domingo, 20 de novembro de 2022

POESIA INTELECTUAL, AQUI, ALÍ E ACOLÁ

 

   Em sua última fase, Jorge Luis Borges (1899-1986) se definia como poeta intelectual

BORGES E A POESIA INTELECTUAL

Leal Kostav

(18 de novembro, 2022)

Há exatos quatro dias, publiquei, no Facebook, trecho de POEMA DA DESINTOXICAÇÃO, de João Cabral de Melo Neto, transcrito de Pedra do sono, livro de estreia do poeta, publicado em 1941. Ao comentar o poema, Florisvaldo Mattos, intelectual baiano, poeta, jornalista, professor de jornalismo, membro da Academia de Letras da Bahia (ALB), disse : "Cabral, em grande parte de sua poesia, se parece para mim com a poética de Paul Valery, onde mais reina o pensamento, exercitado pelo intelecto, do que a emoção. Lembro desse francês toda vez que leio poemas de Cabral, como "Uma faca só lâmina" e outros, mais ainda em se tratando de poemas em homenagem à Andaluzia espanhola, onde ele viveu por 14 anos, como cônsul do Brasil, de que são exemplo os escritos em Sevilha. Cabral é nosso maior representante da poesia intelectual, assim penso. Se querem saber o que isso significa e como se define, leiam o prólogo do argentino Jorge Luis Borges, em seu último livro, La cifra (Buenos Aires, 1982).
Hoje, publico o Prólogo, na tradução de Josely Vianna Baptista (A CIFRA ,1981) , uma leitura necessária para todos os que escrevem poesia . Quantos já leram?

La Cifra: Prólogo
Jorge Luis Borges

O exercício da literatura pode nos ensinar a eludir equívocos, não a merecer acertos. Revela-nos nossas impossibilidades, nossos severos limites, Com o passar dos anos, compreendi que estou proibido de ensaiar a cadência mágica, a curiosa metáfora, a interjeição, a obra sabiamente governada ou de largo fôlego. Minha sina é o que se costuma chamar de poesia intelectual. A palavra é quase um oxímoro; o intelecto (a vigília) pensa por meio de abstrações, a poesia (o sonho), por meio de imagens, de mitos ou de fábulas. A poesia intelectual deve entretecer a contento esses dois processos. Assim faz Platão em seus diálogos; assim também Francis Bacon, em sua enumeração dos ídolos da tribo, do mercado, da caverna e do teatro. O mestre do gênero é, em minha opinião, Emerson; também o ensaiaram, com diversa felicidade, Browning e Frost, Unamuno e, asseguram-me, Paul Valéry.
Admirável exemplo de uma poesia puramente verbal é a seguinte estrofe de Jaimes Freyre:

Pomba imaginária peregrina
que inflama os últimos amores;
alma de luz, música e flores,
pomba imaginária peregrina.
Não quer dizer nada e, à maneira da música, diz tudo. Exemplo de poesia intelectual é aquela silva de Luis de León, que Poe sabia de cor:

Quero viver comigo mesmo,
quero gozar do bem que devo ao Céu,
sozinho, sem testemunhas,
livre do amor, do ciúme, do
ódio, da esperança, da desconfiança.
Não há uma única imagem. Não há uma única palavra bonita, com a duvidosa exceção de "testemunha", que não seja uma abstração.
Estas páginas procuram, não sem alguma incerteza, uma via intermediária.



ESPANHA NORDESTINADA

Florisvaldo Mattos

A primeira incursão (talvez única, suponho) de análise crítica estruturada da poesia de João Cabral de Melo Neto, na Europa, deve ser creditada a um casal de espanhóis, Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate, que o conheceram, entre fins dos anos 1950 e inícios dos 1960, em suas sucessivas remoções como diplomata a serviço do Itamarati, na Espanha: de Barcelona para Sevilha e, depois, desta cidade andaluza para Madrid, a capital, percursos que o fariam residente na Espanha por 14 anos ininterruptos.

Desses contatos com o homem e a obra, essa num ponto de maturação formal que lhe atestava reconhecida proeminência entre os poetas da chamada Geração de 45, nasceria um opúsculo de 70 páginas, intitulado Realidad y forma en la poesia de Cabral de Melo, editado em Madrid (Gráficas Benzal, 1962), que dá uma panorâmica da produção poética de Cabral, de Pedra do Sono (1942) até Serial (1961), apontando-lhe as qualidades que já o faziam precursor de correntes estéticas posteriores, como o concretismo e a poesia-práxis, ambos de São Paulo, e o grupo de mineiros que girava em torno da revista Tendência e, por isso mesmo, um poeta à margem de sua própria geração.

Pedra do Sono (1942), o primeiro livro de Cabral, já revela para esses críticos, além dos referenciais de sensualidade e ironia do Drummond, de Brejo das Almas (1934), certa identidade com a reação que ali se iniciara “contra os excessos de liberdade do modernismo” e, de outra parte, refletia “o ambiente entremesclado de magia e realidade”, presente na obra tanto do mineiro como do estreante pernambucano. Guiados apenas pelo título e pela aparência de suas imagens, identificam também no livro “uma ascendência surrealista”, assim como no plano formal, influências atmosféricas de Stéphane Mallarmé e Paul Valéry, sem que, no entanto, estas lhe atinjam a essência da criação poética.

“Ainda que não pareça, Pedra do Sono é um livro narrativo. Trata-se de uma narração cujo fio discursivo nos parece mais assemelhado ao cinematográfico que ao gramatical, posto que obtido por meio de imagens justapostas extraídas da recordação. Mas não da lembrança daquilo que o poeta contemplou desperto, senão das imagens oníricas”, dizem os autores, aludindo a uma comunicação apresentada por João Cabral ao Primeiro Congresso de Poesia de Recife (1941), sob o título de Considerações do poeta dormindo, para demonstrar como o poeta se desempenha, num terreno crítico e seletivo, “ante um material tão informe como o que provém do sonho”. (CRESPO; GÓMEZ BEDATE, 1962).

No entanto, observam, essa poesia mergulhada na atmosfera do sonho não pode ser chamada de onírica, mas de racional, porque está construída de forma claramente lógica, apesar das numerosas imagens de fundo irracional. Há sempre um processo lógico ordenando e justapondo imagens “evidentemente oníricas”, ao ponto de em alguns poemas o poeta recorrer a artifícios matemáticos e geométricos, para conferir elementos de precisão à expressão poética.

A tendência para instalar-se no reino do preciso cresce no livro seguinte, O Engenheiro (1945), no qual o poeta evidencia um progressivo e rápido distanciamento do mundo dos sonhos, emparelhado com “a iniciação indireta de seu peculiar realismo”; os dois analistas espanhóis surpreendem aí “uma nova etapa do caminho de investigação da forma e essência poéticas”.

Alça-se ao primeiro plano, no entender de ambos, uma nova faceta do construtivismo racionalista que se manifestava por trás do aparente automatismo psíquico de Pedra do Sono.


Nesse livro, se inicia um processo cujo desenvolvimento assumirá uma importância decisiva: os temas tratados já não procedem do mundo dos sonhos, como sucedia em Pedra do Sono, mas da realidade de que se serve o poeta, tomando assim pela primeira vez contato com o real, em função do problema que pretende formular e resolver e que outro não é senão o da origem, fim e existência atual da poesia. (CRESPO; GÓMEZ BEDATE, 1962).

O poeta contempla a poesia “com olhos de engenheiro”; no seu afã de construtor, reduz tudo a objetos materiais, tanto os minerais como as coisas dotadas de vida e movimento, e até mesmo os seres fantásticos, emergidos dos sonhos ou da imaginação. Tudo que é transparente, aéreo, diáfano, adquire solidez e equilíbrio. O poeta faz realmente do livro sua arte poética, montando através da própria poesia uma teoria do poema. O próprio material da escrita – a tinta, o lápis, o papel – adquire consistência através de um processo de materialização. Materiais mortos fazem nascer a matéria viva da palavra e finalmente a do verso, a do poema, a do livro. É lembrado (sem transcrição) o famoso verso de Mallarmé em que os materiais da escrita esgrimem com a brancura da página virgem, vencendo-a, como se atravessassem um deserto de obscuridade. (“O nuits! ni la clarté déserte de ma lampe / Sur le vide papier que la blancheur défend” (MALLARMÉ, 1893, p. 19-20) / “Ó noites! Nem a luz da lâmpada severa, / No infecundo papel que a brancura interdiz” – VEIGA, 1999, tradução).

Na persecução de um ideário estético, próprio da plêiade de integrantes da Geração de 45, há de se encarar o poeta João Cabral de Melo Neto como inserido na vertente mais intelectualizada desse movimento, como seu “representante típico”, no dizer de Milton de Godoy Campos (1966), especialmente nas suas duas obras, O Engenheiro (1945) e Psicologia da Composição (1947), desde que nada se vê nele, seja concernente à primeira delas, “a da poesia de feição clássica, de raízes entrelaçadas à grande lírica greco-latina”, seja à “que se liga à lírica tradicional luso-brasileira”. (CAMPOS, 1966). Assim deduzo.

A essa altura, as análises dos dois espanhóis instigam­-me uma cogitação, que pode parecer afoiteza, mas, a meu ver, pertinente, a de comparação da estética da poesia desse pernambucano com a de fundamento racional do francês Saint-John Perse (1887-1975), em que o real (o objeto) se situa como ponto de partida, espécie de umbral, para que a elocução poética patenteie limites de configuração geométrica, pela intervenção do intelecto, desde que impera o racional na escrita de ambos, impulsionado por abstrações, como que em perene vigília, emergindo a poesia, o sonho, por meio de imagens, com o entrelaçamento dos dois processos pela palavra (BORGES, 1982). São ambos claramente poetas intelectuais.

É o que ocorre com Perse, em seu poema “Amers”, 1957 (Marcas marinhas, tradução em 2003), quando ele próprio, em carta a um poeta sueco (Dag Hammarskjöld), ao explicar a razão da escolha do tema, confessa, literalmente:

Foi a integridade mesma do homem – e do homem de todos os tempos, físico e moral, na sua vocação de poder e seu gosto do divino – que desejei erguer no limiar mais nu, em face da esplêndida noite de seu destino em curso. E foi o Mar que eu escolhi, simbolicamente, como espelho oferecido a esse destino – como lugar de convergência e irradiação: verdadeiro “lugar geométrico” e mesa de orientação, ao mesmo tempo reservatório de forças eternas, que possibilitam ao homem, esse incansável migrador, cumprir-se e ultrapassar-se. Tomei caminhada para o Mar como uma ilustração dessa busca errante do espírito moderno, imantado sempre pela atração mesma da sua insubmissão. (PERSE, 2003).


Nesse rastro chega-se ao poema “O cemitério marinho” (“Le cimetière marin”, tradução de Darcy Damasceno, 1949), de Paul Valéry, uma das influências do movimento de 45, de quem deveriam provir duas de suas principais características, limpidez de expressão e o apuro formal (CAMPOS, 1966). Nas palavras do crítico Roberto Alvim Corrêa (1901-1983), que o define como engenheiro”, a propósito desse poema citado, Valéry “foi o mais consciente dos poetas e denunciou, como ninguém, os elementos corruptores da linguagem” (1949). E arremata:

"Ordenados em versos ou em prosa, os vocábulos tornavam-se para um meio de investigação, um dos mais seguros, por conterem ainda algo da descoberta primitiva. Os fenômenos observados importavam para ele – e isso em detrimento da ilusão, do irreal, do inventado, os quais só eventualmente requerem o dom poético. Valéry rejeitava toda manifestação formal de um mundo aproximativo. Só o retinha a exatidão possível do real e – a um tempo utensílio e termo, - a palavra, reduzida ao carbono, ao diamante, cortante e estrelado. Meio e fim, uma sucessão de palavras impunha-se ao artesão preocupado em cumprir o seu ofício. (CORRÊA, 1949). O que faltaria dessas cogitações estéticas na poesia de João Cabral, arrisco a indagar.

Em Perse, tradução de Bruno Palma (2003), a operação poética funciona como busca de uma veracidade, que se mostre centrada na realidade da vida, da linguagem e da arte. Logo na entrada de seu poema sobre o tema que escolheu o Mar (em maiúscula, a remontar vagamente à dicção simbolista) está “em festa em seus degraus como ode de pedra: vigília e festa em nossas fronteiras, murmúrio e festa à altura dos homens – o Mar, ele mesmo nossa vigília, como promulgação divina...” Logo a seguir enuncia que “odor fúnebre da rosa não assediará mais os gradis dos túmulos”. (PERSE, 2003).

Poesia altamente intelectualizada, como a de João Cabral, que não esconde no fundo ressonâncias do surrealismo, cujo propósito, de inspiração freudiana, no dizer de André Breton, seu principal teórico, era confiar “na transmutação futura de dois estados aparentemente  contraditórios, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de supra-realidade”. (CHILVERS, 1996). Por essas e outras, o marco do surrealismo foi a incoerência doutrinária, ao optarem seus seguidores por uma multidão de caminhos. 

Os dois críticos espanhóis tomam Psicologia da Composição (1947), que foi o primeiro livro publicado por Cabral na Espanha, como prova de avanço do poeta no terreno da poesia pura, sobre trilhas abertas pelo francês Paul Valéry, mas levando-a mais além, quando reduz “ao mínimo as reminiscências da poesia tradicional” e chegando “a um grau de rarefação da matéria poética que supõe uma negação do ato de produção”.

O grande propósito desses comentadores naquele momento era flagrar e demarcar a marcha de Cabral para a efetivação, em sua criação poética e através dela, de um desejo de comunicação e ampliação do que chamam de “círculo dos participantes de sua poesia”, decorrente de um processo de “clara consciência realista e social”. O salto se estabelece com a publicação, também em Barcelona, de O Cão sem Plumas (1950). O objeto poético, como ocorria nos livros anteriores, deixa de ser a poesia em si mesma. Cabral descobre-se escritor e homem nordestino. E será o rio Capibaribe o signo líquido identificado com o Recife que toma para empreender uma viagem de longo percurso e que, depois, serão a própria terra, agreste e sofrida, cortada ou não pelo rio, e seu povo, mais do que sofrido, o espaço telúrico e épico de construção de uma moral, que lhe facilitará a comunicação com o leitor.

Dá-se o que os dois críticos chamam “a conquista da realidade” por João Cabral. Para tanto, o poeta se vale da capacidade que lhe confere o pleno domínio e posse de um instrumental poético aperfeiçoado ao longo de sua fecunda primeira etapa criativa, o que lhe favoreceu empreender uma tarefa só intentada com sucesso antes obtido pelos ficcionistas do ciclo nordestino, a partir de 1930. Resolve, então, como sugerem Crespo e Gómez Bedate, lançar ao mar a flauta refinada da poesia pura, que em contrapartida a ressaca devolverá – “e ele a recolheu nas águas de um rio nordestino: o Capibaribe”. Segundo eles, Cabral “se vale agora de materiais extraídos da realidade, não de uma realidade estática, mas dinâmica, em suma, de um conflito social”, com versos “que estabelecem contraste entre a miséria representada pelo rio e o termo oposto do processo dialético-social”, a presença real da classe dominante que margeia suas águas – como diz ele em um verso, “mas de costas para o rio”.

A necessidade de comunicação, represada pela opção formal dos livros anteriores, fechada com Psicologia da Composição, sem prescindir da palavra exata e concreta, avança para um novo acento, através do Capibaribe, numa expressão, como dirá o próprio poeta, “que o vale possa ecoar/ e seja cantado na feira.”. É quando, tomado de inquietação pelos problemas sociais, publica em 1950 O Cão sem Plumas, iniciando o tríptico do Capibaribe, que se completará com o O Rio (1954) e Morte e Vida Severina (1956). Cabral acrescenta ao ideal do termo exato o da simplicidade, inserindo ali “a tipicidade do drama nordestino no âmbito da poesia universal”. (CAMPOS, 1966).

Para compreender a opção cabralina por uma poética de acento mais popular, Crespo e Gómez Bedate estabelecem analogias estilísticas com ressonâncias de formas poéticas medievais, no propósito de alcançar “efeitos conversacionais”, e identificam relações de formas poéticas presentes em O Rio, que narra o trajeto do Capibaribe em direção ao mar, e em Vida e Morte Severina, com formas do Romanceiro espanhol, notadamente com o Poema de Mio Cid, observando-se até simetrias rítmicas e de rimas, que soam para eles como reminiscências, numa composição “que tão fielmente segue a técnica narrativa medieval”.

Nesses três livros, o poeta age como que atraído pela realidade contundente de lugares e vidas trágicas, olvidando-se da arte poética que “com tanta exigência havia elaborado” anteriormente, optando agora por fazer do leitor um partícipe de sua obra e encarregando-o do “inevitável julgamento da realidade que se lhe apresenta”.


Se é do seu interesse – observam – a miséria dos lugares por onde desliza o rio nordestino e as gentes que nele vivem ou querem viver, primeiramente abordará o tema, fixando-se na qualidade das águas desse rio e as comparações com que os homens que à margem dele vivem lhe suscitam (O Cão sem Plumas); em seguida, fixará sua atenção (O Rio) no que poderíamos chamar de sua geografia; finalmente, o rio se tornará a passagem da ação, transferida ao retirante (Morte e Vida Severina), cuja miséria foi a inspiração dos três poemas.
(CRESPO; GÓMEZ BEDATE, 1962).

Essa poética, oriunda da aproximação da realidade social, articulada com as experiências de sua poesia anterior, terá curso – “uma nova poética” – na obra subsequente de João Cabral, o poema Uma faca só lâmina, que proporciona aos dois críticos “um fascinante prazer intelectual” e os aproxima em definitivo da ideia de que essa poesia “nasce do choque ou fricção do instrumento poético com a realidade exterior, isto é, que não deve ser tema de si mesma”. Agora, o tema é a insatisfação que fustiga o homem e não o deixa repousar – a falta de algo de que o privaram: “Assim, essa inquietação, esse algo abstrato, possui a existência material e delimitada de um objeto pequeno, denso e pesado” – uma bala, um relógio, uma faca que se alimentam “do que não existe”, como a fome, em que a vida se mede pelo avesso.

À recuperação e reelaboração de formas medievais ibéricas e nos elementos de essencialidade hispânica, que ressoam no próprio romanceiro popular do Nordeste brasileiro, Crespo e Gómez Bedate creditam o desejo de Cabral de ampliar o poder comunicativo de sua obra, presente nos poemas do tríptico do Capibaribe, e (dizemos nós) que prossegue em outras criações do poeta, como as que integram o volume de Terceira Feira (Quaderna, Dois Parlamentos e Serial, 1961) e, mais adiante, A escola das facas (1979) e Agrestes (1985).

A necessidade de residir na Espanha, por imposições do serviço diplomático brasileiro, fez com que a paisagem e também a humanidade espanhola se entranhassem na poesia de João Cabral, de forma que Pernambuco e Espanha acabarão por se tornar os seus dois temas centrais e irão fornecer os elementos mais duradouros de sua obra. E não é de estranhar que o melhor dessas segunda e terceira águas, que estão a rolar desde a publicação do livro Duas águas (1956), tenha como sua marca definitiva um aprofundamento da consciência social do poeta, baseada numa regra moral e estética, que aproxima ou identifica os universos espanhol e nordestino, e amparada numa linguagem, cujo significado ultrapassa os objetivos alimentados pelo rigor formal da experiência construtivista – esta, pelo contrário, passa a se colocar a serviço de uma comunicação mais íntima entre o poeta e seu público.

É o que concluem Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate, em sua análise da obra de Cabral já em 1962:

[…] afirmamos que sua estética soube fundir o ibérico, o ibero-americano de Pernambuco, com o hispânico e que através deste poeta brasileiro, o espanhol resultou em elemento importantíssimo para a síntese de elementos cultos e populares que produziu uma das obras poéticas mais importantes do Brasil e, em geral, nos últimos decênios. (CRESPO; GÓMEZ BEDATE, 1962).


São essas premonições, de 1962, que irão ainda mais confirmar-se com o livro Sevilha andando (1990), última publicação em livro de João Cabral de Melo Neto.

Pablo Picasso (1881-1973), Touro Morrendo, 1934

POEMAS HISPÂNICOS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO


ALGUNS TOUREIROS


Eu vi Manolo Gonzáles 

e Pepe Luís, de Sevilha: 
precisão doce de flor, 
graciosa, porém precisa. 
Vi também Julio Aparício, 
de Madrid, como Parrita: 
ciência fácil de flor, 
espontânea, porém estrita. 
Vi Miguel Báez, Litri
dos confins da Andaluzia, 
que cultiva uma outra flor: 
angustiosa de explosiva. 
E também Antonio Ordóñez, 
que cultiva flor antiga: 
perfume de renda velha, 
de flor em livro dormida. 
Mas eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais deserto, 
o toureiro mais agudo, 
mais mineral e desperto, 
o de nervos de madeira, 
de punhos secos de fibra 
o da figura de lenha 
lenha seca de caatinga, 
o que melhor calculava 
o fluido aceiro da vida, 
o que com mais precisão 
roçava a morte em sua fímbria, 
o que à tragédia deu número, 
à vertigem, geometria 
decimais à emoção 
e ao susto, peso e medida, 
sim, eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais asceta, 
não só cultivar sua flor 
mas demonstrar aos poetas: 
como domar a explosão 
com mão serena e contida, 
sem deixar que se derrame 
a flor que traz escondida, 
e como, então, trabalhá-la 
com mão certa, pouca e extrema: 
sem perfumar sua flor, 
sem poetizar seu poema.

(MELO NETO, 1955).

                       LEMBRANDO MANOLETE 


Tourear, ou viver como expor-se;
expor a vida à louca foice

que se faz roçar pela faixa
estreita de vida, ofertada

ao touro; essa estreita cintura
que é onde o matador a sua

expõe ao touro, reduzindo
todo o seu corpo ao que é seu cinto,

e nesse cinto toda a vida
que expõe ao touro, oferecida

para que a rompa; com o frio
ar de quem não está sobre um fio.

(MELO NETO, 1985)


RETRATO DE ANDALUZIA

Estatura pequena e nítida

das cidades de onde ela era:

daquele justo para o abraço

que é de Cádiz, onde nascera,

e de Sevilha, onde vivia

e se dizia, mas não era:

cidades que ainda se podem

abraçar de uma vez, completas,

e que dão certo estar-se dentro,

àquele que as habita ou versa,

a entrega inteira, feminina,

e sensual ou sexual, de sesta.

(MELO NETO, 1966/1974).



SEVILHA

1.

A cidade mais bem cortada

Que vi: Sevilha;

Cidade que veste o homem

Sob medida.

Justa ao tamanho do corpo

Ela se adapta,

Branda e sem quinas, roupa

Bem recortada.

Cortada só para um homem,

Não todo o humano:

Só para o homem pequeno

Que é o sevilhano.

Que ao sevilhano Sevilha

Tão bem se abraça

Que é como se fosse roupa

Cortada em malha.

2.

Ao corpo do sevilhano

Toda se ajusta

E ao raio de ação do corpo

Ou sua aventura.

Nem com os gestos do corpo

Nunca interfere,

Qual roupa ou cidade que é

Cortada em série.

Sempre à medida do corpo

Pequeno ou pouco:

Ao teto baixo do míope,

Aos pés do coxo.

Nunca tem panos sobrando

Nem bairros longe;

Sempre ao alcance da perna

Que não tem bonde.

3.

O sevilhano usa Sevilha

Com intimidade,

Como se só fosse a casa

Que ele habitasse.

Com intimidade eleusa

Ruas e praças:

Com intimidade de quarto

Mais que de casa.

Com intimidade de roupa

Mais que de quarto

E intimidade de camisa

Mais que casaco.

E mais que intimidade,

Até com amor,

Como um corpo que se usa

Pelo interior.

4.

O modelo não é indicado

A nenhum nórdico:

Lhe ficará muito curto

E ele incômodo.

Ou ele ficará tão ridículo

Como um automóvel,

Dos que ali, elefânticos,

Tesos, se movem,


Nas ruas que o sevilhano

Fez para si mesmo,

Pequenas e íntimas para

Seu aconchego.

Sevilhano em quem se encontra

Ainda o gosto

De ter a vida à medida

Do próprio corpo.

(MELO NETO, 1961)



LIÇÕES DE SEVILHA


Tenho Sevilha em minha cama,

eis que Sevilha se fez carne,

eis-me habitando Sevilha

como é impossível de habitar-se.

Nada há em volta que me lembre

a Sevilha cartão-postal,

a que é turístico-anedótica,

a que é museu e catedral.

Esta é a Sevilha trianeira,

Sevilha fundo de quintal,

Sevilha de lençol secando,

a que é corriqueira e normal.

É a Sevilha que há nos seus poços,

se há poço ou não, pouco importa;

a Sevilha que dá às sevilhanas

lições de Sevilha, de fora.

O ARENAL DE SEVILHA

Já nada resta do Arenal

de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.

Já não mais as frotas das Índias,
e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.

Já Riconete e Cortadilho
dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.

Urbanizaram num Passeio
o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.

(MELO NETO, 1987/1989)


CRIME NA CALLE RELATOR

Achas que matei minha avó?
O doutor à noite me disse:
ela não passa desta noite;
melhor para ela, tranquilize-se.
À meia-noite ela acordou;
não de todo, a sede somente;
e pediu: Dáme pronto, hijita,
una poquita de aguardiente.
Eu tinha só dezesseis anos;
só, em casa com a irmã pequena:
como poder não atender
a ordem da avó de noventa?
Já vi gente ressuscitar
com simples gole de cachaça
e arrancarse por bulerías
gente da mais encorujada.
E mais: se o doutor já dissera
que da noite não passaria
por que negar uma vontade
que a um condenado se faria?
Fui a esse bar do Pumarejo

quase esquina de San Luís;
comprei de fiado uma garrafa
de aguardente (cazzala e anis)
que lhe dei cuidadosamente
como uma poção de farmácia,
medida, como uma poção,
como não se mede a cachaça;
que lhe dei com colher de chá
como remédio de farmácia:
Hijita, bebi lo bastante,
disse com ar de comungada.
Logo então voltou a dormir
sorrindo em si como beata,
um semi-sorriso de gracias
aos santos óleos da garrafa.
De manhã acordou já morta,
e embora fria e de madeira,
tinha defunta o riso ainda
que a aguardente lhe acendera.

(MELO NETO, 1987).


AS PLAZOLETAS


Quem fez Sevilha a fez para o homem
sem estentóricas paisagens.
Para que o homem nela habitasse,
não os turistas, de passagem.
E claro, se a fez para o homem,
fê-la cidade feminina,
com dimensões acolhimentos,
que se espera de coxas íntimas.
Para a mulher: para que aprenda,

fez escolas de espaço, dentros,
pequenas praças, plazoletas,
quase do tamanho de um lenço.

(MELO NETO, 1989).


A GIRALDA

Sevilha de noite: a Giralda,

iluminada, dá a lição

de sua elegância fabulosa,

de incorrigível proporção.


Os cristãos tentaram coroá-la

com peristalgias barrocas;

mas sua proporção é tão certa

que quem a contempla não pousa


nem nas verrugas do barroco

nem nas curvas quase de cólica:

quem a contempla não as vê,

são como pombas provisórias.

(MELO NETO, 1985)

 


SEVILHA EM CASA


Tenho Sevilha em minha casa.

Não sou eu que está chez Sevilha.
É Sevilha em mim, minha sala.
Sevilha e tudo o que ela afia.


Sevilha veio a Pernambuco
porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.


Eis que agora Sevilha cobra
onde a irmandade que haveria:
faço vir às pressas ao Porto
Sevilhana além de Sevilha.


Sevilhana que além do Atlântico
vivia o trópico na sombra
fugindo os sóis Copacabana
traz grossas cortinas de lona.

(MELO NETO, 1987/1989)


Sevilha, na Andaluzia, onde João Cabral viveu como cônsul do Brasil


NA DESPEDIDA DE SEVILHA


Tó lo bueno le venga a U’ted.
Não viveu cá como um qualquer.
Conheceu Sevilha como a Bíblia
fala de conhecer mulher.
..
Sei tudo dessas relações
de corpo, que não o deixarão
ir de Sevilha a outra Cidade
como alguém que se lava as mãos.
.

Sei que sabe de tudo, até

dos estilos de matar touros;
do flamenco e sua goela extrema,
de sua alma esfolada, sem couro.
.
Sei que bem sabe distinguir
soleá de uma siguiriya.
Sei que conhece casa a casa,
sua cal de agora e a cal antiga.
.
Sei que entende nossos infundios,
nossa verdade de mentira
que o sevilhano faz mais franco
mas nunca um Franco nem polícia
.
Eu, como simples sevilhano,
só sei adiós na minha língua,
nesse andaluz de que a gramática
fala desde Madrid, e de cima.
.
Vaya con Dió
! com o gracioso
que anda na boca das ciganas,
no Pumarejo, em Santa Cru,
nos cais da Barreta e Triana.
.
Repito adiós! nesse andaluz
que é o espanhol com mais imagens,
que faz a cigana e a duquesa
benzerem-se igual: Qué mal ange!”

(Sevillha andando, 1989)

 


ALGUNS TOUREIROS


Eu vi Manolo Gonzáles 
e Pepe Luís, de Sevilha: 
precisão doce de flor, 
graciosa, porém precisa. 
Vi também Julio Aparício, 
de Madrid, como Parrita: 
ciência fácil de flor, 
espontânea, porém estrita. 
Vi Miguel Báez, Litri
dos confins da Andaluzia, 
que cultiva uma outra flor: 
angustiosa de explosiva. 
E também Antonio Ordóñez, 
que cultiva flor antiga: 
perfume de renda velha, 
de flor em livro dormida. 

Mas eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais deserto, 
o toureiro mais agudo, 
mais mineral e desperto, 
o de nervos de madeira, 
de punhos secos de fibra 
o da figura de lenha 
lenha seca de caatinga, 
o que melhor calculava 
o fluido aceiro da vida, 
o que com mais precisão 
roçava a morte em sua fímbria, 
o que à tragédia deu número, 
à vertigem, geometria 
decimais à emoção 
e ao susto, peso e medida, 
sim, eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais asceta, 
não só cultivar sua flor 
mas demonstrar aos poetas: 
como domar a explosão 
com mão serena e contida, 
sem deixar que se derrame 
a flor que traz escondida, 
e como, então, trabalhá-la 
com mão certa, pouca e extrema: 
sem perfumar sua flor, 
sem poetizar seu poema.

(MELO NETO, 1955).

A ANTONIO MAIRENA, CANTADOR DE FLAMENCO


Existir como quem se arrisca

Como nesse cante em que se atira,

O cantador no alto do mastro
Por sua voz mesma levantado,

Só se tem enquanto a voz tensa
Na medida em que sempre cresça,

Ele não pode qualquer falha
Sem que deste mastro não caia,

Desse mastro por sua voz criado
Que só pode ser no mais alto,

Pois que ao descuido de um instante
Cairia do alto de seu cante.

(MELO NETO, 1985).

SEVILHA EM CASA

Tenho Sevilha em minha casa.

Não sou eu que está chez Sevilha.
É Sevilha em mim, minha sala.
Sevilha e tudo o que ela afia.


Sevilha veio a Pernambuco
porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.

Eis que agora Sevilha cobra

onde a irmandade que haveria:
faço vir às pressas ao Porto
Sevilhana além de Sevilha.

Sevilhana que além do Atlântico

vivia o trópico na sombra
fugindo os sóis Copacabana
traz grossas cortinas de lona.

(MELO NETO, 1987/1989)

A PALO SECO

Se diz a palo seco

o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra

em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.

A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
Eis uns poucos exemplos

de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.

(MELO NETO, 1961)




ESTUDOS PARA UMA BAILARINA ANDALUZA


1.


Dir-se-ia, quando aparece

dançando por siguiriyas,

que com a imagem do fogo

inteira se identifica.

Todos os gestos do fogo

que então possui dir-se-ia:

gestos das folhas do fogo,

de seu cabelo, sua língua;

gestos do corpo do fogo,

de sua carne em agonia,

carne de fogo, só nervos,

carne toda em carne viva.

Então, o caráter do fogo

nela também se adivinha:

mesmo gosto dos extremos,

de natureza faminta,

gosto de chegar ao fim

do que dele se aproxima,

gosto de chegar-se ao fim,

de atingir a própria cinza.


Porém a imagem do fogo

é num ponto desmentida:

que o fogo não é capaz

como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo

numa primeira faísca,

nessa que, quando ela quer,

vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz

de acender-se estando fria,

de incendiar-se com nada,

de incendiar-se sozinha.

2.

Subida ao dorso da dança

(vai carregada ou a carrega?)

é impossível se dizer

se é a cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dança

toda a energia retesa

e todo o nervo de quando

algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão

de quem vai montado em sela,

de quem monta um animal

e só a custo o debela,

como a tensão do animal

dominado sob a rédea,

que ressente ser mandado

e obedecendo protesta.

Então, como declarar

se ela é égua ou cavaleira:

há uma tal conformidade

entre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina

e a parte que se rebela,

entre o que nela cavalga

e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer

de ambas, cavaleira e égua,

que são de uma mesma coisa

e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar

nenhuma linha fronteira

entre ela e a montaria:

ela é a égua e a cavaleira.

3.

Quando está taconeando

a cabeça, atenta, inclina,

como se buscasse ouvir

alguma voz indistinta.

Há nessa atenção curvada

muito de telegrafista,

atento para não perder

a mensagem transmitida.

Mas o que faz duvidar

possa ser telegrafia

aquelas respostas que

suas pernas pronunciam

é que a mensagem de quem

lá do outro lado da linha

ela responde tão séria

nos passa despercebida.

Mas depois já não há dúvida:

é mesmo telegrafia:

mesmo que não se perceba

a mensagem recebida,

se vem de um ponto no fundo

do tablado ou de sua vida,

se a linguagem do diálogo

é em código ou ostensiva,

já não cabe duvidar:

deve ser telegrafia:

basta escutar a dicção

tão morse e tão desflorida,

linear, numa só corda,

em ponto e traço, concisa,

a dicção em preto e branco

de sua perna polida.

4.

Ela não pisa na terra

como quem a propicia

para que lhe seja leve

quando se enterre, num dia.

Ela a trata com a dura

e muscular energia

do camponês, que cavando

sabe que a terra amacia.

Do camponês, de quem tem

sotaque andaluz caipira

e o tornozelo robusto

que mais se planta que pisa.

Assim, em vez dessa ave

sexuada e mofina,

coisa a que parece sempre

aspirar a bailarina,


esta se quer uma árvore,

firme na terra, nativa,

que não quer negar a terra

nem, como ave, fugi-la.

Árvore que estima a terra

de que se sabe família

e por isso trata a terra

com tanta dureza íntima.

Mais: que ao se saber da terra

não só na terra se afinca

pelos troncos dessas pernas

fortes, terrenas, maciças,


mas se orgulha de ser terra

e dela se reafirma,

batendo-a, enquanto dança,

para vencer quem duvida.

5.

Sua dança sempre acaba

igual que como começa,

tal esses livros de iguais

coberta e contracoberta.

Com a mesma posição

como que talhada em pedra:

um momento está estátua,

desafiante, à espera.

Mas se essas duas estátuas

mesma atitude observam,

aquilo que desafiam

parece coisas diversas.

A primeira das estátuas

que ela é, quando começa,

parece desafiar

alguma presença interna

que no fundo ela própria,

fluindo, informe e sem regra,

por sua vez a desafia

a ver quem é que a modela.

Enquanto a estátua final,

por igual que ela pareça,

que ela é, quando um estilo

já deu à íntima presa,


parece mais desafio

a quem está na assistência,

como para indagar quem

a mesma façanha tenta.

O livro de sua dança

capas iguais o encerram:

com a figura desafiante

de suas estátuas acesas.

6.


Na sua dança se assiste

como ao processo da espiga:

verde, envolvida de palha

madura, quase despida.

Parece que sua dança

ao ser dançada, à medida

que avança, a vai despojando

da folhagem que a vestia.

Não só da vegetação

de que ela dança vestida

(saias folhudas e crespas

do que no Brasil é chita)

mas também dessa outra flora

a que seus braços dão vida,

densa floresta de gestos

a que dão vida e agonia.

Na verdade, embora tudo

aquilo que ela leva em cima,

embora de fato, sempre,

continue nela a vesti-la,

parece que vai perdendo

a opacidade que tinha

e como a palha que seca

vai aos poucos entreabrindo-a.

Ou então é que essa folhagem

Vai-se fazendo esquecida:

porque, terminada a dança,

embora a roupa persista

a imagem que guardará

a memória em sua vista

é a espiga, nua e espigada,

rompente e esbelta, em espiga.

(MELO NETO, 1961)


NA DESPEDIDA DE SEVILHA

Tó lo bueno le venga a U’ted.

Não viveu cá como um qualquer.
Conheceu Sevilha como a Bíblia
fala de conhecer mulher.
..
Sei tudo dessas relações
de corpo, que não o deixarão
ir de Sevilha a outra Cidade
como alguém que se lava as mãos.
.
Sei que sabe de tudo, até
dos estilos de matar touros;
do flamenco e sua goela extrema,
de sua alma esfolada, sem couro.
.
Sei que bem sabe distinguir
soleá de uma siguiriya.
Sei que conhece casa a casa,
sua cal de agora e a cal antiga.
.
Sei que entende nossos infundios,
nossa verdade de mentira
que o sevilhano faz mais franco
mas nunca um Franco nem polícia
.
Eu, como simples sevilhano,
só sei adiós na minha língua,
nesse andaluz de que a gramática
fala desde Madrid, e de cima.
.
Vaya con Dió
! com o gracioso
que anda na boca das ciganas,
no Pumarejo, em Santa Cru,
nos cais da Barreta e Triana.
.
.Repito adió! nesse andaluz
que é o espanhol com mais imagens,
que faz a cigana e a duquesa
benzerem-se igual: Qué mal ange!”

(Sevillha andando, 1989)

ESPAÑA EN EL CORAZÓN



1


A Espanha é uma coisa de tripa.

Por que "Espanha no coração"?

Por essa víscera é que vieram

São Franco e o séquito de Sãos.


Espanha é uma coisa de tripa.

O coração é só uma parte

da tripa que faz o espanhol:

é a que bate o alerta e o alarme.


2


A Espanha é uma coisa de tripa,

do que mais abaixo do estômago;

a Espanha está nessa cintura

que o toureiro oferece ao touro,


e que é de donde o andaluz sabe

fazer subir seu cantar tenso,

a expressão, explosão, de tudo

que se faz na beira do extremo.


3


De tripas fundas, das de abaixo

do que se chama o baixo-ventre,

que põem os homens de pé,

e o espanhol especialmente.


Dessa tripa de mais abaixo,

como esse escrever sem palavrão?

A Espanha é coisa dessa tripa

(digo alto ou baixo?), de colhão.


4


A Espanha é coisa de colhão,

o que o pouco ibérico Neruda

não entendeu, pois preferiu

coração, sentimental e puta.


A Espanha não teme essa tripa;

dela é a linguagem que ela quer,

toda Espanha (não sei é como

chamar o colhão de mulher).

(MELO NETO, 1985).


Recife-PE e seu Rio Capibaribe, afamado e cantado, na obra do poeta JCMN 

 REFERÊNCIAS

BORGES, Jorge Luis – La cifra (prólogo). Madrid, Espanha: Allianza Editorial, 2ª edição, 1982.

CAMPOS, Milton de Godoy – Antologia Poética da Geração de 45. (1ª Série). São Paulo: Clube de Poesia, 1966.

CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; revisão técnica: Jorge Lúcio de Campos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

CORRÊA, Roberto Alvim. Prólogo a “O cemitério marinho” (Le cemitière marin). Tradução de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Edições Orfeu, 1949 (autorizada por Librairie Gallimard, Paris).

CRESPO, Ángel e BEDATE, Pilar Gómez – Realidad y Forma em la Poesía de Cabral de Melo. Madrid, Espanha: Gráficas Benzal, 1962.

GÓMEZ BEDATE, Pilar. Realidad y Forma em la Poesía de Cabral de Melo. Madrid, Espanha: Gráficas Benzal, 1962.

MELO NETO, João Cabral de – Terceira Feira (Poesia). Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961. ________ Agrestes. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

PERSE, Saint-John – Amers / Marcas marinhas; PALMA, Bruno: Tradução, Cronologia, introdução e Notas. Cotia, São Paulo: Aleliê Editorial, 2003.



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