Sabe-se que a lírica de Laforgue se encontra na base da linguagem poética de Ezra Pound e de T. S. Eliot, em sua primeira fase, e que grande se faz seu impacto sobre os Surrealistas. É também conhecida a influência que exerceu sobre os poetas brasileiros, como Pedro Kilkerry (1885-1917), Marcelo Gama (1878-1915), Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e outros2. Suas composições têm sido vertidas para o português, notadamente, na contemporaneidade, por Régis Bonvicino, o que reforça a importância na aceitação do poeta francês entre nós. Por outro lado, ainda confirmando essa recepção altamente positiva, cabe registrar-se uma cena de que alguns têm conhecimento, ocorrida na Bahia, neste ano de 2015 - quando transcorre o 155o aniversário de nascimento do bardo francês -, em que um poeta se comove, ao ler “Soir de Carnaval”, de Jules Laforgue, a ponto de passar a dialogar com este, desenvolvendo o tema poetizado, como numa fuga de Beethoven, e escrevendo versos e mais versos. Trata-se de Florisvaldo Mattos, que, nesse, dir-se-ia, êxtase mágico, que só aos poetas é dado experimentar, constrói um longo poema3, ainda inédito, “Visões de Éden súbito contemplado”, no qual, instigado pelo poema “Soir de Carnaval”, propõe-se a perscrutar vivências “no tempo em que o Homem não existia”, prestando uma homenagem cativante ao simbolista francês, presente na epígrafe de seu poema, que conclui com os versos “Da janela, a manhã me justifica, / imaginando o que pensou Laforgue, / na sua perfeição antropomórfica, / em noite de gelado Carnaval.”O Simbolismo foi teorizado por Jean Moréas (ou Jean Papadiamantopoulos; grego de nascimento). No seu “Manifeste du Symbolisme”, publicado no jornal Le Figaro, de 18 de setembro de 1886, Moréas proclama que a poesia buscará nas aparências sensíveis “leurs affinités ésotériques [accessibles aux seuls initiés] avec des Idées primordiales”. Esse mesmo teórico não demora, todavia, a romper com os simbolistas e funda, em 1891, a école romane, que adota sobriedade de inspiração e técnica inteiramente clássica, ao modo dos poetas da Plêiade (século XVI).Breve, a vida de Jules Laforgue: durou apenas 27 anos. Além de breve, difícil e triste, pois era pobre, doente e de temperamento pessimista. Nasce em Montevidéu, assim como Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont, e Jules Supervielle; sua família retorna à França, em 1866, instalando-se primeiramente em Tarbes, no sul da França, e transferindo-se para Paris, em 1877. Infeliz, seus infortúnios crescem com a morte da mãe, em 1877; apoia-se, então, na irmã, em procura da ternura a que sua alma aspira. Em 1880, conhece o escritor Paul Bourget, que se torna seu protetor e o encaminha para o cargo de leitor, em Berlim, da imperatriz Augusta de Saxe-Weimar, avó do futuro Guilherme II; no dia de sua partida, fica sabendo do falecimento do pai, em Tarbes, mas, novo choque emocional, viaja, impedido de assistir ao enterro. Permanece na função, em Berlim, de 1881 a 1886. Nesta data, volta à França, casa-se, em Londres, com a inglesa Leah Lee e o casal se instala em Paris, onde ele vem a falecer de tuberculose no ano seguinte, quatro dias após ter completado 27 anos.As obras completas de Jules Laforgue (Oeuvres complètes) vieram a lume em 1901-1903, com o selo da Editora Mercure de France.O Simbolismo são tendências diversas de um movimento literário, no final do século XIX, cujo traço característico é sugerir mais do que expressar. O poeta busca dardejar diretamente a sensibilidade do leitor, transmitindo-lhe as emoções fugitivas e obscuras que o assaltam, no momento da composição, procedendo à evocação de sentimentos instáveis e profundos. Nessa feitura, contrapõe-se às normas da retórica que privilegiam a inteligência, no embasamento da lírica até então em vigor, para tentar se aproximar da música, com o despertar para um sortilégio mágico que conduz ao mundo do sonho. Para o Simbolismo, a essência da realidade não é palpável, é fluida e se alicerça no mistério.Na elucidação das duas versões Simbolismo/Decadentismo, convém recorrer à observação do momento histórico que se vive. O Simbolismo se instala na França em um período de grandes perturbações políticas, com os acontecimentos sangrentos de 1870 e 1871, a queda do Segundo Império, a capitulação de Sedan, a Comuna de Paris, a instabilidade da Terceira República em seus primórdios, perturbações estas que não afetam os escritos de Verlaine, Mallarmé e Rimbaud, obras eminentemente atemporais. Já os poetas chamados de decadentistas, Jules Laforgue entre estes, ofuscam-se com as desordens desse período sombrio e criam, como forma de escapismo, versos que se enquadram na atmosfera propícia aos prazeres sensuais e às sensações extravagantes, eivados de pessimismo.
O leitor encontra facilmente ilustração para essas particularidades estilísticas, percorrendo sua obra. Inclusive, a leitura desta, no caso de dificuldades na aquisição de livros, permanece accessível pelo acesso à Internet.
Resta ainda, para concluir este ensaio, examinar o poema “Soir de Carnaval” e tentar justificar a proposta que se concretizou com relação à tradução aqui apresentadPoema tipicamente laforguiano, “Soir de Carnaval” lembra aqueles quadros, não assinados, de pintores célebres, achados ao acaso em algum porão ou depósito de coisas velhas e que subitamente são reconhecidos pelos especialistas. Um conhecedor da lírica simbolista e decadentista francesa certamente reconheceria a pena que traçou a escritura desses versos, especificidade idiossincrática que se buscará destacar na presente análise. A composição do poema não se enquadra, como “L’hiver qui vient”, a que se fez referência acima, no esquema dos versos livres, invenção, todavia, às vezes atribuída a Jules Laforgue, como também já se afirmou aqui.
Construído em alexandrinos, rimados, “Soir de Carnaval” compõe-se de seis quartetos. Os vocábulos iniciais do poema, quatro palavras que compõem o primeiro hemistíquio do verso introdutório, vazado numa configuração clássica (“Paris chahute au gaz” - v. 1), colocam a cena que vai ser glosada no poema, com especificação do lugar, a capital francesa evocada pela denominação que lhe é própria, o momento em que é observada, tratando-se de uma cena noturna, denotada por sinédoque, e o objeto da observação, a cidade que se embala, ao passo da dança. Atenção merece ser dada ao verbo chahuter, que já introduz um tom próprio da linguagem de Laforgue. Significa “dançar o chahut”, uma dança indecente e vulgar, em moda nos meados do século XIX, segundo os dicionários Littré (do século XIX) e Robert (que considera essa acepção um arcaísmo). O termo não é mais utilizado hodiernamente nesse sentido, significando hoje “bagunçar” e aplicando-se sobretudo aos estudantes, ao promoverem desordem, com gritaria, vaias e barulho, em sala de aula, na presença do professor e, subsidiariamente, a uma situação análoga, como um público em repúdio a um conferencista. O uso de uma palavra não nobre, que denota um ato vulgar, faz parte dos procedimentos estilísticos de Jules Laforgue e já serve como uma assinatura para o poema.
Se a assinatura Jules Laforgue, no primeiro hemistíquio, é de tipo vocabular, no segundo é através de seu pessimismo que ela vem à baila, “L’horloge comme un glas” (v. 1), sendo comparado com um dobre fúnebre de sinos o relógio que ouve tocar e que vai soar uma hora, por encadeamento ou enjambement, com o verso seguinte: “Sonne une heure” (v. 2). Um toque só; mas o poeta o percebe como funesto e lúgubre. Desperta-lhe a morte. Imediatamente, quase arrependido de estar triste, convoca a alegria, “Chantez! dansez!” (v. 2). Desencantado por sua experiência de miséria e infelicidade, dá-se conta de que os divertimentos do Carnaval se efetivam não com o objetivo de serem gozados, mas como uma forma de consolo, porque “la vie est brève” (v. 2) e “Tout est vain” (v. 3).
Nova assinatura do poeta surge ainda na primeira estrofe, com a presença da lua, sonhadora e fria: “[...] - et, là-haut, voyez, la Lune rêve / Aussi froide qu’aux temps où l’Homme n’était pas” (v. 3-4). Companheira inseparável do poeta – autor, não por acaso, de L’Imitation de Notre-Dame la Lune (1886) –, frequentemente a lua se mostra em suas composições, assim, ela aparece, em “L’hiver qui vient”, insignificante e, estranho, como planeta (“c’est la saison et la planète falote!”5) e aponta risonha, para o personagem pantomímico e carnavalesco, nas “Variations sur le mot ‘Falot, Falote’ “:
Falot, falote!Un chien aboitEt puis se noie, taïaut, taïaut!
La Lune, voyant ces ballets,Falot ! Falot!
Paris chahute au gaz. L’horloge comme un glas
Sonne une heure. Chantez! dansez! la vie est br
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 1-2)
Na terceira estrofe, o tom da fala poética se eleva e o poeta abandona o nível do quotidiano e do dia-a-dia, para se movimentar nas altas esferas do conhecimento, especialmente da História, no caso. Com efeito, o poeta se pergunta onde despertar o eco de todos esses gritos e lágrimas:
Ces fanfares d’orgueil que Babylone
Memphis, Bénarès, Thèbes, Rome
Ruines où le vent sème aujourd’hui des fleurs
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 10-11)
Ao contemplar as grandes civilizações que se destacaram na História, constata que as cidades que alcançaram o apogeu do desenvolvimento, quer seja na Mesopotâmia, no Egito faraônico, na Índia ou entre os romanos, depois decaíram e esfumaçaram-se em ruínas. Assim, nem a História fornece ao poeta guarida para suas mágoas.
Na estrofe seguinte, a quarta, faz-se um retorno ao patamar pessoal, o poeta volta-se para dentro de si. O pessimismo da voz decadentista própria a Laforgue vem à tona e ele se desespera: pensa na morte (“Et moi, combien de jours me reste-t-il à vivre?” – v. 13), joga-se no chão, grita e estremece. Depara-se com o nada, não se encontrando salvação nem na religião (“Dans le néant sans coeur dont nul dieu ne délivre” – v. 16).
Após divagações sobre os infortúnios que consternam a alma do poeta, já prenunciadas na primeira estrofe e que se estendem, com exclusividade de tratamento, nas estrofes 2, 3 e 4, há, na quinta estrofe, uma volta ao tema inicial, Paris que se diverte, numa noite de Carnaval. À cena introdutória, contida nos dois versos inaugurais e já anunciada no título da composição, na qual se capta uma visão de conjunto da festa, substitui-se agora, nesse quinto quarteto, uma cena pontual, direcionada para um indivíduo. Filtrada por seu olhar decadentista, o poeta flagra um operário, completamente embriagado, que retorna da festa, não à procura de seu doce lar, mas que caminha, ao acaso, em busca de um qualquer ignóbil reduto:Et voici que j’entends, dans la paix de la nuit,
Un pas sonore, un chant mélancolique et bête
D’ouvrier ivre-mort qui revient de la fête
Et regagne au hasard quelque ignoble réduit.
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 17-20)
A sexta estrofe retoma a temática da tristeza da vida, “incurablement triste” (v. 21) e o poeta conclui, com angústia, que tudo na vida é vaidade, “Aux fêtes d’ici-bas, j’ai toujours sangloté: / “Vanité, vanité, tout n’est que vanité!” (v. 23-24). Antes de lançar sua verdadeira conclusão:
- Puis, je songeais: où sont les cendres
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 24)
O derradeiro verso do poema constitui, não o esboço de um riso irônico, muitas vezes considerado uma marca da lírica de Jules Laforgue, mas, sem chegar a ser uma gargalhada, é uma risada que ele dá, a significar que não se leva a sério, que graceja quando discorre sobre a vaidade humana e sobre a brevidade da vida. Temática, entretanto, mor da lírica laforguiana. Poeta sem ilusões.
Esse derradeiro verso é também um piscar de olhos para Villon (1431 -?) – o grande poeta francês, de vida desordenada e desregrada, agressivo com os poderosos, mas de grande ternura para seus irmãos de miséria. Na “Ballade des dames du temps jadis”7, Villon, ao modular sobre a graça frágil de mulheres ilustres que se foram deste mundo, não martela sobre idêntica fragilidade da vida, com o refrão “Mais où sont les neiges d’antan?” ? Parece pertinente registrar-se uma idêntica metrificação, em octossílabos, na construção dos dois segmentos aqui postos em para
Mas, o que o rei Davi, o salmista, vem mesmo fazer aqui? Mistério! Mistério da voz poética de Jules Laforgue. Esse simbolista francês que, no século XXI, continua a seduzir alguns leitores. Se não são numerosos, os seduzidos, poderão eles ao menos bradar, com outro poeta, “we few, happy few.”
NOTAS
1Agradecemos a Heloísa Prata Prazeres Pedra e a Florisvaldo Mattos nos terem posto em contacto com “Soir de Carnaval”, essa joia poética da literatura francesa, sugerindo tanto a tradução do poema como a elaboração destas notas, para publicação.
2Cf. especialmente Flavia Togni do Lago. Manuel Bandeira e Jules Laforgue: Dor, ironia. Universidade de São Paulo, 2012; e Aline Taís Cara. Jules Laforgue e Carlos Drummond de Andrade: a ironia e a construção do gauche, 2015 (Fonte: Internet).
3Setenta e seis versos, distribuídos, na versão que conhecemos, em um quarteto introdutório, seguido de nove oitavas.
4Manuel Bandeira, no ensaio “Poesia e verso” comenta, com certo humor, a respeito da elaboração dos versos livres: “[...] À primeira vista, parece mais fácil de fazer [o verso livre] do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar seu ritmo sem auxílio de fora. [...] Sem dúvida, não custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas irregulares, obedecendo tão somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se fosse, qualquer um poderia pôr em verso até o último relatório do Ministro da Fazenda”. In: Norma Goldstein. Versos, sons, ritmos, p. 37.
5Cf. LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. Op. cit., 1969, p. 543.
6Cf. CLANCIER. Op. cit. p. 118.
7Cf. O poema “Ballade des dames du temps jadis” , de François Villon. In: LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. Op. cit., 1963, pp. 215-21.
REFERÊNCIAS
CLANCIER, Georges Emmanuel. Panorama critique de Rimbaud au Surréalisme. Paris: Pierre Seghers Éditeur, 1955, pp. 113-126.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2000._______________________________. XIXe siècle. Les grands auteurs français au programme. Paris: Bordas, 1969.
LANSON, Gustave. Histoire de La littérature française. Paris: Librairie Hachette, 1957.
LITTRÉ, Émile. Dictionnaire de la langue française. Paris: 1863-1872 (supl. 1877) (1a edição); Paris: Gallimard/Hachette, 1975.
ROBERT, Paul. Le Petit Robert. Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française, de Paul Robert, avec la collaboration de Alain Rey et Josette Rey-Debove. Paris: Paul Robert, Société du nouveau Littré, 1994. (1a edição: 1967)
A Autora:
Celina Scheinowitz é Doutora em Letras pela Universidade de Paris IV, Paris-Sorbonne, com pós-doutorado pela École des Hautes Études (França); aposentada da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana. Publicou artigos e livros, entre os quais L. S. Senghor, Élégies (L'Harmattan, 2009) e Les affres de l'inhumanité: défi romanesque de Frankétienne (Éditions Avenir, 2012).
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