MUITO OBRIGADO, VERÇOSA, POR ESTE NADAR
EM RIO HOJE DE RISOS, LÁGRIMAS E SAUDADE!
RUMO AO RIO QUE SOLETRA NUVENS
I
Passo por ruas, em esquinas dobro;
pacatos becos, silenciosas praças,
ainda com luz em postes de madeira.
Ganhadores, carroças e aguadeiros.
Na tenda, o manequim empertigado
aguarda acabamentos do alfaiate
para a festa de Judas na Aleluia.
O padeiro imita uma voz do rádio
- “Meu consolo é você, / meu grande amor, /
eu explico por que” – e desce a ladeira
enlaçado com a doida Cavaquinho.
A igreja benze a Rua do Cruzeiro,
o rio hospeda estrelas e jangadas.
As ruas de Água Preta tinham alma!
II
Aglomerado na barbearia
propala o que ditaram no gramado
rubro Atlanta e o Palestra todo azul.
A professora exige que a cartilha
tenha ritmo de música cantada
e som de passarinho no arvoredo.
No Bar de Maçu, o rádio-catedral
e o bilhar; o da Noite tem sinuca,
balcão com gim, cervejas e vermute.
Ainda posso ver, lá no jardim,
garotas e rapazes conversando.
Logo toca a sirene, é o Cine Glória,
chamando para o filme de Tarzan,
com meia-entrada de quinhentos réis.
III
Sem as tristezas que depois virão,
as de ir embora, deixando-a para trás,
quero falar agora do Apertucho,
a minha sempre amada e quieta rua,
de moradas modestas e quitandas,
com seu lado aos meninos interdito;
o da casa onde mora Boi-inteiro,
alta negra de corpo e riso largos,
inferno de mulheres enciumadas.
“Puta, por que sempre aí sentada estás,
na porta, a sorrir para o meu marido?”
Como posso esquecer esse lugar?
Lá havia canto e sonho, havia um rio,
que deslizava soletrando nuvens.
IV
Aves em céu azul de brancas nuvens,
sítio embaixo de mangas e goiabas.
Mulheres debruçadas em janelas;
costuram, cosem, ou somente rezam.
Gamão e damas rolam na calçada;
jovens em babas, pescas e caçadas.
Regressando de nados e mergulhos,
corro para assistir o último instante
em que a tarde das águas se despede.
Vou lá dentro calçar os meus tamancos.
Sob pontilhão de ferro, no crepúsculo,
o rio segue namorando nuvens,
enquanto, morna, sem pedir licença,
a noite vem deitar nas suas margens.
Depois da ponte, a Fazenda Natal;
a casa azul, adiante, no caminho.
Na Avenida Baér, os carroceiros
acomodam arreios e alimárias.
De calças curtas ou calção de banho,
ia com o primo manco de menino,
sempre de tarde, quando o sol morria,
tomar banho no Poço do Curtume.
Moço cordato e companheiro que era,
ensinou-me a nadar no calmo rio.
Comecei pelo nado-cachorrinho;
logo braçadas e depois mergulhos,
só voltando de lá no lusco-fusco,
quando o sino dobrava Ave-Marias.
AO MUNDO DE CALÇA CURTA.
Há um tempo para tudo. Mala pronta,
banho tomado, ajeito a calça curta.
Primeiro, era subir a serra até o alto;
depois, descê-la para o Catolé,
o rio de águas turvas e beiradas
de canoa aguardando passageiro.
Alguém me levará para a estação
da Fazenda Cascata, éden rural,
que pulsa no esplendor da luz elétrica.
O lugar tem de um tudo, minha gente!
Farmácia, posto-médico, armazém,
escola, padaria e cabaré...
Por que deste alvoroço? É o trem-de-ferro,
que chega de vagões abarrotados.
RECÉM-HOJE, RECÉM-IDO
Diz adeus à Alexandria que de ti se afasta.
(Konstantinos Kaváfis)
“Vás encontrar o mundo”, repetia
Um que à luz de uma lâmpada de gás
Alheava fama de sabedoria.
Se confiar nele nunca foi demais,
Deixo Barro Vermelho para trás
E vou com os olhos pandos de alegria,
Na idade em que sonhar não é demais
(Verdade que descobrirei um dia).
Os dias passam. Sei que passam guerras;
Passam ódios e gulas de outras terras.
Agora, a alma de sons e aragens farta,
Junto ganhos e perdas, sento e busco,
Na paz imemorial do lusco-fusco,
Barro Vermelho que de mim se aparta.
SUAVES HORAS COR DE CINZA
“Vais encontrar o mundo. (...) Coragem para a luta”
(Raul Pompeia)
Na noite de estrelas que me amadurecem,
Sento-me e abro mapa de interrogações.
Manhã cedo, quando a rua é calma e expectante,
a mãe prepara-me os apetrechos de viagem,
leva-me à porta e cobre-me de conselhos graves.
Saio e dobro a esquina já de cães ausentes.
Atrás, perscrutando o último sentido abraço,
turvos, fitam-me os olhos da silente casa.
Na estrada de cascalho e dúvidas empoeiradas,
aos solavancos de ônibus em tudo exausto,
miro a extensão das ânsias, o vasto horizonte
de razão e irrazão, que, tácito, adivinho,
pronto a vencer chão acerbo e chapada de erros,
enfiado em malha prévia de conceitos.
De voz em solo gráfico, ouvira e já sabia:
Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta.
DE TREM PARA ÁGUA PRETA
Na manhãzinha de um verão defunto,
repisando palavras, conselheira,
a mãe urdia na hora da partida,
igualmente a um martelo na bigorna.
“Vai, filho, estude, aprenda; escreva e leia.
A luz do livro guia o pensamento”.
Os dias disparando na folhinha,
subo no trem e vou para Água Preta.
Trilhos rangem. A máquina resfolga,
bafejando fumaça nos dormentes.
Como a vida, o trem passa e passará.
Chegar, parar, partir, é o seu destino,
sem que perdure vivo nos apitos
o pranto que ele deixa para trás.
NO TREM, COM CENTURIÕES
O trem-de-ferro para na estação.
Dentro da classe de janelas muitas,
sento-me na cadeira de palhinha.
Tez denunciando terras e distâncias,
fazendeiros de bota e paletó
penetram no vagão suando auroras.
De cenho carregado, dependuram,
no alto, o chapéu, esporas e o revólver.
As mulheres destrincham seus rosários.
Sentam-se. Todos sabem de onde vêm.
Compadres são de justas e conquistas
(Cordolino, Adjovânio, Pedro Longo...).
Colecionando safras e plantios,
transpiram suor e orvalho. Nas capangas,
dormem papéis e ganhos, calendários.
Nunca delas sairá a última moeda.
Confiam num outono redentor,
em dias mergulhados na lavoura.
Pacíficos, serenos e domésticos,
não bebem aguardente, nem sorriem.
Sonharam, não mais sonham, esses machos.
Em tardes mansas de remotos sítios,
sem traficar afagos e carícias,
encharcaram de filhos castos ventres.
Logo velhas histórias de jagunços
desfilam entre gáudios outonais:
de um que se foi na Barra do Zé-Bicho,
do que morreu de tiro noutro rio
(quietos Mocambo, Almada. Catolé).
Logo se dá notícia alvissareira:
cacaueiros esplendem de fartura,
com fruto encachoeirando pelo tronco.
Fugindo de centelhas e fuligem,
em meu traje de seda cintilante,
abro a janela e me debruço. Sopro
minha flauta vermelha de metal,
com que costumo celebrar instantes
em que o dia derrama suavidades
e saúdo os guriatãs e os curiós,
que se abancam nos postes de telégrafo.
A manhã solidária me convoca
a mirar a beleza das campinas,
na luz que pauta a música do dia.
A máquina suspira, o trem esbarra.
Guardo a flauta no bolso da camisa.
Súbito casas, uma praça, letras.
No alto, leio: ÁGUA PRETA. E logo penso:
a vida é bela, há mais que desfrutar.
VELHAS ESTAÇÕES DE TREM
Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.
Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.
Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios, lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.
Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.
CANÇÃO DE MENINO MODERNINHO
É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!
(Jorge de Lima)
Procuro na estante,
embaixo e em cima,
um livro prestante
de Jorge de Lima.
Sei lá onde está
o meu coração,
que bate (ô là là!)
por esta paixão.
Quem diz que seria
a Negra Fulô,
com sua alegria,
amor do Sinhô?
Morena levada,
que me preferia,
em cima da escada
já me sacudia.
Menina do beco,
morena da esquina,
no rastro do eco,
a gente bolina.
“Que é isso, menino!
Sai lá com teu rosto,
teu pé pequenino,
teu jeito mal posto”.
“Ah! Vai que me beija,
danado menino,
que fica na igreja
batendo no sino!”
Querendo apalpar
o peito franzino,
querendo mamar.
“Sai pra lá, menino!”
A noite vem fina,
o sino tocou,
a doce menina
na esquina dobrou.
O MENINO, O PADRE E O SERMÃO
Ao pé do padre, visto-me de rei,
pouco menos talvez que sacristão.
O padre olha-me. Sou um rude, sei,
incapaz de encantar-me com o sermão.
Muito mais me embevecem as ladainhas
das novenas de maio, a voz das moças.
Eu queria que todas fossem minhas
(o macaco que é bom não quebra louças).
Padre Luís San Juan do alto me olhava,
sem saber de que era que mais eu ria.
O moderado tom com que falava
ao coração, sem vã filosofia?
Era o som das palavras, cristalino,
que fascinava os olhos do menino.
(Folheando papéis antigos em 30/07/2013)
TARDE NA VÁRZEA COM CHUVA
A João Ubaldo Ribeiro
(“Não existe poesia sem infância”, ele disse)
A chuva há de passar... De quando em quando,
Um alarido vem pelo ar, fugidio.
Na tarde bruxuleante, além do rio,
Teles e Caboclinho estão jogando.
Não posso ver; a chuva me atrapalha.
Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo.
Avanço a rua. Minha tia ralha.
(Nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!”
Raiva. Bato três vezes na madeira.
Será que vai chover a tarde inteira?
Digam como lá estão os litigantes.
É agosto, sim, e chove sem parar.
Dentro, o menino quer comemorar
logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes.
ANTENAS DE DOR E AFLIÇÃO
Na barbearia, um monte de pessoas
gargareja os milagres da pelota.
Buenos Aires, miragem que se perde
em distância de sonhos e aflições,
que todos nós sabíamos como era
o coração saindo pela boca.
Ai! De la Mata, Méndez, Perdenera,
magos Labruna e Félice Lostau,
a bola submissa indo de pé em pé
de uma linha-de-frente arrasadora.
Tesourinha, Zizinho, Heleno, Jair,
Chico, legenda de ídolos caídos,
sobre gramado de ódios eu renasço.
Glórias também se medem por soluços.
· ONZE HERÓIS NA PAREDE
Como vemos os times do passado,
Se eles são todos sombras que se movem,
São retratos em céu desamparado
De sol em que na mente tardes chovem?
Foram só todos distração de instantes,
De sonhos que perduram na memória,
Na minha e na geral dos habitantes,
Que por imagens contam sua história,
Quando se sabe que passou a voga
Dos triunfos, e não mais o albor da trama
E a alegria de um jovem quando joga
Em campos de terra ou bendita grama.
Mudas paredes nos devolvem dias
Semelhantes a certas melodias.
Centro do que foi um dia Água Preta: a Rua do Cruzeiro e a Praça Miguel Baracho
SOL DA MANHÃ NO ROSTO DOS RAPAZES
Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Sosígenes Costa
Depois que o dia sepultou injúrias,
e o salário dormita na algibeira,
um aqui, outro ali, de andar gingado,
rapazes se distraem, ainda mornos
os rumores da guerra nos seus longes.
Deuses que são, esbaldam-se e se enroscam,
no cabaré de som e putas jovens,
com samba, choro e valsa, com foxtrote,
ao trombone-de-vara de Agenor.
Manhã cedo, sem queixas, sem remorsos,
transitam pela rua sentenciosa,
que os encobre com auréola de homens feitos.
Rindo, clamam que a aurora os justifique:
sem orgia, não há vida melhor.
SEMPRE UM PASSO PARA A FRENTE
Eu era um deles, para o que desse e viesse.
É tempo de mudar, todos sabemos.
A emoção logo cinge o pensamento,
que aparência lhe dá de um coração.
Jamais pertence a quem do sonho ausenta-se
o que se ganha após luta incessante.
Melhor atar-se à roda da fortuna,
porque a juventude, única, não volta.
A vida é sempre um passo para a frente,
mesmo que até depois de muitas voltas
a memória se torne único bem,
em que dias e noites resplandecem.
Bom ser íntegro em tudo a não ser nada,
dentro do mundo, humanamente livre.
VOZES DA MERCADORIA
Agora adeus às sensações bucólicas.
Agita-se o comércio; estou na vila.
Avisto ruas, becos, uma praça.
Na calçada de paralelepípedos,
Abre-se o sol risonho do dinheiro.
Aqui, o recanto da veneração,
que se reserva às tropas de cacau,
ao som das estaladas dos tropeiros;
lá, o sacro império da mercadoria:
tabuletas retumbam seda e mescla,
calças de brim, o luxo dos sapatos;
ali fregueses para casimiras.
Caixeiros de camisa-manga-curta
vendem as novidades dos estoques.
INSTANTÂNEOS NO MERCADO
Sem rabugem, nem asco, sem salmoura,
limpas (de saia, lenço e cinturão),
mulheres vão à feira, vão às vendas,
às frutas, aos legumes, mantimentos.
Tocam, apalpam, miram, provam, cheiram,
tagarelam dentro dos mercados.
Os homens regressando do trabalho,
exaustos, perambulam por bodegas,
um trago lhes redime o corpo gasto,
e rumam para casa em lento passo,
para juntar amor e suor na alcova.
Dádiva contumaz da natureza,
lá fora a lua pela telha vã
sanciona o fruto de açoitada entranha.
COM A ALMA DA RUAS
As ruas de Água Preta começavam
Onde se perde a minha solidão.
Era no Apertucho que me esperavam
As alegrias de meu coração.
A Ruy Barbosa era uma rua enorme,
Que consumia o meu sonhar ligeiro,
Deixando para trás a do Cruzeiro,
A ouvir o som de uma canção que dorme.
Que irei fazer na Rua do Comércio,
Entre burros de cargas e tropeiros,
De calça nova, inutilmente, a ver se
O que me diz a lábia dos caixeiros
Não vale nada do que eu guardo mais,
Do campinho lá da Rua do Gás!
A DESCOBERTA DO MAR
Não, não íamos à praia. (...)
Pois é, também não víamos o mar
E as lagoas não compensavam.
(Ruy Espinheira Filho)
Eu também não via o mar.
Via o ribeirão e o brejo.
Vi depois um manso rio,
Onde aprendi a nadar.
Sonhava noites a fio.
No fundo havia o desejo
De sair e ver o mar.
Foi graças ao trem-de-ferro,
Que um dia parou na praça,
Com intenção de me lançar
Por um caminho sem erro,
E me levou para o mar.
Até me dava de graça
O contrário de um desterro.
Falam mais alto o meu sonho
E toda a minha alegria,
Com gosto de navegar.
Levei um susto medonho,
Tamanho mesmo do mar;
Com cores de epifania,
Era maior que o meu sonho.
Meu pai levou-me a um bar,
Que não comporta miçanga
(Ardente nome: Vesúvio!),
Um éden diante do mar.
Corre pelo ar um eflúvio,
Traço um sorvete de manga,
Satisfaz-me o bom-mirar.
Vastidão de azul e verde,
A se perder no horizonte,
No rastro de branca espuma!
Quanta alegria em se ver
De longe o quanto se esfuma,
Qual doce correr de fonte!
Na vida quanto se perde...
Um dia escrevi louronda,
Palavra de amor concreto,
Em folha depois sumida,
Na esteira de doida onda.
Uma lição para a vida:
Hoje sei em que dialeto
Um dia escrevi louronda.
Água, terra, fogo e ar,
Trouxe ao menino a ciência,
E muito mais. Quando busco
Uma rima para mar,
Seja aurora ou lusco-fusco,
Cá me diz a experiência:
Não há melhor do que bar.
A CASA BRANCA QUE VOAVA
Deixo a casa que para mim voava.
Sempre fincada estava, mas tinha asa.
Saltava serras, rios navegava;
corria em trilhos, sendo sempre casa.
Sentado num jardim, me concentrava,
mirando as árvores; em tarde rasa
de frescor, vinha e súbito pousava.
É pelo coração que o sonho vaza.
Era assim, por sobre horas e distâncias,
ela vindo aliviar as minhas ânsias,
às vezes, a sentia em minhas mãos.
Não sei se é o destino fatal das casas.
Sei que, sempre de nervo e mente sãos,
vezes acordo sob aquelas asas.
VATICÍNIO
Na última página,
O último verso.
Ah, que vontade
Fosse um regresso!
Quebra de cacau, cultura que marca a história tanto de Água Preta, como de Uruçuca
(Observação: a série de poemas que se inserem nesta postagem provêm do livro Estuário dos Dias e outros poemas (Salvador: Caramurê, 2017) e inéditos, da autoria de Florisvaldo Mattos).
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