segunda-feira, 24 de julho de 2023

AGUA PRETA, DO RIO QUE SOLETRA NUVENS


   Ilhéus, de que Água Preta se torna distrito, em 1933, passando a município em 1955 
  Foto aérea de José Nazal, 2021

MUITO OBRIGADO, VERÇOSA, POR ESTE NADAR

EM RIO HOJE DE RISOS, LÁGRIMAS E SAUDADE!

Carlos Verçosa
·
HAIKAI DA QUINTA
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dasdores na janela
rio de água preta
corre sem parar
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safra 2021 >>>
[p/ Florisvaldo Mattos]
[in HAIKAI DA QUINTA , FACEBOOK,
Salvador Bahia, 4 ago 3022, web] >>>
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LUZES, CÂMERA NA MÃO, AÇÃO
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ÁGUA PRETA & ROXA - O RETORNO
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Dasdores na janela, sob o roxo.
Apertucho de saudade do poeta
Florisvaldo Mattos.
Close nos mínimos detalhes
desse filme antigo sonetado com
trilha musical schoenberguiana
e murmúrios da Água Preta
nos seixos da memória
pelo escritor Valdomiro Santana.
Velho rio, novo banho.
Novo rio.
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Carlos Verçosa
Salvador Bahia
4 ago 2022
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A PELE DAS COISAS
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by Valdomiro Santana_____________🖊

Lápis ou caneta e papel.
Ou máquina datilográfica e papel.
Ou computador. O que então acontece?
Um nome, Água Preta, é escrito
por Florisvaldo Mattos.
Mas, muito antes da escrita
desse nome, que é um topônimo,
o nome de um lugar, razão pela qual
o segundo vocábulo é grafado
com inicial maiúscula, uma imagem
se acende, a qual não é mais
a que havia sido na infância
(que, etimologicamente em latim,
é “infantia”, do verbo “fari”, falar,
em que “fan” significa falante e “in”,
a negação – sendo, portanto, “infans”
quem ainda não fala, já que só balbucia,
murmura, grita, gagueja), que imagem
é essa? A de um rio de água preta
sobre o qual há uma ponte.
Imagem que vai persistir na retina
(e se encadear com outras) como,
por sua velocidade (24 fotogramas
por segundo), persistem as que vemos
no cinema, em cuja tela a percepção
natural não é a percepção do movimento.
Podemos então dizer que, muito
antes da literatura (aqui, em uma de
suas formas de expressão, a poesia),
o cinema é o que está na origem
do soneto “Água Preta”.
Eis o texto:
⬇️
●☆●☆●☆


Água Preta, a Rua do Apertucho, de vivências e alegrias infantis 

Água Preta: debruço-me na ponte,
olho o rio que sangra minha infância;
me despeço de mim — lá, do que fui,
do que somente fui, não mais serei.

Na Rua do Apertucho, com tristeza,
me despeço de mim, dos meus amigos.
Imperceptível traço do destino,
com palavras escritas nas paredes,

resiste na água quieta (minha tia
Dasdores, debruçada na janela,
olha a chuva batendo nos gramados).

Do necessário roxo dos telhados
desce o gado manso do tempo, rumo
ao fundo do rio chifrando ausências.

Florisvaldo Mattos

●☆●☆●☆
O que é singular neste soneto:
a imagem do rio de água preta
vai devir outra, e outra, e outra,
sem deixar de ser a do passado
contraído que imperceptivelmente
se distende; não a imagem
que de fato é, ou foi.
A imagem do rio e da cidade que tem
seu nome. Imagem que, em sua origem,
é imagem-movimento, a se desdobrar
em imagem-percepção, imagem
afecção e imagem-ação.
Por isso vemos, em vez
da reprodução do real desse rio,
seus efeitos de realidade.
Já que o verbo evocar diz muito
a Florisvaldo Mattos, evoquemos
outro poeta lírico, Mario Quintana,
que diz em “Parábola”:
⬇️
●☆●☆●☆
“A imagem daqueles salgueiros n’água
é mais nítida e pura que os próprios
salgueiros. E tem também uma tristeza
toda sua, uma tristeza que não está
nos primitivos salgueiros”. 🐦
●☆●☆●☆
Experimentemos ler “Água Preta”
como se assistíssemos a um filme,
se víssemos um quadro,
se ouvíssemos uma obra musical.
Isto é possível? Sim, porque há uma
comunidade das artes; elas dialogam,
nenhuma delas está fechada
em sua forma de expressão.
Não há arte que não esteja na origem
de outra arte ou com outra não faça
um entrelace.
Então, digamos: “Água Preta” é um filme
imaginário, puramente experimental,
em cores, que se delineia, ganha corpo,
flui (como o rio do lugar).
🎶
Abre com um trecho do “Concerto
para piano e orquestra, op. 42”, de
Schoenberg, cuja emotividade é intensa,
com dissonâncias extremas, mostrando
imagens que vão se dissolvendo:
a do plano geral de um adolescente
que se debruça na ponte para ver o rio;
a do plano próximo desse adolescente
e a do plano detalhe de seus olhos;
a do enquadramento da água do rio
vista de cima para baixo; a da Rua
do Apertucho vista em profundidade
de campo (som direto); as de flashes,
nessa rua, em tom sépia, de amigos
que já morreram e os ainda vivos;
a da água do rio que enche a tela
e parece parada de tão quieta;
as do close e do plano próximo
de uma mulher de meia idade,
que, debruçada na janela, olha a chuva;
a do plano de conjunto da chuva
batendo na grama (som direto);
as dos movimentos de câmera
sobre os telhados que são vistos
pintados de roxo; a da palavra FIM
em branco sobreimpressa
em fundo roxo, quando cessa a música expressionista de Schoenberg
e ouve-se um barulho suave,
o dos murmúrios e submurmúrios
do rio (som direto). 🎬
Esse diálogo imaginário
com o cinema vai dar origem a outro,
também imaginário, o diálogo
com a pintura, em que uma imagem,
a do título do quadro, também
puramente experimental,
aparece metamorfoseada,
primeiro em estilhaços, depois
em seu todo, composta de linhas
e cores ora saturadas, ora rarefeitas
(o preto, o vermelho, o verde, o cinza,
o terra de siena, o roxo). 🖌
Volta-se a ouvir, durante
o estilhaçamento da pintura
e em seu todo, a música
de Schoenberg. 🎶
Essa imagem pictórica vai suscitar outro
diálogo, devir imagem de duas palavras –
água e preta – que, na leitura do título
do poema e antes da leitura de seu texto,
se acoplam enquanto signos e fendem-se,
mas o espaço entre elas é indeterminado,
ora micro, ora imenso; espaço vazio, porém
onde sensações de uma vida interagem
intensamente, as do passado contraído
e as de sua distensão no presente.
Disse André Bazin que os filmes
de Jean Renoir são feitos com a pele
das coisas.
Assim como – digo, experimento,
leio/vejo/sinto/penso – os poemas
de Florisvaldo Mattos.

Valdomiro Santana_____________🖊

Florisvaldo Mattos, poeta e jornalista; professor da UFBA e membro da ALB
        
Oh, grandíssimo Verçosa, rei tropical do haicai, que maravilha de análise poética e cultural, honrando-me de início a um fim grávido de sugestões artísticas e estéticas! Muito obrigado, amigo, ao me trazer de volta essa Água Preta, que já foi do Mocambo, agregada ao nome do rio que a banhava e ainda hoje banha, não se mesclada de esgotos e hediondos odores. Permita-me compartilhar, acrescentando talvez outras tantas travessuras verbais. Viva Água Preta, a que uma vez foi do Mocambo! Muito obrigado, repito.
E tem mais ainda, Verçosa, agora no livro "Estuário dos Dias e outros poemas", de 2017, com Água Preta presente, recordando tempos de "fari".
Veja adiante, inclusive também inéditos.

NA MADRUGADA FRIA

Súbito um ruído: em madrugada fria,
Vozes arrastam sacos transitando.
Zonzo, acordo, na rede em que dormia,
Lá fora, a noite, mas ninguém passando.
Pela casa só via gente andando.
Ainda na escuridão, já vindo o dia,
alguém com um saco de caroços pando,
e eu sem decifrar o que acontecia.
Sei agora. Essa de cacau trazer
Em tropa de burro para Água Preta
É coisa que não dá para entender.
Melhor nem perguntar, parece treta.
Quando, apitando, aponta o trem-de-carga
E para na estação da rua larga.

RUMO AO RIO QUE SOLETRA NUVENS

Passo por ruas, em esquinas dobro;

pacatos becos, silenciosas praças, 

ainda com luz em postes de madeira.

Ganhadores, carroças e aguadeiros.

Na tenda, o manequim empertigado

aguarda acabamentos do alfaiate

para a festa de Judas na Aleluia.

O padeiro imita uma voz do rádio

“Meu consolo é você, / meu grande amor, /

eu explico por que” – e desce a ladeira

enlaçado com a doida Cavaquinho.

A igreja benze a Rua do Cruzeiro,

o rio hospeda estrelas e jangadas.

As ruas de Água Preta tinham alma!

II

Aglomerado na barbearia

propala o que ditaram no gramado

rubro Atlanta e o Palestra todo azul.

A professora exige que a cartilha

tenha ritmo de música cantada

e som de passarinho no arvoredo.

No Bar de Maçu, o rádio-catedral

e o bilhar; o da Noite tem sinuca,

balcão com gim, cervejas e vermute.

Ainda posso ver, lá no jardim,

garotas e rapazes conversando.

Logo toca a sirene, é o Cine Glória,

chamando para o filme de Tarzan,

com meia-entrada de quinhentos réis. 


III

Sem as tristezas que depois virão,

as de ir embora, deixando-a para trás,

quero falar agora do Apertucho,

a minha sempre amada e quieta rua,

de moradas modestas e quitandas,

com seu lado aos meninos interdito;

o da casa onde mora Boi-inteiro,

alta negra de corpo e riso largos,

inferno de mulheres enciumadas.

“Puta, por que sempre aí sentada estás,

na porta, a sorrir para o meu marido?”

Como posso esquecer esse lugar?

Lá havia canto e sonho, havia um rio,

que deslizava soletrando nuvens.

IV

Aves em céu azul de brancas nuvens,

sítio embaixo de mangas e goiabas.

Mulheres debruçadas em janelas;

costuram, cosem, ou somente rezam.

Gamão e damas rolam na calçada;

jovens em babas, pescas e caçadas.

Regressando de nados e mergulhos,

corro para assistir o último instante

em que a tarde das águas se despede.

Vou lá dentro calçar os meus tamancos.

Sob pontilhão de ferro, no crepúsculo,

o rio segue namorando nuvens,

enquanto, morna, sem pedir licença,

a noite vem deitar nas suas margens.


BANHO NO POÇO DO CURTUME

Depois da ponte, a Fazenda Natal;

a casa azul, adiante, no caminho.

Na Avenida Baér, os carroceiros

acomodam arreios e alimárias.

De calças curtas ou calção de banho,

ia com o primo manco de menino,

sempre de tarde, quando o sol morria,

tomar banho no Poço do Curtume.

Moço cordato e companheiro que era,

ensinou-me a nadar no calmo rio. 

Comecei pelo nado-cachorrinho; 

logo braçadas e depois mergulhos,

só voltando de lá no lusco-fusco,

quando o sino dobrava Ave-Marias.


Estação da estrada-de-ferro, já sem o nome de Água Preta, mas já perto do fim


AO MUNDO DE CALÇA CURTA.

Há um tempo para tudo. Mala pronta,

banho tomado, ajeito a calça curta.

Primeiro, era subir a serra até o alto;

depois, descê-la para o Catolé,

o rio de águas turvas e beiradas

de canoa aguardando passageiro.

Alguém me levará para a estação

da Fazenda Cascata, éden rural,

que pulsa no esplendor da luz elétrica.

O lugar tem de um tudo, minha gente!

Farmácia, posto-médico, armazém,

escola, padaria e cabaré...

Por que deste alvoroço? É o trem-de-ferro,

que chega de vagões abarrotados. 


RECÉM-HOJE, RECÉM-IDO

​​                              Diz adeus à Alexandria que de ti se afasta.

​​​                                                                          (Konstantinos Kaváfis)


 “Vás encontrar o mundo”, repetia

Um que à luz de uma lâmpada de gás

Alheava fama de sabedoria.

Se confiar nele nunca foi demais,


Deixo Barro Vermelho para trás

E vou com os olhos pandos de alegria,

Na idade em que sonhar não é demais

(Verdade que descobrirei um dia).

Os dias passam. Sei que passam guerras;

Passam ódios e gulas de outras terras.

Agora, a alma de sons e aragens farta,

 

Junto ganhos e perdas, sento e busco,

Na paz imemorial do lusco-fusco,

Barro Vermelho que de mim se aparta.


SUAVES HORAS COR DE CINZA

                   Vais encontrar o mundo. (...) Coragem para a luta”

(Raul Pompeia)


Na noite de estrelas que me amadurecem,

Sento-me e abro mapa de interrogações.

Manhã cedo, quando a rua é calma e expectante,

a mãe prepara-me os apetrechos de viagem,

leva-me à porta e cobre-me de conselhos graves.

Saio e dobro a esquina já de cães ausentes.

Atrás, perscrutando o último sentido abraço,

turvos, fitam-me os olhos da silente casa.

Na estrada de cascalho e dúvidas empoeiradas,

aos solavancos de ônibus em tudo exausto,

miro a extensão das ânsias, o vasto horizonte

de razão e irrazão, que, tácito, adivinho,

pronto a vencer chão acerbo e chapada de erros,

enfiado em malha prévia de conceitos.  

De voz em solo gráfico, ouvira e já sabia:

Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta.               


DE TREM PARA ÁGUA PRETA


Na manhãzinha de um verão defunto,

repisando palavras, conselheira,

a mãe urdia na hora da partida,

igualmente a um martelo na bigorna.

“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.

A luz do livro guia o pensamento”.

Os dias disparando na folhinha,

subo no trem e vou para Água Preta.

Trilhos rangem. A máquina resfolga,

bafejando fumaça nos dormentes.

Como a vida, o trem passa e passará.

Chegar, parar, partir, é o seu destino,

sem que perdure vivo nos apitos

o pranto que ele deixa para trás.


NO TREM, COM CENTURIÕES

O trem-de-ferro para na estação.

Dentro da classe de janelas muitas,

sento-me na cadeira de palhinha.

Tez denunciando terras e distâncias,

fazendeiros de bota e paletó

penetram no vagão suando auroras.

De cenho carregado, dependuram,

no alto, o chapéu, esporas e o revólver.


As mulheres destrincham seus rosários.

Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.

Compadres são de justas e conquistas

(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).

Colecionando safras e plantios,

transpiram suor e orvalho. Nas capangas,

dormem papéis e ganhos, calendários.

Nunca delas sairá a última moeda.


Confiam num outono redentor,

em dias mergulhados na lavoura.

Pacíficos, serenos e domésticos,

não bebem aguardente, nem sorriem.

Sonharam, não mais sonham, esses machos.

Em tardes mansas de remotos sítios,

sem traficar afagos e carícias,

encharcaram de filhos castos ventres.


Logo velhas histórias de jagunços

desfilam entre gáudios outonais:

de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,

do que morreu de tiro noutro rio

(quietos Mocambo, Almada. Catolé).

Logo se dá notícia alvissareira:

cacaueiros esplendem de fartura,

com fruto encachoeirando pelo tronco.


Fugindo de centelhas e fuligem,

em meu traje de seda cintilante,

abro a janela e me debruço. Sopro

minha flauta vermelha de metal,

com que costumo celebrar instantes

em que o dia derrama suavidades

e saúdo os guriatãs e os curiós,

que se abancam nos postes de telégrafo.


A manhã solidária me convoca

a mirar a beleza das campinas,

na luz que pauta a música do dia.

A máquina suspira, o trem esbarra.

Guardo a flauta no bolso da camisa.

Súbito casas, uma praça, letras.

No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:

a vida é bela, há mais que desfrutar.


VELHAS ESTAÇÕES DE TREM


Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas

no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.


Ó trilhos dispersados na saudade,

curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.


Ainda vejo passar o maquinista,

o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.


Elas contam um tanto desta história,

a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.


Água Preta, Igreja de São José, concluída, depois de muitos anos em construção

CANÇÃO DE MENINO MODERNINHO


                                 É boquinha da noite

                                  no mundo que o menino impossível

                                  povoou sozinho!

                                              (Jorge de Lima)


Procuro na estante,

embaixo e em cima,

um livro prestante

de Jorge de Lima.


Sei lá onde está

o meu coração,

que bate (ô là là!)

por esta paixão.


Quem diz que seria

a Negra Fulô,

com sua alegria,

amor do Sinhô?

Morena levada,

que me preferia,

em cima da escada

já me sacudia.

 

Menina do beco,

morena da esquina,

no rastro do eco,

a gente bolina.


“Que é isso, menino!

Sai lá com teu rosto,

teu pé pequenino,

teu jeito mal posto”.


“Ah! Vai que me beija,

danado menino,

que fica na igreja

batendo no sino!”


Querendo apalpar

o peito franzino,

querendo mamar.

 “Sai pra lá, menino!”


A noite vem fina,

o sino tocou,

a doce menina

na esquina dobrou.


O MENINO, O PADRE E O SERMÃO 

 

Ao pé do padre, visto-me de rei,

pouco menos talvez que sacristão.

O padre olha-me. Sou um rude, sei,

incapaz de encantar-me com o sermão.

Muito mais me embevecem as ladainhas

das novenas de maio, a voz das moças.

Eu queria que todas fossem minhas

(o macaco que é bom não quebra louças).

Padre Luís San Juan do alto me olhava,

sem saber de que era que mais eu ria. 

O moderado tom com que falava

ao coração, sem vã filosofia?

Era o som das palavras, cristalino,

que fascinava os olhos do menino.    

(Folheando papéis antigos em 30/07/2013)


TARDE NA VÁRZEA COM CHUVA

A João Ubaldo Ribeiro

                        (“Não existe poesia sem infância”, ele disse)


A chuva há de passar... De quando em quando,

Um alarido vem pelo ar, fugidio.

Na tarde bruxuleante, além do rio,

Teles e Caboclinho estão jogando.


Não posso ver; a chuva me atrapalha.

Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.

Avanço a rua. Minha tia ralha.

(Nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”


Raiva. Bato três vezes na madeira.

Será que vai chover a tarde inteira?

Digam como lá estão os litigantes.


É agosto, sim, e chove sem parar.

Dentro, o menino quer comemorar

logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.


ANTENAS DE DOR E AFLIÇÃO


Na barbearia, um monte de pessoas

gargareja os milagres da pelota.

Buenos Aires, miragem que se perde

em distância de sonhos e aflições,

que todos nós sabíamos como era

o coração saindo pela boca.

Ai! De la Mata, Méndez, Perdenera,

magos Labruna e Félice Lostau,

a bola submissa indo de pé em pé

de uma linha-de-frente arrasadora.

Tesourinha, Zizinho, Heleno, Jair,

Chico, legenda de ídolos caídos,

sobre gramado de ódios eu renasço.

Glórias também se medem por soluços.


·       ONZE HERÓIS NA PAREDE


Como vemos os times do passado,

Se eles são todos sombras que se movem,

São retratos em céu desamparado

De sol em que na mente tardes chovem?

Foram só todos distração de instantes,

De sonhos que perduram na memória,

Na minha e na geral dos habitantes,

Que por imagens contam sua história,

Quando se sabe que passou a voga

Dos triunfos, e não mais o albor da trama

E a alegria de um jovem quando joga

Em campos de terra ou bendita grama.

        Mudas paredes nos devolvem dias

        Semelhantes a certas melodias.


Centro do que foi um dia Água Preta: a Rua do Cruzeiro e a Praça Miguel Baracho


SOL DA MANHÃ NO ROSTO DOS RAPAZES 

​​​                        Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.

​​​​                                                                                         Sosígenes Costa

Depois que o dia sepultou injúrias,

e o salário dormita na algibeira,

um aqui, outro ali, de andar gingado,

rapazes se distraem, ainda mornos

os rumores da guerra nos seus longes.

Deuses que são, esbaldam-se e se enroscam,

no cabaré de som e putas jovens,

com samba, choro e valsa, com foxtrote,

ao trombone-de-vara de Agenor.

Manhã cedo, sem queixas, sem remorsos,

transitam pela rua sentenciosa,

que os encobre com auréola de homens feitos.

Rindo, clamam que a aurora os justifique:

sem orgia, não há vida melhor.


SEMPRE UM PASSO PARA A FRENTE

Eu era um deles, para o que desse e viesse.

É tempo de mudar, todos sabemos.

A emoção logo cinge o pensamento,

que aparência lhe dá de um coração.

Jamais pertence a quem do sonho ausenta-se

o que se ganha após luta incessante.

Melhor atar-se à roda da fortuna,

porque a juventude, única, não volta.

A vida é sempre um passo para a frente,

mesmo que até depois de muitas voltas

a memória se torne único bem,

em que dias e noites resplandecem.

Bom ser íntegro em tudo a não ser nada,

dentro do mundo, humanamente livre.


VOZES DA MERCADORIA

Agora adeus às sensações bucólicas.

Agita-se o comércio; estou na vila.

Avisto ruas, becos, uma praça.

Na calçada de paralelepípedos,

Abre-se o sol risonho do dinheiro.

Aqui, o recanto da veneração,

que se reserva às tropas de cacau,

ao som das estaladas dos tropeiros;

lá, o sacro império da mercadoria:

tabuletas retumbam seda e mescla,

calças de brim, o luxo dos sapatos;

ali fregueses para casimiras.

Caixeiros de camisa-manga-curta

vendem as novidades dos estoques.


INSTANTÂNEOS NO MERCADO


Sem rabugem, nem asco, sem salmoura,

limpas (de saia, lenço e cinturão),

mulheres vão à feira, vão às vendas,

às frutas, aos legumes, mantimentos.

Tocam, apalpam, miram, provam, cheiram,

tagarelam dentro dos mercados.

Os homens regressando do trabalho,

exaustos, perambulam por bodegas, 

um trago lhes redime o corpo gasto,

e rumam para casa em lento passo,

para juntar amor e suor na alcova.

Dádiva contumaz da natureza,

lá fora a lua pela telha vã

sanciona o fruto de açoitada entranha.


COM A ALMA DA RUAS


As ruas de Água Preta começavam

Onde se perde a minha solidão.

Era no Apertucho que me esperavam

As alegrias de meu coração.


A Ruy Barbosa era uma rua enorme,

Que consumia o meu sonhar ligeiro,

Deixando para trás a do Cruzeiro,

A ouvir o som de uma canção que dorme.


Que irei fazer na Rua do Comércio,

Entre burros de cargas e tropeiros,

De calça nova, inutilmente, a ver se

O que me diz a lábia dos caixeiros

Não vale nada do que eu guardo mais,

Do campinho lá da Rua do Gás!

A DESCOBERTA DO MAR

                             Não, não íamos à praia. (...)

                                   Pois é, também não víamos o mar

                                   E as lagoas não compensavam.

                                                           (Ruy Espinheira Filho)

Eu também não via o mar.

Via o ribeirão e o brejo.

Vi depois um manso rio,

Onde aprendi a nadar.

Sonhava noites a fio.

No fundo havia o desejo

De sair e ver o mar.

Foi graças ao trem-de-ferro,

Que um dia parou na praça,

Com intenção de me lançar

Por um caminho sem erro,

E me levou para o mar.

Até me dava de graça

O contrário de um desterro.

Falam mais alto o meu sonho

E toda a minha alegria,

Com gosto de navegar.

Levei um susto medonho,

Tamanho mesmo do mar;

Com cores de epifania,

Era maior que o meu sonho.

Meu pai levou-me a um bar,

Que não comporta miçanga

(Ardente nome: Vesúvio!),

Um éden diante do mar.

Corre pelo ar um eflúvio,

Traço um sorvete de manga,

Satisfaz-me o bom-mirar.

Vastidão de azul e verde,

A se perder no horizonte,

No rastro de branca espuma!

Quanta alegria em se ver

De longe o quanto se esfuma,

Qual doce correr de fonte!

Na vida quanto se perde...

Um dia escrevi louronda,

Palavra de amor concreto,

Em folha depois sumida,

Na esteira de doida onda.

Uma lição para a vida:

Hoje sei em que dialeto

Um dia escrevi louronda.

Água, terra, fogo e ar,

Trouxe ao menino a ciência,

E muito mais. Quando busco

Uma rima para mar,

Seja aurora ou lusco-fusco,

Cá me diz a experiência:

Não há melhor do que bar.

A CASA BRANCA QUE VOAVA

Deixo a casa que para mim voava.

Sempre fincada estava, mas tinha asa.

Saltava serras, rios navegava;

corria em trilhos, sendo sempre casa.

 

Sentado num jardim, me concentrava,

mirando as árvores; em tarde rasa

de frescor, vinha e súbito pousava.

É pelo coração que o sonho vaza.

 

Era assim, por sobre horas e distâncias,

ela vindo aliviar as minhas ânsias,

às vezes, a sentia em minhas mãos.

 

Não sei se é o destino fatal das casas.

Sei que, sempre de nervo e mente sãos,

vezes acordo sob aquelas asas. 


VATICÍNIO

Na última página,

O último verso.

Ah, que vontade

Fosse um regresso!



Quebra de cacau, cultura que marca a história tanto de Água Preta, como de Uruçuca

(Observação: a série de poemas que se inserem nesta postagem provêm do livro Estuário dos Dias e outros poemas (Salvador: Caramurê, 2017) e inéditos, da autoria de Florisvaldo Mattos).

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