terça-feira, 16 de abril de 2019

MORTE GLORIOSA VINDO DE MONT-SERRAT



Hoje, o dia está para evocações histórico-culturais que marcaram o passado da chamada Cidade da Bahia e, com elas, um súbito chamamento à poesia. Antes evocaram-se os patíbulos severos, que levaram tantos ao enforcamento e à morte, em dois consagrados largos, o do Pelourinho e o da Piedade. Agora, evoca-se a bela Ponta de Humaitá, com o Forte de Mont-Serrat e a Capela, tendo o farol e o mar em frente, tudo apontando para a poesia. Bastou esta invocação para que o jornalista Paulo Leandro perguntasse se não foi do Forte de Mont-Serrat que se dispararam canhonaços contra navios holandeses durante a chamada invasão de 1624. Talvez no início da proeza, porque logo, logo depois, os holandeses dele se apossaram e os disparos vieram ao contrário, para a terra. Em meu livro "Mares anoitecidos" (2000), reunindo uma série de poemas que tomam por base a presença dos holandeses em mares e terras baianas por esse tempo, há justamente uma peça que é um conjunto de seis sonetos monoestróficos, tratando da morte do general Johann Van Dort, governador e comandante geral durante a ocupação (1624-1625), que, vindo justamente desta fortaleza, que então se chamava Forte São Felipe, viu-se surpreendido por uma tocaia no lugar já então chamado de Água de Meninos, sendo massacrado pelos defensores da terra. O ponto a destacar dessa narração poética é ser o evento fatal descrito pela própria vítima, indo do primeiro golpe até a morte, à moda do inglês Robert Brown, em suas "Dramatis Personae". Tolerem a reprodução do poema abaixo. (Florisvaldo Mattos, à près Facebook, em 15/04/2019).

ESTRADA DE MONTE SERRAT
“Pisan mis pies la sombra de las lanzas
que me buscan.

(Jorge Luis Borges)

Atacado em Água de Meninos, o general flamengo Johann Van Dort, governador e comandante geral, vendo sumir o sol numa tempestade de espadas, lanças e balas de mosquete, antes de morrer, cogita de sua sorte:
I
Mal me distingue e afaga a luz primeira
da manhã, quando me ponho de surpresa
a ver a fortaleza São Felipe.
Por caminhos de pedra e matos íngremes,
de regresso, afastando-me da escolta,
armada de escopetas e pistolas,
qual penetrasse estreito labirinto,
o troar de um tropel demais severo
de portugueses, de índios e de pretos,
de mui ervadas flechas de repente
sobre nós derrubasse temeroso
céu de balas, espadas e azagaias,
em chuva celerada, trespassando
tanto quanto cavalos e trombetas.
II
Zune o tempo de horror, o instante último
do bom negócio e jogo de cobiça,
que me impeliu a essas obscuras águas,
a combater nas fontes de riqueza
as potestades do ibero inimigo,
e até a Serra Leoa fui perseguir
barcos negreiros, ou farto butim
de especiarias por todos cobiçado.
Mergulho na razão de tais destrezas,
que me põem a pelejar contra desertos,
rudimentares formas de viver;
cogito do ouro louco que essas lanças,
essas balas, essas espadas guardam
e vêm agora emoldurar-me a hora última.
III
Cristãos-novos, sabei que nós flamengos,
de tanto traficar sonhos translúcidos,
costumamos lavrar os horizontes
com a mesma mão que sagra nossas preces.
Cristãos-novos, sabei que costumamos,
bem mais que organizar tropas e frotas,
bem mais que perseguir Marte e Netuno,
prezar a natureza por primeiro;
em terra ao mar subtraída, bem mais que a ouro,
cultivamos tulipas e jacintos,
bem mais doamos ao chão apetecido:
campo iriado de luas pastoris.
Gente sublimamos e ao mundo rotas
abrimos de galhardas esperanças.
IV
Ignoro essas paragens. Eu, de bruços,
antes que à noite funda me arremessem,
me volto para o céu indecifrável,
miro a armada de nuvens aportando,
com mensagens que omitem meu destino;
eu que me alimentei de sal batavo,
de celtas e germanos tenho o sangue,
a fala de seus sons contaminada;
eu, Johann Van Dort, general flamengo,
conhecedor de códigos e cânones,
provados na gerência de um exército,
sob um céu fibroso como de sombras,
quedo, decifro gumes que me aguardam.
V
Cruzei os oceanos com minha sombra
a vagar suspeitosa de meus dias
por campos e montanhas, por estradas,
no encalço de um Aquiles incansável,
que se ofusca no espelho da distância.
O dia avança, enquanto some a fina
malha de luz que tece meu destino
na areia fúlgida onde impera a fúria
do ferro que me alaga o suor de sangue.
E fujo para dentro de mim mesmo
em busca de razões vertiginosas,
que expliquem meu passado e meu presente:
apenas vejo um porto, uma cidade
e um rosto moço a olhar o mar defronte.
VI
Armas, gentes de cenho atormentado,
que não fabricam máquinas nem aram
o pensamento além de manuscritos,
cortinas abrem só para o passado,
mais que a da prata e do ouro mercantil,
idade só do ferro experimentam,
fecham-me o caminho, o peito afundam
com a desmedida sombra de seus passos.
Por última vez fito o claro céu,
agora imerso em vaga bruma, na hora
em que recebo a última cutilada.
Está escrito nos livros: todo brioso
marinheiro tem sua enganosa ilha
e todo lutador, suas Termópilas.

(Florisvaldo Mattos,
Mares anoitecidos / Rio: Imago Editora, 2000)

A imagem pode conter: oceano, céu, atividades ao ar livre, natureza e água

Eis um rico cartão postal de Salvador.
A Ponta de Humaitá na península itapagipana com a fortaleza militar e a ermida beneditina de Nossa Senhora de Montserrat. Quando faço visitas de estudos com gente das universidades corporativas ou treinamentos gerenciais questiono sobre qual destes dois signos de força foi mais eficaz no processo de colonização?
O forte militar, com o emprego da força pelo armamento, ou a igreja ibérica, com a influência moral da cultura cristã? O binômio, por sinal, - força bruta miliciana e onipresença neopetencostal - voltou com tudo e não está prosa, não é mesmo. A cultura se reproduz.
A igreja faz parte de uma ermida, um mosteirinho dos monges de S. Bento. O altar é barroco português quinhentista, traz a opulência da talha de ouro. O edifício data de 1601 conforme atesta uma inscrição numa pedra fixada na parede.
É bom fazer memória destes tempos, bom pra não ficar demente e errante.
O fotógrafo é desconhecido.

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