ACADEMIA DOS REBELDES:
O SALTO DA MODERNIDADE
NA BAHIA DOS ANOS 1920/30
Perseguia um pujante sonho de renovação, não só nas letras e nas artes, mas também nos costumes e práticas políticas, o movimento literário, que aparentemente irrompeu na Bahia em fins de 1928, para durar até talvez 1935, com o irônico título de Academia dos Rebeldes, reagindo a um estado da cultura que seus integrantes julgavam caduco. Em um espirituoso balanço sobre o que significou esse processo, de que foi nome baiano de proa com apenas 18 anos de idade, Jorge Amado (1992), depois de se atribuir e aos companheiros o propósito de “varrer com toda a literatura do passado”, aponta, como saldo positivo, terem concorrido, “de forma decisiva, para afastar as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice” e dar-lhe “conteúdo nacional e social”.
Dizia isso em 1992,
sessenta e quatro anos após um grupo de jovens se reunirem no já então afamado
Café das Meninas, na esquina da Rua do Tira Chapéu com a da Ajuda, no centro da
cidade, e no ali próximo Bar Brunswick, no intuito de difundir as ideias
informadoras do movimento modernista, para desmonte das muralhas do renitente
conservadorismo que dominava a sociedade baiana e sua cultura, desde inícios do
século XX, isto é, para combater intermitentemente, como se dirá depois, “as
oligarquias do imutável”, mas no mesmo ritmo de defasagem do bem mais amplo
ímpeto que o inspirara, surgido em São Paulo, quase sete anos antes, a Semana de
Arte Moderna, em relação às vanguardas europeias deflagradas há mais de dois decênios.
Razões dão suporte ao
lembrete desse retardo, desde que, só para ficar na América do Sul, tais
inquietações já vinham açulando as mentes de jovens intelectuais alguns anos
antes; caso do Chile, com o manifesto de Vicente Huidobro (No serviam, de 1914), que logo desembocaria em ideias mais ousadas,
tais as do também seu Creacionismo (1925),
sintomas de modernidade que se manifestariam na Argentina, já em 1921, com o Ultraísmo, nas inquietas voz e escrita
de Jorge Luis Borges (2007), impelidas pelo que aprendera de Rafael Cansinos
Asens, com o seu Movimento Ultraísta, em Sevilha (Espanha), que definia esse
estado de espírito como “uma orientação voltada para contínuas e reiteradas
evoluções, um propósito de perene juventude literária, uma antecipada aceitação
de todo módulo e de toda ideia nova”, uma vontade de “ir avançando com o
tempo”; em síntese, uma ardorosa perseguição do futuro.
Portanto, para vizinhos
sul-americanos, o idealismo das vanguardas já não era tão novidade assim. Se
havia defasagem de influências, em centros mais adiantados do país, como São
Paulo, quanto mais na Bahia. Os jovens intelectuais baianos formavam uma
confraria local a que se agregavam outros oriundos de estados nordestinos,
todos eles mordidos, conforme Jorge Amado (1992), pelo “micróbio da
literatura”, e se intitulavam “modernos” como algo mais que “modernistas”, numa
alusão irônica à erupção que ocorrera em São Paulo, a cujas ideias não desejavam
estar acorrentados. Pretendiam, no seu intento de adolescentes rebeldes,
horizontes mais amplos.
Tendo como mentor inicial
o poeta e jornalista panfletário Pinheiro Viegas (1865-1937), segundo Cid
Seixas (1996), um “corrosivo intelectual que também destilara seus feitos e seu
fel entre os rapazes da revista Samba”,
cujo grupo emparelhava com o de Arco e
Flexa, ambos surgidos também em 1928, os mesmos combativos propósitos,
porém menos estridentes, o núcleo central da Academia dos Rebeldes se compunha
ainda dos seguintes nomes: Jorge Amado (1912-2001), Edison Carneiro
(1912-1972), Dias da Costa (1906-1974), João Cordeiro (1905-1938), Alves
Ribeiro (1909-1978), Áydano do Couto Ferraz (1914-1985), Sosígenes Costa
(1901-1968), Clóvis Amorim (1912-1970), Da Costa Andrade (1906-1974), Guilherme
Dias Gomes (1912-1943, irmão do célebre dramaturgo baiano, Alfredo Dias Gomes,
1922-1999) e Walter da Silveira (1915-1970); a esses se acrescentavam, como
colaboradores e participantes, José Bastos (1905-1937), Hosannah Oliveira
(1902-1997), Emanuel Assemany e José Evangelista de Oliveira.
O movimento se inseria no
conjunto de preocupações e aspirações marcantes de um período de pós-guerra e
prenúncios de outro conflito mundial, com os desdobramentos, na década de 1920,
de toda a efervescência cultural e atropelos provocados pelas vanguardas do
início do século, mas que se refletiria na Bahia, com a mesma lentidão de
passos dos paulistas de 1922. A liderança de Pinheiro Viegas, poeta mais
conhecido pelo instinto panfletário que, por seus poemas de circulação
restrita, impelia os jovens Rebeldes baianos para lucubrações intelectuais bem
mais avançadas do que o ambiente urbano de então, fluindo, como já se disse,
“em ritmo de bonde”, então suportava.
Em verdade, a Bahia, como
se chamava na época, era uma cidade estática, imersa em orgulhosa e soberba
atmosfera provinciana, onde não havia lugar para endeusarem-se a máquina, a
eletricidade e a velocidade, não obstante a inocente ousadia futurista de um
poeta, o feirense Eurico Alves (1909-1974), adepto do grupo da revista Samba, cuja delirante imaginação
divisava, em seus Poemas Metálicos
(1926-1932), uma cidade imersa na volúpia fumacenta de locomotivas, com longas
avenidas ladeadas de arranha-céus, ruas largas, pulsação mágica de fábricas e
ardentes chaminés, lanchas e transatlânticos nos portos, guindastes,
automóveis, buzinas, apitos, sirenas, guinchos, com céu cinzento sobre massas
enormes de cimento armado, reclames, títulos e dísticos luminosos – enfim, uma
festa de nítido sonho futurista.
Quem lesse poemas dessa
fase de Eurico Alves, que ouso considerar o nosso primeiro e talvez único e
legítimo poeta futurista, nos anos seguintes à sua publicação, como também
muitas décadas depois, poderia supor que o lastro de sua imaginação provinha de
leituras de pensadores franceses, desde que à época o francês ainda funcionava
em países da América do Sul como uma segunda língua cultural, ao ponto de um
escritor do porte do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) definir os
sul-americanos, segundo Bella Jozef (1996), como “europeus no desterro”, pelo
tanto que persistia neles de cultura europeia, fazendo imaginar-se que, no caso
do Brasil e particularmente da Bahia, a França se situava à frente de qualquer outro. Quantos
não foram os poetas baianos que escreveram poemas em francês. Lembro de um: Péthion
de Villar (1874-1926).
Por
isso, não será demais admitir-se que, na imaginação sonhadora do jovem
feirense, a Cidade da Bahia não se apresentava como um símbolo do atraso
patenteado por ruas estreitas e becos, por bondes assobiando e rangendo sobre
trilhos, postes com lâmpadas de pouca luminosidade, comércio rastejante, sem
nem mesmo ostentar reclames a gás neon, e o mais que seus olhos cotidianamente
viam. O que seu estro demandava eram versos que sugerissem um cenário igual ao
daqueles países cuja paisagem urbana, já celebrada por muitos escritores,
filósofos e políticos, que apontavam nitidamente para a modernidade, ostentava um
panorama constituído de trabalhadores e transeuntes a congestionar anonimamente
ruas e praças, certamente igual ao que descrevia o francês Édouard Foucaud, de
uma Paris que, por quase um século, só despachou modernidades para o mundo,
como atesta Walter Benjamin, numa citação:
Para o trabalhador, o desfrute da
renda acabava por esgotá-la. O céu podia estar vazio de nuvens, a casa que
habita pode ter um jardim verdejante, pleno do aroma das flores e vitalizado
pelo gorjeio dos pássaros – seu espírito inativo é insensível para os encantos
da solidão. Porém, se casualmente, chega a seus ouvidos o som ruidoso ou o
apito de uma fábrica distante, se só escuta o golpe monótono proveniente do
moinho de uma manufatura, a expressão de seu rosto se alegrará imediatamente...
Já não sente o aroma delicado das flores, já não escuta o canto melodioso do
pássaro. A fumaça da alta chaminé da fábrica, os intimidativos golpes de uma
bigorna o fazem estremecer de felicidade. Recorda os bem-aventurados dias de
seu trabalho, instigado pelo entusiasmo de seu cérebro. (FOUCAUD apud
BENJAMIN, 2012, tradução nossa).
Quem lê os Poemas
metálicos, de Eurico Alves, conjetura que ele os escreveu depois de ter
conhecimento das pregações de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), em seu
manifesto sobre o Futurismo, lançado em 1909. “O esplendor do mundo foi
enriquecido por uma nova forma de beleza, a beleza da velocidade”, exortava o
italiano, na sua pregação. Todavia, já se observava então no ambiente citadino
um clima de forte aspiração por mudanças, principalmente no que dizia respeito
ao sistema de bondes, o transporte moderno há já mais de uma década servindo
aos habitantes, mas na ocasião já em processo de acelerada reformulação, como
decorrência das reformas empreendidas pelos governos Seabra (1912-1916 e
1920-1924), perspectiva que impelia os jovens Rebeldes para horizontes vanguardistas, contra todas
as forças do atraso, embora rejeitassem arrebatamentos futuristas, que viam
como delírio. No entanto, se pensavam assim, por outro lado, eles viam a cidade
do Salvador com olhos novos.
Membros da Academia dos Rebeldes, em foto de novembro de 1936. Da esquerda para a direita: (em pé) Aydano do Couto Ferraz e Alves Ribeiro; (sentados) Azevedo Marques, jornalista do Estado da Bahia, João Cordeiro, Edison Carneiro, Jorge Amado e Clóvis Amorim. (Sem indicação de autoria)
MUDANÇAS NO RITMO DOS CAFÉS
E havia motivos para
tanto. A cidade da Bahia, que em 1900 possuía, segundo registros, 85 mil
habitantes, no tempo da Academia dos Rebeldes, ostentava cerca de 250 mil. Em
um de seus depoimentos, Jorge Amado dá essa informação, que parece veraz,
pressupondo um avanço, uma vez que o censo de 1940 irá mostrar uma população de
290.433 habitantes, que mais que dobrará vinte anos depois, com os seus 655.735
habitantes de 1960. Aos olhos dos Rebeldes, a cidade dos anos 1930 avançava no
sonho de se tornar metrópole, marchando para se desfazer da carapaça que a
engessava, desde que, coroando iniciativa adotada em 1929, iria concluir-se o
processo de fusão das linhas de bondes, quando a Companhia Linha Circular de
Carris da Bahia – popularmente chamada Circular – obtém por contrato o direito
de explorar o serviço em todo o município, expandindo a cidade, criando e
aproximando novos bairros, conjugado ao monopólio da distribuição de energia
elétrica.
Valendo-se de dados
colhidos em fontes seguras, em livro de 2019, as arquitetas e urbanistas Cybèle Celestino Santiago e Karina Matos de Araújo F. Cerqueira
registram com precisão esses efeitos, que pressupõem facilidade de
deslocamentos e, com estes, até mesmo o aumento de veranistas em certos pontos
da orla marítima.
Vivia-se a consolidação
de reformas urbanas que expunham evidentes sinais de modernidade. Começava a se
configurar um cenário pelo qual antes a imprensa romanticamente clamara,
dirigindo-se a Seabra, então governador, para que houvesse “no seio da velha
cidade a alegria nova das vias amplas, modernas, por onde possa circular livre
e fecunda a vida feliz de um povo forte”. Requeria-se, desse modo, que a cidade
demarcasse seus espaços para neles se assentarem novos padrões de
comportamento.
Decididamente, a cidade
ia deixando de ser um burgo provinciano, vivenciando situações apenas imaginadas, que faziam os
Rebeldes detectarem na paisagem urbana uma nova atmosfera de prazeroso e
excitante conforto, evidenciada por um mais intenso trânsito de pessoas e novas
posturas. Percebia-se então súbito fortalecimento do comércio exportador,
estímulo ao consumo e demanda de serviços pelo surgimento de lojas,
escritórios, hotéis, cafés, pastelarias, esquinas povoadas, pontos de encontro,
cassinos e bordéis (apelidados de “castelos”), jornais dispostos a abrir-se ao
debate; um ambiente propício às fruições de um embrião de flâneur, com a burocracia cada vez mais cedendo espaço, apesar das
resistências. Começava para eles, os Rebeldes, a se configurar o mundo moderno,
em que Octavio Paz (1991) divisa “o homem, ou seu fantasma, errante entre as
coisas e os aparatos”. E assim, com este cenário, a cidade se alçava a um outro
patamar, em que as figuras do boêmio e do flâneur
pareciam combinar-se.
Peregrinando pelos cafés,
cassinos e bordéis, eram os Rebeldes personagens deste cenário, aproveitando
todas as seduções com que lhes acenava esse novo momento. Inseridos na
multidão, na rua ou através do vidro da janela ou frestas de um café,
escritório ou bordel, apreciavam o trânsito de bondes e de pessoas, errático
privilégio com que, na condição de habitantes, revelavam a sua mesma razão de
ser, em estado de felicidade plena. Na rua, numa esquina, talvez até mesmo da
janela de um bonde, basta-lhe o gozo de fitar pessoas passivamente mirando
outras, por minutos e até horas, sem lhes dirigir uma palavra sequer. Em
resumo, este embrião baiano de flâneur,
um tipo de passeante ocioso, que anda sem rumo, sente-se melhor na rua do que
em casa, numa fruição lúdica perfeitamente assemelhada ao culto da boemia,
atitude que em geral se desenvolve com a aglomeração de pessoas e aceleração
das atividades no ambiente urbano.
De tão referencial, não
parece excessivo ou infrutífero invocar a Paris dos tempos de Charles
Baudelaire (1821-1867), inaugurando cenários de modernidade, que ele,
pioneiramente centrado no espírito de uma época marcada por aspectos de aglomeração
urbana, emergente industrialização e concentração demográfica, discerniu,
descreveu e vivenciou, em cujo ambiente desponta a figura do flâneur de que ele próprio foi exemplo,
ao ponto de, numa passagem de seu Le
Peintre de la vie moderne, segundo Eric Hazan, escrever, como se
desenvolvesse uma teoria, falando de si mesmo:
Para o perfeito flanador, para o
observador apaixonado, é um imenso prazer escolher um domicílio em meio à
multidão, à ondulação, ao movimento, ao fugaz, ao infinito. Estar fora de casa,
e, ainda assim, sentir-se em casa em todos os lugares; ver o mundo, estar no
centro do mundo e permanecer escondido do mundo, estas são algumas das
satisfações mais simples desses espíritos independentes, apaixonados,
imparciais que a língua só consegue exprimir desajeitadamente. (HAZAN, 2017).
Creio que, nesse ponto,
cabe um parêntese. Segundo Walter Benjamin, a multidão não foi uma descoberta
somente de Baudelaire. Houve outra personalidade de seu tempo que também a celebrou
na Paris em plena marcha das reformas de Haussmann: o célebre poeta, ícone do
Romantismo, que era também exitoso político, Victor Hugo, mas com abismal
diferença de pensamento entre ambos. Enquanto Hugo celebrava a multidão, na
forma de massa transeunte que se aglomerava mergulhada no anonimato, “o herói
de uma epopeia moderna”, diz Benjamin, Baudelaire “busca ansiosamente o refúgio
do herói na massa da grande cidade”, isto é, do flâneur.
Político e pragmático,
Hugo comparava esta massa com as aglomerações dos reinos vegetal e animal na
natureza e os efeitos que elas produzem, inaugurando esse novo tema em sua
poesia durante o exílio que sofreu em Jersey. Benjamin cita passagem de um de
seus escritos em que compara “o que acabava de passar na rua” (diga-se, a
multidão) ao que ocorre em um bosque, estremecendo as árvores, os altos montes,
os brejais, as altas ramas entrelaçadas, as altas ervas, de maneira sombria,
por ação de um “formigueiro selvagem”, que ali faz entrever “as súbitas
aparições do invisível”, como se “a tessitura do bosque sugerisse o arquétipo
da existência da massa” (BENJAMIN, 2012).
Em poemas, as elocuções
desse afamado francês não são diferentes, são até de acento mais grave.
Benjamin observa fluir em um deles “magnífica ideia de promiscuidade que impera
sobre a multidão de todo ser vivente”. Lá, numa estrofe de seu “Pente de la
rêverie”, diz Hugo que, numa noite de sonho hediondo (rêve hideux), a
multidão espalhava assombros, que nenhum olhar percebia: “mais o homem era mais
numeroso, mais a sombra era profunda” (Plus l´homme était nombreux, plus
l´ombre était profunde). Em outra estrofe do mesmo poema citado, o
pensamento se apresenta mais inequívoco, abrindo-se de forma contundente: “Multidão
sem nome! Caos! vozes, olhos, passos. /
Aqueles que nunca vimos, aqueles que não conhecemos. / Todos os
vivos! - cidades zumbindo aos ouvidos / Mais do que um bosque da
América ou colmeias”). (“Foule sans nom!
Chaos! des voix, des yeux, des pas. / Ceux qu´on n´a jamais vus, ceux qu´on ne
connait pas. / Tous les vivant! – cités bourdonnant aux oreilles / Plus qu´un
bois d´Amérique ou des ruches d´abeilles” – tradução livre do autor).
Como político, embora a
multidão tenha figurado em sua poesia, durante e após o exílio em Jersey,
interessava a Victor Hugo nela o cidadão que a compunha. As massas das grandes
cidades não o confundiam. Nesse ponto, Benjamin é conclusivo.
Hugo reconhecia ali (no trânsito
urbano, grifo meu) a multidão do povo; queria ser matéria dessa matéria.
Laicismo, progresso e democracia foram as bandeiras que brandiu sobre essas
cabeças. Essas bandeiras glorificavam a existência da massa. E deixavam nas
sombras o umbral que separa o indivíduo da multidão. Baudelaire cuidava desse
umbral; isso o diferenciava de Víctor Hugo. [...] Baudelaire opunha a esta
multidão um ideal, tão pouco crítico como a concepção que Hugo tinha dessa
mesma multidão”. [...] Como citoyen, Hugo se traslada para a multidão;
como héros, Baudelaire dela se distancia” (BENJAMIN, 2012).
Nesse contexto, é preciso
também abrir uma janela para a vida nos cafés, nos cassinos, nos dancings e nos
bordéis. Jorge Amado dá testemunho do que acontecia nesta cidade então “muito
agradável de se viver”, conforme relata em depoimento de 1981.
Os castelos tinham uma grande
importância. Havia algumas putas francesas, que eram dadas à literatura. As
nossas prostitutas eram em geral ignorantes, meninas do campo em sua maioria.
Nós é que fazíamos a importância cultural dos castelos. Dávamos uma certa
conotação literária. (AMADO, 1992).
Imitado de Paris e do Rio
de Janeiro, o culto dos cafés na Bahia literária dos anos 1920 e 1930 acendia
os ânimos, açulava as emoções e arrebatava o espírito dos integrantes da Academia
dos Rebeldes, assim como os dos concorrentes engajados nas revistas Samba e Arco & Flexa. Na marcha do tempo, essas estripulias avançaram
pelos anos vindouros até fins dos 1950. Vistos com os olhos de hoje, trata-se
de um paraíso que se perdeu, solapado que foi pela cultura fast-food das lanchonetes e praças de alimentação de shopping centers e quejandos. Aludindo a
esses ruidosos anos, escrevi certa feita:
Na cidade do Salvador, desde a
década de 1920, até onde remonta informação confiável, calcada em vivência e
testemunho, os cafés representaram locais não apenas de animação e desfrute,
mas pontos de convergência da intelectualidade jovem, ávida de afirmar sua
vigência cultural e propagar ideias de mudança nas letras e nas artes (MATTOS,
2001).
Em artigo que publicou no
jornal A Tarde,
em 29 de junho de 1976, Jorge Amado recorda um dos trajetos habituais de
seus companheiros da Academia dos Rebeldes, logo nos seus começos:
Sob a bandeira de Pinheiro Viegas,
no Café das Meninas, a nossa rebeldia adolescente organizou-se para melhor
enfrentar os bons camaradas de Arco &
Flexa, comandados por Carlos Chiacchio, ou os simpáticos rapazes de Samba, Bráulio de Abreu, Clodoaldo
Milton, Elpídio Bastos e outras excelentes pessoas – malditos adversários,
implacáveis inimigos. Maravilhosos dias da juventude num mundo de paz, numa
cidade ainda provinciana e deslumbrante. (AMADO, 1976).
A memória de Nonato
Marques recupera as noites em que se reuniam nesses lugares “rapazes
interessados em literatura”, lendo e declamando crônicas, contos e poemas, à
volta de uma mesa, onde consumiam “uma média de café com pão e manteiga” e,
talvez, alguma bebida, o que poderia estar acontecendo em pontos afins, como o
Café Astúrias, o Café Moderno e o Café Derby.
Em seu livro, o escritor descreve:
Neles (nos cafés) eram comentados
assuntos políticos, o noticiário dos jornais, os escândalos surgidos, as
conquistas amorosas, a vida alheia, enfim tudo o que forma o universo da nossa
vida cotidiana, inclusive as atividades literárias, estas com grande ênfase
dada à formação de grupos que tiveram nos cafés seus pontos de referência.
(MARQUES, 1994).
Em Apóstolos do Sonho,
uma antologia de poetas parnasianos e simbolistas que, à época, ainda teimavam
no exercício dessas estéticas passadistas, Flávio de Paula refere-se a esses
mesmos hábitos de hedonismo cultural, cevados pela descontração e delícias da
boemia, que, na Salvador dos anos 30 e início dos 40, auferiam grupos de
intelectuais, pertencentes a correntes diversas – de renitentes espíritos
academicistas a emergentes modernistas, sendo estes alcunhados, em geral, como
integrantes de uma “horda iconoclasta”.
Esse livro tardio,
lançado em 1952, faz supor que, dadas as compreensíveis dificuldades de
publicação da época, a sua introdução tenha sido escrita alguns anos antes.
“Cada grupo tem o ponto de sua preferência”, anota ele.
Apesar da exiguidade do périplo, nessas poucas páginas, as lentes de Flávio de
Paula conseguem captar flagrantes que revelam um sugestivo panorama das
preferências determinadas pela “marcha dos tempos”, pontuadas de livrarias e
cafés, que “vão cedendo o prestígio às confeitarias elegantes e aos bares
chiques”. Passar por esses relatos é trilhar por um cenário de túmulos, que
emociona e deixa um travo de melancolia, pelo que resta na memória de alguma
beleza e fruições perdidas.
Eis uma de suas cativantes
tomadas:
Na Confeitaria Chile,
separadamente, reúnem-se várias rodas
de intelectuais – figurões que misturam literatura com o mundanismo e se dão ao
luxo do chá com torradas, dos cremes e sorvetes finos ou dos chopps duplos; na Pastelaria Triunfo –
os que não compreendem nem letras nem artes sem alguns copos espumejantes da
loira cerveja; no Café Fronteira – os componentes da turma de Poetas da Meia
Noite, filósofos, teosofistas, gramáticos e surrealistas quase todos; no Anjo
Azul – os sectários do Futurismo e do Modernismo; no Belvedére da Sé – os
ecléticos, aqueles que não têm partidos,
ou pertencem a todos os grupos.
(PAULA, 1952).
No Café das Meninas, reuniam-se, infalivelmente, das
dezessete às vinte horas, parnasianos, românticos e simbolistas, sob a
denominação comum de Poetas das Ave-Marias, em consequência da hora em que se
congregavam, porque todos (ou, pelo menos, sua maioria) trabalhavam em
repartições públicas, no magistério, na imprensa e no comércio. Não raro,
chegavam cartas, telegramas e jornais, com este singularíssimo endereço:
“Fulano de tal. Café das Meninas. Mesa dos Poetas. Rua Juliano Moreira.
Salvador”. (PAULA, 1952).
Sem maiores exigências de
conforto, ao aconchego somente dos laços de amizade, o ambiente simples dos
cafés representava para os jovens intelectuais, para os que os tinham, uma
espécie de segundo lar e, por isso, toleravam até mesmo a rusticidade das instalações.
O longevo poeta Bráulio de Abreu (1903-2007),
participante do grupo de Samba, em depoimento (1999), referindo-se a
saudoso convívio com Pinheiro Viegas, recorda dele picante epigrama, em que
satiriza os desconfortos de um dos mais frequentados desses românticos lugares: […]
além de tudo, / esse Café Progresso / deixa o freguês possesso / com esse
acento agudo. (ABREU apud
SANTANA, 1999 e 2009).
Já quanto aos Rebeldes,
suas peraltices hedonistas eram completadas com incursões, não só noturnas, mas
também diurnas, por endereços onde havia mulheres disponíveis para convivência
boêmia e transações amorosas. Pertencente ao grupo de Arco & Flexa,
concorrente da Academia dos Rebeldes, o poeta Carvalho Filho (1908-1994) afirma
que, além da esfera dos conceitos literários, era na vida boêmia que mais se
acentuavam as diferenças entre os dois grupos. “Ao contrário de nós, os
rebeldes frequentavam bordéis populares, eram grandes farristas, chamavam a
atenção. Mas se reuniam também no Café das Meninas, onde conheci Jorge Amado
ainda rapazola, muito antes de ele ser famoso” (CARVALHO FILHO apud SANTANA,
2009).
Por mais de uma ocasião,
em depoimentos ou em suas memórias, Jorge Amado se refere a esse trânsito
lúdico e diurno em ambientes por eles tratados sob a designação geral de castelos, como sinônimo de bordéis ou
cassinos. “Quando tínhamos dinheiro, eu e Dias da Costa nos mudávamos para os
castelos, ficávamos morando uma semana. Ocupavam uma área enorme, a
Misericórdia, Ladeira de São Francisco, Maciel, arredores da Sé, Tabuão”
(AMADO, 1992) – recorda assim muitas de suas peripécias juvenis em Salvador,
mas experiência por ele bem antes vivida. Há um relato seu de travessura imberbe
ocorrida em Ilhéus, em 1925, quando tinha apenas treze anos. Conta ele que
visitou com um primo o bordel de Antônia Machadão (“em Gabriela mudei-lhe o prenome para Maria”, observa), segundo ele,
“conhecida e estimada por todos na cidade, apesar do comércio que explorava com
proveito”, desde que dona do bordel “mais renomado da zona cacaueira” (AMADO,
1992), mas de lá expulso por ela, por declarado respeito a sua mãe, dona
Eulália.
É justamente sobre a
população feminina da Ilhéus desta época que ele nos oferece uma informação
preciosa. “Além de nacionais vindas da Bahia, de Aracaju, do Rio, nele (no
bordel) exerciam uma francesa e uma polaca; profissionais civilizadas, as
gringas faziam de um tudo”. Registra-se aí um aspecto singular: a presença de
mulheres estrangeiras no comércio da prostituição, nas décadas de 1920 e 1930,
como nas duas seguintes, sob a designação geral de polacas. Tratava-se de imigrantes que não eram só mulheres de
nacionalidade polonesa, mas que poderiam ser também francesas, romenas e
sul-americanas, argentinas principalmente. Ainda nos anos 1950, embora já
bastante esmaecido, persistia esse fenômeno migratório. Descobri que a palavra polaca, usada para designá-las,
funcionava apenas como uma metonímia. Em dois livros, Boêmios, um apanhado sobre a movimentação da vida artística e
mundana na Paris dos anos 1920 e 1930, e em seu romance Nu Deitado, o escritor Dan Franck oferece as pistas que explicam
esses sucessos. Para a época dos Rebeldes, o motivo reside na migração forçada
de jovens mulheres, em razão das consequências desastrosas que a Primeira
Grande Guerra (1914-1918) infligiu aos países do leste europeu, em que se
destacava a Polônia, gerando forte aumento nos níveis de empobrecimento da
população e provocando intenso movimento de imigração.
Segundo se depreende das
narrativas de Franck, máfias instaladas em capitais europeias, com destaque
para Paris, empenhavam-se na importação de jovens mulheres, que seriam
liberadas pelos pais a troco de remuneração que os socorresse ante a infelicidade
da miséria que lhes batera à porta. Com isso, confiante no destino promissor
que as aguardava, pelas bondades que lhes acenavam os visitantes, os pais
concordavam em liberar as filhas, geralmente mulheres jovens e atraentes, e
elas concordavam, ante as privações que as engolfavam, e partiam com a mente
grávida de sonhos e esperanças. Paris então funcionava, não só como primeiro
destino de recepção, mas como entreposto para exportação dessa excêntrica mão
de obra para outras capitais, entre as quais Buenos Aires, na América do Sul,
que, por sua vez, operava também como entreposto sul-americano para outras
capitais, como o Rio de Janeiro, e daí para outras cidades brasileiras, como
Salvador, e até Ilhéus, na época privilegiada pelo boom exportador do cacau. Nesses destinos, sempre sob a designação
exótica de polacas, elas atuavam
muitas vezes como dançarinas de cabarés, integrando grupos sob a carapaça
profissional de bailarinas, por se apresentarem em ballets, ou mesmo simplesmente como prostitutas, tendo por trás,
além de intermediários, quase sempre uma súcia de gigolôs.
Abra-se de novo um
parêntese, agora para a cidade de Ilhéus, residência de Jorge Amado
adolescente, a partir de 1924. Por essa época, com a exportação de cacau
passando a se fazer diretamente, evitando-se com isso o transtorno e os custos
de o ser por Salvador, com a presença de estrangeiros no comércio exportador (os
Wildberger, Stevenson, Kaufmann, Colavolpe, depois também produtores) e
consequente intercâmbio cultural com a Europa, descortina-se novo horizonte em
áreas de diversão aos que dispunham de farto dinheiro advindo da cultura do
cacau. Segundo relatos, surgiram então cabarés, clubes noturnos e cassinos,
suscitados por súbita mudança de gostos e amor ao luxo. É na segunda metade dos
anos 1920 que surgirá o cabaré Bataclan (Avenida Dois de Julho, no Centro),
doravante endereço preferencial da vida noturna para os abastados locais ou de
cidades e vilas próximas. Nele funcionavam um cassino e um salão para
apresentação de companhias de dança vindas do sul do país, até do exterior, e
de cantores e cantoras, com orquestra. Havia as dançarinas e as que o eufemismo
provinciano designava como “damas de companhia”, sempre bem-vestidas e penteadas
à disposição de abonados fregueses. A proibição nacional de funcionamento dos
cassinos, a partir da segunda metade dos anos 1940 (governo do presidente Eurico
Gaspar Dutra), levou o Bataclan à decadência e depois à extinção, no desenho
perdulário que o tornara famoso.
A VOZ PELA ESCRITA IMPRESSA
O salto baiano para o Modernismo ou para a Modernidade, como mais gostavam os Rebeldes da Bahia de rotular seus propósitos, seguiu a tradição de todo tempo e lugar de adoção das ideias novas, que no princípio do século XX irromperam mundo afora, a da criação de revistas como meio de difusão das múltiplas inquietações intelectuais e, até mesmo, políticas. Para ficar na América do Sul e no Brasil, foi o caso da revista Prisma, em Buenos Ares, dos rotulados ultraístas argentinos, e de Klaxon, dos modernistas de São Paulo. Assim, os modernos baianos cuidaram da criação de revistas, primeiramente, com Meridiano, que durou um só número, impresso em setembro de 1929, lançando depois O Momento, cujos nove números circularam entre julho de 1931 e julho de 1932. Faziam o mesmo que os outros dois grupos concorrentes em ideias e projetos da época: Samba, onde atuavam os poetas Bráulio de Abreu, Godofredo Filho, Carvalho Filho e Eurico Alves, e Arco & Flexa, esta editada sob a direção de Carlos Chiacchio (1884-1947), um médico mineiro, que, como crítico e animador de movimentos literários, lutava pela renovação da literatura brasileira, militando com intensidade desde 1928, quando começou a assinar cultuados rodapés de crítica, sob o título de “Homens e Obras”, no jornal A Tarde, que durariam até 1946, embora fosse um intelectual de índole conservadora.
Meridiano
surgiu em setembro de 1929, mas seu único número trazia o bastante para mostrar
a que vinham os Rebeldes baianos. “Meridiano não passou do primeiro número.
Nós, os Rebeldes, éramos pobres como Jó, exercíamos nossa prosa e nossa poesia
em qualquer gazeta que nos desse guarida”, comentará Jorge Amado, muitos anos
depois, em tom que se distancia do artigo-manifesto, com o título de
“Itinerário”, estampado na primeira página, no qual o grupo já se declarava
disposto a iniciar “o combate a tudo o que retarda a marcha do progresso, em
todas as manifestações do espírito humano”, classificando a sua atuação como
“obra de regeneração moral e intelectual”, com “espírito moderno”, “dinamismo”,
enfim, “século vinte”. Além de condenar “o sentimentalismo atrofiador de
energias”, o texto pregava a substituição pela ciência das “velhas superstições
religiosas, que constituem o ponto de apoio da ignorância”; condenava “os
convencionalismos idiotas que impedem o surto de todas as ideias novas” e se
propunha “pensar e agir por conta própria”; contra os “ismos” importados do
estrangeiro; desejava “escrever fora do jugo de estéticas desorientadas e
incoerentes”, praticando ”literatura instrutiva, sadia, edificante” e uma
“poesia simples, natural, sem artifícios”. E, num parágrafo, advertia possíveis
incautos: “Condena a tagarelice dos filósofos, a bisbilhotice dos gramáticos, a
literatice dos diletantes, o verbalismo dos retóricos e as frioleiras dos ‘poetas
do amor e da saudade’”. Neste número, apareceram como destaques Da Costa
Andrade, Sosígenes Costa, Alves Ribeiro, José Bastos, Octávio Moura, Jorge
Amado e Pinheiro Viegas.
Com o subtítulo de
“Mensário Ilustrado Informativo”, O
Momento apareceu em edição colorida e com fotos. Como surgia após a
deflagração da Revolução de 30, além das preocupações literárias e estéticas, o
conteúdo editorial da nova revista também se enveredava pela política, mas
acabou por se fixar, segundo o pesquisador Gilfrancisco Santos (2001), como “a
mais expressiva das revistas surgidas na Bahia, inspiradas no movimento
modernista”. Tendo o poeta Alves Ribeiro como redator-chefe, aos colaboradores
de Meridiano, nas edições de O Momento, se acrescentaram Edison Carneiro,
Dias da Costa, João Cordeiro, Guilherme Dias Gomes e Clóvis Amorim, entre os
mais assíduos do grupo, mas com a novidade de autores do Sul do país, entre os
quais, Augusto Frederico Schmidt, Octávio de Faria e Menotti Del Picchia. De
entrada, ostentando um laivo de soberba juvenil, a revista avisava que não
aceitaria colaboração de quem não fosse convidado, o que implicava na obrigação
de estar o colaborador em consonância com suas ideias, e completava, entre
jocosa e desafiadora: “O Momento, como todo órgão ou realejo que se
preze, não se quer confundir com as gaitas de fole do jornalismo salta-moitas”,
“porque aqui não impera o costume baianíssimo do elogio mútuo”. E frisava, como
a justificar-se:
Fazemos esta declaração a tempo, a
fim de evitar aborrecimentos com certos poetas e literatos que andam às portas
mendigando publicidade às suas bobagens, rimadas ou não. Toda e qualquer
colaboração será solicitada pela direção desta revista, obedecendo ao critério
da seleção de valores. (SANTOS, 2001).
Anunciado como parte de
uma pesquisa sobre o Rebelde Edison Carneiro, nas suas qualificações
intelectuais de etnólogo, desenvolvida no âmbito de um doutorado, que cumpria
em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luiz Gustavo
Freitas Rossi apresentou, no XXVI Congresso ALAS – Associação Latino-americana
de Sociologia (Guadalajara, México, 2007), um texto sobre a Academia dos
Rebeldes, em que ressalta como os seus integrantes conseguiram agir ante tal
encruzilhada, primeiramente, no que dizia respeito aos conteúdos editoriais,
buscando concentrar suas práticas literárias, porque convencidos de fazer
melhor, nos gêneros próximos do que publicavam os jornais e revistas em
circulação, como a crônica, o conto, a crítica literária, o colunismo social,
sem esquecer a poesia e os manifestos.
Vencida essa etapa, não
havia porque não considerar o outro lado da viagem em pleno curso, o da
manutenção e circulação de O Momento. É o próprio expositor Luiz Rossi
que desvenda a solução, ao observar que, “desprovidos de maiores folgas
financeiras ou de proteções de figurões da literatura local, conferindo às suas
revistas feições bastante diversificadas”, os Rebeldes notaram que
“aparentemente dependiam exclusivamente da publicidade e de sua comercialização
para que pudessem continuar circulando”, e, num remate conclusivo, observa:
O fato de conseguir veicular nove
números de O Momento, me parece, é significativo da maneira acertada de
como acertaram o “gosto” dos setores letrados da sociedade baiana, bem como do
relativo sucesso “publicitário”, pois chegava a ser espantoso o número de
propagandas na revista. Em sua maioria, de casas comerciais de Salvador.
(ROSSI, 2007).
Não apenas sua linguagem,
mas também sua diagramação se revelava ágil e dinâmica, dentro dos padrões da
época. Combatendo com desassombro – indiscutivelmente temerário, em tempos tão
provincianos – aspectos negativos da vida e da sociedade baianas, não se furtou
a encarar temas nacionais como os rumos políticos do País depois da Revolução
de 30, a reforma do ensino, a reforma ortográfica, o feminismo (em relação ao
qual adotou posição nitidamente conservadora) e tantos outros que lhe deram
feição afirmativa, sobretudo no que se refere à análise do ambiente local,
assinala Teixeira Gomes, em seguida, que a revista possuía seções e colunas
pioneiras dedicadas a cinema, recensão de livros, indicador médico permanente,
notas de arte, amplo e variado registro social, crítica de concertos e
recitais, entre outras inserções, “além de ser apologista do progresso contra o
passadismo”. (GOMES, 1979).
Com nítido orgulho
futurista, a capa do primeiro número ostentava foto do recém-inaugurado
Elevador Lacerda, sublinhando tratar-se da “mais arrojada construção que
possuímos”.
LEGADO ÀS LETRAS E ÀS ARTES
Em um parcimonioso
inventário do desempenho dos Rebeldes – aqueles, segundo Cid Seixas,
“bem-humorados mosqueteiros, que combateram o bom combate dos fins dos anos
vinte aos princípios dos anos trinta” (SEIXAS, 1996), em 1992, Jorge Amado
produz o que o crítico considera apenas uma “avaliação sentimental”, sob a
forma de sucinto inventário.
Único vivo do grupo que compôs a
Academia, no exercício da saudade, faço o balanço dos livros publicados pelos
Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa:
sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Edison Carneiro,
pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico
literário, o grande Edison; os Sonetos do malquerer e Os Sonetos do bem-querer,
de Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de
contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os dois romances
de Clóvis Amorim, O Alambique e Chão de Massapê; o romance de João Cordeiro
devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título para
Corja; as coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz, a de sonetos de Da
Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema - some-se com meus
livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo. (AMADO, 1992).
Nas palavras de Amado,
embora não tenham varrido a literatura dos movimentos do passado – “não
enterramos no esquecimento os autores que eram os alvos prediletos de nossa
virulência […], em geral todos os que precederam o modernismo” (AMADO, 1992) –,
os Rebeldes concorreram, “de forma decisiva, para afastar as letras baianas da
retórica, da oratória balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo nacional e
social na reescrita da língua falada pelos brasileiros”. “Fomos além do
xingamento e da molecagem, sentíamo-nos brasileiros e baianos, vivíamos com o
povo em intimidade, com ele construímos, jovens e libérrimos nas ruas pobres da
Bahia”, sublinha o autor de Navegação de Cabotagem (1992).
Abstraindo-se o movimento
de Ala das Letras e das Artes (ALA), que vigorou a partir de 1936, sob o
comando intelectual de Carlos Chiacchio e, por isso mesmo, uma continuidade da
pauta de ideias pregadas e defendidas pelo grupo de Arco & Flexa,
persistindo no receituário de seu “Tradicionismo Dinâmico”, que defendia um
modernismo respeitador da tradição e duraria até o final da Segunda Grande
Guerra (1945), visto à distância de hoje, percebe-se que o legado da Academia
dos Rebeldes estará sutilmente presente nos dois movimentos baianos que se
seguiram ao fim do conflito mundial: o de Caderno da Bahia, que se inicia por
volta de 1947, e o da chamada Geração Mapa, como sequência deste, a partir de
1955/56.
NA
ESTRADA DA LIBERTAÇÃO
Caderno da Bahia apareceu
com uma novidade: a presença forte das artes plásticas, segmento estético em
tudo ausente de movimentos anteriores, embora fosse predominante nele o
objetivo das letras. Vale lembrar que, estranhamente, em nenhum dos movimentos
anteriores (Samba, Arco & Flexa e Academia dos Rebeldes)
havia participação clara das linguagens plásticas. A mais razoável explicação
para tanto se deve à predominância da arte acadêmica, presente em instituições
de prestígio, como a Escola de Belas Artes, e representada por artistas do
porte e notoriedade de Presciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho. As
novas ideias germinaram fora desse circuito tradicionalista, a partir dos
artistas plásticos Mário Cravo Jr. e Carlos Bastos, na volta de viagens e
cursos realizados nos Estados Unidos, na França e no Rio de Janeiro, onde
tomaram conhecimento das revoluções estéticas, vigentes então no mundo. Além
desses, o grupo se constituiu de outros artistas plásticos, entre os quais
Jenner Augusto, Rubem Valentim, Lígia Sampaio e Mota e Silva, mantendo-se à
distância o tapeceiro Genaro de Carvalho, embora da mesma geração e desígnio;
dos ficcionistas Vasconcelos Maia, José Pedreira e Nelson de Araújo; dos poetas
Wilson Rocha, Cláudio Tuiuti Tavares, Camilo de Jesus Lima e Jair Gramacho; dos
jornalistas Heron de Alencar e Darwin Brandão, e intelectuais outros, como Luís
Henrique Dias Tavares, Adalmir da Cunha Miranda, A. L. Machado Neto e Pedro
Moacir Maia. Entretanto, o movimento consagrado com o epíteto de Caderno da
Bahia adquire visibilidade a partir de 1948, com a primeira exposição
baiana de arte moderna em que figuram artistas da geração. Abriu-se também para
a fotografia e o cinema, para adquirir corpo com a publicação da revista que
lhe daria nome, cujo primeiro número é deste mesmo ano, conseguindo somar seis
números, até encerrar-se em setembro de 1951. A ela, assim se refere o escritor
Vasconcelos Maia:
O Caderno da Bahia começou sem
muitas pretensões, mas, como se a nossa geração estivesse aguardando um veículo
com que antes não contava, as adesões se precipitaram. Suas atividades ganharam
fôlego. E logo relativo prestígio o cercou, não só aqui, como nos outros
estados, onde se processava luta mais ou menos igual: a da afirmação dos
talentos jovens na província eminentemente dominada pelo gosto acadêmico.
(SANTANA, 1981).
É justamente no editorial
inserido na edição de 17 de abril de 1950 que se percebem ressonâncias de
ideias proclamadas pelos Rebeldes, agora estimuladas pela avalancha libertária
do pós-guerra e centradas em fortes aspirações de paz que se alastravam. O
pensamento de esquerda, responsável pela opção comunista de influentes
rebeldes, açulado pela propaganda internacional de princípios marxistas
difundidos a partir do sucesso da Revolução de 1917 e a instalação do comunismo
na Rússia, a postura de rejeição a todas as formas de idealismo político, que
desaguassem em regimes ditatoriais, e o claro propósito de abraçar tudo o que
representasse fortalecimento de um humanismo real, eram visivelmente os esteios
ideológicos em que repousava o entusiasmo de Caderno da Bahia.
O editorial aponta como
destino preferencial do grupo a “ampla e larga estrada da libertação, na qual
marcha uma nova humanidade, na busca de um mundo de tranquilidade e de
trabalho, de paz e de amor entre os povos”, reconhecendo este como seu roteiro,
“a serviço da paz e da defesa e enriquecimento da cultura”, em contraposição ao
outro, “o caminho sangrento e tortuoso do desespero, no qual as formas sociais
historicamente decadentes, e mesmo superadas, tentam conservar seus privilégios
de exploração e de injustiça”. Vasconcelos Maia diria, alguns decênios depois,
que Caderno da Bahia era “um boletim literário e artístico, mas, como a
situação política exigia, também político.” (SANTANA, 1981). Ao definir as
características do movimento, como a consciência do que buscavam, Maia remete,
de forma clara ao essencial, ao que lhe deu suporte: “Tínhamos tido e aprendido
as lições da Semana de Arte Moderna de 22 e do movimento aqui liderado por
Pinheiro Viegas.” (SANTANA, 1981).
Não havia por que negar,
pois lá estava Walter da Silveira, da linha de frente da Academia dos Rebeldes,
que se incorporara ao grupo de Caderno da Bahia. Era a projeção do que, entre
os Rebeldes, se constituiu em ponto de coesão para a atividade criadora. “A
militância serviu de régua e compasso aos escritores que levantaram um projeto
de modernidade – visceral e epidermicamente – afinado com a realidade de seu
povo”, infere com percuciência o ensaísta Cid Seixas (2004). De hábitos
presumivelmente herdados dos Rebeldes, podem-se alinhar alguns, tais como um
semelhante desejo de maior fruição da cidade, no dizer de Vasconcelos Maia (1981),
“ideal para se viver – tranquila e pacata, sem assaltos”, onde “pouca gente
tinha automóvel e a grande maioria das pessoas andava de bonde”. Em timbre que
repetia Jorge Amado (1992), Maia testemunhava: “Os grandes vales, que foram
utilizados como avenidas e se incorporaram ao processo de urbanização, eram
hortas e pomares. O clima era agradabilíssimo, ameno”. Por suas palavras,
deduz-se que o grupo vivenciava melhorias no setor de transportes urbanos, com
as mudanças que se operaram no serviço de bondes elétricos, a partir da
aquisição de unidades mais modernas – agora todos iguais e abertos, amarelos,
com os números pretos, com capacidade cada para 50 passageiros, surgindo logo a
seguir os bondes fechados de 46 passageiros sentados, que o povo apelidou de
“Sossega Leão”, em alusão ao samba de sucesso do compositor baiano Assis Valente,
“Camisa Listrada” (1937), na voz de Carmen Miranda.
A boemia também tinha seu
lugar. Além de alguns espaços sobreviventes, como o Café das Meninas, os
componentes de Caderno da Bahia se reuniam preferencialmente na Pastelaria
Triunfo, misto de bar e mercearia, na Praça Municipal, mas, para dar um toque
especial de fruição hedonista, criaram seu próprio espaço, o Bar Anjo Azul, um
ambiente decorado em tons barrocos, que se tornaria um ícone local de
sofisticações boêmias, situado na Rua do Cabeça (Centro). O ambiente refletia a
atmosfera de doutrinas estéticas e comportamentais em moda na época, como o
surrealismo e o existencialismo, refletindo-se na postura dos frequentadores. O
interior imitava um bistrô parisiense, onde a música de preferência era o Jazz,
na voz de Billie Holiday. Bebia-se pernod ou xi-xi de anjo, este
uma especialidade da casa, à base de aguardente, de fórmula secreta, guardada a
sete chaves. A entrada ostentava na parede um suntuoso painel surrealista, em
cores, de autoria do pintor Carlos Bastos.
Tal como os Rebeldes, a
frequência nos bordéis e cassinos figurava naturalmente na agenda do grupo.
Relembra Vasconcelos Maia:
Íamos muito em grupo aos cabarés.
Não tanto ao Tabaris, porque não tínhamos grana. Íamos mais aos rumbas, aos
boleros. Apesar de moços, éramos muito conhecidos. Quando chegávamos nesses
dancings, dominávamos o ambiente. Os donos e as dançarinas nos tratavam
otimamente, era formidável. Jenner Augusto se arvorava a cantor, Mário Cravo a
mágico, nosso amigo Jairo Saback fazia um número de música, ficávamos donos dos
salões. (SANTANA, 1981).
O movimento que se
seguiu, o da chamada Geração Mapa, tinha igualmente como proposta básica romper
com a inércia cultural, a dominação academicista, que ainda alimentava o
preconceito contra a arte moderna; mas a realidade era inteiramente outra. Já
se haviam esmaecido os fortes reflexos do pós-segunda guerra, embora tivesse
irrompido a guerra da Coreia, mas de curta duração e menor repercussão no
noticiário, e pipocassem outras insufladas pelo capitalismo na luta por sua
hegemonia internacional. O mundo se pautava agora pela Guerra Fria, no
confronto entre Estados Unidos e União Soviética (URSS). Prescinde o grupo Mapa
uma novidade cultural: a partir de 1952, como instrumento de divulgação
cultural, Caderno da Bahia, que se encerrara, seria substituída pela
revista Ângulos, criada por Adalmir da Cunha Miranda e outros acadêmicos
de Direito, como Machado Neto, sob a direção do Centro Acadêmico Ruy Barbosa
(CARB), que advogava a mesma postura de luta contra o conservadorismo renitente
e o conformismo intelectual, findando-se esta sua fase em 1961, após 17
edições.
O grupo de Mapa começou a
aparecer nas páginas de Ângulos, antes da criação de sua própria
revista, que daria rótulo à geração, circulando em três edições, nos anos de
1957 e 1958, para o que contou com substancial apoio de Zittelmann de Oliva,
então um dos sócios da empresa Artes Gráficas, situada na Rua do Saldanha
(Centro), para ser depois superintendente do recém-lançado Jornal da Bahia
(1958). Era a forma de se afirmarem talentos do nível de Glauber Rocha
(praticamente o líder do grupo, apesar de ser o mais jovem), Fernando da Rocha
Peres, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Fred de Souza Castro, João Carlos
Teixeira Gomes, Fernando Rocha, Carlos Anysio Melhor, Sante Scaldaferri, Ângelo
Roberto, e outros, entre os quais, este redator. A eles se agregariam, algum
tempo depois, a poeta Myriam Fraga e os então contistas João Ubaldo Ribeiro,
Sônia Coutinho, David Salles e Noênio Spínola.
No grupo Mapa,
integravam-se várias linguagens artísticas. Além de literatura (ficção e
poesia), lá estavam criadores das áreas de artes plásticas, teatro, cinema e
jornalismo, utilizando como meios de difusão, além da revista Ângulos,
primeiramente, a página literária do Jornal da Bahia, então editada por
Luís Henrique Dias Tavares, um dos nomes de Caderno da Bahia, e, depois, o
suplemento dominical do jornal Diário de Notícias, da cadeia dos Diários
Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, que se celebrizaria sob a sigla
SDN, criado e editado pelo jornalista Inácio de Alencar, tendo como
coadjuvantes Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, este redator e, às vezes, Sylvio
Lamenha, então colunista social, mas de espírito voltado para a literatura e
música popular. Concomitantemente, com a revista Mapa, o grupo atuava em
várias frentes. Criou seu próprio selo editorial, as Edições Macunaíma, que
editou os primeiros livros de membros do grupo; fundou uma empresa
cinematográfica, a Iemanjá Filmes, e, a partir da aproximação com Walter da
Silveira, através do Ciclo de Cinema da Bahia, tendo à frente Glauber Rocha,
iniciou o processo que desaguaria no movimento designado pelo nome de Cinema
Novo, a partir da realização de filmes paradigmáticos, como “Deus e o Diabo na
Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, ambos de
Glauber Rocha, que antes realizara o longa “Barravento” e o curta “O Pátio”;
“Memória do Cangaço”, de Paulo Gil Soares, que escreveu também uma peça de
teatro, “Evangelho de Couro”, versando sobre a tragédia de Canudos, levada pela
pioneira Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em seu palco. Patrocinou
ainda exposições de Calasans Neto e Sante Scaldaferri, em galerias de arte de
Salvador, além de lançamentos de álbuns de gravuras.
A geração Mapa vivenciou,
e a ele se incorporou, o rico momento de reforma da então Universidade da Bahia
(só se tornaria Federal em 1977), empreendido pelo reitor Edgard Santos, com a
criação das escolas de artes (Música, Dança e Teatro), reestruturação da Escola
de Belas Artes, fundação de institutos culturais, entre os quais se destacava o
Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), além dos de ciências exatas e, mais
adiante, novas unidades de ensino, como o Curso de Jornalismo, inicialmente
integrante da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, em seguida agregado à
Escola de Biblioteconomia e Documentação. Participou da criação e funcionamento
do Museu de Arte Moderna, inaugurado pela arquiteta Lina Bo Bardi, em 1960, e
na programação avançada de teatro, sob o comando de Martim Gonçalves, então
diretor da Escola de Teatro.
Quanto à fruição
hedonista, os integrantes do grupo seguiram, com variações, o roteiro das duas
gerações anteriores (Academia dos Rebeldes e Caderno da Bahia):
bares, restaurantes, bordéis, cassinos, dancings, recém-surgidas boates, mas,
para encontros, tinham como suas preferências a Sorveteria Cubana, na parte
alta do Elevador Lacerda, e os restaurantes Cacique, na Praça Castro Alves, e
Porto do Moreira, então na Rua do Cabeça. Até hoje, pergunta-se por que a
preferência do grupo, de fins de tarde à meia-noite, cotidianamente, pela
Sorveteria Cubana, que não servia bebida alcoólica, mas somente sorvetes,
milk-shakes e bolinhos. Simples: a inocência também leva ao paraíso.
BIOGRAFIAS SINTÉTICAS
Agrupam-se a seguir, sob
o rótulo de biografias sintéticas, catorze membros da Academia dos Rebeldes,
adotando-se para tanto um critério de seleção entre os mais citados por pesquisadores
e comentaristas, como assíduos colaboradores das revistas do grupo, Meridiano e O Momento, que circularam entre 1929 e 1932, participantes das
ações socioculturais e desfrutes de boemia, como também os que, entre eles,
cumulativamente ou não, alcançaram proeminência em campos da literatura ou de
atividades outras, como o jornalismo, a política e os estudos científicos,
obtendo reconhecimento regional, nacional ou mesmo internacional.
Algum curioso leitor
poderá observar que, em se tratando de biografias, dispostas pela ordem do ano
de nascimento dos biografados, faltam maiores indicativos cronológicos às
narrativas. Sem dúvida. Explica-se: no presente caso, o fulcro do interesse por
cada um dos nomes da lista procurou centrar-se na expressão e significado do
seu desempenho para os fins colimados do projeto intelectual e político que os
unia, optando-se por uma exposição sucinta das respectivas trajetórias.
PINHEIRO
VIEGAS (1865-1937)
Por sua
fama de jornalista panfletário, conquistada desde o Rio de Janeiro, onde viveu
mais bem reconhecido como agitador cultural, intelectual corrosivo e
desagregador, do que como mestre e líder de um movimento literário, João Amado
Pinheiro Viegas nasceu em Salvador e, segundo o pesquisador Gilfrancisco
Santos, morreu num dia de novembro, de 1937, “abandonado pelos poucos amigos
que tinha”, em Itacaranha, subúrbio da capital, sem receber qualquer homenagem
póstuma, sequer merecer registro obituário na imprensa, mas talvez como um
alívio para “a mediocridade empavonada e vitoriosa, a quem jamais poupou com a
sua sátira” (2001).
Jorge
Amado, que se dizia surpreso por ter ele o prenome e o primeiro sobrenome
iguais ao de seu pai, João Amado, o define como patrono da Academia dos
Rebeldes e poeta baudelairiano, “panfletário temido, epigramista virulento, o
oposto do convencional e do conservador, personagem de romance espanhol,
espadachim”. Entretanto, segundo ele, não foi somente a marca do mentor a se
fixar em sua memória. Pinheiro Viegas era mais. “Um homem avançado para os
padrões da época”, assinalando que “havia participado da campanha civilista, ao
lado de Rui Barbosa, e trabalhado vários anos no Rio” (AMADO, 1992). Nômade,
pouco se sabe de descrição objetiva desse nomadismo; apenas que percorreu o
Brasil, de norte a sul, como poeta e jornalista, e que no Rio foi boêmio, como
integrante da turma de Lima Barreto.
Poeta panfletário e
ferino epigramista, quando viveu no Rio de Janeiro, Pinheiro Viegas atuou no
jornalismo, alcançando prestígio e admiração, entre leitores e literatos de
proa, apesar de poucos saberem de sua vida em privado, à exceção de alguns
amigos, entre eles o crítico literário Agripino Grieco (1888-1973), que, de tão
próximo, não o esqueceria em suas memórias de 1972, ao evocar visita que fez a
seu misérrimo endereço, que companheiros de tertúlias diziam situar-se “lá para
as bandas do Cais Pharoux”.
Uma tarde, fez questão de levar-me
ao cubículo infecto da rua do Mercado, onde dormia numa rede, entre duas
cadeiras pernibambas, mas onde se destacavam, numa estante, não de todo
desgraciosa, volumes riquissimamente encadernados em França, dos seus poetas
blasfemos, malditos, Baudelaire, Verlaine, Corbière, Rimbaud, volumes que ele
não venderia por preço algum, mesmo em dias de fome agudíssima.
Muitos de seus panfletos
em versos se propagaram, fosse a partir da Bahia, fosse do Rio de Janeiro,
publicados em veículos diversos, como o de maior repercussão entre eles, sob o
título de A Re Pública – Carta ao
Marechal Deodoro, que mereceu comentários elogiosos de variada autoria, do
qual adiante vão alguns excertos e sobre o qual assim escreveu, em estilo
próprio da época, um redator no nº 374, do Pequeno
Jornal carioca, em 21 de maio de 1891:
A
Re Pública – É o
título de um panfleto que temos entre mãos, em estilo epistolar bem metrificado
em alexandrinos e dirigido ao Sr. marechal Deodoro, assinado por Pinheiro
Viegas. Não sabemos onde foi impresso; com toda a certeza o impressor, cidadão
garantido pela nossa Constituição republicana, receou, o que? Alguma
empastelação. (A REPÚBLICA, 1891).
Viegas
cumpriu os cursos primário e secundário no então Ginásio da Bahia;
bacharelou-se em Letras e ingressou no Curso de Direito, abandonando-o, para se
dedicar ao jornalismo. Trabalhou em O
Imparcial, mas o deixou, quando o jornal foi vendido aos integralistas,
força política emergente da época, assumindo o seu comando dois dos, ao tempo,
chamados “galinhas-verdes”, em alusão às cores da militância ideológica, Mário
Simões, diretor de redação, e Mário Monteiro, diretor financeiro. É, dessa
ocasião, epigrama famoso de Viegas, composto para
registrar satiricamente o acontecimento.
Mário
Simões bis Monteiro
Remontaram
O Imparcial.
São
quatro mãos no dinheiro,
São quatro
pés no jornal. (SANTOS, 2018).
Em
Salvador, onde verdadeiramente se tornaria conhecido e influente, antes de
fundar e liderar a Academia dos Rebeldes, frequentou o grupo de Samba, cujos membros se mostravam
engajados no combate ao conservadorismo, mas sem que estivessem efetivamente
identificados com a corrente renovadora do modernismo. Apesar de publicações
dispersas, seja como poesia, crônica ou panfleto, Pinheiro Viegas deixou apenas
um livro de poemas, Brasil Prosa e Verso
(Salvador: Gráfica Popular, 1931), mas com autoria sob o pseudônimo de Sophos
Arnaud. Durante sua pesquisa na Fundação Biblioteca Nacional, Gilfrancisco
Santos apurou que o crítico pernambucano Waldemar Cavalcanti anunciara, em 1968,
que estava “sendo preparada uma edição (póstuma) das Poesias Completas, de
Pinheiro Viegas”, mas a conclusão do pesquisador é de quase lamentação: “Até
hoje a obra esparsa de Pinheiro Viegas não foi publicada, porque coligida ela
já está há mais de vinte anos à espera de editores” (SANTOS, 2018).
Abaixo, sete de seus
sonetos e excertos de um folheto em alexandrinos, criações essas, hoje,
raridades.
MEDALHÃO GREGO
Escuto Debussy. A noite. O luar.
O oceano,
Recordo-o. Onde isso foi. Eu não o sei. Perdi-o.
Era o efebo irreal – grego mármore humano
Olhei-o. Olhou-me. Riu. É um demônio. Eu rio.
Belo mármore jônio impassível – engano!
Os olhos verdes maus, a grenha negra, vi-o.
As suas níveas mãos, nervosas, tinham frio
Nas teclas de marfim e de ébano do piano.
A boca – flor de sangue – em
claros risos francos
Mostra-me, alegre, os seus trinta e dois dentes brancos.
O amor – interjeição – duas sílabas métricas.
Uma por uma eu vi todas as suas
baldas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.
(JORNAL DE POESIA, s/d)
MÚSICA NOTURNA
Abro a janela.
Escuto. Enche todo o ambiente
Essa música irreal
do violão de um tzigano,
Feita de longos
ais do coração humano,
Fora, no ermo, ao
luar, desoladoramente.
Lembro a imagem
lirial da pulcra e eterna ausente,
Longe, o meu país
natal, Glauco e múrmuro oceano,
O doce lar
tranquilo, o jardim redolente,
Na plaga verde e
azul sob o céu pompeano.
Do violonista
boêmio, o sem pátria no mundo,
Como a dizer à
noite e ao plenilúnio: – “Ouvi-me!”
Tem uma alma esse
violão toda nervosa e quérula…
Guay em guay,
corda a corda, assim ele é sublime:
Escuto-o em
pranto, à janela, o silêncio profundo,
A paisagem do
exílio ao luar de madrepérola!
(GIL BLAS, 1919).
ESFINGE
Leão e mulher, –
de pedra o monstro, – é a esfinge obscura
Do cruor do
orgulho humano em meio ao labirinto:
– O Tudo e o Nada,
a Vida e a Morte, o Sonho e o Instinto,
O Espírito e a
Matéria, o Criador e a Criatura.
De granito, –
enigma eterno, – olhando os sóis na altura,
– Mora o deserto
areal de um grande oceano extinto.
Na queda boca
imita, – o néctar feito absinto,
– Mostra ao Ser e
ao Não-Ser pétrea ironia dura.
O Orbe em retorno
ao Caos e a Volúpia ao Nirvana,
Abre ao infinito
azul as órbitas bizarras,
Da plástica ao
psiquê, divina, sendo humana.
Rebelde ao Anjo, –
a Besta é o delírio e a nevrose:
Tem do Gênio ou do
Herói os fantos entre as garras
Sob a lua de um
Sonho e ao sol de uma Apoteose!
(GIL BLAS, 1920).
J.N.R.J.
Jerusalém. Por fim
de surpresa, aparece
(É o moço gênio
hebreu mestre de pulcritude!)
E fala a turba
ignara afeita ao trato rude
Sobre o credo que
ex surge… avulta… aumenta… cresce…
Dizem: - “Eis o
Homem Deus!” – Ele sorri. Parece
Branco lírio
imperial sobre negra palude.
Tem nos olhos, no
rir, no andar, na celsitude,
A beleza toda
irreal de um poema ou de uma prece.
Como poeta ele
adora a natureza. E o verbo
Sai-lhe do lábio,
ao vê-la, em surto ao céu e aos astros,
Dentro a cidade
hostil no transe mais acerbo…
À pobre argila
humana é a glória inatingida:
Ao lembrá-lo, no
mundo, há de sorrir seus rastros
Quem faz por uma
ideia o holocausto da vida.
(GIL BLAS, 1920).
O CORVO
Sobre um tronco
pousado e indiferente ao coro
Dos pássaros no
azul e as serpes no chão rasas,
Mesto, os olhos de
treva – abrindo em duas brasas –
Ei-lo na hora
púnica em luto imorredouro.
Ele põe-se a
grasnar, de chofre, em riso e choro,
A saudade letal das expulsíceas vasas
Qual sarcasmo funéreo à volúpia das asas
E ao pôr do sol de outono a broslar o céu de ouro.
Tomba do monte do
vale a noite. E então na treva
Tem do corvo de
Poe negra nevrose estranha,
Que em silêncio da
morte a alma gnomes ceva.
Triste ausência da
lua morre! Banha
A paisagem de
sonho o luar que então se eleva
No espaço de ter
turquesa ao topo da montanha.
SPLEEN
O laudano ao café.
Lethes. O eterno sono.
Ponto final do
amor de poema ou de novela.
Entra em meu
quarto o luar de ouro fosco de outono.
Espero-te. Não
vens. Cismo, chego à janela.
Tic, tac, o
relógio é monótono absono.
No teu
autorretrato antigo em aquarela,
Tenho a ilusão de
ver-te a pose de abandono.
Sendo humana, és
divina! e sendo cruel, és bela!
Certo de minha dor
hoje um poema eu não faço…
Lápis verde
escreve em uma folha de almaço
Maus versos,
versos maus, nesses meus hieroglifos.
Cai-me o papel das
mãos: - São meus quatorze versos!
Meu gato Angord,
de gris-verdes olhos perversos –
Do chão num salto,
apanha-o e rasga-o entre os seus grifos.
ELA
Entra. Despe-se. E
nua, a rir, sem cerimônia.
(Ela é a visão
celeste e a femina terrena),
Negros olhos de
ônix, solta a bruma melena,
Anda, à noite, em
meu quarto, ao léu da minha insônia.
Cismo: é a
Tzigana, a musa, a madona, a demônia,
A mandrágora, a
euforbia, a reflesia a açucena,
Grande, soberba,
irreal, pulcra, nívea, serena,
Frio alabastro nu
de vedra estátua Jônia.
Alva argêntea,
lunar, dúbia, eu sonho, imprecisa,
(Para a sua psique
só mesmo a sua plástica!)
Ela faz-me
lembrar, Da Vinci, a Mona Lisa.
Cai-lhe sobre a
nudez o amplo peplo vermelho.
Depois,
nada!… Ilusão! E eu só vejo fantástica,
A máscara da lua,
a rir, no meu espelho.
Meia noite. No
bar, ele ao piano, o Diabo!
O espelho contra o espelho é um fogo de artifício.
O meu copo de abismo é o meu mundo fictício.
Sou pachá, mandarim, sibarita, nababo.
Rindo, vejo, em redor, então, em menoscabo,
O quadro nu plebeu do amor venal de ofício.
Ébrio só de ilusões!… mais ilusões… e, ao cabo,
O absinto, o Monstro Verde, adoro-o! ele é o meu vício!…
Lá fora, o céu de
inverno, o vento, a chuva, o frio.
Os verdes olhos maus, a grenha bruna — vi-o.
Mais belo é o mundo assim em linhas assimétricas.
De chofre, vejo,
então, todas as suas baldas.
Seus verdes olhos maus são duas esmeraldas.
Sob o esplendor lunar das lâmpadas elétricas.
(PINHEIRO VIEGAS, apud MIRANDA, 2020)
TEBAIDA
A paisagem vernal de sonho e de aquarela.
O monte, o vale, o rio, o céu, são meus vizinhos.
Da janela eu contemplo o dia quase ao termo:
É a cabeça de um Deus a sangrar sob espinhos.
Triste e só, por não vê-la, eu vou ficando enfermo.
Creio vê-la outra vez, meu coração me bate,
Os seus olhos azuis nos verdes do meu ermo.
O palor de alabastro, a coma de ouro mate,
Penso vê-la outra vez, antes eu nunca a visse!
Leda, a boca a sorrir, é uma rosa escarlate.
É a carícia nupcial e a sororal meiguice:
Enlaçada, sutil, deslumbrante e bela,
Na música do céu das coisas que me disse.
A paisagem vernal de sonho e de aquarela.
A RE PÚBLICA - CARTA AO MARECHAL DEODORO (Excertos)
Marechal, sou
plebeu, um simples democrata.
Um forte coração,
uma alma intemerata,
Eu jamais me
curvei a um rei ou ditador
Nunca tive
ambições de ser comendador.
Barão, duque,
marquês. Detesto a fidalguia.
Odeio o sangue
azul e esta aristocracia,
Que campeia entre
nós, assim, com altivez! […]
É grande cobardia,
estranha insensatez.
Ninguém vir
protestar contra o nefando crime,
Que a todos nos
suplanta e a todos nos oprime!
[…]
Por que vós
consentis assim impunemente
Aviltar a nação
com jugo prepotente
Dos vossos
cortesãos, ministros e fascistas,
Democratas que são
no fundo monarquistas,
Hipócritas,
sandeus, bandidos, argentários,
Palhaços e
ladrões, fidalgos, mercenários
Infames histriões,
curvados abissínios,
Que vem das
podridões e dos esterquilínios?
[…]
Para salvar da
Pátria a triste ruinaria
Das ondas
colossais da velha oligarquia
É preciso titãs,
preciso é, lutadores…
Abaixo a Ditadura!
Abaixo os Ditadores!
Para longe de nós
os triviais mandões,
Que vendem com
desplante as terras das Missões
Por um punhado
d’ouro aos monstros do egoísmo! […]
Para longe da
Pátria os corvos do cinismo,
As hostes da
desonra, as hostes assassinas,
Que vivem de
explorar tesouros nas ruínas! […]
Preciso é reagir,
preciso é dar batalha,
Contra o velho
terror da grande e vil gentalha,
Que tem mil
europeus, palácios e festins,
Como os grandes
pachás e os nobres mandarins,
Que traz gravata
branca e luvas de pelica
E tem ostentações
de messalina rica […]
[…]
A miséria, o
terror, a fraude e a corrupção!
Fermentam no
Brasil grande Revolução!
(A
CRUZADA, 1891, apud
SANTOS, 2018).
SOSÍGENES
COSTA (1901-1968)
Foi
preciso que transcorressem nove anos de sua morte e quase vinte da edição única
em vida de seu livro Obra Poética
(Rio de Janeiro: Leitura, 1959), pela qual recebeu o Prêmio Jabuti, em1960,
para que se viesse situar esse grande poeta grapiúna, conforme feliz observação
de Jorge Amado, “no lugar que lhe compete na lírica brasileira”, fazendo
desembocar a sua obra no reconhecimento da crítica e história literárias. E,
por fim, tudo se daria num galope, quase frenético. Pelas mãos do paulista José
Paulo Paes, em 1977, a editora Cultrix publica Pavão, Parlenda, Paraíso,
com penetrante análise crítica e pequena antologia do poeta nascido em Belmonte
(BA). Logo em seguida, pela mesma editora, em 1978, Paes reedita a Obra
Poética ampliada, completando-se a faina de sua inserção, com a edição de Iararana
(São Paulo: Cultrix, 1979), a epopeia cabocla do cacau, em que, submetendo
esta consagrada forma poética “aos signos dessacralizadores da paródia”,
segundo Cid Seixas, o poeta vai além dos inventos pioneiros de Mário de
Andrade, em Macunaíma, ou de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê,
justamente por sua patente “rebeldia diferencial”. (SEIXAS, 2004).
Essa
longa imersão na indiferença da crítica e, praticamente hoje, nas geleiras do
esquecimento, em muito, se deveu e se deve ao temperamento enormemente retraído
do belmontino, que viveu em Ilhéus, onde fixou residência em 1926, para ocupar
a função de telegrafista dos Correios, conjugando-a depois com a de secretário
da Associação Comercial de Ilhéus, quase sem ser percebido, até mudar-se para o
Rio de Janeiro, aposentado, em 1954. Com a fama de “arredio, pedante e asceta”,
fazia supor houvesse “erguido ao seu redor um muro de discrição e silêncio”,
segundo observou Hélio Pólvora, para concluir: “Além de proteger-se contra
contaminações maldosas da ambiência, tinha necessidade de solidão para criar”
(PÓLVORA, 2001; pp. 99-110).
Talvez
por ter preferido viver em Ilhéus, praticamente isolado, garante Jorge Amado, a
militância de Sosígenes Costa limitou a sua participação na Academia dos
Rebeldes aos dois últimos anos da década de 1920 e ao início da década de 1930,
mas, pela sua qualidade de poeta, era dele que se valiam os outros amigos
Rebeldes, nas emulações da época, para enfrentar a constelação de nomes que
fulguravam nos outros dois grupos concorrentes (Samba e Arco & Flexa),
como Godofredo Filho, Carvalho Filho e Hélio Simões, opondo-lhes “sua poesia
original, suntuosa, bela, capitosa, como vinho generoso” (AMADO, 1992), que,
por mais incrível que possa parecer, está hoje praticamente esquecida, embora recentemente
tenham sido publicadas duas antologias de poemas seus, ambas organizadas pelo
escritor Aleilton Fonseca: a primeira, pela Global Editora, de São Paulo; a
outra, pela Academia de Letras da Bahia, em convênio com a Assembleia
Legislativa da Bahia (2017). Sosígenes Costa morreu no Rio de Janeiro, em 5 de
novembro de 1968, faltando cinco dias para completar 67 anos de idade. Merecia
viver muito mais.
Um dos melhores poetas do norte
do país é Sosígenes Costa. Solteirão, esquisito. O vocábulo ‘cegonhento’
apesar de um pouco preciso, como que foi fabricado para ele. Está no mundo com um ar de pernalta pensante.
Funcionário dos Telégrafos e escriturário de uma associação comercial,
desforra-se dos seus magríssimos ordenados em esbanjamentos poéticos de
pedrarias e sedas, como raros dos seus confrades se permitem. Na imaginação
desse asceta há sempre um pecaminoso rumor de saias proibidas. Qualquer
mulher se lhe afigura ‘princesa, atriz e gata’. Vinga-se do seu isolamento e da
sua imobilidade em visões como as não tiveram Sardanapalo e Sindbad, o
Marítimo. Recorda sempre os belos dias que passou em Belmonte e fala dessa
cidadezinha do interior da Bahia como se falasse do Oriente, acendendo todas as
gambiarras, fazendo faiscar todas as ourivesarias, compondo todas as decorações
florais. É um admirável ornamentista de frades. Modernista, ainda crê na rima
rica e um excesso de luz que lhe torna certas passagens obscuras, numa espécie
de névoa de ouro. Esse filho da roça pensa nas Vênus de Paris e alude
constantemente a pavões e castelos. Sente-se perdido numa Taiti que fosse cheia de
duquesas enjoalhadas pelo francês Lalique. Muito justo o que escreveu dele, em
famoso artigo, Édison Carneiro, especialmente ao acentuar que Sosígenes
transfigura tudo isso, em matéria nossa sente tudo isso brasileirissimamente. Ainda meio simbolista, diz-se ele ‘pagem da Musa e
príncipe da Morte’, mas é um panteísta bem vivo ao inebriar-se na gama de
amarelos do sol dos trópicos. Sua amada tem ‘trinta anéis de pérolas ovais’,
mas o seu noturno de Ilhéus a ‘descrição’, é algo de bem contemporâneo. (GRIECO,
apud SANTOS, s. d.).
SEIS SONETOS
PAVÔNICOS, DE SOSÍGENES COSTA
O
PRIMEIRO SONETO PAVÔNICO
Foge
a tarde entre o bando de gazelas.
A noite agora vem do precipício.
Sóis poentes, douradas aquarelas!
Mirabolantes fogos de artifício!
Maravilhado assisto das janelas.
Os coqueiros, pavões de um rei fictício,
abrem as caudas verdes e amarelas,
ante da tarde o rútilo suplício.
Cai uma chuva de oiro sobre os cravos.
O grifo sai do mar com a lua cheia
e as pombas choram pelos pombos bravos.
Um suspiro de amor do peito arranco.
A luz desmaia. E o céu todo se arreia
Em vez de estrela de narciso branco.
(COSTA, 1923)
TORNOU-ME
O PÔR DO SOL UM NOBRE ENTRE OS RAPAZES
Queima sândalo e incenso o poente amarelo,
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.
Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.
Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa, os únicos do mundo.
E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr do sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.
(COSTA, 1924).
CREPÚSCULO
Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões. Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.
As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor dourada agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.
A natureza cintilante e amena
sardanapalesmente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.
Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente, mas a aurora.
(COSTA, 1926).
SONETO
AO ANJO
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.
Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.
Só tu agora colhes azaleia
e os cintilantes cachos da azureia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.
Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.
(COSTA, 1930).
PAVÃO VERMELHO
Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.
Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
(COSTA, 1937-1959).
PAVÃO AZUL
No jardim do castelo desse bruxo
d'asas d'ouro e olhos verdes de dragão,
tu és à beira de um lilás repuxo
um grande lírio de ouro e de açafrão.
Transformado em pavão por esse bruxo,
vivo te amando em tardes de verão,
dentre as rosas e os pássaros de luxo
do jardim desse bruxo castelão.
Tenho medo que um dia o jardineiro…
Mas nunca, estou bem certo, do canteiro
há de colher-te, ó minha flor taful.
Porque ele sabe que em manhã serena,
não suportando a ausência da açucena,
há de morrer esse pavão azul.
(COSTA, (1978).
CRIAÇÕES
DE SOSÍGENES COSTA ADOLESCENTE
GARÇAS
Como um bando de preces
japonesas
Que se desatam sob o céu
de Nikko,
Garças em flor, de
maravilhas presas,
Fogem pr´a as brotas do
capuz de um pico.
Agora tudo é lindo! Que
belezas
As régias garças no
bailado rico…
Plumas enconcham –
pérolas retesas
Que tanto haurir… daqui
donde me fico.
E tão bailantes! Sobre o
amor do musgo,
Com quem por causa delas
sempre rusgo,
Sinto desejos de bailar
assim…
Mas sou tão verme! É que
do baile ao friso,
Pra se imitar as garças é
preciso
Ter graça azul em um
corpo de jasmim!
(COSTA, 2011).
O CISNE
Na indolência de um
deus, lá vem à gruta, ao lago
O cisne. O azul de
golpe empalidece! Tudo
De pérolas quer
ser e tudo fica mudo
Ante tanto
brancor, brancor que aos golpes trago.
Agita a pluma,
dobra o colo… é de veludo!
Põe frisos n´água
e segue a machucar (que estrago!)
Um nenúfar…
Entanto, a linfa o espelho mago,
Sem se importar da
flor que se quebrou. Estudo
Agora o cisne e
quanto é o branco vejo esteta.
No cisne o branco
é tudo. O cisne mais parece
O amor da estrela,
o amor do alvor, o alvor da prece!
Nisso… Ele canta…
E após deixar almas de poeta
Em cada som que
tange, o cisne morre… Parte,
- O cisne, taça
branca em que bebe a arte.
(COSTA, 2011).
MINÚSCULO
Na mesa onde
costumo fazer versos,
Acha-se um vaso de
um valor venusto,
Um vaso pequenino,
um nada, um susto,
Que encho de
trevos e jasmins dispersos.
É uma graça vê-lo
como um busto,
Trazendo tão pequenino
os universos
Dos bons miosótis
em paixões dispersos
- Tantas corolas
que se apruma de custo.
Inda outro dia me
deram três rosas:
Vermelhas,
sanguejantes, amorosas,
Que nele pus num
salto com meiguice.
E toda gente que
chegou me disse:
- Não parece esse
vaso um loiro anão
Que não pudesse
com o próprio coração?!
(COSTA, 2011).
CONTEMPLAÇÃO
Eu só imenso… O
vulto em bronze… O braço aberto
Contemplo como
esfinge a festa das estrelas!
O azul sacode a
luz… E eu todo me desperto
Pras convulsões
brutais da arte… A arte! Pelas
Frondes a brisa
rola… Há pirilampos n´alma…
A rosa que ergo à
boca aperto-a… Dando ais.
Aperto-a… E é
tanta luz e tanta, tanta calma
Que eu penso: Vou
p´ra o azul e não volto mais.
O zéfiro me lambe…
E beijos é o que eu sinto,
Sinto beijar-me a
estrela e beijo a estrela e beijo,
E beijo mesmo o
céu… Oh! Crede, não vos minto.
Sinto-me estátua e
a gente, a gente que não vejo
Ao ver-me assim
murmura: Um vesano, um pateta!
E a natureza diz:
Meu filho, meu poeta!
(COSTA, 2011).
INGAUHYRA*[1]
A casa velha
arruinada. Em ente,
A horta plantada
de pimenta e rosas.
Os bois comendo as
ervas perfumadas.
Ao fundo o rico
cacaual da gente.
O pasto. As
laranjeiras. Lentamente
Evoco tudo, oh
musa! Como rosas!
O cocho com cacau passando
rente
 porta. E a
noite, que nebulosas!
Os cascos das
galinhas no terreiro.
O porco. E o rio?
E a côncava canoa
Onde a gente
brincava o dia inteiro?
Recordo tudo na
fazenda nossa…
E uma dor dentro
d´alma me magoa.
Que saudade, meu
Deus, de minha roça!
(COSTA, 2011).
EPITÁFIO PARA O
TÚMULO DE FANNY
Chorão que choras
tão forte
Não chores que
aqui estou.
Não faças chorar
na morte
Quem na vida não
chorou.
(COSTA, 2011).
OBSERVAÇÃO: os seis
últimos poemas foram colhidos no livro Sosígenes
Costa - Cobra de duas cabeças – Poesia e prosa encontradas e inéditas,
publicado em 2011, pela editora Mondrongo (Ilhéus-BA), em celebração aos 110
anos do nascimento de Sosígenes Costa, em Belmonte-BA, fruto de pesquisa
realizada por Herculano Assis, organização do editor e escritor Gustavo
Felicíssimo, com apresentação de Heitor Brasileiro Filho e Jorge de Souza
Araújo.
JOSÉ BASTOS
(1905-1937)
Quando em
fins dos anos 1940, numa pacata Itabuna, inocentes alunos da primeira turma do
Ginásio da Divina Providência, intrigados, perguntavam quem era aquele que dava
nome à Praça José Bastos, ali pertinho, defronte da estação ferroviária, ouviam
dos mais velhos tratar-se de um poeta que, morto cerca de dez anos antes,
cantara em seus versos a cidade e o seu Rio Cachoeira.
Depois de
interromper o aprendizado das primeiras letras na cidade onde nascera, José
Bastos torna-se precocemente arrimo de família, com a morte do pai, em 1918,
vendo-se obrigado a empregar-se em uma livraria, onde a curiosidade e o contato
com os livros lhe despertam o interesse pela literatura, principalmente pela
poesia parnasiana.
Publica
seu primeiro soneto, “Náiade exilada”, em 1924, no jornal O Intransigente,
seguindo para Salvador, onde conclui o curso secundário. Retorna a Itabuna em
1927 e ingressa no jornalismo, começando a trabalhar no jornal A Época,
então propriedade de Gileno Amado (1891-1969), advogado, caminhando para ser um
dos coronéis do cacau e já prestigioso chefe político local. Lá, publica a
maior parte de sua poesia.
Já
integrante do movimento desencadeado pela Academia dos Rebeldes, figurando
mesmo entre os colaboradores do único número da revista Meridiano (1930) e,
depois, de O Momento, em 1931, José Bastos publica em Salvador seu único
livro Horas Líricas – depois
reeditado, por ocasião do cinquentenário de Itabuna: Tipografia D´Agenciadora,
1960.
Com esse livro em mãos, o poeta
foi para o Rio de Janeiro, onde pretendia inserir-se na vida cultural da antiga
capital do país, não conseguindo seu intento. Melancólico e doente, vítima da
tuberculose, ateia fogo em toda a sua produção ainda inédita, em verso e prosa,
da qual apenas do título se tem notícia: Terra Verde. (FELICÍSSIMO,
2010, p.1).
Dessa
forma, o estudioso de literatura e poeta Gustavo Felicíssimo registra esse
triste momento da biografia de José Bastos, cuja poesia, para ele, “não é outra,
senão o reflexo de um rigoroso senso estético, quanto a linguagem e estrutura,
não variando muito quanto à forma (o soneto), fruto de uma escola parnasiana,
da qual Olavo Bilac foi, no Brasil, seu artífice mais talentoso” (FELICÍSSIMO, 2010), e, sem dúvida, seu espelho.
Versejou,
com decência e equilíbrio, temas da natureza, como também mitológicos, e morreu
parnasiano, como sempre fora. “É perceptível que o atendimento rigoroso e
brutal ao cânone do seu tempo tornou a poesia de José Bastos um tanto engessada,
porém é claro que suas virtudes, como poeta, superam, em muito, qualquer
crítica destrutível que sobre sua obra seja lançada.” (FELICÍSSIMO, 2010).
ITABUNA
Minha terra natal! Que te abrasas
e inundas
De tanto sol! Assim, entre
agrestes verdores
Do Cachoeira escutando os bravios
rumores
Como a iara gentil dessas águas
profundas!
Quantas poesias tens nas árvores
jucundas
Que te cercam além! Nas casas
multicores,
Que se alteiam brilhando, entre
ramos e flores,
E enchem de encanto e vida estas
plagas fecundas!
Ah! Como eu sou feliz e me sinto
orgulhoso
De um dia ter nascido em teu seio
faustoso,
Sob o esplendor de um céu de
beleza tão rara!
De me haver embalado à cantiga e
ao gemido
Do Cachoeira, que rola a água
profunda e clara,
Escumando aos teus pés como um
jaguar ferido!
(BASTOS apud FELICÍSSIMO,
2010).
JOÃO CORDEIRO (1905-1938)
Autor de um único livro,
o romance Corja (Rio de Janeiro:
Calvino Filho, 1934.), cujo título original deveria ser Boca Suja, inopinadamente mudado por não agradar ao editor, João de
Castro Cordeiro foi um dos fundadores da Academia dos Rebeldes e tão assíduo
colaborador das duas revistas editadas pela irrequieta confraria, Meridiano e O Momento, que Jorge Amado chegou ao ponto de considerá-lo seu
presidente honorário, pelo fato de, sendo ele o único do grupo a ter emprego
público remunerado, socorrer os sempre necessitados amigos com empréstimos para
suas esbórnias.
Nascido em Salvador,
oriundo de família estável de classe média, morreu com apenas 33 anos de idade,
sem que haja registro formal de causa que o levara a findar-se tão cedo. Logo
que lançado, Corja obteve críticas
positivas, tais como as das lentes perspicazes e ácidas de Agripino Grieco, que
destacou o realismo da narrativa centrada num cenário popular de ruas e becos
baianos, noitadas boêmias e cenas de botecos, que o autor, segundo ele, soube
deter “em instantâneos vivazes, colhendo no voo notas típicas de algumas vidas
prosaicas ou inquietas”, com toques de sátira à presença de figuras da política
e do clero.
A história gira em torno
da vida airada e boêmia do personagem Policarpo Praxedes, por meio do qual João
Cordeiro oferecia, segundo Edison Carneiro, outro de seus críticos, “a visão
exata, e por isso mesmo cruel, da humanidade que se definha nas salgadeiras,
nos trapiches, nos armazéns das docas, para pagar com seu suor as amantes, as
bebedeiras e os palácios capitalistas”.
Autor da apresentação do romance,
Jorge Amado relata que, muitos anos depois, quando presidente do Instituto
Nacional do Livro, Herberto Salles cogitou reeditar Corja, inclusive devolvendo-lhe o título original preferido de João
Cordeiro, Boca Suja, mas rejeitado
pelo editor; porém, defrontou-se com um obstáculo que tem sido a infelicidade
de muitos espólios literários e artísticos. Segundo Amado, “os herdeiros, vagos
herdeiros, a viúva morrera e não houvera filhos, se assanharam, acreditando que
a edição significaria incalculável soma de dinheiro, fortuna em direitos
autorais; impossível tratar com eles, a boa ideia de Herberto não se
concretizou”. (AMADO, 1992)
Em 1939, criou-se no Rio
de Janeiro um Prêmio João Cordeiro, para conceder láurea à melhor estreia
literária do ano, cabendo-o na ocasião ao romance Cangerão, do escritor Emil Farhat, que teve como concorrentes Vila
de Santa Luzia, romance de
fabulação centrada em costumes nordestinos, do jornalista Omer Mont'Alegre, que
anos depois exerceria o cargo de redator-chefe do Jornal do Brasil, e Tinha anos sem paisagem, este romance da
autoria de Guilherme Figueiredo, também poeta e conceituado tradutor. “João Cordeiro me faz recordar a fase mais
interessante da minha vida. [...] Tínhamos uma Academia dos Rebeldes, que
amávamos, apesar de todo o ridículo que a cobria. Tentamos fazer o saneamento
intelectual da boa terra”. (AMADO, apud SANTOS, 2001).
O lado baiano do romance, com o
aspecto popular de ruas e becos, noitadas boemias e cenas de tascas, soube o
autor detê-lo em instantâneos vivazes, colhendo no voo as notas típicas de
algumas vidas prosaicas ou inquietas. Sente-se o pendor para desfigurar
satiricamente as personagens da política ou do clero, que evidentemente
detesta, mas a morte de Luciano, o noctâmbulo que tem o nome do belo herói de
Balzac, emociona os leitores, dando ao volume um bocado de poesia azul, que o
Sr. João Cordeiro, envergonhado talvez dos seus cinco minutos de romantismo, se
apressa em desfazer, pondo a amante do morto as velas com um sucesso imbecil. (GRIECO, 1934 apud SANTOS, 2010).
ALVES RIBEIRO (1909-1978)
Espírito
forjado em terras de sertão profundo, no então município de Camisão, hoje
Ipirá, filho de agricultor, depois modesto pecuarista, caçula da família, José
Alves Ribeiro aprendeu a ler sem frequentar escola, sendo, desde criança, um
esforçado ajudante do pai no serviço de plantio e colheita de cereais, mas
aproveitou bem uma viagem a Salvador, ao ser deixado com um tio, cuja casa
possuía uma biblioteca, que lhe despertou o interesse por literatura,
permitindo-lhe o contato com livros de que nunca ouvira falar. Concluiu os
cursos secundário e ginasial e candidatou-se ao vestibular, ingressando na
Faculdade Livre de Direito, em 1931.
Diplomado,
exerce várias atividades, além da advocacia: professor de Criminologia na
Faculdade de Filosofia, por fim ingressando na Justiça do Trabalho, onde fará
carreira de competente juiz da 5ª Região, cuja presidência ocupou por mais de
uma vez. A atividade literária se inicia com a publicação de primeiros versos,
crônicas e ensaios em jornais e revistas, inclusive em Samba – Mensário Moderno de Letras, Artes e Pensamento, em 1928,
revista editada pelo grupo chamado Poetas da Baixinha, primeiro registro
impresso do modernismo na Bahia, mas neste mesmo ano adere ao grupo de jovens
da Academia dos Rebeldes, onde por seu ativismo se torna um dos nomes mais
destacados, ao ponto de Jorge Amado, em artigo de 1976, no jornal A Tarde,
referindo-se ao primeiro e único número da revista Meridiano, revelar ser de exclusiva autoria de Alves Ribeiro,
embora não assinado, o editorial que “traçou os rumos de uma literatura de
sentido universal porque plantada na realidade da vida brasileira”, no qual,
enfatizava, “o ensaísta adolescente opunha aos modismos europeus que dirigiam
os movimentos ditos modernistas […] uma literatura de problemas, temas, forma e
segmento brasileiro”, de onde resultava “sua expressão universal.” (AMADO,
1976).
Não
obstante, aconteceria com Alves Ribeiro um fenômeno presente em muitas
literaturas, a do artista literário (poeta, ficcionista ou ensaísta) que,
atuante em tempos de juventude, de repente silencia, passando à condição de
escritor secreto. Após os fecundos anos da Academia dos Rebeldes, só se
disporia a publicar livros quase cinquenta anos depois, assim mesmo dois
pequeníssimos volumes, Sonetos de
Bendizer (Salvador: Gráfica da UFBA, 1975) e Sonetos de Maldizer (Salvador, idem, 1976.). Deixou um inédito, A Cinza do Tédio, jamais publicado.
Alves Ribeiro morreu em 27 de janeiro de 1978, mas não teve a sorte apregoada
pelo inglês John Milton, de não deixarem as gerações humanas, que o sucederam,
que esses mínimos livros (com 20 sonetos, o primeiro, e apenas dez, o segundo)
caíssem no esquecimento. Demorou mais tempo do que o francês Paul Valéry
(1871-1945), que, tendo publicado um livro em 1897 (Essai d´une conquête
méthode), só veio ao prelo novamente em 1917, com seu La jeune parque).
TRÊS POEMAS DE ALVES RIBEIRO
TORTURAS DO CÉREBRO
Vai alta a noite. Velo. Erra o
silêncio em torno.
Encerrado em meu quarto, à luz
trêmula e baça
Da lâmpada, medito. Em derredor
esvoaça
Feio inseto. Asfixia o ar à
feição de um forno.
Tenho a cabeça zonza. E por mais
tente e faça
Não consigo dormir. Paira em tudo
um transtorno…
Vejo paredes, no chão, no teto
sem adorno
Vejo, como a acenar-me, o
espectro da desgraça.
Pego e abro um livro, em vão. Não
posso ler. É o tédio.
E debalde procuro encontrar um
remédio
À dor atroz… O meu anseio não se
acalma.
E continuo assim (pena que não se
exprime)
A desejar a luz que o cérebro me
anime
E sentindo pesar-me a noite
dentro d'alma. (RIBEIRO,
1948).
POEMA
INSTANÂNEO
Rua Chile. Movimento.
Mlle. Futurismo passa…
Os olhos piscos de sagui numa febril agitação
toda trejeitos e fingimento,
sorri aos ditos da multidão.
Uma pieguice…
Um rodopio…
Uma pirueta…
Uma negaça…
As pernas – tal e qual um arco de violino
vão arrancando estranhas harmonias,
no seu passinho fino,
original.
A ronda dos elegantes,
junto às vitrines de quinquilharias,
o cinismo nos semblantes
mede-a com olhar sensual.
Uma negaça…
Uma pieguice…
Uma pirueta…
Um rodopio…
E ela segue, nervosa, bamboleante,
agitando o corpo esguio,
os olhos piscos de sagui arisco
por entre a multidão, até perder-se.
(RIBEIRO, Meridiano, 1929, apud
SOARES, 2005).
A LIÇÃO DO MAR
Poeta, si queres aprender o sentido da vida,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar.
Quando te sentires vencido pelo cansaço e pelo desânimo
para as grandes lutas do espírito,
e a terra te parecer inútil e pequenina para o teu sonho,
e os homens todos, uns vermes insignificantes,
- quando tiveres perdido, em suma, o gosto de viver, -
vai procurar o mar e mira-te em suas águas.
Ele é o símbolo do movimento, que não para, da vida, que não para.
Poeta, si queres ser grande e ser perfeito,
dá a teus versos o ritmo das ondas do mar.
Ele é a semente de toda criação,
é a própria fonte da vida,
porque toda vida vem do mar.
O mar é o grande mestre da vida:
a atração de suas moléculas
é o exemplo vivo da união e da força,
sem o que é impossível, na terra,
a conquista da felicidade entre todos os homens.
Por isso é que se compara a multidão ao mar.
Poeta, se queres aprender o sentido da liberdade,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar
(e os poetas sempre foram os grandes precursores da liberdade,
porque aprenderam a cantar inspirados na música do mar
que é a música da liberdade).
O mar é o princípio da libertação:
de sua contemplação é que nasceu o sonho dos primeiros navegantes e
[dos primeiros revoltados
em busca de novos mundos e de novas formas de vida,
em que os homens pudessem ser mais felizes sobre a terra.
Poeta, si queres aprender o sentido da vida e da liberdade,
aprende, primeiro, a interpretar a lição do mar. (RIBEIRO, 1948).
DA COSTA ANDRADE (1906-1974)
Um dos
nomes que tiveram o privilégio de figurar no primeiro e único número da revista
Meridiano (setembro de 1929), José
Severiano da Costa Andrade é um piauiense que veio para a Bahia no intuito de
estudar e se formar. Foi mais político que homem de Letras, tanto assim que,
logo se diplomou em Direito, regressou a Simplício Mendes (PI), sua terra natal,
para ser promotor público em Floriano (PI). Ocupou cargos na administração
pública, ingressou na política, elegendo-se consecutivamente, por três
legislaturas, deputado estadual e, logo, para prefeito da mesma Simplício
Mendes, em 1936, quando se casou, para ser pai de dez filhos.
O
pesquisador Gilfrancisco Santos completa o perfil de Da Costa Andrade.
O político: deputado estadual
(1955-1959), foi líder da bancada da União Democrática Nacional (UDN), e,
atuante deputado que era, apresentou vários projetos nas áreas sociais, sempre
beneficiando o trabalhador rural e em especial os palheiros. Na área
educacional, criou novas escolas, além da criação de vários municípios. Fundou,
em 1958, o Partido Republicano – Seção do Piauí. Com a fundação de Brasília,
foi nomeado chefe do escritório da Novacap (designação da nova capital do
Brasil quando da sua inauguração, em 1960), em Recife, transferindo-se
posteriormente com a família para a capital federal, para chefiar o gabinete do
ministro da Educação e Cultura Clóvis Salgado. Da Costa Andrade foi um dos
principais líderes da sua geração, considerado intelectual de alto nível e
poeta de elevada estatura, ao ponto de impressionar, desde os primeiros
contatos, o amigo Jorge Amado, que nele se inspirou, para talhar personagens de
seus romances. Da Costa Andrade é o Ricardo Braz, de O País do Carnaval, editado em 1931, que marcaria a estreia
literária de Jorge Amado. (SANTOS, 2001).
Destaca-se
na área sociocultural como fundador de duas entidades no Piauí: o Cenáculo de
Letras, que publicava o periódico A
Revista, e a Associação Piauiense de Imprensa.
Como
poeta, embora tenha vencido concurso promovido pela revista O Século, em 1927, com um soneto,
publicou apenas um livro, Rosal da Vida
(Salvador, 1929), posteriormente inserido em publicação organizada e prefaciada
por Jorge Amado, Rosal da Vida e Outros
Poemas (Teresina: coedição de órgãos públicos, 1996.), vinte dois anos após
sua morte em Brasília.
N O I T E
Vejo o crepúsculo distender-se, lento,
como um negro lençol, pela cidade…
É noite: — geme e turbilhona o vento
enquanto eu cismo, em minha soledade…
Só nesta hora vêm-me ao pensamento
os quadros de perdida e tenra idade…
Pensar na vida é rude sofrimento,
é aguçar os espinhos da saudade!
Um sino dobra, além, triste e pausado;
e o coração de quem sofrendo vive,
pulsa de dor, saudoso e amargurado…
Ó Deus! com o teu poder, por caridade,
dá-me de novo bens que outrora tive,
— Faz-me voltar à minha tenra idade!
(ANDRADE, apud MIRANDA, 2019).
OSWALDO DIAS DA COSTA (1907-1979)
As dificuldades com que no curso de Humanidades do Colégio da Bahia se defrontava, no estudo da Matemática e cálculos de álgebra, podem ter sido o motivo do ingresso de Dias da Costa na Academia dos Rebeldes, em 1929, porém jamais com propósitos essencialmente literários; tinha outros interesses. Ao referir-se a ele, muitos anos depois, chamando-o de “o meu compadre Oswaldo, em tantas circunstâncias meu irmão”, Jorge Amado conta que Dias da Costa começou a frequentar o Bar Brunswick, ponto de encontro dos Rebeldes, em Salvador, oferecendo-se como coletor de anúncios em cidades do Recôncavo, onde alardeava ter influências, para o primeiro e único número da revista Meridiano.
Jovem e
desempregado, baixo, mas elegante e simpático, confiava na boa acolhida de seus
préstimos. Lembra Jorge Amado que, em um fim de tarde, tendo-se sentado à mesa,
“entrou direto na conversa maligna”, cheio de sotaques. Ao final, logo que ele
saíra, anunciando retornar no dia seguinte, perguntaram a Pinheiro Viegas, que
já o conhecia de outras trajetórias, qual a sua opinião sobre Dias da Costa,
após o que ele expusera, ao que responde o ferino epigramista: “Para literato,
ótimo; para agenciador de anúncios, nulo”. (AMADO, 1992).
Embora
sem os prometidos anúncios, a revista circulou com virulento artigo de Dias da
Costa contra o parnasianismo que fazia a festa dos poetas de então, tornando-se
ele um dos mais destacados, ativos e eficientes membros da confraria, até
depois nas atividades de pregação de ideias e combate ao ambiente conservador,
ao ponto de Jorge Amado, já de muito vivendo no Rio de Janeiro, convidá-lo, em
1936, para atuar no setor de publicidade da Livraria José Olympio, editora. Daí
em diante, morando no Rio, passa a exercer atividades de jornalismo, como
redator de agências telegráficas, jornais e revistas, aposentando-se como
funcionário da Federação Nacional de Comércio.
Como
literato, publicou dois livros de ficção, Canção do Beco (São Paulo:
Rumo, 1939) e, vinte e um anos após o primeiro, Mirante dos Aflitos (São
Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960, com apresentação de Jorge Amado); por
fim, Osvaldo Dias da Costa conta Estórias do Mirante dos Aflitos,
uma publicação post-mortem (São Paulo: GRD/Instituto Nacional do Livro, 1980.),
ao que se supõe no tempo em que o escritor Herberto Salles esteve à frente do
INL. Em 1960, depois de vinte e cinco anos de militância, desliga-se do Partido
Comunista. No prefácio à prosa de Mirante dos Aflitos, observou Jorge
Amado:
Na
cidade do Salvador, os nomes das ruas, ladeiras e praças são poemas. Existe um
Largo dos Aflitos, onde se levanta o quartel da Polícia Militar, ao lado do
Passeio Público. Nele começa a Gamboa de Cima. Num extremo do Largo, voltada
para o mar, ergue-se uma das mais líricas igrejas da Bahia. Essa parte da praça
chama-se Mirante dos Aflitos e dali tem-se incomparável vista sobre o casario
da cidade, o mar da Bahia, a ilha de Itaparica, os saveiros. No Mirante dos
Aflitos debruçou-se Dias da Costa e seu olhar generoso de homem e de criador de
personagens e ambientes demorou-se sobre acontecimentos, sensações, dores e
alegrias, sobre os seres humanos no seu cotidiano áspero e doce, em meio à
paisagem sobre todos bela da cidade mágica. (AMADO, 1960),
Fora
disso, escreveu em colaboração com Jorge Amado e Edison Carneiro o romance
intitulado Lenita que, lançado em 1931 por um editor do Rio, resultaria
em completo fiasco e logo renegado pelos três. Peripécia adolescente que Jorge
assim recorda jocosamente em Navegação de Cabotagem (1992): “Livrinho
com todos os cacoetes da época, Medeiros e Albuquerque o definiu: uma pura
abominação. Um único subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi
necessário que se juntassem três” (AMADO, 1992). Amado lembra também o “tempo
antigo, boêmio e debochado”, de Academia dos Rebeldes, em que ambos, ele e Dias
da Costa, costumavam passar uma semana inteira hospedados em bordéis com
prostitutas, que consideravam suas “namoradas, xodós, como se dizia”, à época.
(1992). Dias da Costa teve um fim, além de solitário, melancólico, acentuado
por uma progressiva perda de visão, a restringir “o seu
hobby favorito, que era o de ler sem limitações” (SANTOS).
OCTÁVIO MOURA (1909-1978)
Um dos
redatores do único número da revista O
Meridiano, mas também com sólidas relações de amizade com alguns dos mais
destacados membros da Academia dos Rebeldes, como Jorge Amado, Sosígenes Costa,
José Bastos e o mentor de todos, Pinheiro Viegas, Octávio Moura Dias de Almeida
deixaria Salvador, na mesma ocasião, para se instalar em Ilhéus, onde assume o
cargo de redator-chefe do jornal Diário
da Tarde, que concomitantemente se fundara em 1928, no qual, graças a seu
descortino para com desdobramentos da modernidade, revolucionará o estilo de
jornalismo então praticado no efervescente sul cacaueiro, de caráter agressivo,
fomentado por acirradas disputas políticas e patrimoniais travadas entre
coronéis do cacau.
Tinha 18
anos, quando assumiu o cargo, acompanhado de quatro gráficos que, com ele
vieram de Salvador em um navio da “Bahiana”, três deles compositores e um
impressor. E lá, em acanhado prédio da Rua Marquês de Paranaguá, curvado sobre
a escrivaninha, redigia, lia e consertava textos, indo e vindo no contato com
as oficinas, para levar o que ele próprio escrevia, fossem notícias, sueltos
ou editoriais, e oferecer orientações ao setor gráfico. O primeiro número do Diário da Tarde, em 10 de fevereiro de
1928, já
trazia seu nome como redator, para logo em seguida passar a redator-chefe e,
finalmente, diretor. Octávio Moura desempenhou essas funções por 45
anos ininterruptos, só se afastando das responsabilidades do cargo e do jornal
quando a saúde não mais o permitiu.
Reconhecido
como jornalista nato, no tempo em que esteve à frente do Diário da Tarde, procurou imprimir à atividade do jornalismo um
caráter de serviço voltado para o aperfeiçoamento da sociedade, mesmo ante as
limitações que costumavam injuriar a vida dos habitantes de cidades do
interior, embora o comércio exportador do cacau incutisse nos ilheenses
aspirações com tinturas cosmopolitas e de incremento à cultura, apoiando as
criações de prosa e poesia e, assim, contribuindo para tornar Ilhéus o mais
expressivo polo cultural da Bahia, depois de Salvador.
Muito
disso se deveu à mente arejada e ao dinamismo de Octávio Moura, conforme atesta
em depoimento ao Jornal da Manhã
(1978) Rubens Esteves Silva, que o viu chegar a Ilhéus, numa manhã de janeiro
de 1928, e seria testemunha de como “o novo diretor comandou a folha com brilho
invulgar por muitos anos, até quando surgiram indícios da doença e com ela
começou a desaparecer aquela vivacidade e ânimo, tão apreciados pelos
ilheenses”. (SILVA, 1978).
Além de jornalista, foi membro da
Academia de Letras de Ilhéus (Cadeira nº 24), junto a outros dois de seus
amigos Rebeldes, Jorge Amado e Sosígenes Costa; professor da Escola Técnica de
Comércio de Ilhéus e, por fim, dá nome ao troféu que o Clube de Diretores
Lojistas (CDL) confere anualmente à Imprensa ilheense. Entre cargos
públicos, Octávio Moura exerceu o de adjunto de promotor público na Comarca de
Ilhéus e o de inspetor seccional do Ministério da Educação. A ele, devo a publicação de meus
primeiros afoitos poemas, em Ilhéus. Por suas mãos
gentis e compreensivas, publiquei vários de lavra adolescente, ainda estudante
colegial, no jornal que dirigia, pelos anos de 1951 e 1952.
Agripino Grieco, em O Jornal (coluna “Gente Amiga”); Rio de
Janeiro, 10 de março de 1935, após uma visita a Ilhéus, em 1934, onde
pronunciou conferências, a convite de Jorge Amado, e travou contato com
intelectuais da Região do Cacau, dele não se esqueceria, segundo registro do pesquisador
cultural Gilfrancisco Santos.
Meus amigos de Ilhéus mandaram um
tinteiro de prata, com um cacau dourado, como recordação das conferências que
ali fiz em novembro de 1934. Ponho tinta nesse tinteiro e a primeira coisa que
me apetece é escrever um artigo sobre essas generosas criaturas do sul da
Bahia. Começaria pelo jornalista Octávio Moura, tem um ar de menino e já é
chefe de família. Pelo físico, parece ninguém e, entanto, subscreve artigos
ótimos. Fiem-se nele, na sua cabeleira e nas doçuras de violinista cigano com
que fala as lindas raparigas! É um articulista que consegue infundir paixão nas
ideias e a alegria de moço, longe de prejudicá-lo, muito concorre para
robustecer-lhe o bom senso de polemista. Quando necessário, sabe ele também,
nos seus sarcasmos, ser um artista em venenos, fazendo passar mãos quartos de
hora àqueles que detesta. Fino registrador sismográfico de tudo o que ocorre de
interessante em Ilhéus, Octavio Moura, mau grado uns ares meio boêmios,
organiza todo um jornal sozinho e quase sempre o organiza a primor. (GRIECO apud
SANTOS, 2010).
GUILHERME DIAS GOMES (1912-1943)
Este é
outro dos Rebeldes não nascidos na Bahia, desde que veio à luz em Natal, no Rio
Grande do Norte, de pai baiano, engenheiro construtor de estradas, que chegou a
trabalhar na tristemente famosa ferrovia Madeira-Mamoré, morto em 1925 em
Salvador, onde o filho completou seus estudos, vindo a se formar em Medicina em
1935, para tornar-se em seguida médico do Exército, pelo que teve de fixar
residência no Rio de Janeiro, onde veio a falecer ainda jovem, de impaludismo, em
8 de outubro de 1943, no Hospital Central do Exército.
Surpreendentemente,
para a época, era um poliglota. Rebelde como ele, amigo e companheiro de
tertúlias, segundo Gilfrancisco Santos, Édison Carneiro,
em depoimento, garante ter sido Dias Gomes “um dos poucos brasileiros que, na
época, sabiam alemão na Bahia” e que, além disso, “sabia francês, inglês,
espanhol, italiano e até se aventurou a estudar japonês e árabe”, acrescentando
terem ambos até iniciado “um curso de nagô com Martiniano do Bonfim”. (SANTOS,
[19-?]).
Literariamente,
dele pouco se sabe, além de colaborador da revista O Momento, entre 1931 e 1932. Após intenso trabalho de pesquisa,
Gilfrancisco revelou faceta praticamente desconhecida de Guilherme Dias Gomes,
a de ter publicado poemas de sua autoria, entre 1931 e 1933, nas revistas O Momento e Etc. e no jornal O Estado da
Bahia. Não obstante, seu nome permanece como autor de um romance, até hoje
misteriosamente inédito, intitulado Mercado
Modelo, para cuja publicação não foram bastantes, ao que se supõe, o enorme
prestígio, a fama e o admissível empenho do teatrólogo Dias Gomes (1922-1999),
seu irmão mais moço e por ele muito admirado, tanto assim que, certa feita,
chegou a confessar, referindo-se à sua vocação de escritor:
Comecei a escrever para igualar-me a ele. Hoje, acho que fatalmente
seria um escritor porque nunca descobri em mim aptidão para qualquer outra
atividade. Mas as minhas primeiras experiências literárias foram determinadas
pelo desejo de imitar meu irmão. (SANTOS, 2021).
Em 1935,
o confrade Édison Carneiro assim destrinça o realismo da obra:
O romance de Guilherme Dias
Gomes, Mercado Modelo, fica limitado
pelos muros da cidade. Explora a vida dos humildes, dos desprotegidos da sorte,
tanto dos proletários, como a negra Brasilina, neta de escravos, quanto também
do pequeno burguês que, em virtude das altas e baixas do capitalismo, como
Belizário Portela, se proletarizou. E se sucedem, através do romance, as cenas
de ternuras e de revolta, e a multidão dos tipos criados pelos antagonismos das
classes sociais, - a cafetina, o coronel, a prostituta, o traidor do
socialismo, o ladrão, o propagandista, o rebelde. São cenas pegadas ao vivo,
com a marca registrada dos fatos diários. E, dominando tudo, está o Mercado
Modelo, casarão infecto onde a gente mais heteróclita do mundo se acotovela na
luta pela vida, vendendo, xingando, suando e alimentando o mesmo ódio sagrado
pela classe exploradora. (SANTOS apud SOARES, 2012).
Em 1991,
o caderno A Tarde Cultural publicou
trechos desse inédito romance, por iniciativa do historiador Waldir Freitas de
Oliveira (1929-2021), membro da Academia de Letras da Bahia, que obtivera uma
cópia da obra fornecida pelo irmão do romancista, Dias Gomes, de que abaixo se
oferecem excertos, junto a alguns poemas, estes coligidos pelo pesquisador
Gilfrancisco Santos.
Mercado. Rampa do
peixe. Gente que se abalroa, grita, ajusta preços. Cheiro de maresia, suor,
frutos sazonados, estrume, catinga e camarão fresco. O bojo dos saveiros
carregados de melancias. Grandes chatas carregadas de moringues, uma lancha
repleta de abacaxis. Uma floresta de mastros e de cordas, com bandeirolas
alegres tremulando ao vento. A pequena distância, um “yacht”, todo branco e
azul, imóvel sobre o espelho líquido da enseada. Junto ao cais, o sargaço e a
salsugem de sempre, de mistura com cascas de laranja, tamancos velhos, peixes
mortos, rebotalho das redes lançadas ao mar pelos pescadores. E, na rampa, o
limo verde e escorregadio tornando o acesso difícil. Os peixeiros, junto ao
cais, repartem os pescados cortando-o com o machado em grandes cepos de
madeira, num espadanar de espinhas e escamas prateadas. Um grupo de marinheiros
alemães procura em vão compreender o preço de umas laranjas. Na beira do cais,
um caminhão carregando. Os tijolos vinham no bojo de um dos saveiros, jogados
um por um.
******
Na sala de jantar,
Mestre Júlio conversava cercado de ouvintes.
– É o que estou
dizendo. Terno de Reis só naquele tempo. Hoje é anarquia. Umas modinhas muito
sem graça. Uma tal de música americana muito mole, muito arrastada, cheia de love you.
Picou com o
canivete o fumo para encher o cachimbo. Acendeu. Deu uma tragada para
experimentar a permeabilidade do tubo. Cuspiu para o lado.
– Vocês estão
vendo essa gente? No meu tempo era outra coisa. Gente boa e muito boa. E tudo
muito bem ensaiado. Não era essa sujeira. A gente ia de casa em casa cantando,
dançando. As moças vestiam aqueles vestidos bonitos de pastoras. Os rapazes, de
branco, chapelão de palha enfeitado de flores. As mulatas com os panos-da-costa
e os torços de seda. O zabumba na frente. Chegava assim numa casa, eta diabo!
Pôs o cachimbo no
canto da boca, batendo com as mãos em concha enquanto cantava em surdina:
´Ô de casa nobre gente
escutai e ouvireis
lá da banda do Oriente
são chegados os três reis’
– Era um deus nos
acuda. Todo mundo corria para a janela. A rapaziada boa aí continuava:
‘Nessa noite tão ditosa
é bom que vós não durmais
porque tão alta ventura
não é justo que percais’
– Já a rua estava
cheinha de gente que vinha admirar. As pastoras aí faziam o estribilho:
‘Inda bem que há de vir
que somos de longe
queremos nos ir’
– E as
menorizinhas cantavam:
‘Ó senhor dono da casa
quer que vos diga quem é?
é um cravo de amaranto
com uma açucena ao pé’
– O dono da casa
já estava todo contente de ser um cravo de amaranto. Estava já abre não abre a
porta. E o coro repetia:
‘Inda bem que há de vir
que somos de longe
queremos nos ir’
– Então, o pessoal
todo cantava junto:
‘Senhora dona da casa
mande entrar se faz favor
que do céu estão caindo
pinguinhos de água de flor’
– Não havia jeito.
A porta se abria e a gente tinha de tudo. Vatapá. Moqueca. O diabo a quatorze.
Hoje não se vê disso. As negras já nem querem usar pano-da-costa!
*****
‘A vida no Mercado
nascia com a alvorada. Já antemanhã, antes do lusco-fusco, padeiros passavam,
tiritando de frio, na faina da entrega. Guardas-noturnos se recolhiam
cabeceando de sono. Motorneiros da Linha Circular iam para a primeira viagem. E
o homem do pão, com o saco às costas e a toalha à cabeça, o português com o
tabuleiro repleto de hortaliças, o pescador bronzeado com a rede ao ombro, a
negra do mingau que se recolhia da venda noturna, eram vultos imprecisos ainda
mergulhados na treva. Mas, pouco a pouco, esta se diluía em crepúsculo. O galo
amiudava o canto. Um sino batia soturno, na Cidade Alta. Outro, cristalino,
respondia ao longe. E as igrejas despertavam, numa orgia espantosa de sons.
Guizalhantes, uns, outros, tristonhos. Uns gostosos, repicados, cantantes, como
vindos de grandes cigarras aboletadas nas torres. Outros cavos, como um ressoar
de passos em catacumbas antigas’.
*****
‘Só depois de
muitos dias, Honório conseguiu trabalho como carregador num trapiche. Trabalho
pesado. Duro, mesmo. Tinha de ficar de corpo nu porque não havia roupa que
aguentasse. Os fardos que pegava às costas rasgavam tudo. E tinha que começar a
qualquer hora, quando as embarcações aparecessem para descarregar. Sacas de
açúcar, de cacau, de café. Rolos de arame farpado. Grandes tambores de
gasolina. Tábuas, vigas, pranchões gigantescos. Os companheiros eram todos
fortes como ele. Podia-se-lhes contar os músculos fortemente desenhados sobre a
pele. Passavam gemendo, muitas vezes, sob o peso dos fardos. Alguns tinham o
cabelo gasto ao centro da cabeça, pelo roçar dos volumes da carga.
Se uma embarcação
atracava, tinham que descarregá-la ou enchê-la, sem perda de tempo. Lançava-se
uma prancha entre a ponte do trapiche e o convés. E, cadencialmente, uns atrás
dos outros, traziam na cabeça toda a carga do barco. Dentro do armazém enorme,
cujas traves de aço se cruzavam no alto, sustentando o enorme telhado, tudo era
lançado nas vagonetes e transportados pelos decauvilles.
O capataz, um francês
gordo e vermelho, de roupa cáqui, lápis em punho tomava nota do número de
volumes. Adiante, na sessão de pesagem, seu Severino, um velhote de óculos à
ponta do nariz, conferia o peso na balança decimal e também tomava nota. Havia
um cheiro próprio e indefinível sempre no ar. Cheiro que vinha dos rolos de
corda, das latas de tinta, dos fardos de cacau, das sacas de açúcar. Mistura de
óleo de peixe, café, breu, com o odor das madeiras de construção.
Às onze e meia,
Amaro, um pernambucano taciturno e desconfiado, batia num pedaço de trilho
pendurado fora, a hora do almoço. Cada um ia buscar sua lata. Um pouco de
carne-do-sertão assada, pirão de água fria ou farinha, um pedaço de rapadura
como sobremesa. O dinheiro não dava para luxos. Alguns mais gastadores
esbanjavam-no comprando bagos de jaca ou bananas nas mulheres de tabuleiro que
estacionavam perto’.
*****
Era a última das
novenas da Conceição e a igreja tem a fachada resplandecente de luzes. Houve a
preocupação de realçar todos os ornados de cantaria, da cruz ao chão, com
lâmpadas elétricas. Dentro e fora do templo a melodia plangente das ladainhas
forrada pelo acompanhamento macio do órgão.
Nelito, na porta,
se põe na ponta do pé para descobrir Miúda, ajoelhada no último banco, ao lado
de Judite. Faz esforço incrível para não pisar o aleijado que, no meio de tanta
gente, se conserva sentado no batente. Sente o bafio pesado da multidão que se
comprime de envolta com o cheiro bom do incenso. Senhoras gordas e pesadas, sem
noção de espaço, insistem em penetrar na igreja puxando pela mão o marido e os
filhos. Mocinhas de branco, trazendo, com ar seráfico, velas bentas,
esgueiram-se pedindo pelo amor de Deus não lhe pisem os véus de filó branco.
Crioulas, cinzentas de pó de arroz, com laços azuis de fita no pescoço e
raminhos de manjericão metidos na carapinha cuidadosamente dividida em pequenas
tranças, mesmo de pé desfiam fervorosamente terços sobre terços. Velhos homens
do mar, tostados pelo sol que aquece as jangadas e os saveiros abertos,
vestidos nos ternos de brim domingueiros, escutam, de chapéu na mão e olhos no
altar. No interior, mergulhada na profusão de luzes, enrolada nas espirais de
incenso, emoldurada nos ornatos brancos e ouro dos altares, ladeada de
castiçais monstruosos de prata maciça e quase sufocada num oceano de flores
alvíssimas de papel de seda, a imagem da Virgem destoa do ambiente luxuoso pela
simplicidade quase humilde com que mostra nos braços o Jesus Menino’.
Regina angelorum!, reza o padre.
Ora pro nobis, soluça o coro
plangente.
*****
Depois de encher
na roça do seu Mário o balaio de laranjas-de-umbigo, espera o bagageiro que
deve passar dentro em pouco e chega, efetivamente, superlotado. Martiniano acha
meio de se agarrar na parte traseira, ajeita o balaio das laranjas como pode,
por baixo do banco. Desfaz o torço que trazia à cabeça e com o pano limpa o
suor. O bondinho segue a sua marcha entre o tilintar da campainha e as pagas do
condutor, enfurecido pela dificuldade de cobrar as passagens.
Aliás, o taioba é
sempre um bonde divertido e Martiniano pensa que a parte mais divertida do seu
dia é quando viaja nele. Não há os tais três primeiros bancos onde não se pode
fumar, não se exige gravata nem calçado. Não indo nu, tudo está bem. Pode
acender o seu cachimbo, espichar o pé descalço doído de tanto caminhar, tirar
seu cochilo ou dizer suas pilhérias, porque ninguém repara. E, depois, o taioba
é quase um prolongamento ambulante do Mercado. Tudo que o Mercado tem o taioba
também tem ou pode ter. Capoeiras de galinha, perus amarrados pelos pés,
leitoinhas gordas e gritadeiras, e até cabras e carneiros viajavam nele.
Caixotes enormes, balaios, malas de costura, móveis de toda espécie, uma
balbúrdia dos pecados. Mas por isso mesmo a viagem era mais alegre.
– Ei, dona Maria.
Vosmicê já pagou?
É o condutor,
vermelho do esforço que faz para romper caminho, o quépi jogado para trás, as
listas de sujeira aparecendo em toda a camisa e principalmente no colarinho e
nos punhos. D. Maria (o diabo do condutor acertou o nome!) acha que é desaforo
cobrar duas vezes e não responde. Vira o rosto num gesto malcriado.
Um molequinho
viaja de graça no estribo, procurando não ser visto. O taioba chegou agora às
Sete Portas e para, para tomar carga num armazém. É um volume grande e não se
sabe como poderá caber no meio de tanta gente. O espanhol, dono do
estabelecimento, está à porta, em mangas de camisa, cabelo lustroso de
brilhantina.
– Qual é, seu
Serafim!, desista que esse mondrongo não pode caber aqui.
– Tem que caber de
qualquer jeito, meu santo.
– Mas como?
– Ora, muito
simples. Vocês vão sentados em cima do volume e eu não cobro nada por isso.
– Quá!
E fez-se o que o
espanhol queria. O gringo, afinal, era camarada.
#####
CINCO
POEMAS DE GUILHERME DIAS GOMES
AVIÃO
O
avião parece
Uma abelha rútila de aço
Aflita por pegar o sol,
Que é uma rosa de fogo
Transplantada no espaço.
Zumbe, trepida, na ânsia de alcançar
A corola de luz para sugar.
Avião!
Pareces bem o coração da gente
Lutando para beijar o sol
eternamente!
Inutilmente.
(GOMES, 1931).
POEMA DAS MÃOS
Há poemas inteiros no côncavo das mãos:
Na angústia milenar das falanges lendárias
pela ânsia de agarrar o mais puro e mais alto;
na palma aveludada das mãos que acariciam,
mãos de noiva…
Nas mãos gordas de bebê, leite e seda rodada
com pedaços de luz na carne perfumando;
na mão que anseia e na que renuncia,
há poemas de dor em versos de agonia.
Quanta angústia nas mãos descarnadas do mendigo
que morre à fome, exangue, nas estradas,
e o sol encontra em crispações nervosas,
no horror das últimas geadas!
E nas mãos negras do assassino,
pálidas, escorrendo
longos fios de sangue pelos dedos!
Quantos poemas
no prestígio das mãos esguias que dançam no teclado,
despetalando sons pelo silêncio:
Oh. O mágico fascínio das mãos longas
que bordam lentamente
no
coração da gente.
a arabescada doida de belezas bizarras
com a lã policromia das nuvens do poente!
e quando
sentindo em si as desgraças alheias!
nas mãos do pobre, pelos dedos rolos.
deixais cair moedas a mancheias…
Mas vos adoro sobretudo, ó mãos!
nas crispações violentas dos gestos de revolta.
(GOMES,
1933).
GARGALHADA
Solta do peito os Iguaçus do riso
cascateando em borbotões sonoros.
O próprio sol é um gargalhar de lua
e na acácia do jardim,
florida,
os mil milhões de flores
são mil milhões de gargalhadas d’oiro
num desperdício fantástico de vida!…
Traze sempre contigo, o sol de uma gargalhada
e um riso amigo para as misérias todas
e a sombra da tristeza fugirá da estrada,
quando gargalhares tua gargalhada,
numa alegria festiva! De bodas!
(GOMES,
1933).
O TEU POEMA
Quisera que este poema
fosse o teu poema.
Que tivesse perfumes esquisitos
estonteantes
das matas verdes da minha terra,
das noites de luar da minha terra.
Quisera que este fosse o teu poema,
Que eu fizesse com raios de sol
e braçadas de flores,
onde cantasse o hino das manhãs radiosas,
Onde todos os pássaros cantassem
e cantassem todos os cantares
as toadas macias da minha terra.
Quisera por nestes versos todos os diamantes
dos garimpos ignotos de minh’alma,
todos os instantes
felizes da minha vida
e oferecer de joelhos
a ti a Deusa dos cabelos revoltos
a minha Deusa.
Então
para bordar estes teus versos
faria viagens arrojadas
por países diversos,
gastaria somas fabulosas
na descoberta de minas inexploradas
de ouro puro.
Mergulhadores desceriam à procura de pérolas.
Caravanas vistosas
levariam meses trazendo todas as riquezas
todas as belezas,
que eu desejaria incrustar no teu poema.
Mas vejo que é inútil o meu esforço,
inútil a minha tortura
(a cidade do sonho tem ruas de amargura),
teu poema está condenado a não sair de mim mesmo,
a morrer na garganta
balbuciante
com a tristeza das flores que não desabrocharam
e dos versos que não foram ditos…
(GOMES,
1933).
A
MINHA BAILARINA
Minha bailarina loira, alvíssima de neve!
Que vejo em meio às gambiarras,
A tecer arabescos em passos lentos,
E leve, bem leve,
Me põe na vida por alguns momentos
A alegria inquieta das cigarras…
Minha bailarina loira, alvíssima de neve!
Que sempre vejo em sonho, noite alta.
Olhos verdes de mar
Perdidos a cismar.
A refletir as luzes da ribalta…
(GOMES,
1933).
CLÓVIS AMORIM (1912-1970)
Oriundo
do Recôncavo baiano, de onde trazia as marcas dos canaviais, a inclinação para
agradável convivência e o gosto pela boemia, poeta satírico e principalmente
romancista, Clóvis Gonçalves Amorim foi um dos companheiros mais animados e
queridos da Academia dos Rebeldes. Espírito brincalhão e cultor da boa
conversa, era sempre aguardado com alegria e festa, quando de seus regressos da
cidade de Santo Amaro da Purificação, onde nasceu, por um detalhe mais que
hilário, tanto que veio a merecer registro satírico em versos de Jorge Amado:
era quando trazia a mesada de 90 mil réis, fornecida pelo pai alambiqueiro, com
os quais custeava as rodadas de bebida e acepipes no Bar Brunswick, obrigatório
ponto de encontro dos Rebeldes.
O
pesquisador Gilfrancisco Santos assim descreve o personagem:
Com quase dois metros de altura,
Clóvis Amorim chegou a Salvador para cursar o ginásio, mas não conseguiu viver
na capital baiana, pois a única coisa que o interessava era o jogo do bicho.
Vivia das lembranças dos vícios do Recôncavo baiano: apreciador e apostador nas
brigas de galo, se desmanchando nos sambas, cocos e chulas da Bahia. (SANTOS,
2021).
Clóvis
Amorim foi um ativo colaborador da revista O
Momento e publicou os romances Alambique e Chão de Massapê,
sendo que o primeiro em 1934 (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio); acolhido
pela crítica, seria definido como obra enquadrada na estética do novo romance
nordestino.
Em artigo
no jornal A Bahia, no mesmo ano, o
etnólogo Édison Carneiro, Rebelde como ele, comentando o romance, dizia
tratar-se de um “acontecimento estranho, surpreendente, na literatura
nacional”, e explicitava o porquê:
Não há nele a luta do homem por
modelar a natureza à sua vontade. Pelo contrário, há uma verdadeira apatia nos
personagens desse drama – o da cachaça – até hoje desconhecido do Brasil. O
verde dos canaviais, as máquinas de fabricação da boa-pra-tudo, a moleza da
vida humana nessas regiões que o Progresso esqueceu, formam como que a única
realidade viva que se agita no livro. (SANTOS, 2021).
O segundo
romance só sairia muitos anos depois, em conjunto com a reedição do primeiro
por iniciativa do editor Gumercindo Rocha Dórea (1924-2021), em convênio de sua
editora com o Ministério da Educação e Cultura (São Paulo: GRD/MEC, 1980).
Quando morreu
em Salvador, em 18 de agosto de 1970, coube ao poeta e seu amigo Godofredo
Filho pronunciar a oração fúnebre, perante os que compareceram ao velório de
seu corpo na câmara ardente da capela do cemitério do Campo Santo, na qual o
poeta afirmava: “Estou certo de que, quando se escrever, amanhã, a verdadeira
história literária da Bahia, a figura de Clóvis Amorim como poeta satírico
avultará, tal seu físico se agigantava em vida, sobre a planície cinzenta em
que pululam tantos pigmeus de nossas letras”.
Abaixo, poemeto de recorte jocoso com que Jorge
Amado celebrou, em edição de O Momento, a
presença de Clóvis Amorim entre os companheiros Rebeldes:
Mingau à
meia-noite,
quando Clóvis
Amorim
chegava, alto e
destruidor,
de Santo Amaro,
com 90$000 no
bolso
e a sua alegria
boa.
Foram Clóvis
Amorim
e Souza Aguiar
os grandes
corações
que trouxeram um
pouco de ternura,
de lirismo,
à aridez de
nossas vidas literárias
horrivelmente
literárias. (AMADO, 1931).
ÉDISON CARNEIRO (1912-1972)
Depois de Jorge Amado,
dentre todos que constituíam a grei da Academia dos Rebeldes, Édison de Sousa
Carneiro foi o nome seguramente a alcançar maior amplitude de reconhecimento
nacional, talvez por ser quem melhor traduziu a resposta do substrato
negro-mestiço identificado com formas de representação da cultura popular, que
se amoldavam ao pensamento estético propagado já como desdobramento da Semana
de Arte Moderna, a partir de São Paulo.
Ainda aos dezesseis anos
de idade, cedo começou a atuar em jornais e revistas locais, assinando artigos
e crônicas, até chegar ao posto de redator-chefe de O Estado da Bahia. De origem modesta, pertencia a uma família que
não lhe podia oferecer qualquer regalia. Com toques chistosos, Jorge Amado
descreve esta condição do amigo Rebelde:
O mais pobre de
todos nós seria Édison Carneiro, membro de família numerosa. O pai, professor
Souza Carneiro, catedrático da Escola Politécnica, mal ganhava para as despesas
inadiáveis da prole, consta que jamais pagou o aluguel da casa dos Barris – nós
a intitulamos de Brasil, por imensa e suja – com sótão e jardim onde vivia com a
mulher e os filhos: todos vestidos com as batas de professores da Politécnica,
arrebanhadas pelo catedrático. (AMADO, 1992).
Entre os irmãos, estava
Nelson Carneiro, futuro advogado e grande tribuno, deputado estadual e federal,
e senador, autor da Lei do Divórcio, que chegaria a presidente do Senado, mas
muito antes, mal se diplomara em Direito, em Salvador (1900), exerceu a
profissão de advogado em Ilhéus, onde chegaria a prefeito, eleito em 1908.
Por efeito da
descendência, cedo também Édison Carneiro não só se identificou, como se
empolgou com os múltiplos aspectos sociais e místicos dos cultos populares de
matriz africana, tornando-se um de seus maiores estudiosos e talvez o seu maior
e mais dedicado defensor. Diplomado em Direito, em 1935, mudou-se em 1939 para
o Rio de Janeiro, onde já chegou com a fama de competente etnólogo. Em
Salvador, ainda como Rebelde, com Jorge Amado e Dias da Costa, lançou e liderou
campanha em defesa da liberdade de culto do candomblé, alvo de feroz
perseguição policial, com prisões, torturas e espancamentos.
A polícia invadia os terreiros,
quebrava, prendia, espancava. Era terrível. Os pais-de-santo não podiam fazer
nada. Alguns políticos influentes tinham uma certa ligação com o candomblé, mas
escondiam essa ligação. […] O apoio dos políticos não era efetivo – davam
dinheiro, ajudavam, mas na hora do pau comer, eles tiravam o corpo fora”.
(AMADO, 1992).
Jorge Amado, que creditava ao confrade a
sua aproximação, interesse e respeito pelo culto do candomblé, assegura que, ao
aderir à luta nesses tempos amargos para os seguidores desses rituais
assentados em sentimentos de humanismo plural, não iam aos terreiros “para
arrancar informações e, sim, no sentido fraternal de conhecer, de participar, e
sempre respeitando muito o lado sigiloso, secreto” (1992). Nessa linha
participativa, Édison Carneiro funda em 1937 a União das Seitas
Afro-Brasileiras, no fundo uma federação das casas de candomblé, fruto de seu
trabalho como estudioso da cultura negra. Além de atuar em jornais e revistas
da Bahia e do Rio de Janeiro, exerceu funções de redator de publicações do MEC
(Ministério da Educação e Cultura) e de diretor da Campanha de Defesa do
Folclore. Morreu em 3 de dezembro de 1972, como funcionário da Confederação
Nacional da Indústria.
Literariamente, além de
sua participação no fiasco editorial do romance juvenil Lenita, escrito juntamente com Jorge Amado e Dias da Costa e
publicado em 1929, dele se conhece, assim mesmo por descoberta que se deve ao
esforço do pesquisador baiano Gilfrancisco Santos, um conjunto de trinta poemas
de construção irreverente, próxima da primeira fornada modernista, publicados
sob a forma de folhetim em jornais, em 1928, sob o título de Musa Capenga. No restante, é autor de
vasta e consagrada obra etnográfica e folclórica, cuja publicação se inicia com
Religiões Negras. Notas de Etnografia
(Rio: Civilização Brasileira, 1936.), seguindo-se outras dezenove, entre as
quais: Negros Bantus (Rio:
Civilização Brasileira, 1937.); Castro
Alves – Ensaio e Compreensão (Rio: Livraria José Olympio, 1937.); O Negro no Brasil (Rio: Civilização
Brasileira, 1940.); Quilombo de Palmares
(São Paulo: Brasiliense, 1947.); Candomblés
da Bahia (Salvador: Museu do Estado, 1948.); Antologia do Negro Brasileiro, 1950; A Insurreição Praieira (Rio: Conquista, 1961.); Ladinos e Crioulos (Estudo sobre o Negro no
Brasil) - Rio: Civilização Brasileira, 1964. (Apresentação de Manuel
Diégues Júnior).
Foi assim que a cidade da Bahia
de Todos os Santos encontrou o seu grande poeta e o seu grande sociólogo. A
imaginação o levou aos meios africanos, ao mistério das macumbas, à beleza dos
candomblés. O desespero da época fez com que ele produzisse ensaios em vez de
poemas. Agora sai seu primeiro livro: Religiões Negras. Apesar de primeiro
livro, não é livro de estreante. Aos 24 anos, Édison Carneiro, mesmo sem livro,
já era um grande nome. (AMADO apud SEIXAS, 2020).
EXTRATO
DE POEMA DE ÉDISON CARNEIRO
AMEAÇA
Ah,
negra faceira!
Que tolice, minha negra,
[…]
Que você tenha
Espichado
Seu cabelo.
Para que
Essa beleza
Artificial [?].
(GASPAR, 2010/2017)
(...)
- Meu anjinho
Não me despreze...
Olhe, veja lá –
Se você não me quiser...
Eu não me mato. Não!
Mas vou
Ao Pau Miúdo
E trago,
Para botar na sua porta,
Uma coisa feita
Dessas que fazem
Morrer de amor.
Preparada,
Minha beleza,
Pelas mãos
Do grande mago
Jubiabá!
Observação: poema
escrito, em 1928, quando Carneiro tinha só 16 anos de idade; coisa feita:
trabalho, despacho, na linguagem de matriz africana; Jubiabá: personagem de
romance de Jorge Amado, (Jubiabá, 1935), era um pai-de-santo então
famoso, com nome civil de Severiano Manuel de Abreu, no geral apelidado de
“Caboclo Jubiabá” (CARNEIRO, apud SOARES, 2005).
JORGE AMADO (1912-2001)
Escritor brasileiro mais
conhecido no exterior, traduzido em dezenas de idiomas, e um dos mais lidos do
País, com mais de duas dezenas de livros publicados, Jorge Amado de Faria
nasceu na Fazenda Auricídia, em Ferradas, então distrito de Itabuna, que dois anos
antes se emancipara de Ilhéus, cidade onde por cerca de dois anos residiria, em
solar construído pelo pai, João Amado de Faria, hoje sede da fundação cultural
do município. Aos dez anos vai para Salvador estudar no Colégio Antônio Vieira,
onde completa o curso secundário. Inaugura sua vocação literária, publicando
três poemas na revista A Luva.
Em 1928, aos 16 anos,
funda, em Salvador, com outros de quase a mesma idade, a Academia dos Rebeldes,
misto de exercício de boemia e aspirações literárias, sob influência da grande
onda modernista, que poucos anos antes eclodira em São Paulo, tendo como mentor
deles o jornalista panfletário Pinheiro Viegas. Escreve para a revista de único
número, Meridiano, órgão de
propagação das ideias do movimento. Em 1931, muda-se para o Rio de Janeiro,
levando debaixo do braço os originais do seu primeiro romance, O País do Carnaval, com uma carta de
Pinheiro Viegas recomendando-o ao já então influente crítico literário Agripino
Grieco. Aí, ingressa na Faculdade Nacional de Direito, mas antes, ainda em
Salvador, cometera estripulia literária, de que depois se arrependerá,
representada pelo romance Lenita,
escrito a seis mãos, juntamente com dois de seus amigos Rebeldes, cujo fiasco
editorial ele próprio narraria, em tom de pilhéria.
Dias da Costa, Édison Carneiro e
eu, em 1929, escrevemos em colaboração um romance sob o título de El-Rey, publicado em folhetim em O
Jornal, órgão da Aliança Liberal na Bahia. Um editor do Rio, A. Coelho
Branco Filho – jamais esquecerei, pois foi o primeiro a colocar meu nome na
capa de um livro, o primeiro a me ficar devendo direitos autorais –, lançou-o
em volume em 1930, capa medonhosa, com o título de Lenita. Livrinho com todos os cacoetes da época, Medeiros e
Albuquerque o definiu: uma pura
abominação. ´Um único subliterato não poderia tê-lo feito tão ruim, foi
necessário que se juntassem três.(AMADO, 1992).
Preso por várias vezes, a
terceira ocorrida em 1942, recebeu beneplácito discricionário de cumprir a pena
confinado em Salvador, onde trabalhou no jornal O Imparcial, então propriedade do coronel Franklin Lins de
Albuquerque, senhor da região do São Francisco e pai de seu amigo e futuro
escritor Wilson Lins. Em 1945, casa-se com Zélia Gattai e é eleito deputado
federal por São Paulo, para compor uma histórica Assembleia Constituinte, em
que figuravam altos representantes da inteligência e da cultura brasileira
(entre outros, Afonso Arinos, Armando Fontes, Gilberto Freyre, Gustavo
Capanema, João e Otávio Mangabeira, Luiz Carlos Prestes, Luiz Viana Filho,
Nestor Duarte, Plínio Salgado, Prado Kelly, Tarsilo Vieira de Melo),
responsável pela alta configuração democrática da Constituição Federal de 1946,
ao amparo da qual apresenta projeto de lei em favor da liberdade de culto
religioso no país, mas logo depois tem o seu mandato cassado (1947), após ser o
Partido Comunista do Brasil (PCB) lançado na ilegalidade. Segue então para a
Europa, passando a residir em Paris e Praga, onde escreve O Mundo da Paz. Pelo conjunto da obra, em 1951, recebe o Prêmio
Internacional Stálin, regressando ao Brasil em 1956. Elege-se, em 1961, para a
Academia Brasileira de Letras e, dois anos depois, muda-se para Salvador,
residindo em bucólica mansão construída nos Altos do Rio Vermelho, hoje museu.
Escreveu para diversos
jornais e periódicos do Brasil, entre os quais O Jornal, O Estado da Bahia, O Imparcial, Boletim de Ariel, Dom
Casmurro, Diretrizes, A Tarde, Última Hora, Para Todos, Folha da Manhã. A
vasta e prolífera escritura de Jorge Amado, quase toda marcada pela crítica
social e pelas mazelas e injustiças que oprimem o ser humano mundo afora, pode
ser, aleatoriamente, distribuída por três vertentes: a telúrica, cujo cenário
são a região do cacau, o Recôncavo e o sertão; a urbana, que tem como
referência principal a cidade do Salvador, e a de conteúdo estritamente
político e memorialístico.
No primeiro bloco,
podem-se alinhar O País do Carnaval
(1931), Cacau (1933), Suor (1934), Terras do Sem-Fim (1943), São
Jorge dos Ilhéus (1945), Seara
Vermelha (1946), Gabriela, cravo e
canela (1958), Tieta do Agreste
(1977), Tocaia Grande (1984). Do
segundo, seriam: Jubiabá (1935), Mar Morto (1935), Capitães da Areia (1937),
Bahia de Todos os Santos (1945), Os
velhos marinheiros, que inclui a novela
A morte e a morte de Quincas Berro D´água (1961), Os pastores da noite (1964), Dona
Flor e seus dois maridos (1966), Tenda
dos Milagres, (1969), O sumiço da
santa (1988), Tereza Batista cansada
de guerra (1972), Farda, fardão,
camisola de dormir (1979), A
descoberta da América pelos turcos (1992). Enfim, integrariam o último
grupo: ABC de Castro Alves (1941), O cavaleiro da esperança (1942), Amor de Castro Alves (1947), O Mundo da Paz (1951), Subterrâneos da Liberdade (I. Os Ásperos Tempos; II. Agonia da Noite; III. A Luz do Túnel, 1954); Navegação de Cabotagem (1992). E, como
curiosidade, um de poesia: A Estrada do
Mar, 1938.
Jorge Amado morreu em
Salvador, em 6 de agosto de 2001, a quatro dias de completar 89 anos. A ligação
ainda juvenil com a religião dos orixás fê-lo obá do candomblé Axé Opô Afonjá
e, talvez por isso, como anota Alberto da Costa e Silva, “uma das últimas
homenagens no seu velório tenha sido prestada por um grupo de mães de santo,
que, vestidas inteiramente de branco, lhe encomendaram o corpo.” (SILVA, 2010).
Além de ser um autor de
imensa popularidade, com uma obra fiel aos princípios do humanismo e quase toda
associada à crítica social e à denúncia das injustiças, Jorge Amado foi também
um extraordinário criador de figuras femininas em seus romances, mas, só em
2013, surge o alvissareiro anúncio de que lhe seriam abertas as portas dos
estudos universitários, antes sempre a ele misteriosamente fechadas, a começar
por São Paulo. Segue abaixo uma das criações de sua raríssima lavra poética.
CANTAR DE AMIGO DE GABRIELA
Oh! Que
fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
Palácio real lhe dei
um trono de pedrarias
sapato bordado a ouro
esmeraldas e rubis
ametistas para os dedos
vestidos de diamantes
escravas para servi-la
um lugar no meu dossel
e a chamarei de Rainha.
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
Só desejava uma campina
colher as flores do mato.
Só desejava um espelho
de vidro, pra se mirar.
Só desejava do sol
calor, para bem viver.
Só desejava o luar
de prata, pra repousar.
Só desejava o amor
dos homens, pra bem amar.
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
No baile real levei
A tua alegre menina
vestida de realeza
com princesas conversou
com doutores praticou
dançou a dança estrangeira
bebeu o vinho mais caro
mordeu uma fruta da Europa
entrou nos braços do Rei
Rainha mais verdadeira.
Oh! Que fizeste, Sultão,
de minha alegre menina?
Manda-a de volta ao fogão
a seu quintal de goiabas
a seu dançar marinheiro
a seu vestido de chita
a suas verdes chinelas
a seu inocente pensar
a seu riso verdadeiro
a sua infância perdida
a seus suspiros no leito
a sua ânsia de amar.
Por que a queres mudar?
(AMADO,
(1958).
Graças à
sua vocação para o jornalismo, que exerceu por toda a vida, Aydano Pereira do
Couto Ferraz foi um dos mais ativos membros da Academia dos Rebeldes, deixando,
como marcas de sua participação no movimento modernista, coletâneas de ficção e
poesia sobre o mar. Diplomado em Direito (1937), permaneceu em Salvador até
1939, quando se transferiu para o Rio de Janeiro e lá fixou residência. Exerceu
funções de editor em O Jornal e de
coordenador de Redação no Correio da
Manhã.
Tanto na
Bahia como no Rio, com Jorge Amado e Edison Carneiro, empenhou-se na luta em
defesa da liberdade religiosa, atuando firmemente contra perseguições às
práticas de cultos de matriz africana. Na esfera pública, ocupou cargos de
técnico em educação e de comunicação social, editando revistas do Ministério da
Educação e Cultura. Como político, foi por muitos anos ativo dirigente do
Partido Comunista Brasileiro.
Escritor
e poeta, publicou ainda em Salvador Apicuns
(Novelas Praieiras), em 1932, e Cânticos
do Mar, em 1935, que receberam boa acolhida por parte da crítica. Como
nutria visão utópica e humanista da vida e da sociedade, o mar, o amor, a
esperança e a liberdade foram os temas prediletos de sua arte literária.
Comentando o seu primeiro livro, o crítico Carlos Chiacchio reconheceu nele “um
pintor de marinhas”, e ainda mais se revela um apaixonado pelo mar, no segundo,
ao ponto de em seus versos desejá-lo “serenamente enquadrado no horizonte, /
limpo de velas, de mastros e de ruídos das dragas do porto. / - Um mar
soberano, sem a vassalagem das ondas”. (SANTOS, 2010).
Publicou
mais três livros: Pequena História da
Caricatura no Brasil, 1942; Os Poemas
Perdidos e seu Reencontro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1984.);
A Luta do Símbolo (Belo Horizonte
Editora/INL, 1985.).
Aydano Pereira do Couto Ferraz se
realizou amplamente como jornalista, foi diretor de jornal e revistas, mas
sobretudo poeta. Teve em vida duas grandes vocações: a poesia e a política. E
assim ficou a vida inteira, fiel à sua vocação inicial, à sua primeira vocação.
(SANTOS, 2010).
O
jornalista e escritor baiano Aydano do Couto Ferraz, companheiro de geração e
de vida literária de Jorge Amado, foi enterrado ontem em Brasília, onde faleceu
na véspera. Aydano teve destacada atuação no Partido Comunista Brasileiro, na
fase da atuação legal, de 1945 a 1947, quando exerceu a direção do jornal
Imprensa Popular, órgão de propriedade e de doutrinado velho PCB. (SANTOS,
2010).
CANTO DA ESPERANÇA
Minha
esperança,
A asa azul do sonho
tocava minha fronte solitária
na noite em que te vi.
Se tu foras a aurora,
minha amiga,
não te quisera a ti.
Há que mil anos a aurora se repete!
Hás de ser sempre nova, matutina,
entre as névoas do céu te descobri!
Vê se despertas nesse peito rude
as notas sentidas que ele já exalou.
Fala do mar ao teu irmão poeta,
povoa de primaveras a sua alma,
sonhos no coração,
que em troca de um olhar
dou estes versos,
em troca de um sorriso
- uma canção –
(FERRAZ, 1950).
WALTER DA SILVEIRA (1915-1970)
Último a
ingressar nas hostes da Academia dos Rebeldes, mais disposta a acolher nomes
inclinados ao exercício da literatura e do jornalismo, sem qualquer interesse
por outras linguagens, até mesmo as artes plásticas e a música, o que pode ser
debitado, na época, à predominância do conservadorismo nesses campos, baiano de
Salvador, Walter Raulino da Silveira viria a projetar-se no cenário cultural
como “homem de cinema”, tal a sua precoce identidade com a Sétima Arte, em
nível até de pioneirismo regional, e advogado, com larga fama de defensor de
operários e favelados, por seu vínculo com o Partido Comunista Brasileiro, de
1945 a 1957.
Diplomado
em 1935, a opção política levou-o a abandonar o cargo de juiz de Direito para
abraçar a carreira de advogado trabalhista, chegando a atuar como causídico de
26 sindicatos operários. Na esfera política, exerceu mandato de deputado na
Assembleia Legislativa da Bahia de 1955 a 1959.
Grande
fomentador cultural, desde a juventude, tornou-se figura exponencial do
desenvolvimento do cinema no estado, a partir da fundação do Clube de Cinema da
Bahia, em 1950, quando também atuou como colaborador de Caderno da Bahia, revista representativa do movimento artístico e
literário que surgira em 1948, revelando nomes como Mário Cravo Jr., Carlos
Bastos e Rubem Valentim, nas artes plásticas, Vasconcelos Maia, na ficção
literária, e Wilson Rocha e Jair Gramacho, na poesia, Heron de Alencar e Darwin
Brandão, no jornalismo.
Walter da
Silveira publicou seu primeiro texto sobre cinema no jornal da Associação
Universitária da Bahia, sob o título de “O Novo Sentido da Arte de Chaplin”,
enfocando o gênio do cinema, de cuja obra e imagem pública se tornaria respeitado
estudioso e admirador confesso, ao ponto de, já desenganado, antes de morrer de
câncer, em 1970, fazer de Jorge Amado, seu grande amigo, portador de uma carta
a Charles Chaplin, junto com um exemplar de livro seu sobre o célebre criador
de Carlitos, missão fielmente cumprida.
Antes de
falecer, Walter recebeu duas cartas, remetidas ambas da residência do mestre
maior do humanismo em nosso século: uma do escritório, despacho formal da
secretária, acusa a chegada do volume e agradece. A outra, carta pessoal de
Charles Chaplin: sensibilizado fala do livro, mensagem de estima e afeto,
calorosa. (AMADO, 1992).
O
estímulo ao debate cultural em torno da Sétima Arte permitiu-lhe alavancar
várias iniciativas, entre as quais a criação de curso de cinema ministrado no
âmbito da Universidade Federal da Bahia e a realização do Ciclo Baiano de
Cinema, referência para tornar Salvador em polo de vanguarda criativa e matriz
de nascimento do Cinema Novo, movimento artístico que irá empolgar o país.
Mentor desse afã cultural, Walter da Silveira contribuiu para a formação de uma
geração de cineastas na Bahia – Glauber Rocha, Roberto Pires, Paulo Gil Soares,
Orlando Senna, Guido Araújo, José Umberto, Olney São Paulo, Luiz Paulino, Tuna
Espinheira, entre outros.
Mestre da
crítica cinematográfica, publicou artigos sobre cinema e estética em jornais e
revistas de Salvador e do Sul do país, além de participar do júri de festivais
de cinema, nacionais e internacionais. A sua bibliografia reúne as seguintes
obras: Fronteiras do Cinema (Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966.); Imagem
e Roteiro de Charles Chaplin (Salvador: Mensageiro da Fé, 1970.); História do Cinema Vista da Província
(Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978.); O Eterno e o Efêmero (Salvador: Secretaria da Fazenda/ Secretaria
da Cultura e Turismo do Estado da Bahia / Oiti Editora e Produções Culturais,
2006. 4 v. Org. de José Umberto.).
REFERÊNCIAS
ABREU,
Bráulio de. “Longevidade para a poesia”. (Depoimento). A Tarde Cultural, Salvador,
p. 2 - 3, 1998.
Jornal
Agora,
Itabuna, 30 maio 2010. Caderno Banda
B.
MATTOS, Florisvaldo. Travessia de oásis: a sensualidade na poesia de Sosígenes Costa. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 2004.
SANTANA, Valdomiro. Literatura baiana 1920-1980. 1ª. ed., 1981; 2ª. ed. reesc. e ampl., 2009. Salvador: Casa de Palavras, 2009.
SANTANA, Valdomiro. Samba: Mensário Moderno de Letras, Artes e Pensamento. Edição fac-similar, Salvador, n. 1-4, 1999.
SANTIAGO, Cybèle Celestino; CERQUEIRA, Karina Matos de Araújo F. Sobre arcos e bondes: resgatando a memória urbana de Salvador. Salvador: Edufba, 2019.
SANTOS, Gilfrancisco. Pinheiro Viegas e o epigrama na Bahia. “A Tarde Cultural”, Salvador, 15 dez. 2001. Disponível em: jornadaonline.blogspot.com. Acesso em: 18 ago. 2020.
SANTOS, Gilfrancisco. O poeta Sosígenes Costa. In O Arquivo de Renato Sutana. Disponível em: http://www.arquivors.com/gilfrancisco6.htm. Acesso em: 29.09.2021,
SANTOS, Gilfrancisco. O Rebelde Alves Ribeiro. Aracaju, SE, Sergipe Educação e Cultura, 2010. Disponível em: http://sergipeeducacaoecultura.blogspot.com/2010/11/o-rebelde-alves-ribeiro.html. Acesso em: 18 ago. 2020.
SCALDAFERRI, Sante. Primórdios da Arte Moderna na Bahia. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Museu de Arte Moderna da Bahia; Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1997.
SEIXAS, Cid. A poesia de Edison Carneiro redescoberta por Gilfrancisco. Disponível em: literaturanabahia.blogspot.com.br e também em: http://www.arquivors.com/cidseixas1.htm . [19-?]. Acesso em: 09 dez. 2020.
SEIXAS, Cid. Triste Bahia: Oh Quão Dessemelhante: notas sobre literatura na Bahia. Salvador: EGBA, 1996.
SEIXAS, Cid. “Modernismo e diversidade: impasses e confrontos de uma vertente regional”. Légua & Meia: Revista de Literatura e Diversidade, Feira de Santana, ano 3, n. 2, 2004.
SEIXAS, Cid. Rebeldes de Academia: contradição e coerência. Disponível em: http://jornadaonline.blogspot.com/2010/08/rebeldes-de-academia-contradicao-e.html. Acesso em: 11 dez. 2020.
SEIXAS, Cid. 1928: Modernismo e maturidade: A Literatura na Bahia. Disponível em: http://www.e-book.uefs.br/pdf/1928.pdf e em:
http://www.linguagens.ufba.br/pdf/1928.pdf. Acesso em: 19
mar. 2021.
SILVA, Alberto da Costa e. Jorge Amado Essencial (Seleção e Prefácio). São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 2010.
SILVA, Rubens Esteves. Jornal da Manhã, Ilhéus, BA, 13 set. 1978.
SOARES, Ângelo Barroso Costa. Academia dos Rebeldes: Modernismo à moda baiana, 2006. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2005. Disponível em www.dominiopublico.gov.br e http://livros01.livrosgratis.com.br/cp000515.pdf. Ainda em: http://tede2.uefs.br:8080/bitstream/tede/11/1/Angelo%20Barroso%20Soares.pdf. Acesso em: 28 ago. 2020.
PINHEIRO VIEGAS, João Amado. “J.N.R.J.”. CORREIO de Aracaju (SE), 02 de agosto de 1920.
PINHEIRO VIEGAS, João Amado. “O corvo”. VIDA Carioca, Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, 22 jan. 1921.
PINHEIRO VIEGAS, João Amado. “A RE PÚBLICA. Carta ao Marechal Deodoro”. Pequeno Jornal carioca, n. 374, 21 maio 1891.
PINHEIRO VIEGAS, João Amado. “Medalhão grego”. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/pviegas01.html. Acesso em: 13.09.2021.
INHEIRO VIEGAS, João Amado. “Monstro verde”. Poesia dos brasis, 2020. Disponível em: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/pinheiro_viegas.html. Acesso em: 18 jul. 2021.
[1]
Ingauhyra era o nome da
fazenda dos pais de Sosígenes Costa: Innocêncio Ignácio da Costa e Brasília
Marinho da Costa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário