segunda-feira, 27 de junho de 2022

ARTHUR RIMBAUD, O BARCO BÊBADO (TRADUÇÃO)


        Paul Verlaine e Arthur, pintura de Henri Fintin-Latour (com outros artistas), 1872


O BARCO BÊBADO


Arthur Rimbaud

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.
Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.
Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
viam turbilhonar marés de verde e anil.
O vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!
Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.
Então eu mergulhei nas águas do Poema
do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes – dilema
Lívido – um afogado afunda lentamente;
Onde, tingindo azulidades com quebrantos
E ritmos lentos sob o rutilante albor,
Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,
fermentam de amargura as rubéolas do amor!
Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,
Ressacas e marés: conheço o entardecer,
A Aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!
Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Iluminando os longos glaciais;
Como atrizes senis em palcos cabalísticos,
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!
Sonhei que a noite verde em neves alvacentas
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!
Por meses eu segui, tropel de vacarias
Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias!
Cheguei a visitar as Flóridas perdidas
Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.
Vi fermentarem pântanos imensos, ansas
Onde apodrecem Leviatãs distantes!
O desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!
Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!
Náufragos abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!
Ah! se as crianças vissem o dourar das ondas,
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes…
– As espumas em flor ninaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.
Mártir de polos e de zonas misteriosas,
O mar a soluçar cobria os meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
e eu, como uma mulher, me punha de joelhos…
Quase ilha a balouçar entre borras e brados
De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.
Mas eu, barco perdido em baías e danças,
Lançado no ar sem pássaros pela torrente,
De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de água ardente;
Livre, fumando em meio às virações inquietas,
Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Líquens de sol vômitos de azul escuro;
Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas
O céu ultramarino e seus funis de bruma;
Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,
O cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris,
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!
Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas
Que o delírio dos céus desvela ao viajor:
– É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?
Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!
Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!
Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
trêmulo como a asa de uma borboleta.
No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

Tradução definitiva de Augusto de Campos.
Postagem da escritora Márcia Guimarães.
(27/06/2022)



LE BATEAU IVRE

Arthur Rimbaud

Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs :
Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles,
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.
J’étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages,
Les Fleuves m’ont laissé descendre où je voulais.
Dans les clapotements furieux des marées,
Moi, l’autre hiver, plus sourd que les cerveaux d’enfants,
Je courus ! Et les Péninsules démarrées
N’ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.
La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu’un bouchon j’ai dansé sur les flots
Qu’on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l’oeil niais des falots !
Plus douce qu’aux enfants la chair des pommes sûres,
L’eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.
Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d’astres, et lactescent,
Dévorant les azurs verts ; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend ;
Où, teignant tout à coup les bleuités, délires
Et rhythmes lents sous les rutilements du jour,
Plus fortes que l’alcool, plus vastes que nos lyres,
Fermentent les rousseurs amères de l’amour !
Je sais les cieux crevant en éclairs, et les trombes Rimbaud, em desenho de Verlaine
Et les ressacs et les courants : je sais le soir,
L’Aube exaltée ainsi qu’un peuple de colombes,
Et j’ai vu quelquefois ce que l’homme a cru voir !
J’ai vu le soleil bas, taché d’horreurs mystiques,
Illuminant de longs figements violets,
Pareils à des acteurs de drames très antiques
Les flots roulant au loin leurs frissons de volets !
J’ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
Baisers montant aux yeux des mers avec lenteurs,
La circulation des sèves inouïes,
Et l’éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs !
J’ai suivi, des mois pleins, pareille aux vacheries
Hystériques, la houle à l’assaut des récifs,
Sans songer que les pieds lumineux des Maries
Pussent forcer le mufle aux Océans poussifs !
J’ai heurté, savez-vous, d’incroyables Florides
Mêlant aux fleurs des yeux de panthères à peaux
D’hommes ! Des arcs-en-ciel tendus comme des brides
Sous l’horizon des mers, à de glauques troupeaux !
J’ai vu fermenter les marais énormes, nasses
Où pourrit dans les joncs tout un Léviathan !
Des écroulements d’eaux au milieu des bonaces,
Et les lointains vers les gouffres cataractant !
Glaciers, soleils d’argent, flots nacreux, cieux de braises !
Échouages hideux au fond des golfes bruns
Où les serpents géants dévorés des punaises
Choient, des arbres tordus, avec de noirs parfums !
J’aurais voulu montrer aux enfants ces dorades
Du flot bleu, ces poissons d’or, ces poissons chantants.
– Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades
Et d’ineffables vents m’ont ailé par instants.
Parfois, martyr lassé des pôles et des zones,
La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d’ombre aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu’une femme à genoux…
Presque île, ballottant sur mes bords les querelles
Et les fientes d’oiseaux clabaudeurs aux yeux blonds.
Et je voguais, lorsqu’à travers mes liens frêles
Des noyés descendaient dormir, à reculons !
Or moi, bateau perdu sous les cheveux des anses,
Jeté par l’ouragan dans l’éther sans oiseau, Art
Moi dont les Monitors et les voiliers des Hanses
N’auraient pas repêché la carcasse ivre d’eau ;
Libre, fumant, monté de brumes violettes,
Moi qui trouais le ciel rougeoyant comme un mur
Qui porte, confiture exquise aux bons poètes,
Des lichens de soleil et des morves d’azur ;
Qui courais, taché de lunules électriques,
Planche folle, escorté des hippocampes noirs,
Quand les juillets faisaient crouler à coups de triques
Les cieux ultramarins aux ardents entonnoirs ;
Moi qui tremblais, sentant geindre à cinquante lieues
Le rut des Béhémots et les Maelstroms épais,
Fileur éternel des immobilités bleues,
Je regrette l’Europe aux anciens parapets !
J’ai vu des archipels sidéraux ! et des îles
Dont les cieux délirants sont ouverts au vogueur :
– Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t’exiles,
Million d’oiseaux d’or, ô future Vigueur ?
Mais, vrai, j’ai trop pleuré ! Les Aubes sont navrantes.
Toute lune est atroce et tout soleil amer :
L’âcre amour m’a gonflé de torpeurs enivrantes.
Ô que ma quille éclate ! Ô que j’aille à la mer !
Si je désire une eau d’Europe, c’est la flache
Noire et froide où vers le crépuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesse, lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.
Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l’orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.

(Arthur Rimbaud, Poésies)





ARTHUR RIMBAUD

UMA TEMPORADA NO INFERNO


(Tradução sem indicação de tradutor. Fonte: Google)


    Rimbaud ferido, num hotel de Bruxelas, depois dos tiros que lhe deu Verlaine (1873)


RIMBAUD LÁ-BAS


Florisvaldo Mattos


Rimbaud e Verlaine

corpos e mentes

macerados no álcool

            lá vivem

                        convivem

De haxixe e absinto

inflados dopados

por bares e ruas

                        revivem

                                   convivem

Pode ser se apague

na gare longínqua

o risco de sangue

                        do amor

                                   desamor

Num beco de Londres

hotel de Bruxelas

o que resta é a sobra

                        de um hino

Arthur Rimbaud traficante, em Harar, na África
                                   destino

Pego-o pelo rastro

pelo fumo da arma

no lixo do quarto

                     os gritos

                                   dois mitos

 Viajante da sombra

devora futuros

a face dos mares

                        incerto

                                   deserto

Escaldante Oriente

prata ouro marfim

o outro lado o risco

                        ao azar

                                  lá-bas!

África de chumbo Rimbaud,

caravana e lama

a moeda da escrita

                        que parte

                                   reparte

Ó mar de Áden – turvo

Ó chão de Harar – fétido

Ó meiga Isabelle

                        que pena

                                   gangrena

Da perna direita

o coto que resta

o sol de muletas

                        lá fora

                        a aurora

As juntas da noite

arrastam por fim

imóvel trambolho

                        fastio

                              e frio


Choro e desespero

ao céu de Marselha

“E é assim todo dia,”

                        ma belle

                                  Isabelle

Bêbado Verlaine

o amigo está morto

mas é sol e brilha

                    ausente

                                presente

O santo estendido

no lar do cansaço

capela vazia

                   jaz seco

                                no beco


Ó precioso âmbar,

tráfico de incenso

nostálgica areia

                   mais pura

                                depura


Montanhas e vales

passado revisto

esconde-se a parte

                    vivida

                          da vida


(A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior, pp. 32-34, 1996)







Nenhum comentário:

Postar um comentário