Pablo Neruda, voz universal da poesia latino-americana
PABLO NERUDA:
a travessia dos andes em dois tempos
FLORISVALDO MATTOS[i]
1 O POETA, O HUMANISTA, O POLÍTICO
Ainda
sob o impacto da notícia da morte de Pablo Neruda, no dia seguinte ao duro
momento, 24 de setembro de 1973, encerrava eu um poema (“Trânsito em Isla
Negra”) com estes versos: “estavas
só/quando sobre ti fincou o tempo/
inumeral residência e rodas. / Mais do que sombra. Cimento” (MATTOS,
1975, p. 39). Dedicado à memória do poeta chileno, parecia resumir a um só
tempo o tenebroso e metálico silêncio com que cercaram seu velório medidas
impostas pelo golpe militar, que doze dias antes matara o presidente Salvador
Allende (11 de setembro de 1973), impondo sangrenta ditadura ao Chile, e a
certeza de que sua voz de poeta sul-americano projetaria sua influência por um
largo tempo no universo ibero-americano.
Após
quase meio século, vemos que são hoje quatro os poetas chilenos, Gabriela
Mistral (1889-1957), Vicente Huidobro (1893-1948), Pablo Neruda (1904-1973) e o
que morreu longevo, Nicanor Parra (1914-2017), cuja voz alcançou dimensão
universal, frequentando sucessivas antologias. Desses quatro, dois (Mistral,
1945; Neruda, 1971) fizeram com que a poesia de um pequeno país, cuja forma
geográfica semelha a de um réptil ou lagarta, no mapa da América do Sul,
alcançasse o Macchu Picchu do reconhecimento internacional, o Prêmio Nobel de
Literatura.
Enquanto
viveu, Pablo Neruda era considerado pela crítica o poeta de maior importância e
um dos mais influentes no plano geral da poesia hispano-americana, avaliação
centrada nas mais de quatro dezenas de livros por ele publicados, desde 1921 a
1969 e dotados de uma clara unidade interior, compostos de ciclos e fases
coerentes, mesmo considerando os contrapontos dialéticos que conduzem sua
poesia de uma dicção moderna, de acento neo-romântico, a etapas de maior força
criativa, para repentinamente mudar de rumo após experiência de jovem
intelectual solidário e participante da guerra civil espanhola (1936-1939).
Testemunhando essa dolorosa tragédia coletiva, abre-se então à conversão
política, que passa a impulsionar e direcionar a força de seu estro. Dessa nova
fase (1950-1951), surge uma poesia de acento épico, representada por um livro
de mais de 500 páginas compactas, Canto
General, que, do plano inicial de um poema dedicado ao Chile, acabaria como
um canto universal da América, um grito whitmaniano, de timbre político, que
fala por si próprio, por sua gente e pela América, uma espécie de cartilha de
militância poética para a época. (NERUDA, 1952).
De
uma perspectiva brasileira, não parece possível afirmar hoje se tal juízo
crítico sobre Neruda e sua poesia permanece inalterado, desde que, a partir de Canto general e outros livros, que a ele
se seguiram, o tom da crítica se diversificou, vislumbrando nas suas criações
um claro abandono das altas cumeadas por onde transitara seu lirismo anterior,
em favor de uma linguagem movediça, centrada na retórica, em rasgos de
prosaísmo e até de antipoesia, que denunciava visível adesão ao realismo
socialista e até mesmo ao partido comunista, a que se filiara logo após o
regresso da guerra civil espanhola. Para exemplificar a primeira dessas fases,
Neruda possui um livro paradigmático, talvez o mais popular da poesia
latino-americana: Veinte
poemas de amor y una canción
desesperada (1924), quando mal alcançara os vinte anos de idade,
traduzido em 80 idiomas e mais de cinco milhões de exemplares vendidos. A fase
seguinte é representada por livros de maior força, densidade e originalidade,
de que é exemplo Residencia
en la tierra (1933), tido como o grande livro de Neruda, sobre o qual
se debruçaram gerações de poetas mergulhados nas florescentes emoções e ideais
libertários durante a Segunda Guerra mundial e o imediato pós-guerra.
Livro
poderoso do qual disse José Olívio Jiménez (1971): “Nele cantava ou uivava um
poeta vinculado ao surrealismo e ao expressionismo, sem que tais enquadramentos
traduzam totalmente sua voz personalíssima, sustentada por uma visão do mundo
de caos, ruína e desintegração, e portadora de consequentes sentimentos de
pessimismo e angústia, que o próprio poeta classificará depois de atrozes”. Em
confronto com a poesia pura de vertente rilkeana, em voga então, Neruda joga
para dentro de seus versos as realidades do viver humano daqueles tempos
agônicos (início dos anos 30), um mundo de impurezas. “Muito cedo me vi
complicado porque as raízes de todos os chilenos se estendiam debaixo da terra
e saíam em outros territórios” diria Neruda, remontando-se ao torvelinho em que
vivera. “O grande chileno virou um político”, como bem frisou Paulo Mendes Campos (1974), e levou 10 anos para
atingir sua forma definitiva. Tenho uma edição do Canto General ilustrada com pinturas de Diego Rivera e David A.
Siqueiros (Ediciones Oceano, México, 1952). Pelo tamanho da edição, trata-se de
um livro em que a grandes impulsos de criatividade e forma poéticas que
refletem a densidade do lirismo de Neruda se contrapõem expressões de retórica,
movediço prosaísmo, formulações e dicções que parte da crítica tachou de
antipoesia. Era o ônus que se obrigava a carregar um Neruda, em sendo
comunista, comprometido com o realismo socialista, concepção que passou a
tracejar sua poesia, doravante expressa por Odas Elementales (1954), e livros
subsequentes. “Neruda quer então cantar afirmativamente as realidades primárias
do mundo, com modulação simples e para ouvidos simples”. (OLIVIO JIMÉNEZ,
1973).
Era
a forma com que estivesse desejando talvez falar para um proletariado unido
pela amálgama da palavra poética. Foi um tempo de começo de outono, quando o
poeta mal completara 50 anos. Neruda deseja volver ao lirismo pessoal, distante
das imagens obscuras, de águas profundas, das fraseologias angustiadas; quer
correr sem freios a cantar terra, água, frutos, céus. Mas em 1958 publica um
livro que parece sugerir um retorno aos ministérios do sentimento poético. Estravagário,
recebido pela crítica como “belo livro”; a poesia que se segue exibe
tonalidades de crônica biográfica, de que são uma marca os quatro volumes de Memorial de Isla
Negra (1964), Fin de Mundo
(1969) e outros.
Pablo
Neruda, que aos 15 anos produzia uma dúzia de poemas por dia, deixou ao morrer,
em 1973, aos 69 anos, uma obra composta de 41 livros e 3.000 páginas.
Considerando o fazer poético também um compromisso ético para com a humanidade,
para ele o dever dos poetas, jovens ou não, era “cantar com seus povos e dar ao
homem o que é do homem: sonho, amor, luz e noite, razão e paixão” (CAMPOS,
1974), e, acrescenta, a sinceridade. É nesta perspectiva que Paulo Mendes
Campos (1922-1991) situa a arte desse chileno, cujo nome de batismo é Neftali
Ricardo Reyes Basoalto, nascido na cidade de Parral, no sul do Chile, filho de
um ferroviário. A poesia de Pablo Neruda está impregnada dos nossos desesperos
e das nossas esperanças; quer o prefiramos na primeira ou na segunda atitude,
temos de reconhecer que ele refletiu a sordidez de nossa época (ou o sentimento
trágico de todas as épocas) e acenou para a luminosidade de uma constelação
distante, mas acessível à derrota humana.
Em
1971, três prêmios chancelavam o reconhecimento internacional de Neruda, então
com 67 anos: o Prêmio Stálin, o Lênin da Paz e o Nobel. Ao lhe conceder a
honraria, a Academia Sueca de Letras esclarece o porquê de sua decisão: “Por
sua obra poética, que, com o efeito de uma força natural, vitaliza o destino e
os sonhos de um continente”. (RUY, 2013, p.1). No ano seguinte, Neruda adoeceu
e, abandonando a Embaixada em Paris, para a qual fora nomeado por Salvador
Allende, em 1970, voltou ao Chile, mais precisamente para sua residência em
Isla Negra, perto de Valparaíso, junto com sua terceira mulher, Matilde
Urrutia.
Menos
de duas semanas após a queda de Allende, a instauração da ditadura do general
Pinochet e o terror que se seguiu, Neruda morria numa clínica de Santiago, em
consequência de um câncer na próstata, segundo versão oficial. O laudo médico
registrou que a debilidade orgânica lhe causara uma parada cardíaca. Até hoje,
a causa real da morte de Neruda se reveste de denso mistério, ante contestações
lideradas por membros da família, como por admiradores. Em novembro de 2017, a
questão voltou à tona, quando dezesseis especialistas, convocados pela Justiça
do Chile, analisaram os restos mortais do poeta, após exumação do corpo, e
concluíram que a causa mortis não
fora câncer, mas intoxicação causada por uma bactéria. Diante disso, prossegue
o diálogo entre dúvida e certeza. “Com
certeza, vamos ter mais clareza sobre a sua morte, vai mudar a história em
relação à morte de Neruda”, disse Rodolfo Reyes, sobrinho e advogado do poeta,
após tomar conhecimento das conclusões dos analistas (REYES,
2017).
Após
o velório naquele infausto setembro de 1973, liberado o corpo pelas autoridades
que temiam manifestações, cerca de 1.000 pessoas acompanharam seu enterro, uma
multidão para aqueles dias sombrios, entoando o hino da Internacional comunista
no amado Chile do velho poeta, ponto central de sua obra e, para ele, “un largo pétalo de mar y vino y nieve”.
(NERUDA apud ALLENDE, 2020, p.2).
-
Nada do Chile me é alheio”, confessou Neruda, numa entrevista à revista Manchete, justamente no mês em que
completava seus 69 anos, em julho de 1973, apenas dois meses antes de sua
morte, como que a parafrasear célebre frase do teatrólogo Terêncio, na voz de
um de seus personagens: “Homo
sum:
nihil humani a me alienum puto” (“Sou homem: nada do que é humano me
é indiferente”). Máxima pronunciada por um personagem da comédia,
com título em grego, Heauton
Timorumenos (O
Punidor de Si Mesmo), de Públio Terêncio Afro, que, segundo Mário Sérgio
Cortella, era admirada por Karl Marx e Engels, ao tempo do Manifesto Comunista, tornando-se uma de suas divisas
sociopolíticas e filosóficas. (CORTELLA, 2000).
2 VERSOS DE TEMUCO, UMA DESCOBERTA
Embora
tivesse a Espanha a primazia mundial, através de ABC Cultural, suplemento do jornal madrilenho ABC, na divulgação da descoberta no Chile dos Cuadernos de Temuco, contendo os poemas perdidos de Neruda
adolescente, coube à Argentina a prioridade editorial, tornando letra de forma
o que passaria a ser considerado o acontecimento literário da Hispanidade, em
1996. São mais de 300 poemas que vieram à luz, compostos quando o poeta tinha
entre 14 e 15 anos de idade e ainda se assinava com seu nome civil, Neftalí
Reyes.
Editados, periciados e transcritos
pelo historiador chileno Víctor Farías (autor de Heidegger and Nazism), que recebeu a incumbência das mãos de
Bernardo Reyes, sobrinho de Pablo Neruda, descobridor do tesouro e também
poeta, os poemas de Cuadernos de Temuco
foram publicados em Buenos Aires, em primeira edição, pela Seix Barral, com 230
páginas, e estava anunciada para fevereiro de 1997 a sua publicação em Madrid.
Ainda que nascido em 1904 na cidade
de Parral, a úmida cidade de Temuco, no sul do Chile, onde o pai exercia a
profissão de ferroviário, seria por onze anos, de 1910 a 1921 residência de
Neruda, que ali viveu entre seus seis e 17 anos, quando se mudou com a família
para Santiago. Aí, em 1923, começa a publicar sua poesia com Crepusculario; logo a seguir (1924) vem seu célebre Vinte Poemas de Amor
e uma Canção Desesperada; de 1933 é Residencia en la Tierra; 1947, Tercera Residencia; por fim Canto General em 1950, e pelos anos em
frente outros tantos livros, completando a extensa obra que irá transformá-lo
“em uma das figuras indiscutíveis da lírica universal”, como atesta o próprio
Víctor Farías, em artigo no suplemento madrilenho que publicou os poemas em
primeira mão.
Sobre a descoberta, para ele
“impressionante”, dirá o historiador chileno, na seção “ABC Literário”, de ABC Cultural (novembro de 1996), após
confessar a reação de incredulidade e surpresa de que fora tomado, quando teve
entre as mãos os preciosos manuscritos cujo destino lhe seria confiado pelos
familiares do poeta: “Eram os cadernos aos quais Neruda, então ainda Neftalí
Reyes, havia confiado entre 1918 e 1920 seu primeiro projeto de livro. Mais de
100 poemas escritos cuidadosamente pelo jovem poeta de 14 a 15 anos com uma
letra cuidadosa e que lembrava o ritmo de sua voz adulta [...]. Ao lê-los
sucessivas vezes, procurando ter os olhos de um perito e também o espírito que
a poesia exige, fui tomado de nova surpresa. Ao invés da tradição pela qual o
adolescente Neruda se mostra tão depressivo e com tendência a passar mal à moda
de Rilke ou Nietzsche, os Cadernos de Temuco revelaram uma notável paixão pela
alegria simples. (FARIAS, 1996).
Após conquistar o Prêmio Nobel de
Literatura em 1971, Pablo Neruda morreria em Santiago do Chile em 23 de
novembro de 1973. Enquanto isso, em caixas e baús cobertos de poeira, dormiam
os poemas adolescentes de Temuco, dos quais vai adiante um pequena mostra, em
tradução livre, sem obediência rigorosa a procedimentos métricos ou de rimas;
aliás, até em consonância com um aspecto visível da versificação do jovem
Neruda em tal momento.
Nesses poemas impressionam dois
aspectos: a presença já de traços da poesia futura do chileno, como o timbre
romântico-erótico, a dicção crítica e sócio-política e a precoce inserção na
modernidade estética, talvez fruto da leitura de poetas já modernistas, como o
nicaraguense Rubén Darío, o mexicano Amado Nervo, o argentino Leopoldo Lugones,
ou mesmo o grande espanhol Antonio Machado, trânsito obrigatório de qualquer
jovem literato hispano-americano do início deste século, muito diversamente de
alguns dos então jovens poetas
brasileiros, ainda reverentes ao credo-parnasiano-simbolista (Mário de Andrade,
Manuel Bandeira, Jorge de Lima), sem falar em alguns dos chamados
pré-modernistas da época (Hermes Fontes, Raul de Leoni, Moacir de Almeida ), a
mostrar o quanto estavam distantes entre nós as correntes criativas da arte e
da literatura internacionais. O jovem Neruda confirmará o enigma com os poemas,
de que se oferece uma pequena mostra adiante (15, dos 31, do conjunto), em
tradução livre (minha), a exigir decifração, a cravar possível interrogação,
talvez até lucubrações, no juízo de exigente crítica literária.
AMO
A PLACIDEZ
Amo
a placidez e quando entro
nos
umbrais de uma solidão
abro
os olhos e os encho
da
doçura de sua paz.
Amo
a placidez sobre todas
as
coisas deste mundo.
Encontro
nas quietudes das coisas
um
canto imenso e mudo.
E
erguendo os olhos para o céu
encontro
nos tremores das nuvens,
na
ave que passa e no vento
a
grande doçura da placidez.
(NERUDA,
1997. tradução nossa).
A
REBELDIA
Quando
açoitados por chuva e vento
os
álamos elevam uma oração selvagem
e
parecem mostrar ao negro firmamento
a
cabeleira hirsuta da verde ramagem.
Mas
logo se cansam de clamar o impossível
e
em um rebelde instante se mantêm erguidos
desesperadamente,
com um indefinível
anseio
de agigantar-se para não ser vencidos.
E
na luta selvagem com a natureza
têm
essa postura de suprema grandeza
dos
que se levantam em uma rebelião.
Mas
serão sempre os eternos vencidos
e
vitoriosamente da sinistros gemidos
o
vento que retorce a dócil enramação.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
O
DESEJO SUPREMO
Viver
serenamente, sem agitar-se nunca
uma
vida acesa pela luz do amor,
e
ter para todas as ilusões frustras
a
pequena tristeza de uma pequena dor...
Ter
na reflexão, serenamente pura,
o
poder e o prestígio de uma sublimação
e
sentir na alma a emoção da altura
e
ânsias sagradas de purificação...
E
ter para todos os seres e coisas
uma
doce alegria, risonha e generosa,
perfumada
de funda alegria de viver...
Então,
só então, viver serenamente,
sem
perturbar-se nunca e calmamente
na
mansa doçura de uma tarde partir...
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
TÉDIO
Levar
na viagem os amores perdidos
os
devaneios idos
e
os fatais signos do olvido.
Marchar
na dúvida das horas nodosas,
achando
que se tornam acres todas as coisas
para
mais ampliar-se a estrada dolorosa.
E
sempre, sempre, recordar a fragrância
das
horas que passam sem dúvidas e ânsias
e
que ficaram distantes na estéril vagância.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
O
MOMENTO SERENO
Adoçam-se
nas almas as ânsias, as dores
e
se encrespam todos os afetos errantes,
aportou
nas almas o aroma das flores
como
um canto piedoso, poderoso e flagrante.
As
almas se recolhem em si mesmas. São fortes.
Aqueceram-se
em todos os pesares humanos.
Nada
temem nem esperam, quando venha a morte
aguardam-na
como se chegasse um irmão.
Apagam-se
nos olhos os desejos profanos
e
como quietas pombas recolhem-se as mãos
a
simbolizar toda a pureza interior.
As
vozes vibram cheias de sonoros acentos.
Nada
de ânsia. Nada de anseio. Os pensamentos
se
elevam por sobre toda a humana dor.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
ESPERANÇA ENFERMA
Não
veio a amada e talvez não venha,
não
chegaram as mãos que deviam chegar.
E
quando chegar os dias talvez floresçam
iluminando
a suave doçura de amar...
E
todas as dores se apagarão. A lua
sairá
muito mais bela por atrás do monte ideal,
hão
de mirá-la os olhos extasiados em uma
comunhão
de sentires alta e espiritual.
Não
veio a amada e talvez não mais venha,
porém,
logo que chegue, viva-se a alegria
de
alcançar na vida uma esperança a mais.
Agora
por sobre dúvidas e temores
e
tratando a ferida das antigas dores
esperemos
a amada que não virá jamais.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
SENSAÇÃO DE UMA CLASSE
DE QUÍMICA
Os
alunos desenham paralelepípedos
copiam
gravuras do livro de Química,
me
corrói o desgosto mordente do bípede
que
sente a ferida da metafísica.
Odiosa
fanhoseia a voz pedagógica
...ácido
esteárico... química sintética...
tantas
endiabradas curvas psicológicas
na
gelatina de minhas energéticas!
A
chuva nos vidros deixa suas rosetas
e
eu penso, penso tal como um poeta
que
às vezes detesto e às vezes... invejo...
A
ferida, que diabo! de velha se enruga
e
sobre a cadeira me afunda a angústia...
Angústia?
Fastio, fastio, fastio!
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
DESDE QUE TE FOSTE
Desde
que te foste sinto a amargura
infinita
de haver-te calado tantas coisas,
de
haver-te negado, mártir, esta suave ternura
que
ocultei como se podem ocultar rosas,
e
de não te haver dito palavras flagrantes
que
trazia na boca, contidas e submissas,
que
esperei tantas vezes saíssem vibrantes
e
que sempre pararam num cruel sorriso.
Agora
que te foste sofro o pesar intenso
de
haver calado, mártir de mim, o imenso
tesouro
de doçura que florescia em meu amor.
Mas
sei que se um dia voltas em minha vida,
a
buscar inutilmente palavras perdidas
selaria
meus lábios um oculto amargor.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
DEVANEIO PERDIDO
Florido
devaneio que me deixaste
a
vagarosidade de uma inquietude
vibrando
em meus sentires tu somaste
todos
os sonhos de minha juventude.
Depois
de um amargor tu te ausentaste,
de
logo nada senti. Havias ido
tal
como em uma tarde tu chegaste
a
renovar meu coração sumido
na
profundidade de um desencanto.
Depois
te perfumaste com meu pranto,
te
tornaste brandura em meu coração.
Agora
trazes a aridez de um nó,
um
desencanto a mais, árvore só
que
amanhã se fará germinação.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
ORAÇÃO
NOTURNA
Sem
lua e sem amor, como dois órfãos
se
fecharam meus olhos. Senti
um
estremecimento afligidor
algo
parecido com um calafrio.
Na
noite deserta e fragorosa
lembrei
a densa claridade da lua
derramando
alvo leite sobre as coisas
com
um brando penar, quase sem amargura.
E
numa agitação de rogos prostrados
lancei-me
debruço sobre a bondosa terra
e
nos céus azuis para os homens cansados
desejei
ser bom como uma lua cheia.
E
aos homens mergulhados em solidão,
descer
para dar-lhe total iluminação.
E
que bebam, que bebam da fonte serena
sem
ódio, sem cansaço, sem dor e sem pena.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
MÃOS
DE CEGO
Dá-me
tuas mãos, cego. As mãos dos cegos
são
como as raízes desses homens inertes
se
queimam tostadas pelo sol de janeiro
e
no outono sentem como a morte chega.
Aos
talhos e submissas em silêncio vivem
desfiando
em seus dedos a meada da dor
e
a fiam recolhidas como monges humildes
que
andaram desfiando as palavras de Deus.
Os
cegos têm toda sua alma nas mãos
ásperas
de tanto roçar-se nos humanos
trespassadas
de pena, tremuladas de amor...
Tremem
como cordames longos dedos magros
e
parecem duas sagradas pombas de milagre
retalhadas
e sangrando escuridão e dor...
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
SONETO PAGÃO
Como
um sulco exposto senti teu corpo abrir-se
para
receber a oferta maior de meu ser.
...Sentir,
tremer, e oh terra! fundir-se, fundir-se
assim
como os astros ao entardecer...
E
a semente cálida que desce e entrega
seu
tesouro instintivo de sangue e calor
enquanto
no vazio mãos cegas tremem
de
ter tocado tanto cacho esplendoroso.
Sóis
de outono, ventos do norte, jorros de trino!
Quem
me tomou pela mão? Desviou do caminho?
Uvas
de que vinhedos espremeram sobre mim?
...Y
agora entre a névoa total de meus sentidos
sei
que em minha virgem vida teu corpo se finda
e
que embora me venceste, eu também venci!
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
A
HORA DO AMOR
Bêbado
vou de amor nesta hora
levantam-se
em minha alma doçuras perdidas
as
trêmulas campanas da vida sonora
erguem
celestes canseiras de minha vida.
Vem
crepúsculo morno, vem aurora rosada
vem
fragrância de beijos, vem calor de mulher.
Faz
já tanto tempo que não aguardo a amada
que
me mordem os cães do desejo e da sede.
Mas
se bêbado vou já não me importa
o
anseio longínquo que não mais voltará,
levo
todas as rosas já que a vida é curta,
é
claro! minhas roseiras terão de florescer.
Mas
se levo minhas roseiras coaguladas,
dá-me
uma mão amiga, dá-me um fruto, Senhor,
dá-me
dois seios mornos e dois olhos amados,
se
não m’os concedes, que será de meu amor?
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
NÃO
ME SINTO MUDAR
Não
me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo.
O
tempo passa lento sobre meus entusiasmos
cada
dia mais raros são meus ceticismos,
jamais
fui vítima de um pequeno orgasmo
mental
que derribasse a canção de meus dias
que
tirasse minhas dúvidas, apagasse meu nome.
Não
mudei. Ë um pouco mais de melancolia
o
pouquinho de tédio que me deram os homens.
Não
mudei. Não mudo. Meu pai está velho.
As
roseiras florescem, as mulheres se vão
cada
dia há mais meninas para cada conselho
para
cada cansaço, para cada bondade.
Porém
estou o mesmo. Nas antigas tumbas
vermes
raivosos desmancham a dor,
todos
os homens pedem demais para depois
eu
não peço nada, nem um tiquinho de mundo.
Porém
num dia amargo, em um dia distante
sentirei
raiva por não estender as mãos
por
não levantar as asas da renovação.
Talvez
me venha um pouco mais de melancolia
entanto
na convicção da crise tardia
de
primavera cobrirei o meu coração.
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
O SOLITÁRIO
Pátio
de escola, pátio trigueiro e singelo
rodeado
de casinhas de paredes musgosas,
um
álamo que eleva sua ramada amarela,
um
corredor mui longo e uma roseira só rosa.
O
tempo, caprichoso roupeiro, o que veste
com
roupagem confusa a quietude das coisas
que
pôs tudo triste, terrosamente triste,
porém
de uma tristeza indolente e formosa.
O
álamo se eleva soberbo e orgulhoso
ondulando
a ramagem dourada e poderosa
por
sobre a suave tristeza das coisas.
O
álamo despreza o que está lá embaixo.
Despreza
sem olhá-la o roseiral que o afaga
com
o sagrado perfume das últimas rosas...
(NERUDA,
1997, tradução nossa).
Os poemas juvenis de Pablo Neruda, publicados em ABC Cultural (Madrid,
novembro de 1996), segundo edição e transcrição da responsabilidade do filósofo
e historiador Víctor Farías, seu compatriota e descobridor dessa preciosidade,
chegaram a meu conhecimento, graças à gentileza do jornalista Vítor Hugo
Soares, que me presenteou com um exemplar do suplemento madrilenho, ao
regressar de viagem à Europa, passando por Madrid. Observação: a publicação
desses poemas juvenis do chileno veio à luz em edição espanhola, sob o título
de Pablo
Neruda: Cuadernos de Temuco, organização
e prólogo de Víctor Farías. Barcelona:
Seix Barral, 1997). A tradução para o português, empreendida pelo poeta
amazonense Thiago de Mello, veio um ano depois, com apresentação e colofon de
sua autoria, Rio de Janeiro: Pablo Neruda, Cadernos de Temuco - Poesia,
Bertrand Brasil, 1998, edição e prólogo de Víctor Farías. A série desses
poemas, publicados no caderno A Tarde Cultural, em janeiro de 1997,
consiste de tradução livre do espanhol, por este que os editou.
Antes de concluir-se esta redação, há-se de trazer a
esta cena evocativa a figura do longevo poeta Thiago de Mello (1926-2022),
destaque da chamada Geração de 45, amigo, admirador e correligionário de Pablo
Neruda, que, ao apresentar a sua tradução dos Cuadernos de Temuco, nos
oferece, logo na abertura, as razões que o levaram a transpor para o português
esses poemas escritos pelo jovem chileno, entre os 15 e os 17 anos, e mais
adiante revelar o calabouço emocional que os escondeu por mais de sete décadas.
Diz ele sobre a edição, embora reconheça que os Cadernos de Temuco, “do
moço Neftalí Reyes não têm a poderosa força alada que se ergue sonora das
páginas que durante quase meio século iria escrever Pablo Neruda”:
“É um livro de quem já está seguro de que a poesia
é o seu caminho inexorável. De quem principia o caminho sabendo onde quer
chegar e bem preparado para a caminhada. Todos os poemas denotam impressionante
domínio da arte do verso, surpreendente num autor adolescente. Os seus poemas
são metrificados e rimados. Maneja, com perícia técnica, todas as cadências.
Canta redondilha, celebra decassílabos. Não são poucos os poemas armados no
trabalhoso octossílabo. Mas o seu verso preferido é o alexandrino, com cesura
mediana”. (MELLO, 1998).
Vai por aí, até desembocar na masmorra dramática,
que justificaria o segredo de tanto tempo permanecerem esses poemas guardados.
“O pai de Neftalí, Don José del Carmen Reyes,
sempre viu com maus olhos a vocação poética do filho. Considerava a poesia
coisa pouco séria. Passou a ameaçá-lo: nada de escrituras na sua casa. Nada de
publicação em jornal”. (...) “Um dia, num ataque de fúria, fúria entrou com
violência no quarto do filho e simplesmente destruiu tudo que pudesse ter algo
a ver com poesia. Fez uma fogueira com livros, revistas, cadernos e papéis”.
(MELLO, 1998).
A história deste malfadado episódio foi contada
pelo poeta Bernardo Reyes, sobrinho de Neruda, em livro sobre “a vida do poeta
e a sua numerosa e entrelaçada família em Temuco”, segundo Mello, que
transcreve o relato de como o resguardo dos originais foi possível.
“Neftalí sentiu-se profundamente magoado, passou
vários dias cabisbaixo, deprimido, até que, em dado momento mágico, Laurita lhe
fez um sinal escondido, pedindo que ele a acompanhasse ao quarto dela sem que
os outros percebessem. No meio de intermináveis peças de roupa, lençóis,
objetos e cadernos, com um pequeno sorriso de cumplicidade e pondo o dedo
índice em cruz sobre os lábios de seu irmão, mostrou-lhe seu pequeno tesouro:
os cadernos escolares onde Neftalí escrevia seus poemas”. (REYES apud MELLO,
1998).
Laura, arremata Thiago de Mello, “salvou a poesia
das chamas da ira”.
(Revistas e com acréscimos recentes, essas duas inserções conjugam artigos publicados pelo autor em edições do suplemento semanal A Tarde Cultural; o primeiro, em 16 de julho de 1994, pelo transcurso dos 90 anos de Neruda, se vivo fosse; o outro, em 18 de janeiro de 1997).
REFERÊNCIAS
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escritor e articulista. Nada que é humano
me é estranho? In Folha de S. Paulo:
Seção “Equilíbrio” (31.08.2000). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq3108200029.htm.
Acesso em: 10.10.2022.
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Temuco, Poesia (1919-1920); edição e prólogo de Víctor Farías; tradução e
abertura de Thiago de Mello. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, 266p.
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1996.
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Seix Barral, 1997.
OLIVIO
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de La Poesía Hispanoamericana Contemporánea 1914-1970. 2.ed. Madrid:
Alianza Editorial, 1973.
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Cuadernos de Temuco, Buenos Aires,
230 pp., 1996.
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Curitiba/PR, n. 212, dezembro, 2017.
RUY, Marcos Aurélio. Pablo
Neruda vence a ditadura e sua obra resiste. São Paulo: CTB,
2013. Disponível em: https://ctb.org.br/noticias/cultura-a-midia/pablo-neruda-vence-aos-ditadores-e-sua-obra-resiste/#:~:text=%E2%80%9CPor%20sua%20obra%20po%C3%A9tica%2C%20que,Nobel%20de%20Literatura%20em%201971.
Acesso em: 07 out. 2022.
TERÊNCIO
– Publio
Terencio Afro (Cartago,
185 a.C.-159 a.C.).
Heauton Timorumenos (O Punidor de Si Mesmo), comédia.
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; professor
aposentado da UFBA, pela Faculdade de Comunicação. Exerceu cargos em vários
jornais, entre os quais o de editor-chefe de A Tarde, chefe de Redação, do Diário de Notícias, ambos de
Salvador, e de chefe da Sucursal do Jornal
do Brasil, na Bahia. Editou o suplemento A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de
Críticos de Arte (APCA). Em 1964, cumpriu pós-graduação de Aperfeiçoamento em
Jornalismo, em Madrid (Espanha). Foi presidente da Fundação Cultural do Estado
da Bahia (1987-1989). Publicou livros de poesia e ensaios, entre eles CACAUEIROS - Poesia. Conto. Teatro e Academia dos Rebeldes e outros exercícios
redacionais, ambos em 2022. Desde 1995, ocupa a Cadeira nº 31, da Academia
de Letras da Bahia.
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