sexta-feira, 26 de maio de 2023

KILKERRY: A SOMBRA DO SIMBOLISMO NA BAHIA


     

    Mulheres na Praia, 1879, impressionismo de Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898) 

 

PEDRO KILKERRY (1885-1917), POETA SIMBOLISTA

 

Pedro Militão Kilkerry, nascido Pedro Militão dos Santos Kuilkuery, o poeta Pedro Kilkerry (1885-1917) era descendente de irlandeses por parte do pai, o engenheiro John Kilkerry, superintendente da Bahia Gás Company Limited, e da mestiça alforriada baiana Salustiana do Sacramento Lima. Em 1906, Kilkerry se juntou ao grupo literário baiano Nova Cruzada e começou a publicar seus primeiros poemas na revista homônima. Em 1913, o poeta se forma em ciências jurídicas e sociais na Faculdade de Direito da Bahia, no mesmo ano em que passa editar as crônicas Quotidianas - Kodaks no Jornal Moderno e lança mão pela primeira vez do poema em prosa. Kilkerry ainda colaborou com poemas e artigos em periódicos de Salvador e começa a escrever em verso livre em seus últimos anos.

Portador de tuberculose pulmonar, faleceu durante uma traqueotomia de emergência em Salvador, sem ter publicado nenhum livro, apesar de ter contribuído para alguns periódicos como Nova Cruzada e Os Anais. Alguns de seus textos foram compilados e publicados pelo ensaísta Andrade Muricy no Panorama do Movimento Simbolista em 1952. Seus poemas, incluindo manuscritos e poemas mantidos oralmente por amigos e familiares, foram recolhidos em 1968 por Augusto de Campos, que o considera um dos precursores do modernismo no Brasil. Também foi chamado de "o Gregório de Matos" daquele período da vida baiana (Autor do resumo: Cao Cruz Alves).


POESIA DE CONCEPÇÃO NOVA E 

INVULNERÁVEL AO PIEGUISMO


“Na verdade, mais do que o exotismo de uma personalidade invulgar, Kilkerry traz para o Simbolismo brasileiro um sentido de pesquisa que lhe era, até então, estranho, e uma concepção nova, moderníssima, da poesia como síntese, como condensação; poesia sem redundâncias, de audaciosas crispações metafóricas e, ao mesmo tempo, de uma extraordinária funcionalidade verbal, numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas.”  AUGUSTO DE CAMPOS [in Re-visão de Kilkerry. São Paulo: Fundo Estadual de Cultura, s.d., p. 11]


“Tem Kilkerry essa qualidade rara, na poesia brasileira, que é a invulnerabilidade ao pieguismo, ao sentimentalismo, frequentemente confundidos com a própria poesia pela crítica indígena. Tal virtude, aliás, parece ínsita à personalidade do poeta. Pelo menos esse é o testemunho de Jackson Figueiredo:” Pobre como talvez nenhum dos que compunham aquele grupo de boêmios sentimentais, era, em meio deles, o menos sentimental, mais esquivo a lamúrias e queixas.”” AUGUSTO DE CAMPOS (obra citada p. 27).

“A análise estrutural desse soneto revela algumas das características fundamentais da estilística de Kilkerry. Sua técnica avançada de compressões imagéticas, à base de metonímias e metáforas, seu “atonalismo” sintático, sua musicalidade agressiva e dissonante. E acima de tudo o alto grau de consciencialização da linguagem, uma intuição notável daquilo a que Décio Pignatari denominou de “isomorfismo” em poesia (“o conflito entre fundo e forma em busca da identificação”) e que outra coisa não é que a interação som-significado com que Jakob “caracteriza, essencialmente, a linguagem poética, identificando-a, por exemplo, em conjuntos fôncios como veni, vidi, vici, que nos fazer pensar nos dissílabos-chave de Kilkerry.” AUGUSTO DE CAMPOS, p. 32

“Descontadas a simplificação cronológica e uma certa ingenuidade com que o problema é colocado por Carlos Chiacchio, não há dúvida que Kilkerry pode ser colocado entre aqueles simbolistas que anteciparam muitas das novas técnicas postas em prática pelos movimentos de vanguarda do início do século. Em particular, se se tem em vista o contexto brasileiro, em que, como se sabe, o surto renovador do Modernismo veio a eclodir, com algum retardo, já na década de 20.” AUGUSTO DE CAMPOS, p. 33

(In: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/pedro_kilkerry.htm

Poetas do mal. Como queria Lautréamont: “(...) não para me tornar mais compreensível, mas somente para desenvolver meu pensamento que, ao mesmo tempo, interessa e enerva, através de uma harmonia das mais penetrantes, inventar uma poesia inteiramente à margem da marcha costumeira da natureza, e cujo hálito pernicioso pareça subverter até mesmo as verdades absolutas”  (...)*
Dalila Machado escolheu três poetas baianos que versam sobre a temática do desvio e do desvario, não necessariamente como seguidores de Lautréamont, pois esta vocação sempre existiu e sempre existirá. Não por mera imitação criam os poetas, mas para responder a um instinto criador pelo avesso da regularidade. Na linha da contrariedade, ou pelo afã do maniqueísmo que congrega adeptos nos seus extremos, partes de uma mesma natureza, só que uns exemplificam pelos contrários enquanto outros pregam virtudes e bem-aventuranças. Mas é justo reconhecer que alguns não pretendem ir ao bem pelos caminhos do mal, por aquelas trilhas exemplares do bem e do mal como forma de iniciação salvadorista. Junqueira Freire, Pedro Kilkerry e Alberto Luiz Baraúna estão neste avesso criativo.

 

 

PEDRO KILKERRY


         é tanto menos polêmico quanto desconhecido do grande público, apesar da enorme repercussão das duas edições do livro Re-visão de Kilkerry
de Augusto de Campos. Não está nas antologias nem nas livrarias, ainda. Muitos simpatizantes do Simbolismo estranham seus versos desviantes da temática e do estilo da época e só encontram de parecido o uso de maiúsculas nos substantivos, enquanto os adjetivos... “Ele não esteve escravizado ao sistema de qualquer precursor, pelo fato de que não se viu inibido em sua criatividade por nenhum mecanismo obsessivo de racionalização e comparação, nem tampouco sua poesia toma de empréstimo outra voz”. (Dalila Machado, p. 164) Tampouco sua voz é reverenciada e imitada por seus contemporâneos.

         Não obstante Kilkerry ter produzido, em sua curta vida, “a mais excêntrica e radical poesia simbolista do Brasil” (Dalila Machado, p. 118), sua face fáustica é menos reconhecível, é mais velada e hermética. Está mais para cósmico que para satânico, como a autora reconhece: “O tempo de criação expresso nas horas ígneas de Pedro Kilkerry, diferente do tempo lógico, é o tempo cósmico, um tempo que não se esgota e que se renova a cada leitura de seus poemas, o tempo presente da poesia” (p. 122).  Certo que lia Lautréamont e Rimbaud, que teve contatos com os textos de Nietzsche, sua poesia era menos explicitamente demoníaca, mais bem propensa a um “discurso tão enigmático e profundo” (p. 133). Ou seja: “os enigmas propostos por Kilkerry na lírica e na prosa possuem o princípio aristotélico de, coligindo absurdos, dizer coisas acertadas” (p. 133). Ou seja, um poeta “moderno” superando o pieguismo e o sentimentalismo dos (piores) simbolistas de seu tempo, não significando ter superado os melhores da época (enquanto representante de sua época, e não de vertentes futuras).

         Dalila se justifica ao recorrer a Barthes para afirmar que “Os poetas malditos são aqueles que ultrapassam os limites impostos pela burguesia, os que transgrediram, através da ruptura com os cânones clássicos, e anunciaram o alvorecer da modernidade” (p. 136), que se pode dizer também de Kilkerry, certamente. Embora Kilkerry não tenha chegado à radicalidade de Junqueira Freire e muito menos à vida nada convencional de Rimbaud quanto a valores de seu tempo, incluindo a sexualidade. Mas Dalila nos demonstra a capacidade do poeta baiano de perceber a divisão do inconsciente individual do coletivo, em que estaria bem à frente até da ciência de seu tempo. O fecho do capítulo sobre Kilkerry é um tanto grandiloquente, embora o capítulo seja uma preciosidade em termos de argumentação: “o que escreveu permanece na atualidade, pois sua grande poesia é eterna” (p. 165).

 

       Com traços e cores suaves, Calasans Neto elevou os cetáceos a habitantes de Itapuã 

CETÁCEO


Fuma. É cobre o zênite. E, chagosos no flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada
Coalha bebendo o azul um largo voo branco.


Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.


Tine em cobre o zênite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.


E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’ água ou do sol vermelho.*


*Lembrado por Florisvaldo Mattos, o soneto "Cetáceo", de Pedro Kilkerry, verdadeira obra prima. (Maria da Conceição Paranhos, no Facebook, em 10/09/2015).

“Aqui [no poema Cetáceo], na sintaxe condensada e trabalhada por esquisitas sonoridades, os planos imagéticos se aglutinam, se superpõem, provocando uma descontinuidade semântica que abstratiza a aquarela marinha, desparnasiando-a. (...) As imagens se aglomeram em contínuas elipses. Imagens, quase sempre, de movimento.” AUGUSTO DE CAMPOS (obra citada, p. 30)

(In: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/pedro_kilkerry.h


O MURO


As horas brancas lá vão, de amor e rosas

As impalpáveis formas, no ar, cheirosas...

Sombras, sombras que são da alma doente!

 

E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente 

Abrindo à tarde as órbitas musgosas  

- Vazias? Menos do que misteriosas –

Pestaneja, estremece... O muro sente!

 

E que cheiro que sai dos olhos dele,

Embora o caio roído, cor de brasa,

E lhe doa talvez aquela pele.

 

Mas um prazer ao sentimento casa...

Pois o ramo em que o vento à dor lhe impele

É onde a volúpia está de uma asa a outra asa.

 

(Augusto de Campos - Revisão de Kilkerry. São Paulo: Fundo Estadual de Cultura, 1970)

 

É O SILÊNCIO...

 

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.

Olha-me a estante em cada livro que olha.

E a luz nalgum volume sobre a mesa...

Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha

A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.

Penso um presente, num passado. E enfolha

A natureza tua natureza.

Mas é um bulir das cousas... Comovido

Pego da pena, iludo-me que traço

A ilusão de um sentido e outro sentido.

Tão longe vai!

Tão longe se aveluda esse teu passo,

Asa que o ouvido anima...

E a câmara muda. E a sala muda, muda...

Àfonamente rufa. A asa da rima

Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda

Novo, um fantasma ao som que se aproxima.

Cresce-me a estante como quem sacuda

Um pesadelo de papéis acima...

.......................................................................

E abro a janela. Ainda a lua esfia

últimas notas trêmulas... O dia

Tarde florescerá pela montanha.

E ó minha amada, o sentimento é cego...

Vês? Colaboram na saudade a aranha,

Patas de um gato e as asas de um morcego.

 

VINHO 

Alma presa da Grécia, em prisão de turquesa!
Vibre a Vida a cantar nessas taças à Vida,
Como, dentro do Sangue, a Alma da Natureza
— Num seio nu, num ventre nu, — ferve incendida!

Vinho de Cós! e quente! a escorrer sobre a mesa
Como um rio de fogo, onde vela perdida,
Braço branco, embalada à flor da correnteza,
Floresce ao sol, floresce à luz, floresce à Vida!

Oh! benvinda; benvinda essa vela que chega!
Nau de rastro que traz a ilusão de uma grega
Descerrando à Volúpia a clâmida aquecida...

Vinho de Cós! vinho de Cós! e os nossos olhos
De Virgílio a errar entre vagas e escolhos,
Argonautas de Amor sobre os mares da Vida!

(1909)

In: CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry. 2.ed. SP: Brasiliense, 1970

           Veredas da Língua: poesia e prosa, quando escritas a pena



CÉRBERO


É, não vens mais aqui... Pois eu te espero,
Gele-me o frio inverno, o sol adusto
Dê-me a feição de um tronco, a rir, vetusto
- Meu amor a ulular... E é o teu Cérbero!

É, não vens mais aqui... E eu mais te quero,
Vago o vergel, todo o pomar venusto
E a cada fruto de ouro estendo o busto,
Estendo os braços, e o teu seio espero.

Mas como pesa esta lembrança... a volta
Da aleia em flor que em vão, toda transponho,
E onde te foste, e a cabeleira solta!

Vais corações rompendo em toda a parte!
Virás, um dia... E à porta do meu Sonho
Já Cérbero morreu, para agarrar-te
.

 

AD VENERIS LACRIMAS


Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto
Que Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua,
Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto
aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua...

Canta a lâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto
Acordo e ouço a voz ou da lâmpada ou sua
O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto
Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua.

Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro
Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava
Finas frechas de luz na cúpula aquecida...

Querem cantar de Íon os dois seios, em coro...
Mas sua alma - por Zeus! – n´água azul doutra Vida
Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava.

 

AMOR VOLAT


Não, não é comigo que ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...

Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o passo, e atrasa...

Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!

E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar largamente, um bocado
de músculos pingando a levar-me no bico!

 

RITMO ETERNO


Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!


In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de Cultura, 1970

o

FLORESTA MORTA


Por que, á luz de um sol de primavera
Urna floresta morta? Um passarinho
Cruzou, fugindo-a, o seio que lhe dera
Abrigo e pouso e que lhe guarda o ninho.

Nem vale, agora, a mesma vida, que era
Como a doçura quente de um carinho,
E onde flores abriram, vai a fera
— Vidrado o olhar — lá vai pelo caminho.

Ah! quanto dói o vê-la, aqui, Setembro,
Inda banhada pela mesma vida!
Floresta morta a mesma cousa lembro;

Sob outro céu assim, que pouco importa,
Abrigo á fera, mas, da ave fugida,
Há no meu peito urna floresta morta.

 

EVOÉ


Primavera! — versos, vinhos... 

Pedro Kilkerry, um simbolismo infenso ao pieguismo

Nós, primaveras em flor.

E ai! corações, cavaquinhos

Com quatro cordas de Amor!

 

Requebrem árvores — ufa! —

Como as mulheres, ligeiro!

Como um pandeiro que rufa

O Sol, no monte, é um pandeiro! 

 

E o campo de ouro transborda...

Ó Primavera, um vintém!

Onde é que se compra a corda

Da desventura, também?

 

Agora, um rio, água esparsa...

Nas águas claras de um rio,

Lavem-se penas à garça

Do riso, branco e sadio!

 

E o dedo estale, na prima...

Que primaveras, e em flor!

Ai, corações, uma rima

Por quatro versos de Amor!


(Augusto de Campos – Revisão de Kilkerry. SP: Fundo Estadual de Cultura, 1970)


ESSA, QUE PAIRA EM MEUS SONHOS


Essa, que paira em meus sonhos,
Em meus sonhos a brilhar,
E tem nos lábios risonhos
O nácar do Iônio — Mar —
Numa fantasia estranha,
Estranhamente a sonhei
E de beleza tamanha,
Enlouqueci. É o que sei.
Ela era, em plaustro dourado
Levado de urcos azuis,
De Paros nevirrosado,
Ombros nus, os seios nus...
E que de esteiras de estrelas,
De prásio, opala e rubim!
Na praia perto, por vê-las
Vi que saltava um delfim
Que longamente as fitando
Alçou a cauda, a tremer
E outros delfins, senão quando
Aparecer.


In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de Cultura, 1970

 

O VERME E A ESTRELA


Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!

E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?


In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. SP: Fundação Estadual de Cultura, 1970

 

SOB OS RAMOS 

É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora,
No meu cavalo — sob a loira poeira
Que chove o sol — e vai-me a vida inteira
No meu cavalo, pela estrada afora.

Ai! desta em que te escrevo alta mangueira
Sob a copada verde a gente mora.
E em vindo a noite, acende-se a fogueira
Que se fez cinza de fogueira agora.

Passa-me a vida pelo campo... E a vida
Levo-a cantando, pássaros no seio,
Qual se os levasse a minha mocidade...

Cada ilusão floresce renascida;
Flora, renasces ao primeiro anseio
Do teu amor... nas asas da Saudade!

(1907)


In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de Cultura, 1970

    Kilkerry moderno: Circula um vapor de cobre / Os montes - de cinza e brasa. Cartaz

RITMO ETERNO


Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!


In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. SP: Fundação Estadual de Cultura, 1970


HORAS ÍGNEAS


I

Eu sorvo o haxixe do estio...
E evolve um cheiro, bestial,
Ao solo quente, como o cio
De um chacal.

Distensas, rebrilham sobre
Um verdor, flamâncias de asa...
Circula um vapor de cobre
Os montes — de cinza e brasa.

Sombras de voz hei no ouvido
— De amores ruivos, protervos —
E anda no céu, sacudido,
Um pó vibrante de nervos.

O mar faz medo... que espanca
A redondez sensual
Da praia, como uma anca
De animal.

II

O Sol, de bárbaro, estangue,
Olho, em volúpia de cisma,
Por uma cor só do prisma,
Veleiras, as naus — de sangue...

III

Tão longe levadas, pelas
Mãos de fluido ou braços de ar!
Cinge uma flora solar
— Grandes Rainhas — as velas.

Onda por onda ébria, erguida,
As ondas — povo do mar —
Tremem, nest'hora a sangrar,
Morrem — desejos da Vida!

IV

Nem ondas de sangue... e sangue
Nem de uma nau — Morre a cisma.
Doiram-me as faces do prisma
Mulheres — flores — num mangue...


In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de Cultura, 1970


AMOR VOLAT


Não, não é comigo que ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...

Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o passo, e atrasa...

Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!

E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar largamente, um bocado
de músculos pingando a levar-me no bico!

 (1910)

 

HORAS ÍGNEAS

 

Eu sorvo o haxixe do estio...

E evolve um cheiro, bestial,

Ao solo quente, como o cio

De um chacal.

 

Distensas, rebrilham sobre

Um verdor, flamâncias de asa... 

Circula um vapor de cobre

Os montes – de cinza e brasa.

 

Sombras de voz hei no ouvido

- De amores, ruivos, protervos –

E anda no céu, sacudido,

Um pó vibrante de nervos.

 

O mar faz medo... que espanca

A redondez sensual

Da praia, como uma anca

De animal.

 

II

O sol, de bárbaro, estangue.

Olho, em volúpia de cisma.

Por uma cor só do prisma,

Veleiras as naus – de sangue...

III

Tão longe levadas, pelas

Mãos de fluido ou braços de ar!

Cinge uma flora solar

- Grandes Rainhas – as velas.

 

Onda por onda ébria, erguida,

As ondas – povo do mar –

Tremem, nest´hora a sangrar,

Morrem - desejos da Vida!

 

IV

Nem as ondas de sangue – e sangue

Nem de uma nau – morre a cisma.

Doiram-se as faces do prisma

Mulheres – flores – num mangue...


KILKERRY PARA TODOS

https://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Pedro_Kilkerry


KILKERRY,  NO PERIODISMO CIENTÍFICO

 

Conteúdo de raro interesse do jornalismo cotidiano, embora apareçam de quando em vez reportagens e páginas em jornais sobre esse campo do conhecimento, circula hoje encartado na edição de “A Tarde” o primeiro número da revista bimestral  BAHIACIÊNCIA, que tem como editora a jornalista Mariluce Moura e traz entre seus colaboradores nomes como Claudio Bandeira, especialista em jornalismo científico, dois ex-reitores da UFBA, Eliane Azevedo e Naomar de Almeida Filho,  e o ex-presidente da Federação das Indústria da Bahia e atual vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria, José de Freitas Mascarenhas. Além do competente elenco de textos dentro da sua especialização editorial, chamou-me a atenção trazer a revista em sua contracapa um poema, e um poema justamente do simbolista baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), talvez por se tratar de um poeta de lavra esquisita, na linha de um Augusto dos Anjos, que a melhor crítica classifica de protomodernistas, isto é, modernos anteriores ao modernismo. Embora não fosse de extração romântica, Kilkerry morreu jovem, de tuberculose, em consequência de uma traqueotomia. Era de Santo Antônio de Jesus. O que permanece da obra dele se deve ao concretista Augusto de Campos, que publicou em 1970 o livro intitulado “Re-Visão de Kilkerry”, após laboriosa pesquisa. Abaixo o poema publicado na revista. A ilustração é a tela “Mulheres na Praia” (1879), do impressionista Pierre Puvis de Chavannes (1844-1898), que, como todo simbolista, buscava revestir a ideia de arte com formas sensíveis. 

FM NO FACEBOOK EM 25/05/2014, DOMINGO

    Henrique Passos: Largo do Relógio de São Pedro, óleo s/tela, Salvador=BA, 2003 

 

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