terça-feira, 30 de maio de 2023

PABLO NERUDA, POETA TRANSANDINO

 

            Pablo Neruda, voz universal da poesia latino-americana


PABLO NERUDA:

a travessia dos andes em dois tempos

 

FLORISVALDO MATTOS[i]

 

 

1 O POETA, O HUMANISTA, O POLÍTICO

 

Ainda sob o impacto da notícia da morte de Pablo Neruda, no dia seguinte ao duro momento, 24 de setembro de 1973, encerrava eu um poema (“Trânsito em Isla Negra”) com estes versos: “estavas só/quando sobre ti fincou o tempo/ inumeral residência e rodas. / Mais do que sombra. Cimento” (MATTOS, 1975, p. 39). Dedicado à memória do poeta chileno, parecia resumir a um só tempo o tenebroso e metálico silêncio com que cercaram seu velório medidas impostas pelo golpe militar, que doze dias antes matara o presidente Salvador Allende (11 de setembro de 1973), impondo sangrenta ditadura ao Chile, e a certeza de que sua voz de poeta sul-americano projetaria sua influência por um largo tempo no universo ibero-americano.

Após quase meio século, vemos que são hoje quatro os poetas chilenos, Gabriela Mistral (1889-1957), Vicente Huidobro (1893-1948), Pablo Neruda (1904-1973) e o que morreu longevo, Nicanor Parra (1914-2017), cuja voz alcançou dimensão universal, frequentando sucessivas antologias. Desses quatro, dois (Mistral, 1945; Neruda, 1971) fizeram com que a poesia de um pequeno país, cuja forma geográfica semelha a de um réptil ou lagarta, no mapa da América do Sul, alcançasse o Macchu Picchu do reconhecimento internacional, o Prêmio Nobel de Literatura.

Enquanto viveu, Pablo Neruda era considerado pela crítica o poeta de maior importância e um dos mais influentes no plano geral da poesia hispano-americana, avaliação centrada nas mais de quatro dezenas de livros por ele publicados, desde 1921 a 1969 e dotados de uma clara unidade interior, compostos de ciclos e fases coerentes, mesmo considerando os contrapontos dialéticos que conduzem sua poesia de uma dicção moderna, de acento neo-romântico, a etapas de maior força criativa, para repentinamente mudar de rumo após experiência de jovem intelectual solidário e participante da guerra civil espanhola (1936-1939). Testemunhando essa dolorosa tragédia coletiva, abre-se então à conversão política, que passa a impulsionar e direcionar a força de seu estro. Dessa nova fase (1950-1951), surge uma poesia de acento épico, representada por um livro de mais de 500 páginas compactas, Canto General, que, do plano inicial de um poema dedicado ao Chile, acabaria como um canto universal da América, um grito whitmaniano, de timbre político, que fala por si próprio, por sua gente e pela América, uma espécie de cartilha de militância poética para a época. (NERUDA, 1952).

De uma perspectiva brasileira, não parece possível afirmar hoje se tal juízo crítico sobre Neruda e sua poesia permanece inalterado, desde que, a partir de Canto general e outros livros, que a ele se seguiram, o tom da crítica se diversificou, vislumbrando nas suas criações um claro abandono das altas cumeadas por onde transitara seu lirismo anterior, em favor de uma linguagem movediça, centrada na retórica, em rasgos de prosaísmo e até de antipoesia, que denunciava visível adesão ao realismo socialista e até mesmo ao partido comunista, a que se filiara logo após o regresso da guerra civil espanhola. Para exemplificar a primeira dessas fases, Neruda possui um livro paradigmático, talvez o mais popular da poesia latino-americana: Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924), quando mal alcançara os vinte anos de idade, traduzido em 80 idiomas e mais de cinco milhões de exemplares vendidos. A fase seguinte é representada por livros de maior força, densidade e originalidade, de que é exemplo Residencia en la tierra (1933), tido como o grande livro de Neruda, sobre o qual se debruçaram gerações de poetas mergulhados nas florescentes emoções e ideais libertários durante a Segunda Guerra mundial e o imediato pós-guerra.

Livro poderoso do qual disse José Olívio Jiménez (1971): “Nele cantava ou uivava um poeta vinculado ao surrealismo e ao expressionismo, sem que tais enquadramentos traduzam totalmente sua voz personalíssima, sustentada por uma visão do mundo de caos, ruína e desintegração, e portadora de consequentes sentimentos de pessimismo e angústia, que o próprio poeta classificará depois de atrozes”. Em confronto com a poesia pura de vertente rilkeana, em voga então, Neruda joga para dentro de seus versos as realidades do viver humano daqueles tempos agônicos (início dos anos 30), um mundo de impurezas. “Muito cedo me vi complicado porque as raízes de todos os chilenos se estendiam debaixo da terra e saíam em outros territórios” diria Neruda, remontando-se ao torvelinho em que vivera. “O grande chileno virou um político”, como bem frisou Paulo Mendes Campos (1974), e levou 10 anos para atingir sua forma definitiva. Tenho uma edição do Canto General ilustrada com pinturas de Diego Rivera e David A. Siqueiros (Ediciones Oceano, México, 1952). Pelo tamanho da edição, trata-se de um livro em que a grandes impulsos de criatividade e forma poéticas que refletem a densidade do lirismo de Neruda se contrapõem expressões de retórica, movediço prosaísmo, formulações e dicções que parte da crítica tachou de antipoesia. Era o ônus que se obrigava a carregar um Neruda, em sendo comunista, comprometido com o realismo socialista, concepção que passou a tracejar sua poesia, doravante expressa por Odas Elementales (1954), e livros subsequentes. “Neruda quer então cantar afirmativamente as realidades primárias do mundo, com modulação simples e para ouvidos simples”. (OLIVIO JIMÉNEZ, 1973).

Era a forma com que estivesse desejando talvez falar para um proletariado unido pela amálgama da palavra poética. Foi um tempo de começo de outono, quando o poeta mal completara 50 anos. Neruda deseja volver ao lirismo pessoal, distante das imagens obscuras, de águas profundas, das fraseologias angustiadas; quer correr sem freios a cantar terra, água, frutos, céus. Mas em 1958 publica um livro que parece sugerir um retorno aos ministérios do sentimento poético. Estravagário, recebido pela crítica como “belo livro”; a poesia que se segue exibe tonalidades de crônica biográfica, de que são uma marca os quatro volumes de Memorial de Isla Negra (1964), Fin de Mundo (1969) e outros.

Pablo Neruda, que aos 15 anos produzia uma dúzia de poemas por dia, deixou ao morrer, em 1973, aos 69 anos, uma obra composta de 41 livros e 3.000 páginas. Considerando o fazer poético também um compromisso ético para com a humanidade, para ele o dever dos poetas, jovens ou não, era “cantar com seus povos e dar ao homem o que é do homem: sonho, amor, luz e noite, razão e paixão” (CAMPOS, 1974), e, acrescenta, a sinceridade. É nesta perspectiva que Paulo Mendes Campos (1922-1991) situa a arte desse chileno, cujo nome de batismo é Neftali Ricardo Reyes Basoalto, nascido na cidade de Parral, no sul do Chile, filho de um ferroviário. A poesia de Pablo Neruda está impregnada dos nossos desesperos e das nossas esperanças; quer o prefiramos na primeira ou na segunda atitude, temos de reconhecer que ele refletiu a sordidez de nossa época (ou o sentimento trágico de todas as épocas) e acenou para a luminosidade de uma constelação distante, mas acessível à derrota humana.

Em 1971, três prêmios chancelavam o reconhecimento internacional de Neruda, então com 67 anos: o Prêmio Stálin, o Lênin da Paz e o Nobel. Ao lhe conceder a honraria, a Academia Sueca de Letras esclarece o porquê de sua decisão: “Por sua obra poética, que, com o efeito de uma força natural, vitaliza o destino e os sonhos de um continente”. (RUY, 2013, p.1). No ano seguinte, Neruda adoeceu e, abandonando a Embaixada em Paris, para a qual fora nomeado por Salvador Allende, em 1970, voltou ao Chile, mais precisamente para sua residência em Isla Negra, perto de Valparaíso, junto com sua terceira mulher, Matilde Urrutia.

Menos de duas semanas após a queda de Allende, a instauração da ditadura do general Pinochet e o terror que se seguiu, Neruda morria numa clínica de Santiago, em consequência de um câncer na próstata, segundo versão oficial. O laudo médico registrou que a debilidade orgânica lhe causara uma parada cardíaca. Até hoje, a causa real da morte de Neruda se reveste de denso mistério, ante contestações lideradas por membros da família, como por admiradores. Em novembro de 2017, a questão voltou à tona, quando dezesseis especialistas, convocados pela Justiça do Chile, analisaram os restos mortais do poeta, após exumação do corpo, e concluíram que a causa mortis não fora câncer, mas intoxicação causada por uma bactéria. Diante disso, prossegue o diálogo entre dúvida e certeza.  “Com certeza, vamos ter mais clareza sobre a sua morte, vai mudar a história em relação à morte de Neruda”, disse Rodolfo Reyes, sobrinho e advogado do poeta, após tomar conhecimento das conclusões dos analistas (REYES, 2017).

Após o velório naquele infausto setembro de 1973, liberado o corpo pelas autoridades que temiam manifestações, cerca de 1.000 pessoas acompanharam seu enterro, uma multidão para aqueles dias sombrios, entoando o hino da Internacional comunista no amado Chile do velho poeta, ponto central de sua obra e, para ele, “un largo pétalo de mar y vino y nieve”. (NERUDA apud ALLENDE, 2020, p.2).

- Nada do Chile me é alheio”, confessou Neruda, numa entrevista à revista Manchete, justamente no mês em que completava seus 69 anos, em julho de 1973, apenas dois meses antes de sua morte, como que a parafrasear célebre frase do teatrólogo Terêncio, na voz de um de seus personagens: “Homo sum: nihil humani a me alienum puto” (“Sou homem: nada do que é humano me é indiferente”). Máxima pronunciada por um personagem da comédia, com título em grego, Heauton Timorumenos (O Punidor de Si Mesmo), de Públio Terêncio Afro, que, segundo Mário Sérgio Cortella, era admirada por Karl Marx e Engels, ao tempo do Manifesto Comunista, tornando-se uma de suas divisas sociopolíticas e filosóficas. (CORTELLA, 2000).

   

           

2 VERSOS DE TEMUCO, UMA DESCOBERTA

 

Embora tivesse a Espanha a primazia mundial, através de ABC Cultural, suplemento do jornal madrilenho ABC, na divulgação da descoberta no Chile dos Cuadernos de Temuco, contendo os poemas perdidos de Neruda adolescente, coube à Argentina a prioridade editorial, tornando letra de forma o que passaria a ser considerado o acontecimento literário da Hispanidade, em 1996. São mais de 300 poemas que vieram à luz, compostos quando o poeta tinha entre 14 e 15 anos de idade e ainda se assinava com seu nome civil, Neftalí Reyes.

            Editados, periciados e transcritos pelo historiador chileno Víctor Farías (autor de Heidegger and Nazism), que recebeu a incumbência das mãos de Bernardo Reyes, sobrinho de Pablo Neruda, descobridor do tesouro e também poeta, os poemas de Cuadernos de Temuco foram publicados em Buenos Aires, em primeira edição, pela Seix Barral, com 230 páginas, e estava anunciada para fevereiro de 1997 a sua publicação em Madrid.

            Ainda que nascido em 1904 na cidade de Parral, a úmida cidade de Temuco, no sul do Chile, onde o pai exercia a profissão de ferroviário, seria por onze anos, de 1910 a 1921 residência de Neruda, que ali viveu entre seus seis e 17 anos, quando se mudou com a família para Santiago. Aí, em 1923, começa a publicar sua poesia com Crepusculario; logo a seguir (1924) vem seu célebre Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada; de 1933 é Residencia en la Tierra; 1947, Tercera Residencia; por fim Canto General em 1950, e pelos anos em frente outros tantos livros, completando a extensa obra que irá transformá-lo “em uma das figuras indiscutíveis da lírica universal”, como atesta o próprio Víctor Farías, em artigo no suplemento madrilenho que publicou os poemas em primeira mão.

            Sobre a descoberta, para ele “impressionante”, dirá o historiador chileno, na seção “ABC Literário”, de ABC Cultural (novembro de 1996), após confessar a reação de incredulidade e surpresa de que fora tomado, quando teve entre as mãos os preciosos manuscritos cujo destino lhe seria confiado pelos familiares do poeta: “Eram os cadernos aos quais Neruda, então ainda Neftalí Reyes, havia confiado entre 1918 e 1920 seu primeiro projeto de livro. Mais de 100 poemas escritos cuidadosamente pelo jovem poeta de 14 a 15 anos com uma letra cuidadosa e que lembrava o ritmo de sua voz adulta [...]. Ao lê-los sucessivas vezes, procurando ter os olhos de um perito e também o espírito que a poesia exige, fui tomado de nova surpresa. Ao invés da tradição pela qual o adolescente Neruda se mostra tão depressivo e com tendência a passar mal à moda de Rilke ou Nietzsche, os Cadernos de Temuco revelaram uma notável paixão pela alegria simples. (FARIAS, 1996).

            Após conquistar o Prêmio Nobel de Literatura em 1971, Pablo Neruda morreria em Santiago do Chile em 23 de novembro de 1973. Enquanto isso, em caixas e baús cobertos de poeira, dormiam os poemas adolescentes de Temuco, dos quais vai adiante um pequena mostra, em tradução livre, sem obediência rigorosa a procedimentos métricos ou de rimas; aliás, até em consonância com um aspecto visível da versificação do jovem Neruda em tal momento.

            Nesses poemas impressionam dois aspectos: a presença já de traços da poesia futura do chileno, como o timbre romântico-erótico, a dicção crítica e sócio-política e a precoce inserção na modernidade estética, talvez fruto da leitura de poetas já modernistas, como o nicaraguense Rubén Darío, o mexicano Amado Nervo, o argentino Leopoldo Lugones, ou mesmo o grande espanhol Antonio Machado, trânsito obrigatório de qualquer jovem literato hispano-americano do início deste século, muito diversamente de alguns dos  então jovens poetas brasileiros, ainda reverentes ao credo-parnasiano-simbolista (Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima), sem falar em alguns dos chamados pré-modernistas da época (Hermes Fontes, Raul de Leoni, Moacir de Almeida ), a mostrar o quanto estavam distantes entre nós as correntes criativas da arte e da literatura internacionais. O jovem Neruda confirmará o enigma com os poemas, de que se oferece uma pequena mostra adiante (15, dos 31, do conjunto), em tradução livre (minha), a exigir decifração, a cravar possível interrogação, talvez até lucubrações, no juízo de exigente crítica literária.

 

AMO A PLACIDEZ 

 

Amo a placidez e quando entro

nos umbrais de uma solidão

abro os olhos e os encho

da doçura de sua paz.

 

Amo a placidez sobre todas

as coisas deste mundo.

 

Encontro nas quietudes das coisas

um canto imenso e mudo.

E erguendo os olhos para o céu

encontro nos tremores das nuvens,

na ave que passa e no vento

a grande doçura da placidez.

(NERUDA, 1997. tradução nossa).

 

 

A REBELDIA

 

Quando açoitados por chuva e vento

os álamos elevam uma oração selvagem

e parecem mostrar ao negro firmamento

a cabeleira hirsuta da verde ramagem.

 

Mas logo se cansam de clamar o impossível

e em um rebelde instante se mantêm erguidos

desesperadamente, com um indefinível

anseio de agigantar-se para não ser vencidos.

 

E na luta selvagem com a natureza

têm essa postura de suprema grandeza

dos que se levantam em uma rebelião.

 

Mas serão sempre os eternos vencidos

e vitoriosamente da sinistros gemidos

o vento que retorce a dócil enramação.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

O DESEJO SUPREMO

 

Viver serenamente, sem agitar-se nunca

uma vida acesa pela luz do amor,

e ter para todas as ilusões frustras

a pequena tristeza de uma pequena dor...

 

Ter na reflexão, serenamente pura,

o poder e o prestígio de uma sublimação

e sentir na alma a emoção da altura

e ânsias sagradas de purificação...

 

E ter para todos os seres e coisas

uma doce alegria, risonha e generosa,

perfumada de funda alegria de viver...

 

Então, só então, viver serenamente,

sem perturbar-se nunca e calmamente

na mansa doçura de uma tarde partir...

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

TÉDIO

 

Levar na viagem os amores perdidos

os devaneios idos

e os fatais signos do olvido.

 

Marchar na dúvida das horas nodosas,

achando que se tornam acres todas as coisas

para mais ampliar-se a estrada dolorosa.

 

E sempre, sempre, recordar a fragrância

das horas que passam sem dúvidas e ânsias

e que ficaram distantes na estéril vagância.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

O MOMENTO SERENO

 

Adoçam-se nas almas as ânsias, as dores

e se encrespam todos os afetos errantes,

aportou nas almas o aroma das flores

como um canto piedoso, poderoso e flagrante.

 

As almas se recolhem em si mesmas. São fortes.

Aqueceram-se em todos os pesares humanos.

Nada temem nem esperam, quando venha a morte

aguardam-na como se chegasse um irmão.

 

Apagam-se nos olhos os desejos profanos

e como quietas pombas recolhem-se as mãos

a simbolizar toda a pureza interior.

 

As vozes vibram cheias de sonoros acentos.

Nada de ânsia. Nada de anseio. Os pensamentos

se elevam por sobre toda a humana dor.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

 ESPERANÇA ENFERMA

 

Não veio a amada e talvez não venha,

não chegaram as mãos que deviam chegar.

E quando chegar os dias talvez floresçam

iluminando a suave doçura de amar...

 

E todas as dores se apagarão. A lua

sairá muito mais bela por atrás do monte ideal,

hão de mirá-la os olhos extasiados em uma

comunhão de sentires alta e espiritual.

 

Não veio a amada e talvez não mais venha,

porém, logo que chegue, viva-se a alegria

de alcançar na vida uma esperança a mais.

 

Agora por sobre dúvidas e temores

e tratando a ferida das antigas dores

esperemos a amada que não virá jamais.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

SENSAÇÃO DE UMA CLASSE DE QUÍMICA

 

Os alunos desenham paralelepípedos

copiam gravuras do livro de Química,

me corrói o desgosto mordente do bípede

que sente a ferida da metafísica.

 

Odiosa fanhoseia a voz pedagógica

...ácido esteárico... química sintética...

tantas endiabradas curvas psicológicas

na gelatina de minhas energéticas!

 

A chuva nos vidros deixa suas rosetas

e eu penso, penso tal como um poeta

que às vezes detesto e às vezes... invejo...

 

A ferida, que diabo! de velha se enruga

e sobre a cadeira me afunda a angústia...

Angústia? Fastio, fastio, fastio!

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

DESDE QUE TE FOSTE

 

Desde que te foste sinto a amargura

infinita de haver-te calado tantas coisas,

de haver-te negado, mártir, esta suave ternura

que ocultei como se podem ocultar rosas,

 

e de não te haver dito palavras flagrantes

que trazia na boca, contidas e submissas,

que esperei tantas vezes saíssem vibrantes

e que sempre pararam num cruel sorriso.

 

Agora que te foste sofro o pesar intenso

de haver calado, mártir de mim, o imenso

tesouro de doçura que florescia em meu amor.

 

Mas sei que se um dia voltas em minha vida,

a buscar inutilmente palavras perdidas

selaria meus lábios um oculto amargor.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

DEVANEIO PERDIDO

 

Florido devaneio que me deixaste

a vagarosidade de uma inquietude

vibrando em meus sentires tu somaste

todos os sonhos de minha juventude.

 

Depois de um amargor tu te ausentaste,

de logo nada senti. Havias ido

tal como em uma tarde tu chegaste

a renovar meu coração sumido

 

na profundidade de um desencanto.

Depois te perfumaste com meu pranto,

te tornaste brandura em meu coração.

 

Agora trazes a aridez de um nó,

um desencanto a mais, árvore só

que amanhã se fará germinação.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

ORAÇÃO NOTURNA

 

Sem lua e sem amor, como dois órfãos

se fecharam meus olhos. Senti

um estremecimento afligidor

algo parecido com um calafrio.

 

Na noite deserta e fragorosa

lembrei a densa claridade da lua

derramando alvo leite sobre as coisas

com um brando penar, quase sem amargura.

 

E numa agitação de rogos prostrados

lancei-me debruço sobre a bondosa terra

e nos céus azuis para os homens cansados

desejei ser bom como uma lua cheia.

 

E aos homens mergulhados em solidão,

descer para dar-lhe total iluminação.

 

E que bebam, que bebam da fonte serena

sem ódio, sem cansaço, sem dor e sem pena.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

MÃOS DE CEGO

 

Dá-me tuas mãos, cego. As mãos dos cegos

são como as raízes desses homens inertes

se queimam tostadas pelo sol de janeiro

e no outono sentem como a morte chega.

 

Aos talhos e submissas em silêncio vivem

desfiando em seus dedos a meada da dor

e a fiam recolhidas como monges humildes

que andaram desfiando as palavras de Deus.

 

Os cegos têm toda sua alma nas mãos

ásperas de tanto roçar-se nos humanos

trespassadas de pena, tremuladas de amor...

 

Tremem como cordames longos dedos magros

e parecem duas sagradas pombas de milagre

retalhadas e sangrando escuridão e dor...

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

SONETO PAGÃO

 

Como um sulco exposto senti teu corpo abrir-se

para receber a oferta maior de meu ser.

...Sentir, tremer, e oh terra! fundir-se, fundir-se

assim como os astros ao entardecer...

 

E a semente cálida que desce e entrega

seu tesouro instintivo de sangue e calor

enquanto no vazio mãos cegas tremem

de ter tocado tanto cacho esplendoroso.

 

Sóis de outono, ventos do norte, jorros de trino!

Quem me tomou pela mão? Desviou do caminho?

Uvas de que vinhedos espremeram sobre mim?

 

...Y agora entre a névoa total de meus sentidos

sei que em minha virgem vida teu corpo se finda

e que embora me venceste, eu também venci!

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

A HORA DO AMOR

 

Bêbado vou de amor nesta hora

levantam-se em minha alma doçuras perdidas

as trêmulas campanas da vida sonora

erguem celestes canseiras de minha vida.

 

Vem crepúsculo morno, vem aurora rosada

vem fragrância de beijos, vem calor de mulher.

Faz já tanto tempo que não aguardo a amada

que me mordem os cães do desejo e da sede.

 

Mas se bêbado vou já não me importa

o anseio longínquo que não mais voltará,

levo todas as rosas já que a vida é curta,

é claro! minhas roseiras terão de florescer.

 

Mas se levo minhas roseiras coaguladas,

dá-me uma mão amiga, dá-me um fruto, Senhor,

dá-me dois seios mornos e dois olhos amados,

se não m’os concedes, que será de meu amor?

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

NÃO ME SINTO MUDAR

 

Não me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo.

O tempo passa lento sobre meus entusiasmos

cada dia mais raros são meus ceticismos,

jamais fui vítima de um pequeno orgasmo

 

mental que derribasse a canção de meus dias

que tirasse minhas dúvidas, apagasse meu nome.

Não mudei. Ë um pouco mais de melancolia

o pouquinho de tédio que me deram os homens.

 

Não mudei. Não mudo. Meu pai está velho.

 

As roseiras florescem, as mulheres se vão

cada dia há mais meninas para cada conselho

para cada cansaço, para cada bondade.

 

Porém estou o mesmo. Nas antigas tumbas

vermes raivosos desmancham a dor,

todos os homens pedem demais para depois

eu não peço nada, nem um tiquinho de mundo.

 

Porém num dia amargo, em um dia distante

sentirei raiva por não estender as mãos

por não levantar as asas da renovação.

 

Talvez me venha um pouco mais de melancolia

entanto na convicção da crise tardia

de primavera cobrirei o meu coração.

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

O SOLITÁRIO

 

Pátio de escola, pátio trigueiro e singelo

rodeado de casinhas de paredes musgosas,

um álamo que eleva sua ramada amarela,

um corredor mui longo e uma roseira só rosa.

 

O tempo, caprichoso roupeiro, o que veste

com roupagem confusa a quietude das coisas

que pôs tudo triste, terrosamente triste,

porém de uma tristeza indolente e formosa.

 

O álamo se eleva soberbo e orgulhoso

ondulando a ramagem dourada e poderosa

por sobre a suave tristeza das coisas.

 

O álamo despreza o que está lá embaixo.

Despreza sem olhá-la o roseiral que o afaga

com o sagrado perfume das últimas rosas...

(NERUDA, 1997, tradução nossa).

 

 

Os poemas juvenis de Pablo Neruda, publicados em ABC Cultural (Madrid, novembro de 1996), segundo edição e transcrição da responsabilidade do filósofo e historiador Víctor Farías, seu compatriota e descobridor dessa preciosidade, chegaram a meu conhecimento, graças à gentileza do jornalista Vítor Hugo Soares, que me presenteou com um exemplar do suplemento madrilenho, ao regressar de viagem à Europa, passando por Madrid. Observação: a publicação desses poemas juvenis do chileno veio à luz em edição espanhola, sob o título de Pablo Neruda: Cuadernos de Temuco, organização e prólogo de Víctor Farías. Barcelona: Seix Barral, 1997). A tradução para o português, empreendida pelo poeta amazonense Thiago de Mello, veio um ano depois, com apresentação e colofon de sua autoria, Rio de Janeiro: Pablo Neruda, Cadernos de Temuco - Poesia, Bertrand Brasil, 1998, edição e prólogo de Víctor Farías. A série desses poemas, publicados no caderno A Tarde Cultural, em janeiro de 1997, consiste de tradução livre do espanhol, por este que os editou.

Antes de concluir-se esta redação, há-se de trazer a esta cena evocativa a figura do longevo poeta Thiago de Mello (1926-2022), destaque da chamada Geração de 45, amigo, admirador e correligionário de Pablo Neruda, que, ao apresentar a sua tradução dos Cuadernos de Temuco, nos oferece, logo na abertura, as razões que o levaram a transpor para o português esses poemas escritos pelo jovem chileno, entre os 15 e os 17 anos, e mais adiante revelar o calabouço emocional que os escondeu por mais de sete décadas. Diz ele sobre a edição, embora reconheça que os Cadernos de Temuco, “do moço Neftalí Reyes não têm a poderosa força alada que se ergue sonora das páginas que durante quase meio século iria escrever Pablo Neruda”:

“É um livro de quem já está seguro de que a poesia é o seu caminho inexorável. De quem principia o caminho sabendo onde quer chegar e bem preparado para a caminhada. Todos os poemas denotam impressionante domínio da arte do verso, surpreendente num autor adolescente. Os seus poemas são metrificados e rimados. Maneja, com perícia técnica, todas as cadências. Canta redondilha, celebra decassílabos. Não são poucos os poemas armados no trabalhoso octossílabo. Mas o seu verso preferido é o alexandrino, com cesura mediana”. (MELLO, 1998).

Vai por aí, até desembocar na masmorra dramática, que justificaria o segredo de tanto tempo permanecerem esses poemas guardados.

“O pai de Neftalí, Don José del Carmen Reyes, sempre viu com maus olhos a vocação poética do filho. Considerava a poesia coisa pouco séria. Passou a ameaçá-lo: nada de escrituras na sua casa. Nada de publicação em jornal”. (...) “Um dia, num ataque de fúria, fúria entrou com violência no quarto do filho e simplesmente destruiu tudo que pudesse ter algo a ver com poesia. Fez uma fogueira com livros, revistas, cadernos e papéis”. (MELLO, 1998).

A história deste malfadado episódio foi contada pelo poeta Bernardo Reyes, sobrinho de Neruda, em livro sobre “a vida do poeta e a sua numerosa e entrelaçada família em Temuco”, segundo Mello, que transcreve o relato de como o resguardo dos originais foi possível.

“Neftalí sentiu-se profundamente magoado, passou vários dias cabisbaixo, deprimido, até que, em dado momento mágico, Laurita lhe fez um sinal escondido, pedindo que ele a acompanhasse ao quarto dela sem que os outros percebessem. No meio de intermináveis peças de roupa, lençóis, objetos e cadernos, com um pequeno sorriso de cumplicidade e pondo o dedo índice em cruz sobre os lábios de seu irmão, mostrou-lhe seu pequeno tesouro: os cadernos escolares onde Neftalí escrevia seus poemas”. (REYES apud MELLO, 1998).

Laura, arremata Thiago de Mello, “salvou a poesia das chamas da ira”.

 (Revistas e com acréscimos recentes, essas duas inserções conjugam artigos publicados pelo autor em edições do suplemento semanal A Tarde Cultural; o primeiro, em 16 de julho de 1994, pelo transcurso dos 90 anos de Neruda, se vivo fosse; o outro, em 18 de janeiro de 1997).  


REFERÊNCIAS

 

ALLENDE, Isabel. Largo pétalo de mar. [S.l.]: 8sorbosdeinspiración.com, 2020.

CAMPOS, Paulo Mendes. Dados complementares 1974.

CORTELLA, José Sérgio, filósofo, professor da PUC-SP, escritor e articulista. Nada que é humano me é estranho? In Folha de S. Paulo: Seção “Equilíbrio” (31.08.2000). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq3108200029.htm. Acesso em: 10.10.2022.

FARÍAS, Víctor. Madrid-Espanha: ABC Cultural, seção ABC Literário, nov. 1996.

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Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; professor aposentado da UFBA, pela Faculdade de Comunicação. Exerceu cargos em vários jornais, entre os quais o de editor-chefe de A Tarde, chefe de Redação, do Diário de Notícias, ambos de Salvador, e de chefe da Sucursal do Jornal do Brasil, na Bahia. Editou o suplemento A Tarde Cultural, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Em 1964, cumpriu pós-graduação de Aperfeiçoamento em Jornalismo, em Madrid (Espanha). Foi presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia (1987-1989). Publicou livros de poesia e ensaios, entre eles CACAUEIROS - Poesia. Conto. Teatro e Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais, ambos em 2022. Desde 1995, ocupa a Cadeira nº 31, da Academia de Letras da Bahia.

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          Interior da casa de Pablo Neruda, no Chile, hoje, museu

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