sábado, 24 de setembro de 2016

TRAVESSIA DE OÁSIS - Art. de Ruy Espinheira Filho

Ruy Espinheira Filho


Trânsito poético 

 
Em 14 de setembro de 1940, Mário de Andrade enviou, do Rio, a Oneyda Alvarenga, uma longa carta - certamente a mais longa que escreveu, 60 páginas sobre arte e conhecimento técnico, entre outras reflexões -, na qual lemos o seguinte: “Poetas e romancistas foram sempre os melhores propulsores de compreensão estética. Muito mais até que os críticos profissionais técnicos de suas artes, porque estes são levados fácil e insensivelmente para o lado didático, em vez de para o lado criador, da crítica”.
Em “Crítica de Poeta” (texto que abordava a Apresentação da Poesia Brasileira, de Manuel Bandeira), publicado no Diário de São Paulo, em 7 de março de 1946, Antônio Cândido observou que “a melhor crítica literária, a mais iluminadora e durável, não é feita pelos críticos profissionais, mas pelos próprios artistas criadores”. E Alfredo Bosi, na História Concisa da Literatura Brasileira, destacando a prosa crítica do mesmo autor, diz que temos muito a aprender com os ensaios bandeirianos sobre nossos poetas - “lidos não só de um ponto de vista histórico, mas por dentro, como às vezes só um outro poeta sabe ler”.
Se a afirmação de Mário poderia ser aceita com reservas, por ter sido ele também um poeta, um artista, o mesmo não faz sentido quanto a Cândido e Bosi, que não são poetas, não são artistas, mas historiadores, ensaístas, críticos. E dos melhores, ou seja: dos que reconhecem nos artistas um talento crítico que vai além da crítica meramente raciocinante da imprensa e das universidades.
Não pude deixar de lembrar estas coisas ao ler Travessia de Oásis - A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa, ensaio de Florisvaldo Mattos, por se tratar dessa oportunidade admirável que é ouvir um poeta falar de poesia. Desde muito jovem, antes de ler Mário, Cândido e Bosi, eu já percebera a superioridade da sensibilidade e da intuição sobre o mero aparato teórico e técnico, não só na obra de arte como na crítica da obra de arte - o que o texto de Florisvaldo Mattos vem agora generosamente confirmar.
Mas que estas palavras não levem o leitor a pensar que Travessia de Oásis é trabalho destituído de conhecimentos teóricos e técnicos - porque, na verdade, trata-se de obra culta, erudita, de quem conhece teorias e técnicas como os bons críticos conhecem. Só que, além de tais conhecimentos, há ainda a sensibilidade - sobretudo a intuição - do artista, do poeta Florisvaldo Mattos. Que, assim, nos leva a vivenciar a poesia de Sosígenes Costa de maneira tão ampla quanto profunda, tão racional quanto ao modo de um “andarilho do sensual e do fantástico”, como ele define em certo momento o poeta estudado. Porque, como ele, Florisvaldo, nos ensina, “o poeta põe a alma a se mover como uma sombra do mundo, no intuito de provar que a beleza transita em um território de infinitas opções que somente à arte e à poesia diz respeito”.
Com ele viajamos por Sosígenes Costa: cores, perfumes, sonoridade, tato, paladar, personagens... Sob a batuta do “hedonista magnânimo”, como o chama o ensaísta, adentramos uma mágica “democracia sensorial”: aromas misturados ao negrume da noite; a luz que, transmudada em cor, revela sabor exótico e audível; ainda a cor como uma sonoridade, ou um perfume, ou um sentimento: Ora, a alegria, este pavão vermelho/ está morando em meu quintal agora./ Vem pousar como um sol em meu joelho/ quando é estridente em meu quintal a aurora. E no poema que abre a obra poética, e cujo título é um alexandrino admirável - “Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes” - : Queima sândalo e incenso o poente amarelo/ perfumando a vereda, encantando o caminho./ Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo./ A saudade no ocaso é uma rosa de espinho. E, noutro soneto, este verso espantoso: A própria lua vem lançando aroma.

A crítica meramente raciocinante encontraria, aqui, um território adverso. É claro que se pode também, de certa forma, compreender Sosígenes Costa, mas o verdadeiro caminho para ele - para a arte, de um modo geral - é o da fruição. A crítica de Florisvaldo Mattos se realiza bem, plenamente, por ter ele seguido, desde a juventude, aquele caminho, o caminho da sensibilidade, o que lhe deu condições de também poder pensar, sem o risco de se perder em estéreis meandros teóricos, a poesia de SC. Um pensar que é, ao mesmo tempo, um sentir - e que nos apresenta a lírica sosigeneana com suas magias e correspondências ao longo dos séculos, desde a Grécia antiga, e afinidades com pintores, alguns citados nominalmente em poemas, como Bronzino e Murilo, e poetas, como Virgílio e Konstantinos Kaváfis, revelando-nos um Sosígenes que já não é mais de Belmonte, nem de Ilhéus, nem da Bahia, nem do Brasil - mas do mundo e da nossa milenar herança poética.
Enfim, Travessia de Oásis - A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa é um ensaio exemplar: erudito, culto, elegante. E mais: denso da intuição própria de grandes poetas. Como Sosígenes Costa - e, evidentemente, Florisvaldo Mattos.

Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista e membro da
Academia de Letras da Bahia.

 


Leia:
Travessia de Oásis - A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa, de Florisvaldo Mattos
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia/
EGBA 2004
R$ 20 

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