle
Sur l’esprit gémissant en proie aux longs ennuis,
Et que de l’horizon embrassant tout le cercle
Il nous verse un jour noir plus triste que les nuits;
[…]
– Et de longs
corbillards, sans tambours ni musique,
Défilent lentement dans mon âme; l’Espoir,
Vaincu, pleure, et l’Angoisse atroce, despotique,
Sur mon crâne incliné plante son drapeau noir.
E quando pesa o
céu, tal tampa grave e baça,
No espírito a gemer e em que só o tédio existe,
E do horizonte enfim todo o círculo abraça,
Vertendo um dia negro e mais que as noites tristes;
[…]
E os
carros-funerais, sem música nem tambor,
Lentos passam por mim e a esperança, destarte
Vencida, chora; e a angústia estorce-se de dor,
Sobre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.
A proibição
das Flores do mal abala-o profundamente. Torna-se maldito por
causa dela, mas era como se a desejasse; Sartre chega a acusá-lo de bajular os
juízes e de tramar sua entrada para a Academia Francesa.
Aí está o que
Auerbach chamou de “horror desesperançado”. Esse horror pode ser encontrado em
muitos poetas trágicos e historiadores da Antiguidade, especialmente em Dante.
Mas trata-se de uma forma especial de sublime, uma saída humana, através da
criação, para um mal de vida muito doloroso. Em outras palavras, Baudelaire
faz, do ato de criar, o ponto mais alto da vida porque só ele é capaz de
superar o mundo. Nas palavras de Sartre:
“Para Baudelaire,
como para Kant, aquilo que o espírito cria é superior à matéria: põe no mundo
algo que lá não estava. A criação é pura liberdade, produz seus próprios
princípios, inventa seu próprio fim”.
Dessa criação
soberana, no centro da qual Baudelaire se coloca, Sartre retira uma
consequência inesperada.
“Isso explica em
parte o gosto de Baudelaire pelo artifício. As pinturas, os ornamentos, as
roupagens, as luzes, são para ele uma manifestação da verdadeira grandeza do
homem: o seu poder de criar. Após Restif, Balzac, Sue, Baudelaire contribuiu
para divulgar aquilo que Roger Caillois chama de mito da grande cidade. É que a
cidade representa uma perpétua criação: seus edifícios, cheiros e ruídos
pertencem ao reino humano”. Essa cidade, na obra de Baudelaire, é Paris:
Fourmillante cité,
cité pleine de rêves,
Où le spectre en plein jour raccroche le passant!
Cidade formigante,
e que ao sonho se aviva
Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço!
Paris ocupa uma
parte considerável das Flores do mal, sob o título de “Quadros
parisienses”. O livro de poemas em prosa de Baudelaire chama-se Spleen
de Paris. Ele fala dos velhos e velhas da cidade, dos seus cegos, dos seus
pobres, mendigos, mulheres, das pessoas que passam. Passam como essa Paris que
muda sempre, que sofre com o tempo:
Le vieux Paris
n’est plus (la forme d’une ville
Change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel);
Morta é a velha
Paris (a forma da cidade
Muda bem mais que o coração de um infiel).
Esse amor a Paris,
essa dedicação ao verso como modelo da criação, esse uso da literatura como um
exercício de nobreza, nada disso vai livrar Baudelaire do seu aborrecimento de
viver. Pouco antes de tentar o suicídio, ele escrevia: “A vida é tão estúpida
que é preciso se sentir igualmente estúpido para não acabar com ela”. Se a vida
é estúpida, talvez através da literatura, esse ato que supera a vida, ela se
tornasse suportável. Mas Baudelaire também desconfiava dos poderes da
literatura. A sua época de ascensão industrial e a investida dos meios de
comunicação de massa atormentavam-no. Previa para a literatura um destino
melancólico: “A circulação dos grandes jornais, a multiplicação das gazetas,
numerosas a ponto de cobrir um deserto, vão impor à literatura coisas tão
áridas que será melhor não ver”.
Agora estamos em
condições de saber que a dor de Baudelaire tinha duas portas irremediavelmente
fechadas. Para ele, viver era um pouco o contrário de exprimir; mas só poderia
exprimir através da experiência vivida. Essa vida estúpida e essa literatura
condenada vão arruinar-lhe o espírito. Fraqueja, escreve páginas absurdas e
contraditórias. A proibição das Flores do mal abala-o
profundamente. Torna-se maldito por causa dela, mas era como se a desejasse;
Sartre chega a acusá-lo de bajular os juízes e de tramar sua entrada para a
Academia Francesa. Pior: deixou-se julgar por seus críticos policiais, pediu
perdão; escreveu que a Justiça o tratara admiravelmente e depois passou a
perseguir uma reabilitação social.
Seu impulso de
agressão contra as normas morais da burguesia está atravessado de recuos,
concessões, pedidos de desculpas. Sua introdução no Salão de 1846 é,
abertamente, uma defesa do burguês; combate o sentido pejorativo dado à
palavra, afirma que ela é respeitável e se justifica com candura; é preciso
atacar aqueles à custa de quem se vive. Em Paraísos artificiais, em
que narra experiências com o haxixe e o ópio, toma o cuidado de não ser
confundido com os toxicômanos. Defendeu-se da possível escabrosidade dos seus
temas. Chegou a sustentar que o seu programa era “a guerra declarada aos vícios
e às baixezas da humanidade e uma maldição lançada a todas as vergonhas”.
Pode-se imaginar renúncia mais completa do que essa? “Foram necessários, em
todos os tempos e em todas as nações, deuses e profetas para ensinar (a
virtude) à humanidade animalizada e… o homem, sozinho, teria sido impotente
para a descobrir.”
É nesse “fazer o
que não se quer fazer” que Sartre e Bataille descobrem a malignidade de
Baudelaire. Sartre o considera um grande culpado e estabelece uma diferença
entre sua culpa e a do homem vulgar: “O ateu não se preocupa com Deus porque
decidiu, de uma vez por todas, que Ele não existe. Mas o sacerdote das missas
negras odeia Deus porque Ele é amável, escarnece-o porque Ele é respeitável, emprega
sua própria vontade para negar a ordem estabelecida, mas, ao mesmo tempo,
mantém essa ordem e afirma-a mais do que nunca. Se cessasse um instante que
fosse de o afirmar, a sua consciência voltaria a estar de acordo consigo mesma,
o mal se transformaria, subitamente, em Bem e, ultrapassando todas as ordens
que não emanassem dele mesmo, emergiria do nada, sem Deus, sem desculpas, com
uma responsabilidade total”.
Baudelaire
fotografado por Etienne Carjat em 1863 @Reprodução
Mas Baudelaire não
acredita suficientemente em Deus para temer o inferno; ele abomina essa
responsabilidade diante da vida. Está aqui a relação entre o mal e a poesia.
Sartre acrescenta que, quando a poesia toma o mal por objeto, as duas espécies
de criação, de responsabilidade limitada, encontram-se e fundem-se. Tem-se,
assim, uma flor do mal. Baudelaire pertence a essa aristocracia do mal, não é
um culpado como os outros. Como não tem um Deus a temer ou implorar, não tem
igualmente um inferno que o ameace. Para ele a danação é terrestre e
definitiva. Sartre, citando a si mesmo, aproveita para afirmar que também para
Baudelaire o inferno são os outros: é a censura alheia, o olhar do general
Aupick, seu padrasto, é o conselho de família.
É o mal, pura e
simplesmente, que o fascina. É uma religiosidade ao contrário, toda endereçada
ao diabo, que o conduz às Litanias de Satã:
Ô toi, le plus
savant et le plus beau des Anges,
Dieu trahi par le sort et privé de louanges,
Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!
Ó tu, ó anjo mais
belo e o mais sábio Senhor,
Deus que a sorte traiu e privou louvor,
Tem piedade, Satã, dessa longa miséria!
O Anjo do Mal é
chamado a livrar a terra de suas desgraças. Assume, poderoso, o lugar que é seu
e de onde um Deus o expulsou. Baudelaire se rende a ele, implora-lhe como o
fanático suplica ao santo:
Gloire et louange à
toi, Satan, dans les hauteurs
Du ciel, où tu règnas, et dans les profondeurs
De l’Enfer, où, vaincu, tu rêves em silence!
Fais que mon âme un jour, sous l’Arbre de Science,
Près de toi se repose, à l’heure où sur ton front
Comme un temple nouveau ses rameaux s’épandront!
Glória e louvor a
ti, Satã, pelas alturas
Do céu em que reinaste, e nas furnas obscuras
Do inferno em que vencido és sonho e sonolência!
Faze que esta alma um dia à arvore da Ciência
Repouse junto a ti, quando em tua cabeça
Tal qual um templo novo e os seus ramos floresça!
Transfigurar: eis o
projeto de Baudelaire. Transfigurar o nada em coisa criada, mudar os objetos ao
sabor da imaginação, ver no artificialismo uma intervenção da consciência
criadora. Sartre retoma uma expressão de Comte para descrever esse estado de
espírito: “sonho de uma antinatureza”. Em Marx e Engels encontra-se a
palavra antiphysis. Em ambos os casos, trata-se de um único pensamento:
usar o trabalho humano para pôr fim aos erros, tropeços e imprecisões de uma
natureza cega. Baudelaire, sem se interessar muito pela realidade nova dos
operários, mas profundamente sensível ao maquinismo industrial e à necessidade
do trabalho, é arrastado nessa corrente. Trata-se de recriar o mundo, superá-lo
sempre; lembremos que ele quer justificar uma vida estúpida através da criação;
agora é fácil compreender que as realidades naturais não lhe significam
absolutamente nada.
“Você me pede
versos para o seu volumezinho sobre a natureza, não é verdade?”, escreve de a
F. Desnoyers em 1855. “Sobre os bosques, os grandes carvalhos, a verdura, os
insetos – e o Sol, certamente? Mas bem sabe que sou incapaz de me enternecer em
função dos vegetais e que a minha alma é rebelde em face dessa bizarra nova
religião que terá sempre, penso eu, para qualquer espiritual, um não sei quê
de shocking. Nunca acreditarei que a alma dos deuses habita as
plantas e, mesmo que as habitasse, pouco me interessaria por ela e consideraria
a minha de valor muito mais elevado do que a dos legumes santificados.”
É antes de tudo um
homem da cidade que prefere os objetos geométricos, as linhas precisas que a
inteligência traçou. “A água em liberdade é para mim algo insuportável; quero-a
prisioneira entre as muralhas geométricas de um cais.” Baudelaire não quer
fazer parte da natureza. Para sair dela encontra primeiro a saída de uma
elevação, de uma viagem a um sítio inteiramente isento de naturalidade:
Au-dessus des
étangs, au-dessus des vallées,
Des montagnes, des bois, des nuages, des mers;
Par delà le soleil, par delà des éthers
Par delà les confins des sphères étoilées.
Por sobre os
pantanais, por sobre os descampados,
Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos montes estrelados.
Mas não basta fugir
a essa natureza e procurar um limbo que seria, de novo, o nada. É preciso
negá-la, cuspir-lhe com fúria; ao mesmo tempo reconhece sua importância, sente
a impossibilidade de escapar-lhe inteiramente. Atribui-se a Baudelaire uma
frase que explicaria suas relações singulares com as mulheres: “A mulher é um
ser natural, portanto abominável”. Eis que a mulher é uma aliada da natureza. Mas
as duas criações abomináveis não são desprovidas de grandeza:
Quand la nature,
grande en ses desseins cachés
De toi se sert, ô femme, ô reine des péchés,
– De toi, vil animal, – pour pétrir un génie?
Ô fangeuse grandeur! sublime ignominie!
Na hora em que a
natureza, em desígnios velados
De ti se serve, ó fêmea, ó deusa dos pecados,
Para plasmar um gênio, ó imundo animal?
Ó grandeza de lama! ó ignomínia imortal!
É o ritual, a
roupa, o artifício, enfim, que fascina o fetichista. É o seu modo egoísta de
possuir o outro à distância, sem dar nada de si e sem seguir as regras de uma
natureza tão detestável.
“Grandeza de lama”,
“ignomínia”, “deusa dos pecados”; que significam essas palavras na boca de
Baudelaire? Mostram, em primeiro lugar, o fascínio do fraco pela força que o
subjuga. Comporta um elemento de desprezo ressentido, de raiva incontrolada
contra a mulher. Adivinha-se que o sonho da antinatureza oculta uma inadaptação
sexual difícil de ser descrita. Mas é evidente que o ato sexual o horroriza.
Primeiro porque é natural e brutal e, depois, porque consiste numa comunicação
com outra pessoa. Sartre compara-o a Buffon: enquanto este escrevia com punhos
de renda, Baudelaire calçava luvas para se entregar aos atos sexuais. Daí a
suspeita de fetichismo que pesa sobre ele.
É o ritual, a
roupa, o artifício, enfim, que fascina o fetichista. É o seu modo egoísta de
possuir o outro à distância, sem dar nada de si e sem seguir as regras de uma
natureza tão detestável.
Mas arriscou-se
tentando, mais uma vez, reinventar tudo. Não é a bela mulher de linhas sinuosas
que o atrai, mas a prostituta miserável, a sujeira, a doença, os hospitais, os
corpos arruinados. E assim ele chega mais uma vez ao sofrimento e ao orgulho de
uma criação soberana, como neste retrato de Sara, “a horrenda judia”:
Vice beaucoup plus
grave, elle porte perruque.
Tous ses beaux cheveux noirs ont fui sa blanche nuque;
Ce qui n’empêche pas les baisers amoureux
De pleuvoir sur son front plus pelé qu’un lépreux.
[…]
Elle n’a que vingt
ans; la gorge, déjà basse,
Pend de chaque côté, comme une calebasse,
Et pourtant, me traînant chaque nuit sur son corps,
Ainsi qu’un nouveau-né, je la tette et la mords.
Et, bien qu’elle n’ait pas souvent même une obole
Pour se frotter la chair et pour s’oindre l’épaule,
Je la lèche en silence, avec plus de ferveur
Que Madeleine en feu des deux pieds du Sauveur.
La pauvre créature, au plaisir essoufflée,
A de rauques hoquets la poitrine gonflée,
Et je devine, au bruit de son souffle brutal,
Qu’elle a souvent mordu le pain de l’hôpital.
Vício mais grave,
ela usa cabeleira postiça.
Todos os seus belos cabelos desertaram a sua branca nuca,
O que não impede que os beijos amorosos
Chovam na sua testa mais pelada do que um leproso.
Tem apenas vinte anos; o peito, já descaído,
Pende de cada lado como uma cabaça,
E no entanto, arrastando-me cada noite sobre o seu corpo,
Tal qual um recém-nascido, sugo-a e mordo-a.
E apesar de não ter muitas vezes um óbolo sequer
Para lavar o corpo e pôr creme nos ombros,
Lambo-a em silêncio, com mais fervor
Do que Madalena ardente lambia os pés do Salvador.
A pobre criatura, esfalfada de prazer,
Tem o peito inchado de soluços roucos,
E adivinho, pelo ruído de sua respiração brutal,
Que comeu muitas vezes o pão do hospital.
Seria assim tão estranho que Baudelaire tenha sofrido, mais que qualquer outro, das mais variadas maldições que podem afligir a carne? Ele as aceitou uma por uma, abominando-as; sofreu por fraqueza, mas também porque foi o mais lúcido dos artistas do seu tempo. Seu gosto pela comédia e pelo artifício talvez sugerisse um fim prematuro. Que fazia naquela igreja de Namur o autor das Litanias de Satã, quando um ataque de paralisia o derrubou ao solo? Doente, privado da palavra, preso ao leito por uma imobilidade que só não lhe atingiu o cérebro, ele assistiu mudo aos progressos do seu mal. Do incidente da igreja até a morte, um ano depois, existe um relativo mistério. Morreu nos braços da mãe, cercado de alguns amigos, e deixando a entender que nada perdera da sua lucidez. No dia seguinte ao da sua morte, o Figaro, o mesmo jornal que antes ajudara a fazer dele um poeta maldito, escreveu: “Tem ainda uma aparência jovem. Morto, conserva os olhos abertos, o mesmo olhar estranho, inquiridor e torturado do homem que vive em esferas sobrenaturais e que mantém sem cessar a sua visão”.
Geraldo Mayrink nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1942. Começou a carreira em 1960 e ao longo de cinco décadas passou pelas principais publicações do país, como Binômio, Diário de Minas, O Globo, Jornal do Brasil, Manchete, Veja, IstoÉ, Playboy, Afinal, Correio Braziliense, Revista Goodyear, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Época e Diário do Comércio. Tem uma dezena de livros publicados, entre eles “Juscelino” (biografia), Editora Nova Cultural, 1988, “Memorando” (teatro, coautoria com Fernando Moreira Salles), Companhia das Letras, 1993, e “Escuridão ao Meio-dia” (ensaios), Editora Record, 2005. Morreu em 2009, em São Paulo, aos 67 anos.
O CRÍTICO E O POETA
BAUDELAIRE
Marcelo
Jacques de Moraes
Professor de Literatura
Francesa na UFRJ e pesquisador do CNPq
Poeta-crítico da modernidade, as reflexões estéticas de
Baudelaire abrangeram a música, a literatura e as artes plásticas
A partir […] do primeiro concerto, fui
possuído pelo desejo de penetrar mais a fundo na compreensão dessas obras
singulares. […]. Minha volúpia tinha sido tão forte e tão horrível que eu não
podia me abster de querer retornar a ela incessantemente. No que eu havia
experimentado, entrava, sem dúvida, muito do que Weber e Beethoven já me haviam
feito conhecer, mas também algo de novo que eu me achava incapaz de definir, e
essa incapacidade causava-me uma cólera e uma curiosidade associadas a uma rara
delícia.
Resolvi me informar do porquê e
transformar minha volúpia em conhecimento […]. 1?
Essa
passagem de seu ensaio sobre Richard Wagner ilustra bem o que seja para o
poeta-crítico Charles Baudelaire uma experiência estética. Alguma coisa
acontece ao sujeito (“fui possuído”, “havia experimentado”) que desafia sua
capacidade de entendimento, algo de que as redes de interpretação de que dispõe
no momento (“Weber e Beethoven”, neste caso) não lhe permitem dar conta e que
é por isso vivido como “volúpia”, despertando o “desejo”: “eu não podia me
abster de querer retornar a ela incessantemente”. Diante do desejo, uma
decisão: “transformar minha volúpia em conhecimento”. A escrita crítica, tal
como a concebe o poeta, não é outra coisa senão o testemunho de uma experiência
desse tipo, de um lado, e, de outro, aquilo que ela implica em termos da
reflexão sobre a arte e sobre seus efeitos na compreensão do presente.
Com efeito,
ao afirmar, em “O pintor da vida moderna”, que “o prazer que obtemos com a
representação do presente se deve não apenas à beleza de que ele pode estar
revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente”,2? Baudelaire opõe
o antigo ao moderno não em termos de uma diferença qualitativa no valor da
obra, mas pela afirmação do presente. Assim, o fato de que a obra de arte
moderna anula qualquer relação com o passado não implica necessariamente a
recusa do passado como tal, como muitos quiseram entender. O poeta-crítico
celebra, aliás, as obras do passado justamente por sua maneira própria de
representar seu tempo, e uma das definições que propõe da modernidade a toma
não como uma época específica, mas como um modo de relação do artista de
qualquer tempo com seu presente: “Houve uma modernidade para cada pintor
antigo”,3? escreve ele neste mesmo ensaio.
Assim, a
reflexão crítica sobre uma obra de arte, antes de significar, como para os românticos
alemães, a transcendência dessa obra, seu “conteúdo de verdade”, 4? significa,
ao contrário, para Baudelaire, sua própria dissociação, seu total
descomprometimento em relação a qualquer referência à ideia de algo que a
preceda a priori e que ela viria, a posteriori, corroborar. Para o crítico, não
há nada para além da aparência sensível das coisas – de sua presença –, e é a
partir dela e somente dela que a beleza, por meio dos artifícios da imaginação,
se configura, como o atestam por exemplo seu elogio à moda e à maquiagem em “O
pintor da vida moderna” ou, para citar também o poeta das Flores do Mal, estes versos de “O amor à mentira”:
Eu sei que há olhos cheios
[de melancolia,
Que nada escondem por
[debaixo de seus véus;
Belos escrínios, mas sem
[joias de valia,
Mais fundos e vazios do
[que vós, ó Céus!
Mas basta seres esta
[dádiva aparente
Para alegrar quem vive
[apenas da incerteza.
Que me importa se és tola
[ou se és indiferente?
Máscara, ornato, salve!
Amo a tua beleza!5?
Nesse
sentido, Baudelaire incorpora definitivamente ao domínio da arte a dimensão da
experiência sensível do artista, fazendo dela a fonte por excelência de sua
produção, em detrimento das prescrições que chegam através da transmissão das
tradições do passado. No entanto, ao contrário de um Rousseau ou de um Victor
Hugo – para citar os mais célebres precursores da modernidade na França –,
que também renegam a tradição como valor absoluto, mas que se esforçam por
abstrair, cada um a seu modo, o mundo sensível das contingências atuais em
proveito de uma ideia que o transcenderia, Baudelaire concebe tal experiência
como uma interação física com a materialidade do mundo ou, para utilizar uma
imagem do próprio poeta, como uma “descida” no “espetáculo da vida”. É o que
ele diz em sua reflexão sobre Théodore de Banville, endereçando-se a seu leitor
e definindo o poeta lírico:
Mas enfim,
direis, por mais lírico que seja o poeta, poderá ele jamais descer das regiões
etéreas, jamais sentir a corrente da vida ambiente, jamais ver o espetáculo da
vida, o grotesco perpétuo da besta humana, a nauseabunda tolice da mulher
etc.?… Mas sim, ao contrário! O poeta sabe descer na vida; mas creiam que se
ele consente em fazê-lo, não é sem objetivo, ele saberá tirar proveito de sua
viagem. Da feiura e da asneira ele fará nascer um novo gênero de encantos.6?
Entretanto,
como observou Walter Benjamin, esse presente, em que se prepara o futuro,
encontra-se numa relação indissolúvel com o passado, uma vez que coabita com
suas ruínas.7? A reflexão crítica de Baudelaire sobre as águas-fortes de
Charles Meryon, produzidas em meio às grandes obras de reurbanização de Paris
empreendidas por Haussmann a partir dos anos 1850, dá bem a dimensão dessa
interpenetração entre passado, presente e futuro:
Raramente vi
representada com mais poesia a solenidade natural de uma cidade imensa. As
majestades de pedra edificada, os campanários indicando o céu, os obeliscos da
indústria vomitando para o firmamento seus blocos de fumaça, os prodigiosos
andaimes dos monumentos em reparação, revestindo o corpo sólido da arquitetura
com sua própria arquitetura vazada de uma beleza tão paradoxal, o céu
tumultuoso, carregado de cólera e rancor, a profundidade das perspectivas
aumentada pelo pensamento de todos os dramas que nela estão contidos; nenhum
dos elementos complexos que compõem o doloroso e glorioso cenário da
civilização fora esquecido.8?
Tornada
forma, essa cidade-sujeito em mutação materializa a impureza de tudo o que há,
em sua irremissível vocação para a metamorfose, encarnando a paradoxal
consciência moderna da infinita espessura do instante, e constituindo o que
Baudelaire chamou de “memória do presente” 9?. Nesse sentido, talvez pudéssemos
dizer, a propósito da dimensão eterna do transitório proposta pelo crítico em sua
definição do belo,10? que o eterno reside justamente na transitoriedade. Pois
se não há nada além do transitório, do efêmero, o que é eterno é a metamorfose,
e toda forma estética que persevera como tal não é outra coisa senão um resto,
um dejeto de luxo desse processo. Como o eco tenaz daqueles versos do poeta à
passante apenas entrevista e já desaparecida na multidão, versos que celebram
um amor que não cessa de não se consumar: “[…] de ti já me fui, de mim tu já
fugiste, / Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”11?.
Notas
(1) Charles
Baudelaire. Richard Wagner e “Tannhäuser”, em Paris. Edição bilíngue. Tradução
de Plínio Augusto Coelho e Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Imaginário/
Edusp, 1990: p. 43-45.
(2) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Em: A modernidade de
Baudelaire. Tradução de Suely Cassal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988: p.160.
(3) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Op. cit.: 174.
(4) Cf. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão.
Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1999: p. 118-119.
(5) Charles Baudelaire. As Flores do mal. Edição bilíngue. Tradução de Ivan
Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: p. 361.
(6) Charles Baudelaire. “Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains”. Em:
Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1968: p. 483. Tradução do autor.
(7) Cf. BENJAMIN, Walter. “Paris do Segundo Império”. Em: Obras escolhidas III.
Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. Rio de
Janeiro: Brasiliense, 1989: p. 80-87.
(8) Charles Baudelaire. “Salão de 1859”. Em: A modernidade de Baudelaire. Op.
cit.: p. 136. A reprodução: Charles Meryon. La Tour de l’Horloge. Água-forte.
Museu Carnavalet, Paris.
(9) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Op. cit.: p.176.
(10) Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. Op. cit.: p.174.
O Absinto, 1876, impressionismo de Edgar Degas, numa Paris de novos hábitos
Paul Valéry em “Situação de Baudelaire”, ensaio onde situa e recorta a singularidade do autor das Flores do mal contra um pano-de-fundo romântico, que à época experimentava o seu auge, sustenta que “com Baudelaire a poesia francesa ultrapassa as fronteiras da nação. Ela – continua Valéry – é lida no mundo inteiro”. Baudelaire consegue essa proeza, segundo o autor de Ébauch d’Un Serpent, porque sua poesia não dá continuação a alguns dos traços da tradição literária/cultural francesa, tais como: o medo do exagero e do ridículo; certo pudor na expressão (poder de expressão?); a tendência abstrata do espírito; as harmonias sutis demais; uma elegância e uma pureza excessivas no trato do discurso, etc. Assim, por ser a linguagem de Baudelaire – contente de tropeçar “sur les mots comme sur les pavês”, isto é, por ser mais suja em comparação com essa tradição – algo refratária a essas “manias” congeniais à língua e ao gênio franceses, ela “impõe-se como a poesia própria da modernidade”. E a modernidade está marcada por essas transações de fronteira. Transculturações. Baudelaire importa e incorpora, por exemplo, a poética de Poe para, mais adiante, num movimento de assimilação ou de plagiotropia, fazer a sua “poesia de exportação” (gr. plágios, a, ou ‘oblíquo, que não está em linha reta, que está de lado; transversal) – tomo de empréstimo, aqui, as célebres noções da antropofagia cultural do poeta do modernismo de 22, Oswald de Andrade.
Inspirado em Mallarmé, Paul Valéry diz que quem fala no poema é a própria linguagem e não o poeta: a música calada dessa “estranha esgrima”. Se, com efeito, não há nem mesmo um ego scriptor por detrás do poema, com quem, afinal de contas, o leitor manterá uma interlocução senão consigo mesmo numa atitude de leitura inventiva, colaborativa. A ambiguidade calculada do poema pressupõe um leitor também crítico e atuante. Leitor interessado em produzir sentidos a partir do seu desejo de linguagem. Assim, poderíamos reformular a ideia mallarmaica dizendo o seguinte: quem fala, em última análise, no poema é o leitor, esse intérprete de uma partitura que reúne um conjunto de signos abertos à sua decifração. O poeta-crítico é um leitor-crítico. Segundo Paul Valéry, “a obra romântica, em geral, suporta muito mal uma leitura lenta e sobrecarregada com as resistências de um leitor difícil e refinado”. Para Valéry, Baudelaire era esse leitor. Baudelaire e, mais ainda, Paul Valéry vivem o dilema da experiência poética no seio da modernidade. Ou seja, embora peritos artistas do gênero, e tendo em vista a tradição e o entorno a partir dos quais produzem sua arte e sua crítica, não se considerem mais como poetas (naquele sentido consagrado pela antiguidade), mas, antes, se reconhecem como uma representação controversa, como a problematização arrojada desse imaginário.
Nota: w. benjamin pg. 37 – “sobre alguns temas de baudelaire”
II.
Desde o ponto de observação de sua água-furtada, “du haut de ma mansarde”[1], a máscara poética de Baudelaire, ou, em outras palavras, seu ego scriptor, divisa a topografia entre operosa e operística da cidade: “les tuyaux, les clochers, ces mâts de la cité”, as fiações, os cordames de mastros espetados como marcos da árdua tristeza da capital e do capital. Ensaio arquitetônico da situação espiritual pública, sob cujo teto a moda cidadã do terno e sobrecasaca pretos dramatiza uma beleza política que é expressão de uma igualdade geral. Baudelaire narra o movimento dessa população apertada em seus magros ombros pretos como uma “imensa procissão de papa-defuntos – papa-defuntos políticos, papa-defuntos eróticos, papa-defuntos particulares. (…) A roupa do desespero (…). E as pregas na fazenda que fazem caretas e que se enroscam como cobras em volta de carne morta, não terão seu encanto oculto?”[2]. Deparamos, assim, a silhueta metafórica da cidade como uma embarcação infernal cujo périplo (seu destino-sentido) ainda não está devidamente estabelecido.
Noutro passo do poema, “L’émeut, tempêtant vainement à ma vitre”, o tumulto da vida moderna golpeia sem obter resposta a vidraça do escritório do poeta que, por sua vez e a par de um certo receio, experimenta um poderoso fascínio na observação dos “fleuves de charbon monter au firmament”, imagem metonimizada do atelier do mundo metropolitano do qual ele se sente como que teatralmente protegido. Mas a cidade é o ideograma desmesurado da visão de modernidade meditada pelo poeta – quer como anseio, quer como mal-estar -, e como decorrência, Baudelaire se sente sugado para o interior dessa vertigem, ao mesmo tempo em que modula uma mise-en-scène de recusa com relação à ela mesma. Razão pela qual, Hugo Friedrich descreve a urdidura poética dos Tableaux Parisiens como “a tentativa de evasão no mundo externo de uma metrópole”[3]. O enfarruscado interior das coisas que constituem o estado de alma do poeta, e onde ele afunda luxuoso, entranha-se mesmo no aparente das camadas rugosas dos pavimentos da grande cidade.
Em anotação à margem de “O Convite à viagem”, peça extramuros dos Tableaux Parisiens, Baudelaire, após convidar sua pequena irmã a ver “sobre os canais/ dormir junto aos cais/ barcos de humor vagabundo” (na tradução de Ivan Junqueira), nos oferece menos uma perspectiva interpretativa do que uma glosa ao seu poema: “Estes belos, grandes navios, como são embalados imperceptivelmente na água tranqüila, estes navios fortes que têm um aspecto tão ansioso quanto ocioso – será que não nos perguntam numa linguagem muda: quando embarcaremos para a felicidade?”. Podemos aventar aqui uma imagem possível para a cidade da modernidade com a qual Baudelaire se debate, visando descobrir-lhe um traço heróico, embora agônico e algo preguiçoso.
A modernidade baudelairiana, embora se sabendo não-épica, deixa vislumbrar em seus subúrbios, seus trapeiros, seus dandys – atrás de cujas persianas encenam secretas luxúrias -, enfim, deixa vislumbrar em sua transitoriedade a feição frágil desta existência que se torna a representação (ou a epifania antecipatória) da antigüidade em que ela mesma se solverá. E as nuvens-rios de carvão que se elevam contra o firmamento, mais do que indicar o mundo transfigurado que começa a dar-se em espetáculo, se condensam, deste modo, como um véu opaco no intervalo entre o poeta e os quadros que depara. A correnteza-fuligem de signos, enubla, põe em causa essa concretude avassaladora através da qual o real se presta à verdade precipitada em vedar qualquer possibilidade de interpretação que a considere tão-só como um sentido. Vale frisar, ainda, que a paronomásia acústica ansioso/ocioso, materializa ao rés dos significantes o feeling do percurso poético baudelairiano. E como ressonância disso, o estribilho anafórico da invitation à sua irmã, “Là, tout n’est qu’ordre et beauté,/ Luxe, calme et volupté”, representa até certa medida o lugar instável de onde fala Baudelaire.
Com efeito, do observatório de sua mansarda, Baudelaire estreita a modernidade em suas mãos. Sobre o vazio papel defendido pela brancura, ele exercita a sós e ao mesmo tempo embebido dos estereótipos da rua – pois será preciso tropicar “sur les mots comme sur les pavês” para que suas alegorias se tornem menos rarefeitas -, o mundo da sua linguagem que, não obstante seja crítica com relação aos discursos cobertos de “pátina poética”, simula evadir-se enquanto tenta recusar a linguagem tumultuária, “le bric-à-brac confus”, de um mundo de passagens, prosaico e derrisório que, a contrapelo, encontra nele o seu maior tradutor e comentarista:
Je ne vois qu’en esprit tout ce camp de baraques,
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l’eau des flaques,
Et, brillant aux carreux, le bric-à-brac confus.
(…)
Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.
[Só na lembrança vejo esse campo de tendas,/ Capitéis e cornijas de esboço indeciso,/ A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,/ E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso. (…) Paris muda! mas nada em minha nostalgia/ Mudou! novos palácios, andaimes, lagedos,/ Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,/ E essas lembranças pesam mais do que rochedos.][4]
Sendo assim, Baudelaire não se projeta para o mundo, mas, antes, o sonha, a seu modo, nos transes da linguagem, na “oficina irritada” de uma percepção do poema derivada da metalinguagem de Poe, a partir do qual, no que toca a imperícia compositiva, não há indulto possível: “Only this and nothing more”. Como assinala Walter Benjamin, “Baudelaire conspira com a própria língua. Calcula seus efeitos a cada passo”, sabe que o incógnito e a ambigüidade são as leis não só da sua em particular, mas da poesia que se fez e se fará, antes e depois de suas flores deletérias. O cálculo e a meticulosidade do Baudelaire mestre (me sirvo do termo na acepção em que Ezra Pound o empregava), são galvanizados na figura do artífice trôpego por mauvaise conscience, o trapeiro que fuça o moderno da vulgaridade quotidiana sob os despojos da sua ideologia e do seu étimo, em busca de um eco épico, ou de um heroísmo seduzido pela entropia do trágico: “Temos aqui um homem – ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destrói – ele registra e coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligência; procede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entulho que nas maxilas da deusa da indústria tomará a forma de objetos úteis ou agradáveis”[5]. O poeta-trapeiro baudelairiano mapeia a metrópole a partir de um escrutínio semiótico, seleciona e combina sintagmas-coisas, fragmentos, objetos-antiguidades colecionáveis, desentranhados pósteros à dissolução do presente, visando um poema, um modelo de sensibilidade, um sonho exato sob pórticos voluptuosos.
Antonio Candido, no ensaio “O albatroz e o chinês”, considerando a poesia de Baudelaire em comparação com a de outros autores, argumenta que a expressão literária ou poética implica uma “dialética (dilema) do espaço aberto e do espaço fechado”, que, por sua vez, apontam para um caminho que se bifurca em duas direções, numa o “desejo de representar o mundo” e, noutra, o anseio pela “invenção de um mundo autônomo”. O grande ensaísta sustenta que Baudelaire prepara o terreno “para uma aventura nova que, levada às últimas consequências, será uma das marcas da poesia no século 20: confiar totalmente na força criadora da palavra, instituidora de mundos arte-feitos”. Portanto, conclui Candido, o poeta não se sente afetado pelos tumultos exteriores “porque ele já está mergulhado na alegria imensa que permite substituir a representação do mundo pela invenção de outro”[6]. Estamos próximos daquilo que dirá Mallarmé alguns anos mais tarde a propósito do autor de “O corvo”, e que da mesma forma se pode aplicar a Baudelaire, isto é, que ele, no confinamento do seu escritório, buscou e logrou “um sentido mais puro às palavras da tribo”. Outro comentador (Jacques Rivière), salienta que Baudelaire parte da palavra rara, e aos poucos a aproxima do tema. Se considerarmos justo este comentário, Baudelaire estaria então antecipando um dos tópicos mais importantes do pensamento-arte de Paul Valéry, que pode ser traduzido neste esboço, nesta anotação recuperada aos seus diários, onde ele diz e dissimula assim: “Se pois me interrogam acerca de que eu ‘quis dizer’ em tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas que quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse”.
Feito o sol, em nossa visão cosmonáutica, Baudelaire em “Le soleil”, também se posta no centro; neste micro-sistema – o poema, máquina verbal por meio da qual exercita sua estranheza – ele, então, se retrata a si mesmo durante a consecução do seu processo de composição. Ao acionar seus recursos de linguagem, ao otimizá-los às vezes em um espasmo negativo, lançando mais além os marcos expressivos do gênero, Baudelaire também alarga as marginais de seu entourage, assim como penetra e queda nos cantos (“coins”) mais recuados e ignotos das vielas da capital parisiense, retida em seus versos “desde há muito tempo já sonhados”. O poeta olho-do-sol arroja seus punhais (palavras-raio) até as esquinas e os antros mais abjetos da cité; o exercício da escrita – em que não se despreza a dimensão de physis nela contida – se transforma numa “fantasque escrime” (“wordswordswords/ swords”, José Paulo Paes dixit). Benjamin fala a respeito do suor, do esforço, que Baudelaire considerava imprescindível associar ao trabalho de fatura do poema. Escritura-esgrima que, não obstante a exatidão como fundamento – isto é, o necessário virtuosismo dos golpes precisos -, requer, por outro lado, a colaboração do acaso, le hasard, e do impreciso:
Sur la ville et les champs, sur les toits et le blés,
Je vais m’exercer seul à ma fatasque escrime,
Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,
Trébuchant sur les mots comme sur les pavés,
Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés.
(…)
Quand, ainsi qu’un poëte, il descend dans les villes,
Il ennoblit le sort des choses les plus viles,
Et s’introduit en roi, sans bruit et sans valets,
Dans tous les hôpitaux et dans tous palais.
[Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,/ Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/ Buscando em cada canto os acasos da rima,/ Tropeçando em palavras como nas calçadas,/ Topando imagens desde há muito já sonhadas. (…) Quando às cidades ele vai, tal como o poeta,/ Eis que redime até a coisa mais abjeta,/ E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,/ Quer os palácios, quer os hospitais.][7]
Nas três estrofes de versos alexandrinos que compõem o poema “Le soleil” (duas oitavas e um quarteto), a estrofe intermediária corresponde a uma passagem bucólica que evoca o motivo da écloga (poesia campestre onde o poeta é a personificação do pastor seduzido pela cena natural e a vida rústica), espécie de recidiva romântica. Detença em que Baudelaire parece denunciar seu ânimo indecidível com relação a um tempo-espaço que atravessa uma etapa de oscilação: um acabar-começar civilizatório, e a respeito do qual ele, Baudelaire, se vê coagido a propor uma reflexão crítico-estética que não só o problematize, mas que também, no lance de traduzi-lo, a partir dos parâmetros da “signagem” poética, ponha a descoberto sua beleza fragmentária e em trânsito.
Não são poucos os que se referindo ao poeta como “romântico”, utilizam-se do termo em tom acusatório. Outros apontam sua falta de convicção, de conhecimento, de constância. Um desses críticos escreve: “ele pode mudar sua fisionomia como um condenado em fuga”[8]. Baudelaire escapa de raspão ao romantismo, por outro lado, não chega a se inscrever na irmandade simbolista. Ele é não-romântico e não-simbolista. Confisca de ambas as ficções os insumos que considera indispensáveis para tornar possíveis, isto é, imateriais, “les grands ciels qui font rever d’éternité” sua Paris material. Estamos, portanto, diante de um poeta, ou melhor, de um homem que inventou um assunto: a metrópole moderna. De certa forma, Baudelaire nos legou um questionamento que chega até os nossos dias sem que se tenha produzido uma solução para o mesmo. E a pergunta subjacente ao seu percurso de poeta-crítico pode ser assim formulada: a metrópole é arte ou não-arte? Nos “Quadros Parisienses”, a metrópole-arte se abre em labirinto estético, monturo glamurizado, morredouro-nascedouro de signos na devoração das próprias entranhas. Ao fim e ao cabo, a Paris histórica, civil, cidade em obras, se submete a um déficit de realidade porque se reflete e se anula no atrito com esse verdadeiro “poema visual transitável” – para usar a denominação com que Joan Brossa (1919-1998) intitulava suas obras desenhadas tanto para o espaço e como à interação corporal -, a metrópole-arte de Baudelaire: réplica satânica e lésbica que emerge do plano-piloto dos seus versos.
Antes de concluir esta divagação, enveredo por um breve intervalo para trazer ao debate um outro personagem baudelairiano. Trata-se de Marcel Duchamp (1887-1968) que, para início de conversa, em 1919 enfrascou 50cc do ar parisiense fazendo desse pequeno objeto peça antológica no “museu de tudo” da arte moderna. Duchamp inventa a arte que discute a impossibilidade da arte, num período onde tudo – começando pela linguagem – se tornou equívoco; histrião, o antiartista pergunta: onde está a arte? Sua realização mais controversa, tornada pública dois anos antes do frasco de ar parisiense, é o famoso urinol masculino “R. Mutt”. A tradução para Mutt é a de “cão vira-lata ou pessoa simplória”[9]. Assim, circunscritos na mesma área de significação que abarca o delinqüente, o vagabundo, o mendigo, etc., também comparecem o trapeiro de Charles Baudelaire e o cão vira-lata, ou seja, o Mutt de Marcel Duchamp. Formal e semanticamente instáveis, seus readymades se interpõem entre o fruidor e a “arte” que aquele não admite ver desfigurada. O fruidor exasperado tenta avistar por detrás das metáforas equívocas de Duchamp o que restou daquela arte consagrada. Coisas, máquinas inúteis, corpos sígnicos acrescentados ao mundo, as concreções de Marcel Duchamp são obstáculos poéticos-políticos, desafios à “compreensão”, enfim, rastros e perspectivas de sentido.
Corro o risco de propor uma leitura excessivamente pós-moderna do poeta dos Tableaux Parisiens, tendo em vista que experimento traduzir essa cidade sem bordas, que se altera desde o hospital até o palácio, presentificada em seus versos: “Paris change!”, como se ela fora uma Instalação – com aqueles sentidos resgatados às artes contemporâneas. Pois a metrópole-arte de Baudelaire é franqueada ao desejo de linguagem do leitor como paisagem e não-paisagem, monumento e não-monumento, arquitetura mais leve que o éter à mercê de um travelling a um tempo háptico e cínico. Então, entre as capas das Flores do mal, descubro ou invento esses takes parisienses e, quer como leitor-espectador, quer como frequentador, me deixo ficar na cidade que põe entre parênteses qualquer vontade de utilidade.
III.
Há o poeta Charles Baudelaire e o analista e esteta Charles Baudelaire (em conjunção tensa). Mas há ainda o poeta-crítico Charles Baudelaire (que, em perspectiva, anula o virtual impasse entre as personae). Sua poesia e a dos seus contemporâneos, mais a arte do seu tempo, são o alvo de sua prática e reflexão. Alguns exegetas dessa obra desenvolvida, digamos assim, nessas frentes que se bifurcam, sustentam que as abordagens críticas do poeta seriam mais avançadas que sua atividade poética. O cotejo entre as duas formas de discursos, visando a ratificar tal suposição, talvez seja descabido.
No entanto – e aqui cometo uma inconfidência -, no meu caso, o contato com seus ensaios, sempre geniais, me conduziu a uma reconsideração mais atenta da sua poesia que, a princípio, tomando por base primeiras leituras, não havia me perturbado tanto, pois ela não parecia representar a figura do moderno que o Baudelaire, crítico cultural, me ensinara a apreciar, e que tão definitivamente plasmara o pensamento das gerações que lhe sucederam. No entanto, a figura do “escritor-crítico”, conceito-base de análises de Leyla Perrone-Moisés,[10] me auxiliou a entender melhor essa relação entre a obra inventiva e a reflexão estético-crítica baudelairiana. Com efeito, não há uma hierarquia valorativa entre essas duas atividades exercidas com maestria pelo autor. Uma tentativa de resumo das ideias da crítica e professora de literatura, talvez pudesse ser feita nos seguintes termos.
Em primeiro lugar, o escritor-crítico estabelece “um tipo particular de discurso crítico”, ou seja, estamos frente a um discurso que se situa, e que, ao menos provisoriamente, ocupa um campo estético. No entanto, nada impede no momento seguinte o abandono do terreno conquistado. Aliás, Baudelaire defendia a crítica parcial, aquela que toma partido; que se sabe precária ou provisória. Como se fora um lance numa partida de xadrez. E a cada intervenção, o escritor-crítico se embrenha (às vezes à revelia do próprio desejo) num debate de formas e ideias que diz respeito a si e aos seus iguais, e que, de outra parte, pede a interferência deles e a sua réplica futura. Esses escritores pensam de maneira interessada, e aquilo que pensam gera “maiores consequências: porque orienta a produção de suas próprias obras, dando assim continuação à ‘Literatura’”.
Por outro lado, segundo W. H. Auden [11], o escritor-crítico, ou o escritor que começa a dar ouvidos ao seu “censor interno”, sabe que possui um conhecimento limitado, e por isso mesmo sua perspicácia o faz falar de “florestas” e “folhas”, mas o impede de aventurar-se pelo assunto “árvores”. Os escritos críticos dos poetas talvez devam ser lidos como experimentos poéticos e literários de segundo grau, derivações, ficções de cânones precários. Entretanto, isto não quer dizer que seus resultados não precisem ser levados a sério, pelo contrário: apenas que as reflexões promovidas por esses escritores e poetas são desenvolvidas “com vistas a uma ação: sua própria escritura, a dos escritores que trabalham naquele momento ou que trabalharão num futuro próximo”. Quando o poeta resolve escrever crítica, prefácios, ensaios, etc, ele não tem a pretensão de socorrer o leitor – esse é o objetivo da crítica literária institucional, jornalística ou acadêmica.
Para Octavio Paz, exemplo de poeta-crítico, o sentido de um poema está sempre num outro poema. E é a partir dessa perspectiva que entendo a tarefa do escritor-crítico: o discurso crítico engendrado por ele apresenta conexões necessárias com o discurso de invenção. Um está entremeado ao outro por meio de fios não-aparentes. O escritor, por se achar implicado nas imperícias e imposturas que aponta e denuncia, sejam nas suas, sejam em obras alheias, “acha que o poema é sempre mais importante do que qualquer coisa que se possa dizer sobre ele”. Sua leitura não substituirá aquela escritura poético-literária que eventualmente esteja sob os seus olhos. Assim, o discurso crítico do escritor, mesmo o mais aparentemente afinado com a crítica literária institucional, é um discurso do desejo e da preguiça. Ele inventa um texto equivalente, contrabandeando para o interior da sua metalinguagem a beleza capturada no momento em que é levado a erguer a fronte, inclinada, até há pouco, sobre o poema. Ele só admite ler aquilo que lhe agrada. Isto talvez explique o fato de suas abordagens, não obstante serem arduamente trabalhadas, resultarem, o mais das vezes, sincrônicas, lacunares, fragmentárias, carentes de nomes consagrados, e sempre se apresentando em oposição aos “‘quadros completos’ dos manuais de história literária”.
Outra característica desses escritores e poetas críticos é a eventual tematização de questões estéticas em suas peças inventivas, quer seja investigando a linguagem das demais artes ou de algum artista em particular, quer seja considerando os limites do seu próprio gênero ou de sua própria obra. Os escritores-críticos não dissimulam o fato de que escrever sobre escrever sempre fez parte do nosso repertório, desde Homero, passando pelos griots africanos, pelos cantores provençais, pelos simbolistas, pelos sambistas e chegando até aqui. A metalinguagem está no passado da tradição e no presente que põe em xeque ou em movimento esse passado. Escrever sobre escrever é um dos quesitos do escrever.
Muito bem, depois dessa interpolação um pouco longa, voltemos a Charles Baudelaire: poeta, resenhista, esteta. Inteligência curtida em anos de estudo vagabundo: “Como escritor, Baudelaire tinha um grande defeito de que ele próprio não desconfiava: era ignorante. O que sabia, sabia profundamente; mas sabia pouco. História, fisiologia, arqueologia, filosofia, permaneceram-lhe estranhas…” (apud Walter Benjamin). Maxime Du Camp, autor do comentário acima, talvez tenha entendido que Baudelaire se pronunciou além do tolerável a respeito de “árvores”. Ironias à parte, está aí patente a objeção, a censura superciliosa da crítica literária institucional com relação ao estilo de trabalho do escritor-crítico. A tópica baudelairiana não via disjunção entre ordem e volúpia. O limbo da poesia, acomodado em área nobre do inferno dantesco é um mundo às avessas. Como diz Baudelaire em “L’invitation au Voyage”: “Là, tout n’est qu’ordre et beauté,/ Luxe, calme et volupté” [12].
Se admitirmos sem controvérsias que o autor das Fleurs du mal veste com elegância a casaca do poeta-crítico, não seria despropositado aventar também a hipótese de um Baudelaire construtivista. Segundo Walter Benjamin, Baudelaire reivindica para a arte moderna uma “força de expressão” característica da antiguidade, e essa força se limitaria à construção. E Baudelaire, tendo em mira a sua produção e a dos seus pares, afirma: “Ai daquele que estuda outra coisa na antiguidade que não a arte pura, a lógica, o método geral” [13]. Esse Baudelaire sincrônico, que onera e projeta o passado como uma figura de objetos arte-feitos, não se distancia da noção de que a poesia, para a poética clássica, corresponde ao belo imperfeito, pois o que predomina nesse gênero é a disposição para a ficção e modelos imaginativos particulares, portanto não faz sentido que se lhe exija qualquer veleidade pedagógica ou moralizante. Platão, no entanto, tem em mente o belo perfeito, a obra poética em que se realiza a união do útil ao agradável – por seu turno, o poeta francês põe luxe e volupté em relação com a beleza, agora bizarra e esquizo, da modernidade. Como poeta-crítico, Baudelaire quer “as essências e as medulas” da antiguidade, vale dizer, seu apetite crítico e estético ataca a parte viva do acervo; e assim, na verdade, ele a (re)inventa. Como leitor fervoroso (parcial) do passado criativo, tenta ser um intérprete de aspectos bem delimitados do legado, com vistas a transportar para o seu presente, o substantivo de uma tradição em movimento e onde se vê implicado.
Notas
[1] As flores do mal / Charles Baudelaire; tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 316.
[2] A modernidade e os modernos; Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 27.
[3] Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire; edição organizada por Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p. 1033.
[4] As flores do mal / Charles Baudelaire, pp. 326-327.
[5] A modernidade e os modernos, p.16.
[6] O albatroz e o chinês / Antonio Candido, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 23.
[7] As flores do mal / Charles Baudelaire, pp. 318-319.
[8] A modernidade e os modernos, p. 29.
[9] Arte contemporânea: uma história concisa / Michael Archer; tradução de Alexandre Krug, Valter Lellis Siqueira, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 3.
[10] “Escolher e/é julgar”, Leyla Perrone-Moisés, in Colóquio/Letras (Lisboa), no 65, Janeiro de 1982, pp. 7-8.
[11] Fazer, saber e julgar, W. H. Auden; tradução de Angela Melim, Ilha de Santa Catarina, Editora Noa Noa, 1981, pp. 32 a 34.
[12] As flores do mal / Charles Baudelaire; tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 234 a 237.
[13] A modernidade e os modernos; Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 10.
Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e Crítica Parcial (2022).
VALÉRY: A SITUAÇÃO DE BAUDELAIRE, VARIEDADES
Charles Baudelaire (1821-1867), o autor das Flores do Mal, 1857
DESAFIOS DA MODERNIDADE
Willi Bolle
O projeto de Walter Benjamin era escrever uma história social da cidade de
Paris no século 19. A base foi uma ampla coleta de materiais na Biblioteca
Nacional da França, especialmente a partir de 1934, quando ele já se encontrava
no exílio. Esse arquivo, organizado em 36 cadernos temáticos, com mais de 4.000
fragmentos em quase 1.000 páginas, constitui essencialmente a edição das
"Passagens" (inédito até 1982, saiu no Brasil em 2006). Como bolsista
do Instituto de Pesquisa Social, que se transferiu para Nova York, Benjamin
enviou em 1935 para o diretor Max Horkheimer um esboço do seu projeto:
"Paris, Capital do Século 19".
É uma constelação de temas do arquivo: ícones urbanos –passagens, panoramas,
exposições universais, moradia burguesa, ruas de Paris e barricadas– conectados
a personagens da época: o "rei burguês" Luís Filipe, o prefeito
Haussmann, o utopista Fourier e os artist,0as inventores Daguerre, Grandville e
Baudelaire. Acompanhando a perspectiva do poeta exemplar da modernidade,
Benjamin resolveu em 1937 escrever "um modelo das Passagens" na forma
do livro "Baudelaire, um Poeta no Auge do Capitalismo", que ficou
inacabado. Uma reunião dos trechos redigidos –que havia sido editada em 1969 e
1974 (as traduções brasileiras são de 1985 e 1989) – foi republicada em
*"Baudelaire e a Modernidade" [trad. João Barrento, Autêntica, 352
págs., R$ 43]*, título que Benjamin nunca usou.
LIVRO-MODELO Uma
detalhada ideia do que ele efetivamente planejou está contida na planta de
construção (mais de 500 páginas) do livro-modelo, descoberta por Agamben na
Biblioteca Nacional Francesa em 1981 e publicada por ele agora. Dos 4.234
fragmentos do Grande Arquivo, Benjamin selecionou 1.745, resumindo cada um
deles em uma linha e agrupando-os em 30 categorias construtivas.
A parte 1 do livro seria intitulada "Baudelaire como Poeta
Alegórico". Benjamin, que concebeu a alegoria como um procedimento de
desmontagem, destruição e fragmentação, mostra como Baudelaire substitui as
visões harmoniosas de Paris por imagens de sua caducidade. A parte 3 do livro
seria chamada "A Mercadoria como Objeto Poético". A partir desse
fetiche do capitalismo –"Exposições universais são os locais de
peregrinação ao fetiche da mercadoria"– é desenvolvida uma reflexão
crítica sobre a modernidade, na qual todos nós nos tornamos mercadoria.
Dessas partes inicial e final do livro existe apenas um conjunto de 45
fragmentos de redação, com o título "Parque Central" (1974, edição
brasileira de 1985), uma alusão a Nova York, para onde o autor tinha a intenção
de emigrar. Benjamin decidiu começar a escrita do livro-modelo pela parte 2,
intitulada "A Paris do Segundo Império em Baudelaire". A protagonista
passou a ser a metrópole, com os textos do poeta como "medium" para
registrar as sensações que ela provocava nos habitantes. Essa parte central do
livro, que ficou pronta em setembro de 1938, é subdividida em três capítulos:
O capítulo inicial, "A Bohème", focaliza a sociedade parisiense a
partir do ambiente político e do mercado literário, com destaque para a
importância crescente dos meios de comunicação de massas. No capítulo do meio,
"O Flâneur", Benjamin acompanha essa figura emblemática, precursora
do escritor-jornalista moderno, que observa a multidão nas ruas e nas galerias
de compras ou passagens. Ao retratar a sociedade do Segundo Império, procura
entender em que medida um certo tipo de mentalidade ressurgiu na República de
Weimar (1919-33), quando a pequena burguesia e as massas se tornaram clientes
oportunistas da demagogia "nacional socialista", no processo político
que levou à ditadura do Terceiro Reich.
O capítulo final, "A Modernidade", procura sintetizar as
experiências da política burguesa autoritária na França durante as décadas de
1830 a 1870: "O século 19 não soube corresponder às novas possibilidades
tecnológicas com uma nova ordem social. Assim se impuseram as mediações
falaciosas entre o velho e o novo. O mundo dominado por essas fantasmagorias é
a modernidade". Adorno criticou nesses três capítulos "a falta de
mediação teórica" e as "montagens em forma de choque". Por
exemplo, o modo de Benjamin confrontar os reclames do conforto do apartamento
burguês com a situação dos moradores de rua. Com isso, "A Paris do Segundo
Império..." foi recusado para publicação na revista do Instituto de
Pesquisa Social.
Benjamin reescreveu o texto, concentrando-se no capítulo "O
Flâneur", do qual resultou o artigo "Sobre Alguns Temas em
Baudelaire" –título que tem uma conotação de dissolução. Terminado em
agosto de 1939, esse acabou sendo o único texto das "Passagens" que
ele viu publicado em vida. Logo depois irrompeu a Segunda Guerra Mundial e, em
junho de 1940, a França foi invadida pelas tropas alemãs. A tentativa de fuga
de Benjamin terminou, como se sabe, em setembro do mesmo ano com o seu
suicídio. Em sua memória, o Instituto publicou em 1942 as chamadas "Teses
sobre o Conceito de História", redigidas no início de 1940.
Assim, o grande projeto das "Passagens", do qual fazem parte os
escritos e esboços sobre Baudelaire, ficou inacabado, e os estudiosos ainda
aguardam uma edição que reproduza fielmente todos os seus elementos
constitutivos. Como Benjamin propôs nas teses, trata-se de organizar a história
a partir dos momentos de perigo. Foi o que ele fez com a sua própria obra em
termos de estratégia de escrita. Devido às referidas vicissitudes, ele não pôde
concluí-la. Mas ele respondeu a essa fragmentação contingente com uma
fragmentação construtiva. Diante dessa obra toda estilhaçada, o leitor é
incentivado a tornar-se um colaborador ativo. A partir da "desordem
produtiva" deixada por Benjamin nós mesmos devemos montar o retrato da
modernidade: a de Paris no século 19 e a do nosso aqui e agora.
*WILLI BOLLE é professor de
literatura da USP e autor de Fisiognomia
da Metrópole Moderna (Edusp). (Excerto de resenha publicada no caderno Ilustríssima,
da folha de São Paulo, edição de domingo, 9 de agosto de 2015, pág. 8)
Paris moderna das grandes avenidas da reforma urbana do Barão de Haussmann
Comentando o Flâneur, de Walter Benjamin
Janaina Garcia
Mestre em Educação (UFRJ), professora de Sociologia e coordenadora pedagógica do ProJovem
Walter Benjamin nasceu em 15 de julho de 1892, em Berlim, Alemanha. Em 1912 iniciou seus estudos em Filosofia, primeiramente em Freiburg e, mais tarde, em Berlim (onde, durante alguns meses, em 1914, assumiu a presidência da União Livre dos Estudantes) e Munique. Concluiu seu doutorado em 1919 na Universidade de Berna, Suíça, com um trabalho intitulado O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Em 1923 obteve apoio financeiro do pai para redigir sua tese de livre-docência, Origem do drama barroco alemão (1925), que foi recusada pela Universidade de Frankfurt. Nessa época seus principais interlocutores eram Gershom Scholem e Ernst Bloch.
A partir do encontro com Asja Lacis, em 1924, assistente teatral de Bertold Brecht, orientou suas leituras na direção do marxismo. Nesse período se deu seu primeiro contato com a Escola de Frankfurt, onde, além do marxismo, abraçou as teses do materialismo histórico junto com Adorno e Horkheimer.
No início dos anos 30, concebeu as bases de sua obra mais ambiciosa, que permanecerá inconclusa, o trabalho das Passagens.
Em 1933, com a perseguição aos judeus, fugiu da Alemanha, passando a levar uma vida precária e nômade, hospedando-se em pensões de Paris, Ibiza, San Remo ou na casa de amigos, como Brecht, com quem passou pelo menos duas temporadas em Svendborg, na Dinamarca.
Nesse mesmo período, entre 1934-1935, o IPES (Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt) migrou para Nova York, Estados Unidos, por causa do nazismo.
Walter Benjamin sobrevivia escrevendo artigos para Frankfurter Zeitung e Litersrische Welt e ensaios para a revista do Ipes, dirigido por Adorno e Horkheimer.
Em 1940, na iminência da invasão de Paris pelas tropas alemãs, Benjamin, antes de fugir para o sul da França, confiou vários de seus escritos a Georges Bataille, que os guardou na Biblioteca Nacional. Entretanto, na noite de 26 para 27 de setembro, na fronteira com a Espanha, pego pelos nazistas, com medo, suicidou-se ingerindo tabletes de morfina.
Para melhor compreender o Flâneur, devemos ressaltar alguns aspectos marcantes de seu pensamento. O primeiro é a crítica à razão instrumental, o que o aproxima da Escola de Frankfurt. Tal crítica começa com Max Weber, no final do século XIX, contra o positivismo-cientificista que valoriza a ciência técnica, o conhecimento científico como sendo de maior valor que os demais. Adorno vai dizer que a razão instrumental é a derrocada da razão iluminista. A razão instrumental é típica do capitalismo, pois é uma racionalidade que se volta para o aprimoramento da técnica, para o aumento da produtividade. Na visão de Benjamin, a razão instrumental é um alucinógeno, porque projeta um mundo de fábula, em que a técnica redime o mundo, gera progresso. Essa ilusão de progresso só faz aumentar o nível de miséria social.
O segundo aspecto é o método fragmentário-microscópico de análise da realidade. É a concepção de que cada fragmento da realidade possui as contradições da própria realidade. Aqui Benjamin se apropriou do conceito de mônada, de Leibniz, isto é, para conhecermos a realidade precisamos conhecer os centros de força que a constituem. São pontos imateriais como átomos. São unas assim como a mente. A mente apresenta diversidade, assim como várias representações. Elas têm tendência a várias percepções. Uma mônada só é distinta da outra pela sua atividade interna. As mônadas têm dois tipos de percepção: a simples e a consciente. Leibniz, na sua doutrina das mônadas, escreveu que cada mônada espelha o universo inteiro. Tudo está em tudo. Isso se aplica também ao tempo; ele disse: “o presente está grávido do futuro.” Uma mônada se diferencia da outra porque as coisas estão presentes em maior ou menor grau nelas e sob diferentes ângulos e aspectos.
O terceiro aspecto é a crítica à modernidade. Benjamin era um saudosista; para ele, o crescimento da modernidade está ligado a grandes cidades, indústrias; e tudo isso está ligado à questão do progresso, que, por sua vez, está ligado à razão instrumental. Onde a modernidade oferece ganhos só há perdas, onde há progresso só há regressão. E quem encarna o progresso da época? A social-democracia e o fascismo, os inimigos de Benjamin. O fascismo promovia um culto da técnica e da tecnologia. Sobrepunha a técnica ao próprio ser humano. Promovia a estetização da técnica, como se esta fosse uma obra de arte. Para Benjamin, o melhor exemplo é a própria guerra, que é o grande espetáculo, a grande apoteose do domínio da técnica. Por sua vez, a social-democracia também enaltece a técnica, sendo vista como instrumento de libertação dos trabalhadores, reduzindo sua jornada de trabalho. Benjamin criticava essa visão – que é ingênua, porque escraviza cada vez mais o ser humano, tornando-o também um adereço da máquina.
O quarto aspecto é sobre o conceito de história. Ele rompeu com o conceito de uma história linear: “o trabalho do historiador é escovar a contrapelo”, pois, então, ele descobre na narrativa histórica tudo aquilo que não foi revelado. A história linear é a história dos vencedores, mas a história deve reviver as vozes dos vencidos. Nesse sentido, essa posição do autor apontava para um objetivo: uma revolução. A revolução é o momento histórico em que os vencedores se tornam vencidos e os vencidos se tornam vencedores. A revolução liberta os vencidos. Essa sua visão foi criticada pelo marxismo e pela Escola de Frankfurt.
O quinto e último aspecto principal de seu pensamento é a crítica à visão de Adorno e Horkheimer sobre indústria cultural. Para os dois últimos, a indústria cultural tem todos os seus bens voltados para o entretenimento. O termo indústria é utilizado para designar que o capitalismo se apropria dos bens de consumo artístico. Para Adorno, qualquer reprodução de obra de arte é um crime. Benjamin reconhece essa quebra da aura. Mas há perdas e ganhos. Quantas pessoas podem ter contato com a obra de arte original? Ele defendia que uma difusão maior das obras de arte para as massas democratiza seu acesso. Nota-se uma visão fortemente elitista de Adorno, em contraposição a uma visão mais democrática em Benjamin.
Walter Benjamin (1892-1940), estudioso maior da vida e obra de Baudelaire
Alguns desses aspectos do pensamento de Benjamin aparecem no Flâneur. Já no início do texto, o autor mostra o universo do flâneur:
a rua se torna moradia para o flâneur, que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente. Que a vida, em toda a sua diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo: eis o pensamento político secreto da escritura de que faziam parte as fisiologias (Benjamin, 2000, p. 35).
Nota-se, nessa breve passagem, uma crítica à modernidade ao falar de uma cidade onde cada vez mais se desenvolve os paralelepípedos cinzentos, isto é, a modernização da cidade grande, os grandes prédios, as indústrias, como sinônimo de progresso ligado a uma razão instrumental. Espaço privado de uma burguesia que cria o descaso pela coisa pública.
O autor queria mostrar que, nas cidades grandes, vive-se sob a égide do normal, mas, finalmente, o que é normal? Normal é tudo aquilo que não está encarnado no conceito de flâneur.
O flâneur está encarnado no texto por três perspectivas distintas: ele pode ser o vagabundo, como nos mostra Baudelaire:
“O observador é um príncipe que, por toda a parte, faz uso do seu incógnito”. Desse modo, se o flâneur se torna sem querer detetive, socialmente a transformação lhe assenta muito bem, pois justifica a sua ociosidade (Benjamin, 2000, p. 38).
Ele pode ser o investigador, como demonstra Edgar Allan Poe:
Para Poe, o flâneur é acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade. Por isso busca a multidão; e não é preciso ir muito longe para achar a razão por que se esconde nela. A diferença entre o antissocial e o flâneur é deliberadamente apagada em Poe. Um homem se torna tanto mais suspeito na massa quanto mais difícil é encontrá-lo (Benjamin, 2000, p. 45).
E ele pode ter sido suprimido, como no caso de Victor Hugo, que trata somente da multidão. Aqui não há espaço para flânerie. Nas palavras de Benjamin, “Victor Hugo festeja a massa como heroína numa epopeia moderna” (Benjamin, 2000, p. 52).
Através desses três autores, com posicionamentos distintos, observa-se a preocupação de Benjamin de fazer uma análise da realidade pelo método fragmentário-microscópico, com um olhar mais poético, e de ressaltar que os romances de Baudelaire e Poe fazem uma descrição da História a contrapelo, isto é, dão ênfase aos vencidos,aos flâneurs, e não aos vencedores.
Dessa forma, é possível compreender que os temas tratados pelo filósofo são sempre os produtos culturais. Benjamin era um filósofo que se ocupava dos dados culturais, dessa “segunda natureza” – relações humanas objetivadas nas criações da cultura. O que ele focalizava – a obra de Hölderlin, Goethe, Keller, Baudelaire, Georg, Proust, Kafka ou Brecht; a tragédia barroca; a pintura de Paul Klee; o cinema e a fotografia; a linguagem ou a tradução; o jogo de azar e a Paris do barão de Haussmann – eram sempre instâncias do movimento de alienação no sentido hegeliano, resultados das exteriorizações do nosso espírito.
A exegese de Benjamin, o hábito crítico de tomar o texto (ou objeto cultural, de maneira geral) por um microcosmo, por um speculum mundi, provocava uma significativa ressurreição metodológica: sua exegese, que parece fora de moda, está comprometida com um impulso liberador: a compreensão da obra em relação ao seu tempo é apenas uma etapa na interpretação e no juízo; não pode nunca explicar a universalidade do estético e o seu interesse contemporâneo, porque o problema não é apresentar as obras literárias em conexão com seu tempo, mas sim tornar evidente, no tempo que as viu nascer, o tempo que as conhece e julga – ou seja, o nosso.
O que Benjamin pretendia era revelar o conteúdo da obra nos termos da definição de Peirce: conteúdo é o que a obra deixa transparecer sem mostrar. Entretanto, Benjamin não se limitou a contemplar na cultura uma projeção do homem: ele se apaixonou precisamente pelo que a cultura tem de fossilizado, de prescrito, de caduco e até morto.
Mas, finalmente, quem é esse flâneur?
O flâneur é um ponto de crítica ao capitalismo, pois ele não se adéqua ao sistema. Ele está no contrafluxo. O flâneur é o elemento de resistência ao progresso. É um cronista da cidade. Gérmen de crítica e de resistência. O flâneur é tudo aquilo que resta de um passado que o capitalismo destruiu.
Os Jogadores de Cartas, 1892, de Paul Cézanne (1839-1906)
Para Benjamin, o flâneur é um tipo de herói da modernidade, pois é a vez do homem do povo, nas palavras de Baudelaire:
é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, que inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos utilizados na fabricação de obras primas (Benjamin, 1994, p. 73).
Nos dias atuais, quem seria esse flâneur? Seria ele bem visto pela nossa sociedade? Acredito que não. Ele seria aquela pessoa que vai de sandálias havaianas a uma reunião de negócios ou aquele que conta uma piada num funeral. Alguém que possui um comportamento insólito e bizarro dentro de determinado contexto. Ele teria uma conotação negativa, ao contrário do que Benjamin expõe.
A questão que se coloca é que o capitalismo engole tudo e transforma o homem em uma simples peça de sua engrenagem, o que acarreta pensar que o flâneur não consegue existir dentro desse progresso: ou ele se encaixa ou ele não existe mais.
O que o autor pretende mostrar, na minha opinião, é a incapacidade do homem moderno de exercitar experiências por causa da ascensão da era industrial. O homem, tão exposto a esse processo desumanizante, se torna incapaz de ter uma experiência autêntica.
Dizer perda de experiência significa dizer também experiência do choque [Chockerlebnis],visto que toda a experiência do homem moderno do século XIX aparece à luz dessa impossibilidade de uma experiência autêntica. A experiência do choque nasce e desenvolve-se par a par com a consciência do declínio da aura, declínio que faz nascer um mundo ilusoriamente transfigurado, "fantasmagorizado", mediante a necessidade de tornar suportável a história arruinada, num mundo marcado pelo fetiche da mercadoria.
Essa degradação da experiência na vida moderna vai se tornando algo doloroso e dá impulso para outra base artística, com uma nova objetividade, que renuncia a uma ordem intersubjetiva burguesa.
Essas novas experiências artísticas – de Baudelaire e de Poe – reconstroem um mundo esfacelado, fragmentado e sem unidade. Nessa relação de fragmentos é que vai se constituir outra possibilidade mais próxima do real, outra possibilidade de relação, que será mais eficaz com a esfera social.
Nesse sentido, Benjamin promoveu o rompimento com a grande estrutura, fazendo sua análise por fragmento a partir da literatura. Antecipou a crítica pós-moderna contra os metarrelatos. E esta foi a maior contribuição de Benjamin para a Filosofia: com ele, desapareceu a distinção entre uma “filosofia primeira” e uma sempre secundária “filosofia da cultura”. Mas se o método ensaístico de Benjamin se fundamenta como descrição dos objetos da cultura, e só como tal se permite chegar à reflexão filosofante, nem por isso se subordina ao ideal equívoco da pura descritividade. O que o ensaísmo benjaminiano encarna é a descritividade crítica. Sua radicalidade crítica não consistia em arvorar os temas e motivos mais ou menos notórios da crítica social; consistia numa radicalização filosófica.
O ensaio é reflexão filosófica porque é descrição crítica. Os temas de Benjamin são as obras e os seus problemas são os da tradição da filosofia. Mas o ensaio se afasta desta última por sua animosidade ao espírito de sistema. O sistemático lhe aparece como fechado; em vez de impor a continuidade da teoria ao objeto que a repele, o ensaísmo se vota a uma autorreflexão infinita, a uma sempre aberta revisão de si. Dessa maneira, se dá como fragmento. Mas o fragmento é aqui a garantia de maior objetividade e de maior rigor crítico.
Nesse tipo de método (o ensaio) utilizado por Benjamin abandonou-se a exposição corrida por uma técnica de montagem. No texto desta resenha, os nexos lógicos não se dissipam, mas se ocultam por trás de uma verdadeira engenharia da citação. Fragmentos da cidade de Paris, de Haussmann, do Segundo Império... Tudo deveria se justapor, na mais antiacadêmica das apresentações, e esta é a sua originalidade. Ele adotou um estilo surrealista: renunciou a toda interpretação explícita, deixando que o material justaposto falasse por si. O ensaio-montagem deu corpo ao princípio enunciado por Benjamin em Rua de mão única: “as citações são como bandidos que saltam na estrada para roubar ao leitor as suas convicções”.
Logo, sua contribuição advém de instaurar o ensaio como método de investigação, a forma crítica por excelência, destruindo assim a mitologia da repressão e revelando, por via de choque, a “pré-história” da modernidade.
Publicado em 02/03/2010
Salvador-Bahia. Largo do Relógio de São Pedro, pintura de Henrique Passos, 2003
O FLANNEUR NA CIDADE DA BAHIA DOS ANOS 1930
Florisvaldo Mattos
"Vivia-se a consolidação
de reformas urbanas que expunham evidentes sinais de modernidade. Começava a se
configurar um cenário pelo qual antes a imprensa romanticamente clamara,
dirigindo-se a Seabra, então governador, para que houvesse “no seio da velha
cidade a alegria nova das vias amplas, modernas, por onde possa circular livre
e fecunda a vida feliz de um povo forte”. Requeria-se, desse modo, que a cidade
demarcasse seus espaços para neles se assentarem novos padrões de
comportamento.
Decididamente, a cidade
ia deixando de ser um burgo provinciano, vivenciando situações apenas imaginadas, que faziam os
Rebeldes detectarem na paisagem urbana uma nova atmosfera, um novo calor,
evidenciado por um mais intenso trânsito de pessoas, de posturas. Percebia-se
então súbito fortalecimento do comércio exportador, estímulo ao consumo e
demanda de serviços pelo surgimento de lojas, escritórios, hotéis, cafés,
pastelarias, esquinas povoadas, pontos de encontro, cassinos e bordéis
(apelidados de “castelos”), jornais dispostos a abrir-se ao debate; um ambiente
propício às fruições de um embrião de
flâneur, com a burocracia cada vez mais cedendo espaço, apesar das
resistências. Começava para eles, os Rebeldes, a se configurar o mundo moderno,
em que Octavio Paz (1991) divisa “o homem, ou seu fantasma, errante entre as
coisas e os aparatos” urbanos. E assim, com este cenário, a cidade se alçava a
um outro patamar, em que as figuras do boêmio e do flâneur pareciam combinar-se.
Peregrinando pelos cafés,
cassinos e bordéis, eram os Rebeldes personagens deste cenário, aproveitando
todas as seduções que lhes acenava nesse novo momento. Inseridos na multidão,
na rua ou através do vidro da janela ou frestas de um café, escritório ou
bordel, apreciavam o trânsito de bondes e de pessoas, errático privilégio com
que, na condição de habitantes, revelavam a sua mesma razão de ser, em estado
de felicidade plena. Na rua, numa esquina, talvez até mesmo da janela de um
bonde, basta-lhe o gozo de fitar pessoas passivamente mirando outras, por minutos
e até horas, sem lhes dirigir uma palavra sequer. Em resumo, este embrião
baiano de flâneur, um tipo de
passeante ocioso, que anda sem rumo, sente-se melhor na rua do que em casa,
numa fruição lúdica perfeitamente assemelhada ao culto da boemia, atitude que
em geral se desenvolve com a aceleração das atividades no ambiente urbano.
De tão referencial, não
parece excessivo ou infrutífero invocar a Paris dos tempos de Charles
Baudelaire (1821-1867), inaugurando cenários da modernidade que ele,
pioneiramente centrado no espírito de uma época marcada pelos aspectos da
aceleração urbana, emergente industrialização e concentração demográfica,
discerniu, descreveu e vivenciou cenários, em que desponta a figura do flâneur de que ele próprio foi exemplo,
ao ponto de, numa passagem de seu Le
Peintre de la vie moderne, segundo Eric Hazan, escrever, como se
desenvolvesse uma teoria, falando de si mesmo:
Para o perfeito flanador, para o observador apaixonado, é um imenso prazer escolher um domicílio em meio à multidão, à ondulação, ao movimento, ao fugaz, ao infinito. Estar fora de casa, e, ainda assim, sentir-se em casa em todos os lugares; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer escondido do mundo, estas são algumas das satisfações mais simples desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a língua só consegue exprimir desajeitadamente. (HAZAN, 2017).
Ao ver de Baudelaire,
este “amante universal” (o flâneur)
encara a multidão como um espelho, “um caleidoscópio dotado de consciência que,
a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça movediça de
todos os elementos da vida”, criando-se em sua imaginação “misterioso e
complexo encantamento”. Este cenário desenhou-se lá, na Paris que se
acompanhava e se seguia às célebres reformas urbanas introduzidas pelo Barão de
Haussmann (Georges-Eugène, 1809-1891), que seriam copiadas por metrópoles,
gerando imitações de comportamento também praticadas mundo afora.
Creio que, nesse ponto,
cabe um parêntese. Segundo Walter Benjamin, a multidão não foi uma descoberta
somente de Baudelaire; houve outro poeta de seu tempo que também a celebrou na
Paris em plena marcha das reformas de Haussmann: o célebre poeta, ícone do
Romantismo, que era também exitoso político, Victor Hugo, mas com abismal diferença
de pensamento entre ambos. Enquanto Hugo celebrava a multidão, na forma de
massa transeunte que se aglomerava mergulhada no anonimato, “o herói de uma
epopeia moderna”, diz Benjamin, Baudelaire “busca ansiosamente o refúgio do
herói na massa da grande cidade”, isto é, do flâneur.
Político e pragmático,
Hugo comparava esta massa com as aglomerações dos reinos vegetal e animal na
natureza e os efeitos que elas produzem, inaugurando esse novo tema em sua
poesia durante o exílio que sofreu em Jersey. Benjamin cita passagem de um de seus
escritos em que compara “o que acabava de passar na rua” (digo, a multidão) ao
que ocorre em um bosque, estremecendo as árvores, os altos montes, os brejais, as
altas ramas entrelaçadas, as altas ervas, de maneira sombria, por ação de um
“formigueiro selvagem”, que ali faz entrever “as súbitas aparições do
invisível”, como se “a tessitura do bosque sugerisse o arquétipo da existência
da massa” (BENJAMIN, 2012).
Em poemas, as elocuções desse afamado francês
não são diferentes, são até de acento mais grave. Benjamin observa fluir em um
deles “magnífica ideia de promiscuidade que impera sobre a multidão de todo ser
vivente”. Lá numa estrofe de seu "Pente de la réverie", diz Hugo que, numa noite de sonho hediondo (rêve
hideux), a multidão espalhava assombros, que nenhum olhar percebia: “mais o
homem era mais numeroso, mais a sombra era profunda” (Plus l´homme était
nombreux, plus l´ombre était profunde). Em outra estrofe, o pensamento se apresenta mais inequívoco,
abrindo-se de forma contundente: “Multidão sem nome! Caos! vozes,
olhos, passos. / Aqueles que nunca vimos, aqueles que não
conhecemos. / Todos os vivos! - cidades zumbindo aos
ouvidos / Mais do que um bosque da América ou colmeias”). (“Foule sans nom! Chaos! des voix, des yeux, des
pas. / Ceux qu´on n´a jamais vus, ceux qu´on ne connait pas. / Tous les vivant!
– cités bourdonnant aux oreilles / Plus qu´un bois d´Amérique ou des ruches
d´abeilles” – trad. livre do autor).
Como político, embora a
multidão tenha figurado em sua poesia, durante e após o exílio em Jersey,
interessava a Victor Hugo na multidão o cidadão que a compunha. As massas das
grandes cidades não o confundiam. Nesse ponto, Benjamin é conclusivo.
“Hugo reconhecia ali (no
trânsito urbano, grifo meu) a multidão do povo; queria ser matéria dessa
matéria. Laicismo, progresso e democracia foram as bandeiras que brandiu sobre
essas cabeças. Essas bandeiras glorificavam a existência da massa. E deixavam
nas sombras o umbral que separa o indivíduo da multidão. Baudelaire cuidava desse
umbral; isso o diferenciava de Víctor Hugo. (...) Baudelaire opunha a esta
multidão um ideal, tão pouco crítico como a concepção que Hugo tinha dessa
mesma multidão”. (...) Como citoyen, Hugo se traslada para a multidão;
como héros, Baudelaire dela se distancia” (BENJAMIN, 2012).
Por seu anonimato, se não parece possível divisar interesses privados no seio da multidão – para onde vão, o que sentem, o que pensam, o que sonham os que a formam -, Víctor Hugo parecia enxergar nela dois destinos: o do mercado, coincidindo com as expectativas da burguesia, e o das eleições, identificando cada um de seus componentes como votante."
Florisvaldo Mattos. Excerto de ensaio constante de Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais. (Salvador: ALBA Cultural, págs. 25 a 26, 2022)
Paris das reformas do Barão de Haussmann e das barricadas (1953-1870)CHARLES
BAUDELAIRE E A CIDADE DE PARIS
·
Agosto de 2018
Autor:
Resumo
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história depressa muda mais que um
coração infiel). Charles Baudelaire. Poema O Cisne. As Flores do Mal. 1.
Introdução A partir do século XVIII as cidades modernas começaram a se
expandir, transfigurando a política, a cultura, a sociedade, a economia, o
espaço e o tempo. Portanto, é verossímil analisarmos as cidades modernas
enquanto uma construção histórica, fruto de um determinado momento da vida dos
indivíduos e das coletividades. E, se o modernismo é uma arte especificamente
urbana, em parte é porque o artista moderno, tal como seus semelhantes, foi
capturado pelo espírito da cidade moderna, que em si é o espírito de uma
sociedade tecnológica moderna. A cidade moderna se apropriou da maioria das funções
e meios de comunicação da sociedade, da maioria da população e dos limites mais
avançados de sua experiência tecnológica, comercial, industrial e intelectual.
A cidade se tornou cultura, ou talvez o caos que se segue a ela. Sendo ela
própria modernidade enquanto ação social, a cidade é, ao mesmo tempo, o centro
da ordem social existente e a fronteira criadora de seu crescimento e
transformação. (Bradbury, 1989: 77, grifos meus). De fato, podemos entender a
cidade moderna enquanto o desenvolvimento de um processo, ou seja, as
transformações que ocorrem em seu interior nos revelam um movimento contínuo:
movimento, entretanto, heterogêneo, posto que a sua complexidade seja produto
de alguns dos elementos fundamentais que engendraram a modernidade. [...] a
experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e
raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido,
pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade
Avenida da Ópera, (Paris, 1898), Pós-Impressionismo da paleta de Camille Pissarro
CHARLES BAUDELAIRE E A CIDADE DE PARIS
Carlos Henrique Gileno*
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel).
Charles Baudelaire. Poema "O Cisne". As Flores do Mal.
1. Introdução
A partir do século XVIII as cidades modernas começaram a se expandir,
transfigurando a política, a cultura, a sociedade, a economia, o espaço e o tempo.
Portanto, é verossímil analisarmos as cidades modernas enquanto uma construção
histórica, fruto de um determinado momento da vida dos indivíduos e das
coletividades.
E, se o modernismo é uma arte especificamente urbana, em parte é porque o artista moderno, tal como seus semelhantes, foi capturado pelo espírito da cidade moderna, que em si é o espírito de uma sociedade tecnológica moderna. A cidade moderna se apropriou da maioria das funções e meios de comunicação da sociedade, da maioria da população e dos limites mais avançados de sua experiência tecnológica, comercial, industrial e intelectual.
A cidade se tornou cultura, ou talvez o caos que se segue a ela. Sendo ela própria modernidade enquanto ação social, a cidade é, ao mesmo tempo, o centro da ordem social existente e a fronteira criadora de seu crescimento e transformação. (Bradbury, 1989: 77, grifos meus).
De fato, podemos entender a cidade moderna enquanto o desenvolvimento de um processo, ou seja, as transformações que ocorrem em seu interior nos revelam um movimento contínuo: movimento, entretanto, heterogêneo, posto que a sua complexidade seja produto de alguns dos elementos fundamentais que engendraram a modernidade.
[...] a experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. (Berman, 1986: 15).
A análise do modernismo nas várias cidades que o vivenciaram nos séculos XVIII e XIX oferece um terreno fértil para tentarmos compreender as interpretações que deram origem aos pontos de vista de diferentes autores sobre a modernidade: “[...] o modernismo foi mais do que qualquer cidade em si: foi, como mostrarão os ensaios seguintes, frutos de muitas capitais e muitos países, muitos impulsos e diferentes estados de espírito intelectuais estéticos.” Bradbury, 1989: 82) 1.
A modernização (“um complexo de estruturas e processos materiais”, que compreende a economia e a política) e o modernismo (um “estado de espírito”, que abarca a arte, a cultura e a sensibilidade) foram temas recorrentes nos escritos de Goethe, Marx, Flaubert, Dickens, Stendhal, Baudelaire, Dostoievski, entre outros. As transformações materiais capitaneadas pela burguesia nos séculos XVIII e XIX mantiveram uma relação dialética com o pensamento: relação tensa e contraditória que gera, na vida moderna, a “fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno.” (Berman, 1986: 129).
As Flores do Mal - os 100 poemas publicados por Charles Baudelaire em 1857 - possuem um importante significado político para o período histórico apontado acima. Nesse artigo, terá proeminência a análise de um dos três poemas do ciclo Révolte (Abel e Caim), cujo estudo não confirma o adjetivo de poésiepure aos versos de Baudelaire. Esses poemas tiveram a sua inspiração entre as revoltas de 1848 e o golpe de Estado de 1851, e são dirigidos contra a burguesia do século XIX. Outro poema, O Cisne, pertencente ao ciclo Tableaux Parisiens, examina a destruição da velha Paris.
1Sobre os aspectos sociais, culturais e políticos das diferentes “cidades do modernismo”, como por
exemplo, Londres, Viena, Praga, Berlim, Paris ou São Petersburgo, entre outras, consultar:
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São
Paulo: Editora
Brasiliense, 1989; BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade.
São Paulo Companhia das Letras, 1986; BRADBURY, M.; MCFARLANE, J. (Orgs.). Modernismo:
guia geral (1890-1930). São
Paulo: Companhia das Letras, 1989;
OEHLER, D. Um socialista
hermético. Sobre a polêmica
baudelairiana entre Benjamin e Brecht. Revista Praga: estudos
marxistas. São Paulo: Editora Hucitec, São Paulo, nº 5, mai. 1998 e WILLIANS, R. O campo e a
cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
2Os
outros dois poemas são A negação de São Pedro e As Litanias de Satã.
Seus melhores escritos parisienses pertencem exatamente ao período em que, sob a autoridade de Napoleão III e a direção de Haussmann, a cidade estava sendo remodelada e reconstruída de forma sistemática. Enquanto trabalha em Paris, a tarefa da modernização da cidade seguia seu curso, lado a lado com ele, sobre sua cabeça e sobre seus pés. Ele pôde ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista desta tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos. (Berman, 1986: 143).
2. Intelectuais tomam a defesa de um proletariado cada vez mais numeroso
A industrialização legou à Paris de meados do século XIX um aumento considerável da sua população urbana e, consequentemente, uma intensificação do tráfego. Por conseguinte, a exemplo de outras cidades europeias que haviam tomado contato com a indústria moderna, a capital da França estava enfrentando as dificuldades de circulação, sendo assolada, inclusive, por frequentes epidemias. A reforma urbana de Paris foi pensada como uma solução para os problemas mencionados acima. Luís Napoleão (1808-1873), que estivera exilado na capital inglesa, presenciou as reformas londrinas e aplicou-as a Paris quando subiu ao trono francês (1852-1870).
Para obter êxito, no entanto, necessitava de um administrador agressivo: encontrou Haussmann e, portanto, o triunfo. Juntos eles construíram a Paris moderna, em três programas integrados de demolição e construção, entre 1853 e 1870. (Needell, 1993: 50-1).
Os três programas citados se resumiam em melhorar a circulação do tráfego, extinguindo as ruas estreitas ao criar os bulevares circulares. Essas novas vias largas e arborizadas - os bulevares - tomaram o lugar dos antigos “bairros tradicionais da classe operária, superpovoados e insalubres”, oferecendo uma diminuição do congestionamento, “levando ar e luz à cidade”, além de eliminar os principais focos da epidemia de cólera. Também a reforma parisiense contribuiu para o embelezamento da cidade ao erigir grandes edifícios e monumentos, “sendo o mais famoso dele a Ópera, marca registrada do Segundo Império.” (Idem: 51).
Édouard Manet (1832-1883), O Bar do Folies Bergère, 1882
Paris estava mais iluminada, o tráfego intenso e fluindo com facilidade, a multidão aglomerava-se nas suas ruas. A cidade tornou-se um espaço excepcional para o observador, revelando os seus conflitos e as suas profundas divisões de classe, transformando-se no palco dos novos problemas sociais que surgiram com a consolidação do capitalismo moderno. Mesmo antes da reforma urbana, Charles Baudelaire já havia se inserido no turbilhão político e econômico que estava oferecendo novos contornos a Paris, participando ativamente das manifestações que agitaram aquela cidade em fevereiro de 1848. O ano de 1848 começou tenso: Luís Napoleão se recusara a levar adiante a reforma eleitoral.
[...] intelectuais tomam a defesa de um proletariado cada vez mais numeroso, e denunciam veementemente os que eles consideravam um autoritarismo insuportável. O festim de protesto, que deve ocorrer em 22 de fevereiro de 1848 em Paris, é proibido. Imediatamente, ante as forças da ordem, organiza-se uma manifestação, com vitrines quebradas, barricadas improvisadas e troca de tiros. No dia seguinte, a agitação toma conta da cidade toda. Luta-se no faubourg Sant-Antoine, no bairro das escolas, na rua Saint-Honoré, na rua de Valois... As tropas de reforço convocadas começam a intervir.
Alguns soldados remanescentes se recusam a atirar nos rebeldes. Baudelaire e alguns amigos, Champfleury, Promayet, Toubin, correm de um lado para outro e se misturam aos insurretos, com gritos encorajadores. Excitado ao ver aquela desordem, Charles tem a impressão de que é a sociedade toda, com suas hierarquias estúpidas, suas leis coercitivas, suas fortunas escandalosas, com todos os seus tabeliões, todos os seus ministros, todos os seus juízes, todos os seus generais, é tal sociedade que recebe o açoite.
Para ele, não se trata de um confronto entre republicanos e monarquistas, mas entre jovens loucos por independência e a crosta da ordem estabelecida, entre a fantasia e a rotina, entre o gênio e o cofre-forte. Quando ele chega ao bulevar do Temple com seus companheiros, várias exclamações de alegria jorram da multidão. O que está acontecendo? Vitória: o Ministério Guizot acaba de pedir demissão, o poder capitula! Instantaneamente as lojas reabrem as portas, bandeiras tricolores aparecem nas janelas, os soldados se confraternizam com os amotinados e centenas de bocas clamam A Marselhesa e O Canto dos Girondinos. (Troyat, 1995: 125-126).
Charles Baudelaire, em fevereiro de 1848, estava ao lado dos rebeldes vitoriosos. Em junho do mesmo ano, ainda nas fileiras insurretas, o poeta conheceu a derrota. A gravata vermelha que o autor vestia nas sublevações de fevereiro foi rasgada pelas investidas de Luís Napoleão, em dezembro de 1851, contra a imprensa, as reuniões populares e pelo decreto do estado de sítio.
No umbral da Revolução de Fevereiro, a república social apareceu como uma frase, como uma profecia. Nas jornadas de junho de 1848 foi afogada no sangue do proletariado de Paris, mas ronda os subsequentes atos da peça como um fantasma. A república democrática anuncia o seu advento. A 13 de junho de 1849 é dispersada juntamente com sua pequena burguesia, que se pôs em fuga, mas que, na corrida, se vangloria com redobrada arrogância. A república parlamentar, juntamente com a burguesia, apossa-se de todo o cenário; goza a vida em toda a sua plenitude (...) A burguesia francesa rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador. (Marx, 1992: 110).
3. Raça de Caim, teus parcos dentes rangem de fome e privação
O poema Abel e Caim retoma um tema mítico sobre a origem do cativeiro. Noé, após ter se embriagado com vinho, foi encontrado nu em sua tenda pela própria prole. Os filhos de Noé que saíram da arca eram Sem, Cam e Jafet. Cam era o pai de Canaã. Estes eram os três filhos de Noé. É por eles que foi povoada toda a terra. Noé, que era agricultor, plantou uma vinha. Tendo bebido vinho, embriagou-se, e apareceu nu no meio de sua tenda. Cam, o pai de Canaã, vendo a nudez de seu pai, saiu e foi contá-lo aos seus dois irmãos. Mas, Sem e Jafet, tomando uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e foram cobrir a nudez do seu pai, andando de costas; e não viram a nudez de seu pai, pois que tinham os seus rostos voltados. Quando Noé despertou de sua embriaguez, soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo. “Maldito seja Canaã, disse ele; que ele seja o último dos escravos de seus irmãos!” E acrescentou: “Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja teu escravo! Que Deus dilate a Jafet; e este habite nas tendas de Sem, e Canaã seja teu escravo! (Bíblia Sagrada, 1994: p. 56 - Gênesis, 9, 18-27).
Segundo Alfredo Bosi, autor de onde extraímos essa ideia da “danação original” de Canaã, o mito de Cam foi largamente utilizado nos séculos XVI, XVII e XVIII para justificar o trabalho compulsório nas colônias de além-mar. Tanto a
3
Noé amaldiçoou Canaã, que era filho de Cam, porque não podia amaldiçoar seu pai que antes fôra bençoado por Deus. do por Deus.
abençoado por Deus igreja católica como a protestante da época, “conformadas” com o tráfico negreiro que impulsionava a economia mercantil europeia, fizeram ressurgir o mito bíblico para justificar a sangrenta escravidão moderna. Aquele mito ajudava a consolidar ideologicamente a exploração desumana infligida aos filhos do continente negro. Castro Alves, em suas Vozes d’ África, dialoga com o “deus-vingador” que permitiu a prescrição da maldição aos descendentes de Canaã.
Não basta inda de dor, ó Deus
terrível?!
É, pois, teu peito eterno,
inexaurível
De vingança e rancor?...
E o que é que fiz, Senhor? Que torvo
crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
(Alves apud Bosi,
1995: p. 258-259).
Castro Alves, em 1868, apropriou-se mito de Cam para combater a escravidão e engrossar as fileiras a favor do abolicionismo. Em contrapartida, Charles Baudelaire utilizará aquele mito para se opor à propriedade privada, considerada pelo autor como a portadora da desigualdade moderna entre os homens. Em Charles Baudelaire, as classes sociais - que no seu momento histórico se delineiam mais claramente e entram em conflito nas ruas de Paris - serão consideradas metaforicamente através do mito da “danação original”.
Raça de Abel, frui, come e dorme,
Deus te sorri bondosamente.
Raça de Caim, no lodo informe
Roja-te e morre amargamente.
Raça de Abel, teu sacrifício
Doce é ao nariz do Serafim
Raça de Caim, teu suplício
Quando afinal há de ter fim?
(Baudelaire, 1985: p.
419).
As indagações frementes de Castro Alves (“Não basta inda de dor, ó Deus terrível?”) e de Charles Baudelaire (“Raça de Caim, teu suplício / Quando afinal há de ter fim?”), cada uma a seu modo, podem colocar em dúvida a celebrada ideia da “emancipação humana” que surgiu com mais força após a Revolução Francesa de 1789. No caso específico de Charles Baudelaire, a cidade moderna (enquanto espaço que articula os princípios elementares da modernidade, isto é, a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a propriedade) produz as contradições que repelem a ideia de uma “fraternidade universal”.
Almoço no Barco, 1880-1881, pintura de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)
A fraternité, a fraternidade das classes adversárias, das quais uma explora a outra (...) “é na verdade a guerra do trabalho e do capital”, escreve Marx após a sangrenta repressão da primeira revolução proletária da história, em junho de 1848. Abel e Caim não diz outra coisa - o mesmo valendo, de forma cifrada, para toda a obra de Baudelaire. O poema citado implica que a fraternidade será ainda e sempre homicida enquanto o princípio da desigualdade - metaforicamente falando: o Deus de Abel; concretamente: a propriedade privada - não for superado. É por isso que o ciclo Révolte concentra-se naquele Deus que a burguesia criou à sua imagem e semelhança. (OEHLER, 1998, p. 98).
Ao tentarmos decifrar as imagens do poema "Abel e Caim", podemos supor que a “raça de Abel” é o símbolo da classe social que detém o domínio da propriedade privada, enquanto a “raça de Caim” é o elemento que descreve a classe social destituída de posses.
a de Abel, tuas sementes
E teus rebanhos férteis são
Raça de Caim, teus parcos dentes
Rangem de fome e privação
Raça de Abel, teu ventre aquece
Junto à lareira patriarcal
Raça de Caim, treme e padece
Em teu covil, pobre chacal!
Raça de Abel, goza e pulula!
Teu ouro é pródigo em rebentos;
Raça de Caim, refreia a gula,
Ó coração que arde em tormentos!
Raça de Abel, cresces e brotas
Como os insetos do arvoredo;
Raça de Caim, por ínvias rotas,
Arrasta os teus à infâmia e ao medo.
(Baudelaire, 1985: p. 421).
As “ínvias rotas”, sobre as quais a população pobre de Paris se movia, contrastavam profundamente com os bulevares, símbolos da modernização da velha cidade parisiense. Os Olhos dos Pobres - pequeno poema em prosa que figura no livro intitulado O Spleen de Paris - reflete o espaço urbano onde ocorriam os conflitos entre as classes sociais. Esses conflitos aconteciam no âmbito da cidade, a qual se tornou uma síntese excepcional da própria sociedade moderna, expondo, ao mesmo tempo, o seu progresso e a sua miséria.
Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício da empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos (...) Os olhos dos pais diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.” (...)
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”
Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam! (BAUDELAIRE, 1985b: 84-85).
A cidade reformada - cheia de luz e largas avenidas - convive com o pauperismo e a opressão. Aos pobres é vedado o acesso à liberdade, à igualdade, à fraternidade e à propriedade. Segundo Dolf Oehler, é “a relação dialética entre opressão e libertação, afirmada desde a primeira estrofe, que constitui o cerne de Le Cygne.” (Oehler, 1998: 102).
4. No pó banhava as asas cheias de aflição
O poema Abel e Caim remete ao período em que a luta de classes, na cidade de Paris, ganhava contornos nítidos. Este poema nos remete a um período heroico da revolução, o qual se desmantela com a derrota do proletariado em junho de 1848. Por outro lado, o poema O Cisne:
[...] já não é poesia de agitação como os poemas dos tempos heroicos da luta de classes. A revolução fracassou, e o uso do adynaton, figura retórica da impossibilidade, funciona como perífrase do absurdo inescapável daquele heroísmo. (Oehler, 1998: 104).
De início, podemos constatar que a imagem do cisne pode ser associada ao proletariado parisiense que lutou em 1848. Em junho daquele ano, diversas oficinas que empregavam os trabalhadores fecharam as suas portas, privando-os das necessidades mais básicas. O estrondo das armas na batalha vinha acompanhado do grito “Pão ou Morte!”, e a invocação da revolução deveria cair sobre a população como uma tempestade.
Um cisne que escapava enfim ao
cativeiro
E, nas ásperas lajes os seus pés
ferindo,
As alvas plumas arrastavam ao sol
grosseiro.
Junto a um regato seco, a ave, o bico
abrindo,
No pó banhava as asas cheias de
aflição,
E dizia, a evocar o seu lago natal:
Água, quando cairás?
Quando soarás trovão?
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e
fatal,
Tal qual homem de Ovídio, às vezes num
impulso,
Erguer-se para o céu cruelmente azul e
irônico,
A cabeça a emergir do pescoço convulso,
Como se a Deus lançasse um desafio
agônico!
(Baudelaire, 1985a: p.327).
Vários autores, dentre eles Gustave Flaubert (1821-1880) no romance intitulado A Educação Sentimental, contrastaram o céu azul daqueles dias de junho com a cor do sangue que escorria pelas ruas da cidade de Paris. A primeira parte do citado poema, que transcrevemos acima, aproxima-se do tema da revolta em Abel e Caim, pois o Deus da burguesia - a propriedade privada - é desafiado nos versos dos dois poemas: “Raça de Caim, sobe ao espaço / E Deus enfim deita por terra!” [Abel e Caim]; “A cabeça a emergir do pescoço convulso, / Como se a Deus lançasse um desafio agônico!” [O Cisne]. Todavia, como já indicamos ligeiramente, a segunda parte do poema perde o calor heroico da revolução, uma vez que as revoluções proletárias foram afogadas em sangue.
Uma impressão nostálgica domina a segunda parte de O Cisne. As saudades da Paris anterior à reforma urbana afloram nos sentimentos do poeta.
Paris muda! mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que os rochedos.
(Baudelaire, 1985: p. 327).
Também o exílio infligido aos insurretos que lutaram nas barricadas é relatado desalentadamente: as barricadas que deram abrigo ao povo que lutava pela República e pela Liberdade, depois da reforma urbana - reforma que construiu os grandes bulevares como uma estratégia anti-revolucionária, pois as ruas largas facilitavam a movimentação da artilharia e da cavalaria- foram extintas assim como a promessa revolucionária: “Também diante do Louvre uma imagem me oprime: / Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi, / Qual exilado, tão ridículo e sublime, / Roído de um desejo infindo!” (Baudelaire, 1985: 329).
É provável que os versos seguintes possuam uma percepção profunda dos efeitos da revolução de 1848. Os ideais de 1848 proclamavam a “igualdade universal e a abolição da escravatura”. Enquanto os prisioneiros políticos eram mandados para a África, os negros faziam o caminho inverso: vinham das colônias para a metrópole francesa como trabalhadores portadores de mão-de-obra barata. É essa situação que exprime os versos finais de O Cisne.
E penso nessa negra, enferma e
emagrecida, Baudelaire, foto de Felix Nadar, 1859
Os velhos coqueirais de uma África
esquecida
Por detrás das muralhas do nevoeiro
hostil;
Em alguém que perdeu o que o tempo não
traz
Nunca mais, nunca mais! nos que mamam
na Dor
E das lágrimas bebem qual loba voraz!
Nos órfãos que definham mais do que uma
flor!
Assim, a alma exilada à sombra de uma
faia,
Uma lembrança antiga me ressoa infinda!
Penso em marujos esquecidos numa praia,
Nos párias, nos galés... e em outros mais ainda!
(BAUDELAIRE, 1985, p. 329).
5. Considerações Finais
Através da pequena análise que procuramos empreender sobre os poemas Abel e Caim e O Cisne, do poeta francês Charles Baudelaire, podemos entender a cidade moderna como um terreno privilegiado para expressarmos alguns dos elementos que constituem a modernidade. As novas relações sociais que emergiram após as revoluções de 1848 na França demonstraram que a cidade é o locus da civilização moderna; dos seus conflitos e da sua organização social. Foi nela que Baudelaire montou o seu “laboratório”; foi nela que o poeta retirou as suas impressões sobre a realidade social que o cercava, exprimindo alguns dos caracteres fundamentais que marcaram o seu período histórico.
Caminhamos ainda mais para trás, é possível lembrar que durante a revolução de 1848, uma revolução simultaneamente parisiense, francesa e europeia, viviam em Paris Auguste Comte, Alexis de Tocqueville, Karl Marx e Charles Baudelaire, além de outros pensadores, escritores, artistas, filósofos. Aí se haviam criado alguma das condições sociais e culturais que talvez tenham constituído um clima propício à emergência do “positivismo” e do “marxismo”.
Nessa época já são bastante evidentes as condições e as consequências dos processos de secularização e individuação, ao lado da urbanização, industrialização e modernização. Formam-se mais nitidamente as classes sociais e continua a organizar-se o povo, enquanto coletividade de cidadãos. São transformações em curso em muitas partes do mundo, metropolitanas e coloniais, ainda que mais evidentes em grandes cidades como Londres, Paris, Berlim, Nova York e outras. Esse o contexto em que Marx irá dizer que o gerente de banco se transformará no confesso do homem moderno. Contexto esse que se tornará ainda mais evidente a observação de Hegel, ao dizer que a leitura diária do jornal passou a ser a oração matinal do homem moderno. Estava em curso o “desencantamento do mundo”, que se desenvolvia bastante no longo dos tempos modernos, intensificava-se a partir do Iluminismo e irá ser codificado por Max Weber na transição do século dezenove ao vinte. (Ianni, 1996: 10).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDELAIRE, Charles. As
Flores do Mal. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1985a.
___________________O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa.
Rio de Janeiro: Editora Imago, 1985b.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BÍBLIA SAGRADA. 90. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1994.
BOSI, Alfredo. Sob o Signo de Cam. In: Dialética da Colonização. 3. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BRADBURY, M. E MCFARLANE, J. (Orgs.). Modernismo: guia geral (1890-
1930). São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
IANNI, Octavio. Cidade e Modernidade. São Paulo: SESC, São Paulo, 12
nov. 1996.
MARX, K. Classes Sociais e Bonapartismo. In: IANNI, Octavio. (Org.) e
FERNANDES, Florestan. (Coord.). Marx. São Paulo: Editora Ática, 1992.
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e suas Letras, 1993.
OEHLER, Dolf. Um socialista hermético: sobre a polêmiltura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia da baudelairiana entre Benjamin e Brecht. Revista Praga: estudos marxistas. São Paulo: Editora Hucitec, n. 5, mai. 1998.
TROYAT, Henry. Baudelaire. São Paulo: Editora Scritta, 1995.
WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
RESUMO: O principal objetivo do presente artigo é relacionar algumas das mudanças materiais e políticas ocorridas na Paris do século XIX (as revoltas de 1848, o golpe de Estado de 1851 e o período em que Haussmann e Luís Napoleão construíram a “Paris moderna”, 1853-1870) com a análise de alguns escritos do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867).
PALAVRAS-CHAVE: Charles Baudelaire; Cidade e Modernidade; Crítica Literária e Social.
* Carlos Henrique Gileno.
Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (2003). Diretor Geral do Instituto Matonense
Municipal de
Ensino Superior (IMMES - Matão/SP). Professor Substituto da Universidade
Estadual Paulista (FCL - Campus de Araraquara.
Telhados e prédios de Paris, imagem que remonta à reforma do Barão de Haussmann
CHARLES BAUDELAIRE E A CIDADE MODERNA
Charles Baudelaire e sua Musa, de Armand Rossenfosse, pintor simbolista e Art Nouveau
POESIA DE BAUDELAIRE
OBSERVAÇÃO E COMENTÁRIO DE FLORISVALDO MATTOS
Na atualidade, as redes sociais semelham avenidas de cidades cosmopolitas em que as pessoas se cruzam por palavras, postam fotos e pensamentos próprios e alheios, confidenciam experiências, expressam emoções, intercambiam memórias e transacionam fraternidades, na maior parte dos casos, sem nunca se terem pessoalmente visto. Quando penso nisso, nessa descoberta quase pueril, lembro-me de um famosíssimo poema do francês Charles Baudelaire, em que pela primeira vez aparece na poesia o fenômeno da multidão, fruto do processo de industrialização e das aglomerações urbanas, por ela causadas, segundo Walter Benjamin, insuflando o crescimento do comércio e dos serviços, como também o aparecimento e trânsito urbano de uma figura emblemática da modernidade, o flâneur, o sujeito (homem ou mulher) que se posta nas ruas, praças e avenidas, simplesmente a observar o desenrolar das coisas e do mundo, em estado de prazer, como se estivesse em sua própria casa, por esta nova realidade substituída. Eis abaixo um dos poemas de Baudelaire, que traduz perfeitamente este fenômeno da modernidade.
A UNE PASSANTE
La rue
assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;
Agile et
noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair…
puis la nuit! — Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?
Ailleurs, bien
loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!
A UMA PASSANTE
Charles Baudelaire
A rua em torno era um
frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua
mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe
a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o
prazer que assassina.
Que luz… e a noite após! –
Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver
senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais!
nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de
mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
A ALMA DO VINHO
A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
"Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E sei peito bastante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te da esposa embevecida;
A teu filho farei a força e a cor
E serei para tão terno atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!"
Charles Baudelaire
(Tradução de Guilherme de Almeida e Ivan Junqueira)
ALGUNS POEMAS DE "AS FLORES DO MAL"
Tradução de Ivan Junqueira
Biografia de Charles Baudelaire
Charles Baudelaire (1821-1867) foi um dos mais influentes poetas franceses do século XIX. Foi considerado um dos precursores do Simbolismo. Inaugurou a modernidade da poesia que só foi reconhecida depois de sua morte.
Charles-Pierre Baudelaire nasceu em Paris, França, no dia 09 de abril de 1821. Filho de François Baudelaire e de sua segunda esposa Caroline Defayis, com seis anos de idade ficou órfão de pai.
Em 1932, a família se mudou para Lyon e no ano seguinte, Baudelaire ingressou no internato do Collège Royal de Lyon, quando se rebela contra a estrutura militar.
Ainda na infância, entra em conflito com o mundo que a cercava e, especialmente com seu padrasto, o coronel Jacques Aupich.
Em 1836, a família retorna à Paris e Baudelaire é matriculado no Lycée Louis-le-Grand. Nessa época, mostra-se melancólico e solitário.
Carreira literária
Começa a escrever suas primeiras poesias. Em 1838 escreve o poema “Incompatibilité”. Em 1839, por indisciplina, foi expulso da escola. Nesse mesmo ano, conclui o colegial na École de Droit.
Nessa época, Baudelaire decide se dedicar à literatura. Faz amizade com os poetas Gustave Le Vavasseur e Ernest Prarond, e passa a levar uma vida de boêmio e muda-se para a pensão Lévêque et Bailly.
Em 1841, pressionado pela família, interrompe seus estudos superiores e é obrigado a embarcar em um navio para Calcutá, na Índia, mas interrompe sua viagem e permanece nas ilhas Maurício.
Em 1842 retorna para a França. Nesse mesmo ano, atinge a maioridade e recebe a herança deixada por seu pai. Passa a morar na ilha de Saint-Louis, torna-se um boêmio incurável, que se violentava com ópio e maconha.
Escandalizava Paris ao lado da atriz Jeanne Duval, a “dame créole” de um de seus poemas. Outras mulheres de sua poesia foram Madame Sabatier e a atriz Marie Daubrun.
Em dois anos havia desperdiçado metade de sua herança levando sua mãe a entrar com uma ordem judicial, que nomeou um tutor para as suas despesas.
Charles Baudelaire refugia-se no misticismo, em busca de experiências exóticas e procura afirmar sua individualidade e seu desprezo pela sociedade. Em 1847 publica sua única novela “La Fanfarlo”.
As Flores do Mal
Em 1857, ao lançar uma coletânea com os seus mais belos poemas, intitulada “As Flores do Mal”, foi acusado pela lei francesa de atentar contra a moral.
Baudelaire teve sua obra apreendida, sendo obrigado a pagar uma pesada multa. Quatro anos depois, Baudelaire retirou os seis poemas que foram considerados obscenos, e reeditou a obra com mais trinta novos poemas.
Ao Leitor
A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo vicia,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.
Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça,
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.
Na almofada do mal é Satã Trimegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma joia encontramos,
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia...
Características
Mal compreendida por seus contemporâneos, a poesia de Baudelaire está marcada pela contradição. De um lado, revela o romantismo de Allan Poe e Gérard de Nerval, e de outro, o poeta crítico que se opôs aos excessos sentimentais e retóricos do romantismo francês.
Baudelaire afirmava que a finalidade de sua poesia era “extrair a beleza do mal” e comunicar aos homens a tragédia essencial do ser humano, dividido entre Deus e o demônio.
Segundo o crítico alemão Erich Auerbach, o poeta criou a poesia moderna ao incorporar à literatura a realidade grotesca. O escritor André Breton considerava Baudelaire o primeiro dos surrealistas.
Vampiro
Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,
De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,
Como ao baralho ao jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!
Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao vento, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.
Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,
Imbecil! - se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!
Crítico de arte e tradutor
Baudelaire destacou-se desde cedo como crítico de arte. Datam do início de sua carreira: "Salão de 1845” e “Salão de 1846”. Seus escritos posteriores foram reunidos em dois volumes póstumos, com os títulos de “A Arte Romântica, 1868” e “Curiosidades Estéticas, 1868”.
Baudelaire destacou-se como tradutor das obras do americano Edgar Allan Poe, entre elas, “Histórias Extraordinárias, 1873” e “O Princípio Poético, 1876”.
Entre 1864 e 1866 viveu na Bélgica, quando começaram a surgir problemas de saúde. A obra de Baudelaire, que inaugurou a modernidade da poesia, só foi reconhecida após sua morte.
Charles Baudelaire faleceu em Paris, França, no dia 31 de agosto de 1867.
Principais obras de Baudelaire
- La Fanfarlo - 1847
- A arte romântica - 1852
- As flores do mal - 1857
- Os Paraísos Artificiais - 1860
- Pequenos poemas em prosa - 1862
- O pintor da vida moderna - 1863
- Miudezas - 1866
- Diários íntimos - 1887
- Meu coração a nu - 1897
Paris, luxo, prazer e modernidade, em "Baile no Moulin de la Galette", de Renoir |
SIMBOLISMO
Por Luiza Brandino
Professora de Literatura
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