domingo, 12 de junho de 2022

A FALSA COROA DE RICARDO REIS

 

        Fernando Pessoa (Lisboa,1888-1935)

ANTÔNIO BRASILEIRO

A FALSA COROA DE RICARDO REIS
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
Um dos poemas mais bem realizados de Fernando Pessoa tem apenas nove versos e foi atribuído, indevidamente, ao seu heterônimo Ricardo Reis. Coroai-me de rosas - primeiro verso deste poema, que não leva título - deve ter surgido n mesma tarde do surgimento do próprio Reis como poeta: uma tarde de junho de 1914. No dia seguinte Pessoa estaria completando 26 anos - e, como sabemos, nunca é em vão que um poeta faz 26 anos.
Esta - e as bordas desta - foi uma idade marcante na biografia do poeta. Por essa altura nascera Caeiro, já pleno, e Álvaro de Campos iniciava seu voo. Pessoa, “ele mesmo” , começava a cindir-se; para tornar-se uno, começava a cindir-se. E foi então, numa tarde talvez não tão sossegada como a do ano anterior e dos anos anteriores - estávamos em 1914, os ares tensos, uma guerra próxima - que Fernando Pessoa, de um só fôlego, escreveu "Coroai-me de rosas", o pequeno poema intraduzível que, mais tarde, erroneamente, atribuiu a Ricardo Reis, o mais formal dos seus heterônimos.
Afirmamos muitas coisas: a excelência do poema, a inautenticidade da autoria, a hora da realização, o fôlego da sua feitura. Rastrearemos um e outro tópico para, talvez, nos aproximarmos, senão do que esperam seus exegetas, pelo menos do que melhor agradaria ao próprio Pessoa.
São três tercetos; um passo, um contrapasso e um pouso. Construção mais simples não haveria. E cada terceto poderia dividir-se em três outros passos, fechados também em si. E aqui tocamos a primeira dificuldade para uma tradução do poema: a natural resistência oferecida pelas coisas simples.
O poema abre com o verso fundamental (Coroai-me de rosas), ecoa ao iniciar-se a segunda estrofe (Rosas que se apagam) e enrodilha-se em si ao repetir-se no início da terceira estrofe (Coroai-me de rosas), encerrando-se, da forma mais definitiva, no verso final (E basta). Algo neste poema parece-se com aquelas estrelas tão densas que, dizem os astrônomos, nada deixam escapar de si. O indecifrável convence-nos pelo seu fascínio mesmo, sem que o penetremos.
A forma de um poema não é tudo, mas isso só ocorre quando a forma não é tudo. De um modo ou de outro, porém, nada nos impede de proceder a um rastreamento ligeiro dos significados.
Que quer dizer esse Coroai-me de rosas? Coroar-se, em verdade, de rosas, como se coroavam aos atletas olímpicos de louros? Mas que consonância haverá entre aqueles vencedores e este poeta? Não parece transparecer no poema nenhum tom triunfal ou triunfante, são rosas que se apagam. E cedo. Não se deseja muito, só o mínimo. Poderíamos, então, recorrer às esfuziantes e álacres coroas de louros do passado? Por certo que não.
Esta imagem de uma coroa de flores está presente em Shakespeare. No Rei Lear e no Hamlet. Lear enlouquece e surge de repente em cena coberto de flores. No Hamlet, guirlandas com ramos de salgueiro, botões-de-ouro, urtigas, margaridas e flores purpúreas parecem emoldurar uma sugestão para a cena da morte de Ofélia. De qualquer modo, a rainha esparze “flores perfumadas para a flor!”(Sweets to the sweet) sobre o corpo morto da moça. Estaria aqui a matriz do verso pessoano, essa fusão de flores sobre o corpo morto e flores em frontes vitoriosas?
Quem sabe! São rosas; e, mais que rosas, folhas breves. Nada mais. Todo o poema pode resumir-se a isso. E, no entanto, nada fica explicado.
Não é um poema de Ricardo Reis, mas de Alberto Caeiro. Sua forma aparentemente simétrica fez Pessoa enganar-se e atribuí-lo ao seu eu mais “clássico”; mas não cabe bem no Reis. E lembre-se que naqueles dias de junho o essencial de Caeiro há havia sido escrito. A confiar nas datas atribuídas pelo próprio Pessoa aos seus trabalhos, a última de “O Guardador de Rebanhos”, livro de Caeiro, foi um 10 de maio. Entre esta data e a da criação de Coroai-me de rosas, um 12 de junho, o que pode ter ocorrido, além de alguma vagabundagem, foi a confecção de um que outro poema sem maior brilho ou da Ode Triunfal, de Álvaro de Campos. Na verdade, Pessoa descansava de Caeiro, procurava entender o que havia, em seu nome, escrito. E quando nessa tarde de 12 de junho rabiscara aquele poema, sentira-se como que subitamente retomado de saudades de seu mestre Caeiro, e, na ânsia de cindir-se em mais de um, ou mais de dois, ou talvez mais, confundira o mestre na sua pura singeleza com o um-tanto-insosso Ricardo Reis.
O próprio nascimento poético de Reis já vem também ele embebido de Alberto Caeiro: esse mesmo dia 12 de junho conhece vários outros poemas de Reis, de certo modo não ainda um Reis inteiramente; o poema Mestre, são plácidas, deste autor, é bem a lição de discípulo.
Coroai-me de rosas, contudo, não pode ser atribuído senão ao próprio mestre. E a ausência de um sequer vestígio de costura no corpo do poema, sobretudo considerando-se que o segundo terceto talvez a merecesse, permite-nos afirmar igualmente que o poema saiu como está, como o dissemos, de um só fôlego. Pessoa era bem disso. Deve ter acrescentado, digamos, o ponto de exclamação ou empurrado um pouco para a direita o terceiro verso de cada estrofe. Possivelmente. No essencial, porém, nada foi mexido.
Esta facilidade no ato de criação leva às vezes o criador a enganar-se quanto ao valor de sua obra. Pessoa enganou-se. Atribuiu, sem maiores exames, esta pequena obra-prima a um outro eu seu, não dos melhores. Poderia tê-la atribuído, com justiça e propriedade, àquele que também apropriada e justamente admitia ser seu mestre. Porque Alberto Caeiro foi a melhor criação de Fernando Pessoa. Tinha então perto de 26 anos de idade, um jovem ainda. Contudo ousamos dizer - o resto de sua vida Pessoa o dedicou a procurar esse mestre que foi, um dia, de si mesmo.
Já a essa altura sabia das influências que todas as coisas exercem sobre todas as outras, sobretudo a que o brilho de uma luz ou o murmúrio das folhas ao vento exercem sobre os sentidos de um homem. Escreveu o poema "Coroai-me de rosas" numa tarde, porque um poema como "Coroai-me de rosas" só pode ser escrito à tarde, com o sol um pouco encoberto por nuvens senão frias, pelo menos silenciosas e esgarçadas como certos estados de alma. E qualquer outra explicação que se dê a um tal poema é tão destituída de sentido quanto a que nós, leitor amigo, acabamos de dar.

Antonio Brasileiro (in Facebook, 12.06.2022)



            Fernando Pessoa, heterônimos

13 DE JUNHO: DIA DE SANTO ANTONIO E DE FERNANDO PESSOA. LOUVEMOS OS DOIS!

Vitor Hugo Soares (Jornalista)

ALTAS HORAS DE DOMINGO, 12, PERCORRO TRILHAS DE ANTONIO FERNANDO DE BULHÕES (NOME ORIGINAL DO SANTO) ENTRE LISBOA, CAPITAL PORTUGUESA. E PÁDUA, NO INTERIOR DA ITÁLIA, NA ESPERANÇA DE PODER OFERECER ALGUM FATO MAIS ORIGINAL, OU INFORMAÇÃO MAIS INTERESSANTE E RELEVANTE SOBRE O GLORIOSO SANTO CATÓLICO CELEBRADO HOJE, 13 DE JUNHO. ENTÃO, DE REPENTE - COMO EM GERAL ACONTECE DESDE A INFÂNCIA QUANDO APELO PARA ELE, MESMO CONFESSANDO MINHA CONDIÇÃO DE ATEU QUE ACREDITA - ANTONIO OFERECE UMA LUZ OU UMA BOIA DE SOCORRO. CONSTATO QUE FERNANDO PESSOA, POETA MAIOR DA LÍNGUA PORTUGUESA, NASCEU NA CIDADE LISBOA EM UM 13 DE JUNHO, MESMA DATA DA MORTE DE ANTONIO, SANTO FESTEJADO HOJE. DAÍ DOU ASAS A IMAGINAÇÃO E PENSO COM MEUS BOTÕES: MESMO UM AGNÓSTICO CONFESSO, PESSOA DEVE TER ESCRITO E PUBLICADO, OU DEIXADO ESCRITO ALGUM POEMA QUE FALE DE SUA UMBILICAL LIGAÇÃO COM O NOTÁVEL PREGADOR E OPERADOR DE GRANDES MILAGRES. AÍ DESCUBRO MAIS UMA PISTA, NA SEGUINTE MENSAGEM POSTADA NA WEB, NÃO SEI QUANDO:
"Hoje dia de Santo Antonio e Fernando Pessoa.
Um nasceu no dia em que o outro faleceu.
Se Santo Antonio foi Fernando de Bulhões, Frei António e depois Santo,
Fernando Pessoa foi Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.
Um fazia milagres o outro criava poetas inteiros. (Isabel Monteiro).
Daí até encontrar o poema "Santo Antonio", que Pessoa guardou em seu baú, sem publicar, segundo relato dos estudioso de sua obra monumental. Vai abaixo. com um lido dobrado, na voz única de Amália Rodrigues: "Noite de Santo Antonio". Outra raridade que vai compartilhada neste espaço especial do Facebook.
ANTES DE IR PARA A CAMA, CONTENTE COM AS DESCOBERTAS, DOU UM MERGULHO NA MINHA INFÂNCIA DE MENINO NA BEIRA DO RIO SÃO FRANCISCO. E TRAGO TAMBÉM PARA ESTE RECANTO DAS REDES SOCIAIS, A MENSAGEM POSTA MAIS CEDO, NO DOMINGO, NO ESPAÇO EM LOUVOR A ANTONIO, DE ANINHA RAMOS, AMIGA DO PEITO E DEVOTA DE FÉ DO SANTO, QUE GENEROSAMENTE PEDE PELOS SEUS E PELAS PESSOAS EM VOLTA, A COMEÇAR PELOS AMIGOS E PELO PAÍS. PEDE O BEM SEM OLHAR A QUEM.
Para mim, reflito, são sinais do poderoso, padroeiro de Santo Antonio da Glória, cidade on passei o período mais feliz da minha infância.. Morava no chalé ao lado da igreja matriz. Os festejos ao santo eram grandiosos, à altura do santo português (de Lisboa), que fez suas grandes pregações e produziu os maiores milagres em Pádua, na Itália, onde estive com Margarida ao lado de sua sepultura. As maiores recordações para mim, são de minha mãe -Jandira - cantando os benditos nas trezenas (voz firme e empolgante de sertaneja de fá e consciência), a pregação de Monsenhor Magalhães (notável tribuno sacro da época) e a Noite dos Filhos Ausentes. A prima querida e colega competente, Ana Maria Vieira é testemunha ocular e sabe bem da emoção daquele tempo. Viva Santo Antonio! (Vitor Hugo Soares)
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DO L&PM BLOG (Compartilhamento no Bahia em Pauta)
O Santo Antônio de Fernando Pessoa
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, às 15h20min, no Largo de São Carlos em Lisboa. Era Dia de Santo Antônio e, coincidência ou não, sua mãe escolheu uma alcunha bem parecida com o nome original do santo: Antônio Fernando de Bulhões. No site português MultiPessoa, que divulga a obra do escritor e oferece material didático e de pesquisa, há um poema chamado “Santo Antonio”. Segundo consta, este é um dos poemas que estava dentro da arca em que Pessoa guardava a produção literária que ainda não havia saído em livro.

SANTO ANTONIO

Fernando Pessoa
Nasci exatamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir…
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!
Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.
(Refleti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João…
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)
Adiante … Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demônio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.
Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera…
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a veem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não consertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.
(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? …
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.
És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.
És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.
És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.
Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demônio
É que foram pregar contigo um santo?
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VIVA ANTONIO!!! SALVE PESSOA!!!

(Copiado de postagem no Facebook cometida pelo jornalista Vítor Hugo Soares, em 13.06.2022)


Haja também alto samba dedicado ao Santo Antônio. Link abaixo.


João Petra de Barros - SANTO ANTONIO AMIGO - samba de José Gonçalves (Zé da Zilda)-Marino Pinto-J. Cascata. Gravação de 1941.


                             Almada Negreiros, Heterônimos de Fernando Pessoa (Desenho)

FERNANDO PESSOA REVELA
GÊNESE DOS HETERÔNIMOS

O termo Ode remete-nos para dois diferentes tipos de composição representados na obra de Fernando Pessoa: as grandes Odes de Álvaro de Campos – «Ode Triunfal» (1914), «Ode Marítima» (1915) e «Dois Excertos de Odes» (1914), para além das menos conhecidas e inacabadas «Ode Marcial» (1916) e «Ode Mortal» (1927) – e as pequenas Odes de Ricardo Reis. Definida como um poema lírico dividido em estrofes semelhantes entre si pelo número e medida dos versos, a ode ganha em Álvaro de Campos características completamente diversas. Trata-se, no seu caso, de composições em longos versos brancos, alternando com versos curtos, sem métrica, à maneira de Walt Whitman. São odes futuristas, destinadas a cantar (como se preceitua também para este tipo de poema) a máquina e a vida moderna. O título «Ode Triunfal» não deixa, no entanto, de apresentar uma ressonância antiga, se nos lembrarmos das Odes Triunfais de Píndaro, celebrando os atletas vencedores dos jogos olímpicos. Em contrapartida, as Odes de Reis, publicadas pela primeira vez em Athena, nº 1, Outubro de 1924, mostram como Pessoa conhecia bem a tradição greco-latina e os aspectos formais deste género de poesia. Este conhecimento, adquirido na juventude (em Durban, aprendeu a ler Horácio no original, exercitando-se a traduzir as suas odes para versos ingleses, e estudou também poetas como Milton e Marvell, grandes cultores da ode), permite-lhe fazer uma perfeita tradução contemporânea das odes da antiguidade. Pessoa refere-se, aliás, à intemporalidade das odes clássicas do seu heterónimo, numa carta para Armando Côrtes-Rodrigues, de 4-10-1914: «Essas são em verdade contemporâneas por dentro da idade eterna da Natureza» (Correspondência, I, p. 124). E também Sá-Carneiro, numa carta de 27-6-1914, vê nelas, «uma “novidade” clássica horaciana». Maria Helena da Rocha Pereira chama a atenção para a capacidade de renovação do género que Reis revela. E sublinha o cuidado com a isometria e o perfeccionismo de Reis no tratamento que lhe dá, encontrando ecos de Virgílio em Reis, e intertextualidades entre as suas odes e as de Horácio. No entanto, a poesia de Reis, embora siga o esquema formal e temático das odes de Horácio, apresenta um nível especulativo e uma complexidade incomparavelmente maiores.

 

BIBL.: Maria Helena da Rocha Pereira, Reflexos horacianos nas odes de Correia Garção e Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Porto, 1958; idem, «Leituras de Ricardo Reis, in Circum-navegando Fernando Pessoa, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986.


Manuela Parreira da Silva


ODES DE ÁLVARO DE CAMPOS


ODE TRIUNFAL


ODE MARÍTIMA




DOIS EXCERTOS DE ODES 

(fins de duas odes, naturalmente) 

I

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
 
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.
 
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
 
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
 
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde - quem sabe? - Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
 
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!
 
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
 
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,99
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
 
A lua começa a ser real.


  II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exata e precisa e ativa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do «Sentimento de um Ocidental»!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas.

Que nem são países, nem momentos, nem vidas.

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,

Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,

Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,

Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos

Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,

Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,

Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,

Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,

Platão sonhando viu a ideia de Deus

Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.

Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,

Por esta hora que eu não sei como viver,

Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,

Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,

Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,

Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível

Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.

Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio

A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,

Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria

— Tu que me conheces — quem eu sou...

30-6-1914

“Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente)”.

 

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 160.

1ª publ. in Revista de Portugal, nº4. Lisboa: Jul. 1938.


            Fernando Pessoa, em lazer gustativo, na Baixa lisboeta


TABACARIA

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa,

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Génio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.

Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordámos e ele é opaco,

Levantámo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

15-1-1928

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 252.

1ª publ. in Presença, nº 39. Coimbra: Jul. 1933.




 
SAUDAÇÃ0  A WALT WHITMAN
 

Portugal Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...

Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a adversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contágio a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gêmeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas, 
Homero do insaisissable de flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor, 
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura! incubo de todos os gestos
Espasmo pra dentro de todos os objetos-força, 
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares...

Quantas vezes eu beijo o teu retrato!
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá —,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito

Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica.
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No teto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do teto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha?  Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Pra frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa!  Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstrata do corpo fazendo maelstroms na alma...

Arre!  Vamos lá pra frente! 
Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente Não faz diferença
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma
Infinito!  Universo!  Meta sem meta!  Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho .
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço ...)
Agora, sim, partamos, vá lá pra frente.

Numa grande marche aux flabeux-todas-as-cidades-da-Europa,
Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço
Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!
Não quero intervalos no mundo!

Quero a contiguidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstrato auge no fim cie mim e de tudo!
 
 

Clímax a ferro e motores!
Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!
Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!
 
 

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!
Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!
 
 

Os marinheiros levaram-me preso,
As mãos apertaram-me no escuro,
Morri temporariamente de senti-lo,
Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere privado,
E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,
Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,
Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

He calls Walt:

Porta pra tudo!
Ponte pra tudo!
Estrada pra tudo!
Tua alma omnívora,
Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher, 
Tua alma os dois onde estão dois,
Tua alma o um que são dois quando dois são um, 
Tua alma seta, raio, espaço,
Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York, 
Brooklyn Ferry à tarde,
Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,
Libertad!  Democracy!  Século vinte ao longe!
PUM! pum! pum! pum! pum!
PUM!
Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,
O sujeito e o objeto, o ativo e o passivo,
Aqui e ali, em toda a parte tu,
Círculo fechando todas as possibilidades de sentir, 
Marco miliário de todas as coisas que podem ser,
Deus Termo de todos os objetos que se imaginem e és tu!  
Tu Hora,
Tu Minuto,
Tu Segundo!
Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido, 
Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento, 
Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente, 
Carimbo em todas as cartas,
Nome em todos os endereços,
Mercadoria entregue, devolvida, seguindo... 
Comboio de sensações a alma-quilômetros à hora, 
À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro, 
Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa
Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica —
Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra.

Heia que eu vou chamar
Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te
Todo o formilhamento humano do Universo,
Todos os modos de todas as emoções
Todos os feitios de todos os pensamentos,
Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.
Heia que eu grito
E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam
Com uma algaravia metafisica e real,
Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,
Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,
Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.


LISBON REVISITED
(l923)
 
Não: Não quero nada. 
Já disse que não quero nada. 

Não me venham com conclusões! 
A única conclusão é morrer. 

Não me tragam estéticas! 
Não me falem em moral! 

Tirem-me daqui a metafísica! 
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas 
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — 
Das ciências, das artes, da civilização moderna! 

Que mal fiz eu aos deuses todos? 

Se têm a verdade, guardem-na! 

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. 
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. 
Com todo o direito a sê-lo, ouviram? 

Não me macem, por amor de Deus! 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? 
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. 
Assim, como sou, tenham paciência! 
Vão para o diabo sem mim, 
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! 
Para que havemos de ir juntos? 

Não me peguem no braço! 
Não gosto que me peguem no braço.  Quero ser sozinho.  
Já disse que sou sozinho! 
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! 

Ó céu azul — o mesmo da minha infância — 
Eterna verdade vazia e perfeita!  
Ó macio Tejo ancestral e mudo, 
Pequena verdade onde o céu se reflete! 
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! 
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. 

Deixem-me em paz!  Não tardo, que eu nunca tardo... 
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


LISBON REVISITED 
(1926)
 
   Nada me prende a nada.  
   Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.  
   Anseio com uma angústia de fome de carne  
   O que não sei que seja -  
   Definidamente pelo indefinido...  
   Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto  
   De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.  

   Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.  
   Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.  
   Não há na travessa achada o número da porta que me deram.  
  

   Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.  
   Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.  
   Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.  
   Até a vida só desejada me farta - até essa vida...  

   Compreendo a intervalos desconexos;  
   Escrevo por lapsos de cansaço;  
   E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.  
   Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;  
   Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;  
   ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.  

   Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...  
   E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,  
   Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa  
   (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),  
   Nas estradas e atalhos das florestas longínquas  
   Onde supus o meu ser,  
   Fogem desmantelados, últimos restos  
   Da ilusão final,  
   Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,  
   As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.  

   Outra vez te revejo,  
   Cidade da minha infância pavorosamente perdida...  
   Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...  

   Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,  
   E aqui tornei a voltar, e a voltar.  
   E aqui de novo tornei a voltar?  
   Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,  
   Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,  
   Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?  

   Outra vez te revejo,  
   Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.  

   Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,  
   Transeunte inútil de ti e de mim,  
   Estrangeiro aqui como em toda a parte,  
   Casual na vida como na alma,  
   Fantasma a errar em salas de recordações,  
   Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem  
   No castelo maldito de ter que viver...  

   Outra vez te revejo,  
   Sombra que passa através das sombras, e brilha  
   Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,  
   E entra na noite como um rastro de barco se perde  
   Na água que deixa de se ouvir...  

   Outra vez te revejo,  
   Mas, ai, a mim não me revejo!  
   Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,  
   E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -  
   Um bocado de ti e de mim!... 




OPIÁRIO

 
                Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro
      É antes do ópio que a minh'alma é doente.   
      Sentir a vida convalesce e estiola  
      E eu vou buscar ao ópio que consola  
      Um Oriente ao oriente do Oriente. 

      Esta vida de bordo há-de matar-me. 
      São dias só de febre na cabeça 
      E, por mais que procure até que adoeça, 
      já não encontro a mola pra adaptar-me. 

      Em paradoxo e incompetência astral 
      Eu vivo a vincos de ouro a minha vida, 
      Onda onde o pundonor é uma descida 
      E os próprios gozos gânglios do meu mal. 

      É por um mecanismo de desastres,  
      Uma engrenagem com volantes falsos,  
      Que passo entre visões de cadafalsos 
      Num jardim onde há flores no ar, sem hastes. 

      Vou cambaleando através do lavor 
      Duma vida-interior de renda e laca. 
      Tenho a impressão de ter em casa a faca 
      Com que foi degolado o Precursor. 

      Ando expiando um crime numa mala, 
      Que um avô meu cometeu por requinte. 
      Tenho os nervos na forca, vinte a vinte, 
      E caí no ópio como numa vala. 

      Ao toque adormecido da morfina 
      Perco-me em transparências latejantes 
      E numa noite cheia de brilhantes, 
      Ergue-se a lua como a minha Sina. 

      Eu, que fui sempre um mau estudante, agora 
      Não faço mais que ver o navio ir 
      Pelo canal de Suez a conduzir 
      A minha vida, cânfora na aurora. 

      Perdi os dias que já aproveitara. 
      Trabalhei para ter só o cansaço 
      Que é hoje em mim uma espécie de braço 
      Que ao meu pescoço me sufoca e ampara. 

      E fui criança como toda a gente. 
      Nasci numa província portuguesa 
      E tenho conhecido gente inglesa 
      Que diz que eu sei inglês perfeitamente. 

      Gostava de ter poemas e novelas 
      Publicados por Plon e no Mercure, 
      Mas é impossível que esta vida dure. 
      Se nesta viagem nem houve procelas! 

      A vida a bordo é uma coisa triste, 
      Embora a gente se divirta às vezes. 
      Falo com alemães, suecos e ingleses 
      E a minha mágoa de viver persiste. 

      Eu acho que não vale a pena ter 
      Ido ao Oriente e visto a índia e a China. 
      A terra é semelhante e pequenina 
      E há só uma maneira de viver. 

      Por isso eu tomo ópio. É um remédio 
      Sou um convalescente do Momento. 
      Moro no rés-do-chão do pensamento 
      E ver passar a Vida faz-me tédio. 

      Fumo.  Canso.  Ah uma terra aonde, enfim, 
      Muito a leste não fosse o oeste já! 
      Pra que fui visitar a Índia que há 
      Se não há Índia senão a alma em mim? 

      Sou desgraçado por meu morgadio. 
      Os ciganos roubaram minha Sorte. 
      Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte 
      Um lugar que me abrigue do meu frio. 

      Eu fingi que estudei engenharia. 
      Vivi na Escócia.  Visitei a Irlanda. 
      Meu coração é uma avòzinha que anda 
      Pedindo esmola às portas da Alegria. 

      Não chegues a Port-Said, navio de ferro! 
      Volta à direita, nem eu sei para onde. 
      Passo os dias no smokink-room com o conde - 
      Um escroc francês, conde de fim de enterro. 

      Volto à Europa descontente, e em sortes 
      De vir a ser um poeta sonambólico. 
      Eu sou monárquico mas não católico 
      E gostava de ser as coisas fortes. 

      Gostava de ter crenças e dinheiro, 
      Ser vária gente insípida que vi. 
      Hoje, afinal, não sou senão, aqui, 
      Num navio qualquer um passageiro. 

      Não tenho personalidade alguma.  
      É mais notado que eu esse criado  
      De bordo que tem um belo modo alçado  
      De laird escocês há dias em jejum. 

      Não posso estar em parte alguma.   
      A minha Pátria é onde não estou.  Sou doente e fraco.   
      O comissário de bordo é velhaco. 
      Viu-me co'a sueca...  e o resto ele adivinha. 

      Um dia faço escândalo cá a bordo, 
      Só para dar que falar de mim aos mais. 
      Não posso com a vida, e acho fatais 
      As iras com que às vezes me debordo. 

      Levo o dia a fumar, a beber coisas, 
      Drogas americanas que entontecem, 
      E eu já tão bêbado sem nada!  Dessem 
      Melhor cérebro aos meus nervos como rosas. 

      Escrevo estas linhas.  Parece impossível 
      Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta! 
      O fato é que esta vida é uma quinta 
      Onde se aborrece uma alma sensível. 

      Os ingleses são feitos pra existir. 
      Não há gente como esta pra estar feita 
      Com a Tranquilidade.  A gente deita 
      Um vintém e sai um deles a sorrir. 

      Pertenço a um gênero de portugueses 
      Que depois de estar a Índia descoberta 
      Ficaram sem trabalho.  A morte é certa. 
      Tenho pensado nisto muitas vezes. 

      Leve o diabo a vida e a gente tê-la! 
      Nem leio o livro à minha cabeceira. 
      Enoja-me o Oriente. É uma esteira 
      Que a gente enrola e deixa de ser bela. 

      Caio no ópio por força.  Lá querer 
      Que eu leve a limpo uma vida destas 
      Não se pode exigir.  Almas honestas 
      Com horas pra dormir e pra comer, 

      Que um raio as parta!  E isto afinal é inveja. 
      Porque estes nervos são a minha morte. 
      Não haver um navio que me transporte 
      Para onde eu nada queira que o não veja! 

      Ora!  Eu cansava-me o mesmo modo. 
      Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali 
      Para sonhos que dessem cabo de mim 
      E pregassem comigo nalgum lodo. 

      Febre!  Se isto que tenho não é febre, 
      Não sei como é que se tem febre e sente. 
      O fato essencial é que estou doente. 
      Está corrida, amigos, esta lebre. 

      Veio a noite.  Tocou já a primeira 
      Corneta, pra vestir para o jantar. 
      Vida social por cima!  Isso!  E marchar 
      Até que a gente saia pra coleira! 

      Porque isto acaba mal e há-de haver  
      (Olá!) sangue e um revólver lá pró fim  
      Deste desassossego que há em mim  
      E não há forma de se resolver. 

      E quem me olhar, há-de-me achar banal, 
      A mim e à minha vida... Ora! um rapaz... 
      O meu próprio monóculo me faz 
      Pertencer a um tipo universal. 

      Ah quanta alma viverá, que ande metida 
      Assim como eu na Linha, e como eu mística! 
      Quantos sob a casaca característica 
      Não terão como eu o horror à vida? 

      Se ao menos eu por fora fosse tão 
      Interessante como sou por dentro! 
      Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro. 
      Não fazer nada é a minha perdição. 

      Um inútil.  Mas é tão justo sê-lo! 
      Pudesse a gente desprezar os outros 
      E, ainda que co'os cotovelos rotos, 
      Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo! 

      Tenho vontade de levar as mãos 
      À boca e morder nelas fundo e a mal. 
      Era uma ocupação original 
      E distraía os outros, os tais sãos. 

      O absurdo, como uma flor da tal Índia 
      Que não vim encontrar na Índia, nasce 
      No meu cérebro farto de cansar-se. 
      A minha vida mude-a Deus ou finde-a ... 

      Deixe-me estar aqui, nesta cadeira, 
      Até virem meter-me no caixão. 
      Nasci pra mandarim de condição, 
      Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira. 

      Ah que bom que era ir daqui de caída 
      Pra cova por um alçapão de estouro! 
      A vida sabe-me a tabaco louro. 
      Nunca fiz mais do que fumar a vida. 

      E afinal o que quero é fé, é calma, 
      E não ter estas sensações confusas. 
      Deus que acabe com isto!  Abra as eclusas — 
      E basta de comédias na minh'alma! 

         (No Canal de Suez, a bordo)

         Fernando Pessoa; arte de Almada Negreiros (Lisboa: Museu Guggenhim


António Lobo Antunes (entrevista):

“Fernando Pessoa me aborrece até 

 a morte; Álvaro de Campos imita 

 Whitman e Ricardo Reis é Virgílio"

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/18/cultura/1442599830_647238.html



PESSOA, PRIMEIRO E ÚNICO

                                   A Heloísa Prazeres

 

Florisvaldo Mattos


Tu tomaste café n´A Brasileira

E logo dali saíste para o mundo.

Vestes casaco preto a vida inteira,

Sem que a ver tenha com o teu ser profundo.

 

Um dia me dirás, meu bom Fernando,

Se em ti Pessoa vinga só no nome.

Se há de ti tantos outros perdurando,

Por que eles vêm e vão e o pai não some?

 

O teu nome pertence à Humanidade;

Vem de ti para mim essa verdade.

Tu, poeta, é que és o imperador da língua.

 

Muitos viram em outros teu segundo.

Não há maior mentira neste mundo,

Pois quem assim pensou morreu à míngua.

 

(SSA/BA, 16/06/2016, Salvador: Estuário dos dias e outros poemas, p. 133, 2007)


   Desenho de Almada Negreiros (1893-1970), pintor e amigo de Fernando Pessoa







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