sábado, 24 de setembro de 2016

A CALIGRAFIA DO SOLUÇO - Artigo de Hélio Pólvora

Hélio Pólvora


Florisvaldo Mattos: A caligrafia do soluço

 
Múltipla e complexa, a poética de Florisvaldo Mattos apresenta tantas faces ou fases quantas sejam as circunvoluções em torno de certos temas recorrentes. É certo que o poeta de Água Preta (hoje Uruçuca, que também revelou outro poeta de porte nacional, Jorge Emílio Medauar), se exprime, como qualquer criador, a partir de si mesmo, de suas vivências, convivências, conceituações e confluências; no entanto, longe de desfiar, como alguns de seus contemporâneos, o rosário de dores e queixas pessoais, que muitas vezes não chegam a configurar poesia, nós o vemos armar-se cavaleiro de muitas andanças e inquirições.
Tais expedições, alargando o alcance da obra, o fazem comunicativo, solidário, socialmente combatente. E emprestam à sua voz aquela utilidade que a boa poesia há de ter, sob pena de estiolar-se na retórica sonorosa ou no esteticismo esterilizador.
O destino de uma poesia que se desdobra, apoiada nos fluxos e refluxos da individualidade e, ao mesmo tempo, deixando-se impregnar pelas exteriorizações e circunstâncias da vida grupal, da presença da época com todas as exigências de alinhamento maior ou menor, com ou sem filiação ideológica, é um destino de grandeza.
Talvez a obra florisvaldeana, por ser ainda pequena em extensão (o poeta reluta em abrir os seus escaninhos), avaramente cultivada e saciada, ainda não se tenha imposto com o impacto visual de um painel; mas nela, na sua vocação íntima para o canto largo e panorâmico, sente-se ab initio o impulso, o ímpeto, aquela arrancada que rasga horizontes.
Ao longo de dois livros principais, que são Fábula Civil e Reverdor (aos quais se juntam poemas esparsos e poemas novos para constituir o atual A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior), começamos a divisar as fases da sua lunar navegação. Em primeiro lugar, FM situa-se, reconhece o espaço em volta, atesta a sua identidade, confere os dados essenciais do seu estar-no-mundo. Predominam neste primeiro movimento de sua composição sincrônica os temas de infância:
 
À precipitação rural do amanhecer
rural retiro à flauta o som mais puro
de quem, já acostumado com o escuro,
absorto fica vendo o sol nascer.
 
Caprino olho tecido em bem-querer,
preexistente nas coisas que procuro
pastoreando sonhos: amargo ver
desencontrado olhar longe do muro.

Recolho pastoral envelhecida
ao som da flauta (pastoral da vida)
armado de silêncio e panorama.
 
Ela se perde verde no horizonte,
como ovelha de luz ou como fonte
onde lavo meu sonho. E se derrama.
 
(Soneto Rural)
 
Mattos plasmou a sensibilidade na zona rural e em pequenas cidades do Sul baiano — uma terra quase que encantada. Primeiro, por ser uma das raras regiões férteis do Nordeste, em que a cultura cacaueira, à sombra de resíduos da Mata Atlântica, encontrou guarida. Segundo, porque essa terra, conquistada, afinal, entre o derradeiro quartel do século passado e o início deste século que está a findar-se, originou mitos e lendas; povoada por estrangeiros de variada nacionalidade, disseminou e estabeleceu costumes — tudo isso contribuindo para dar aos escritores formados daquele barro e aviventados pelo sopro dos ventos um timbre peculiar, de epopeia e/ou tragédia, de sensualismo e também de monástico recolhimento.
Alguns sortilégios daquela terra foram antenados pelos sentidos aguçados de um poeta anterior a FIorisvaIdo Mattos, e com o qual, em Ilhéus, ele conviveu e ouviu falar de poesia: o belmontino Sosígenes Costa. Sua obra póstuma Iararana, anotada e editada por José Paulo Paes, ombreia-se a Cobra Norato, de Raul Bopp, e seria, provavelmente, um dos maiores, senão o maior documento poético do ciclo Pau-Brasil da Semana. Uma peça, em suma, de sustentação, caso Sosígenes Costa, um retraído, não lhe tivesse postergado a publicação. Se Cobra Norato exprime a brasilidade nativista da floresta amazônica, Iararana será o canto nativista máximo da floresta atlântica menor mas não menos espantosa.
Um criador assim emoldurado, sobretudo se um desses poetas, como é o caso de FM, capazes de logo pressentir, intuir e desentranhar o poema do estado por assim dizer genesíaco da poesia, nasce com um ouvido especial para as modulações, um imaginário de rédea solta e uma visão que somente irá apaziguar-se nas mais ousadas metáforas. Parecem vibrar em criadores de tal jaez aquelas vozes inaudíveis que os conclamam a cantos nerudianos pelo verso largo, impregnado de uma seiva nativista e percorrido pelo afã de vencer as limitações da ambiência regional. O microcosmo ressoa e alarga, pela metalinguagem, os significados dos temas, aos quais imprime dimensão supergeográfica, sobre-humana. A força do mito alimenta o halo dessa poesia encantatória.
Engajados implicitamente nesse insuspeitado projeto de grandeza, na poética tanto quanto na prosa, os criadores mais expressivos da Região Cacaueira (na poesia, Sosígenes Costa, Jorge Medauar, Florisvaldo Mattos, Ildásio Tavares) já não se satisfazem com o aspecto descritivo, ilusório, de uma realidade imediata; lançam os temas e com eles alongam e densificam o canto. A ressonância tenderá a ultrapassar os limites da individualidade. O canto de temática coletiva se distinguirá pela extraterritorialidade. Os cantos nutridos pelas imagens e emoções de infância se interiorizam para, igualmente transfigurados, adquirirem afinal aquela cristalização de prementes significados humanos.
O surrealismo há de regurgitar, assim, nas composições em que Florisvaldo se reflete, não de forma narcisística, senão com a consciência de uma identificação umbilical com a telúrica ambiência da sua emotividade.
 
Seguramente amo-te, ó chuva, quando
das altas serras sobre os vales baixa
tua segura astrologia de horóscopo e surpresa,
e uma saúde operosa de existência
cresce sob esta floresta de cercas e arames
Sob esta esperança frágil dos arbustos.
Em tua verde matéria de sonho elaborado
com amargura, com olhos e músculos fatigados
abre-se um caminho de experiência vespertina,
um diurno sabor de apodrecidas madeiras
sobre o solo. Um odor rústico de produção
e mantimentos. Abre-se como fruto repartido
entre lavradores, teu mecanismo de fartura,
teu humano suor de tendência preciosa.
 
(Os Elementos e a Chuva)
 
Decerto — e o fragmento do poema acima bem o atesta — seria exagero falar-se numa "escola de Sosígenes". No entanto, há no esforço de recriação ou transfiguração poética de FM um traço melódico, sensorial, de possível ressonância sosigeneana. Um pendor para o requinte verbal, para o colorido, para um luxo orientalista de imagens e metáforas que se precipitam como búfalos de fogo.
Sabemos que FM teve o privilégio de ouvir Sosígenes Costa, algumas vezes, na Associação Comercial de Ilhéus, onde o poeta dos crepúsculos e das vibrantes tonalidades de amarelo havia instalado a sua tebaida. E sabemos também que, ao se transferir para Salvador e iniciar-se nas letras, FM o fez animado pelo poeta a quem admirava e a cujo ideário estético-temático não teria permanecido indiferent.e. Sem a intenção de estabelecer um fio mestre-discípulo, mesmo porque a artesania florisvaldeana é menos pictórica, menos exótica e menos folclórica, apesar da grapiunidade dos primeiros versos, ousaríamos dizer que os dois poetas do Sul baiano, em linha informal de sucessão, foram poetas de um deslumbramento verbal mais bizantino do que grego — na medida em que a arte bizantina, já espelhando a "decadência" dos temas e dos heróis, recobre de paramentos artísticos as imperfeições e precariedades dos homens e da vida. E o caso de Kaváfis, aliás outra das prováveis âncoras de FM.
Já na sua primeira fase FM surpreende pela mudança de timbre e largueza de vistas. Data dessa época uma de suas realizações mais compósitas, os poemas ferroviários em que ele acompanha, com a lucidez do adulto e o coração de menino, o trem de-ferro Ilhéus-Conquista, que não passaria de Ubaitaba e foi desativado na década de 60. Mas FM, nos arquivos de sua lembrança há de ter privilegiado os apitos do trem, as chegadas e partidas, as estações, a paisagem a desfilar pelas janelas, o movimento de passageiros e cargas, os doces e frutas apregoados por meninos e mulheres negras.
 
Noturnos vagões carregados de amargura
de empilhados produtos e origens,
correi sobre horizontes dos dias !
Composição de espanto corrosivo
acerca-se de mim, vai penetrando
com violência em meus olhos. Vence-me
a carne e os nervos, minha voz,
meu desesperado sangue e cansaço, como
fantasma criminoso que, alta noite,
entrasse em minha casa fortemente
nutrido de perigos e desastres.
 
(Apogeu dos Vagões)
 
Imagem forte, essa do trem. Uma lembrança vívida que mais se incorpora com a passagem do tempo e a ânsia de reflexão. O canto se torna então imperioso, porque em poetas desse jaez, que se deixam arrebatar pela emoção, o sentimento assume a dianteira das tecnicalidades, tem expressão própria:

 
            O trem
verde e vermelho como a vida
mas pode-se agregar ocre e amarelo
se é de homens e coisas que se fala
 
           O trem
ânsias de infância
arrimo de velhice
 
          O trem
rebanho de acenos
rama flamejante
 
         O trem
ágil pesadelos viação da aurora
 
(Ferroviaura)
 
O trem de Água Preta apita nas estradas mentais do poeta, em todos os caminhos e jornadas até hoje intelectualmente percorridos. A emoção se transfigura para reforçar o testemunho:
 
O maquinista da 15 era Paizinho
só ele percebe o que lhe dizem toros
estalando como ossos na fornalha.
Paiva ia na 12 engolindo rampas.
A 13 parecia o Cabeçorra
sacolejando-se em Banco do Pedro
 
(Idem)

Sim, o trem era mais um monstro da mitologia cacaueira. Escoador de riquezas, decerto, e também instrumento de submissão, máquina lírica, sonho de conquistas que embalavam o anseio de lonjuras, a corveia dos camponeses e a cornucópia dos fazendeiros que, em Ilhéus, descarregavam o seu cacau. O maquinista Adriano Lopes Moura, de mais saudoso apito, ficou. Mais que um nome - um símbolo ulisseano de audaz navegador por entre os bosques dos cacauais.
Da ambiência cacaueira, de que o trem-de-ferro há de representar uma ascensão e queda da grandeza material, Florisvaldo Mattos passa a outro de seus cantos gerais: a figura de Garcia D'Ávila, metade história, metade lenda, é revivida num longo poema, o louvor a um barão assinalado que desbravou e povoou o sertão da Bahia, ávido de ouro, feitos e fama. Canto majestoso e largo, em estrofes que seriam camoneanas caso estruturadas no modelo da oitava rima — mas sobremodo um canto moderno, de teor surrealista, em que vigília e onirismo se justapõem, envolvidos na intemporal neblina das épocas.
 
Há poentes: aves renascentes
armaduras cintilam aço e escamas.
Outono muge de ermos reluzente.
Abril (diurno algoz) que somos nós?
 
Sob desfraldados relhos dorsos tesos.
Metais fuzilam. Descem das narinas
herança e gelo de armas latifúndio
raízes da memória, rastros velhos
presença de chão rútilo/meus sóis
sóis ultramarinos. Aéreos potros puxam
meus avós: galope surdo anterior.
 
(A Domação das Pedras)
 
Garcia D'Ávila, conquistador, sonha como sonharam Espinosa, Navarro, Soares de Sousa, Raposo Tavares, Borba Gato, para não mencionar os grandes Cortez e Colombo. Como sonhou o próprio Orfeu, sonhado, ressonhado e entressonhado herói de um sonho nebuloso. O poema sobe à condição de canto primeiro da terra, de canto da descoberta e da feitoria. É brasílico como outros tantos, na medida em que FM recolhe uma tradição literária secular.

Rei, reino meu teço de chamas, reino
ausente de escrituras. Sesmarias
reúno, trituro búzios cor de níquel,
virgens de passo e voz, estranho aquário.
De boa mão consigo-os, laborando
coragem de improvadas lideranças. 
 
(Cinco Monólogos de Garcia D´Ávila)
 
Louva-se neste poema o sabor do destino e da aventura humanos, muitas vezes sobrepostos às precariedades do ser, às crueldades e gestos de grandeza. Imagens se atropelam na cavalgada desembestada dos versos, na sucessão vertiginosa de estrofes varadas pelas modulações internas, pela rima que não foi procurada e no entanto ressoa, pelas metáforas que fazem o verso tinir, relampaguear, estilhaçar-se nas lanças e couraças; um verso por vezes ondulado e nervoso, a estrondear nos cascos dos cavalos, a suar nas crinas eriçadas dos cavalos. O poeta jamais foi hermético a ponto de lhe pedirem a chave — aquela clef mallarméana. Os significados recônditos acabam esclarecidos pela cumplicidade de quem lê (ou de quem ouve), abertos um a um por um estado assemelhado de sensibilidade poética.
 
Meu tempo é medieval:
um barão doente vomita girassóis,
Os dentes velhos removem
a canção dos muros frios,
por onde deslizasse mão ossuda,
que, dos olhos nascida, florescera
em nave corrompida ou vãos tijolos.

(Idem)
 
Tendo a sua metalinguagem, o poeta tem a sua metafísica, o poema será nela um compromisso de ajuste entre a forma da obra, o artefato, e o seu teor. Florisvaldo somente mudará de tom, tornando-se menos conceptual e mais factual, isto é, abrindo os arcanos, em certas peças de nítida poesia engajada que caracterizam Fábula Civil — aliás, o seu primeiro livro publicado. E no entanto, os temas propostos pela guerra mundial, pela ameaça nuclear, pela destruição de cidades e civilizações amadas, ainda que brandidos como bandeiras de campanha, não chegam a assumir in totum aquele engajamento da literatura participante.
Mesmo sensibilizado pelos temas de época, e portanto circunstanciais no seu mapeamento poético pessoal, temas que lhe despertam a indignação e o inclinam a uma atitude comicial, o poeta mantém o pulso, sofreia o ímpeto da denúncia — justamente porque, em favor do desempenho artesanal e pensamental do poema, não quer ficar preso à denúncia pura e simples. A denúncia serve-lhe de meio. E fácil verificar em FM uma tendência a conjugar-se sem perda da identidade lírica básica, sem o risco de uma possível renúncia à individualidade.
Assim contido, assim comprometido com o poema que se exprime mas não aliena as artes da sua secreta artesania, FM se enquadra então naquela estreita faixa entre o indivíduo e a massa, entre o ser e o cidadão, o solitário combatente e o poeta alistado na brigada internacional pela liberdade.
No poema "Claro", ele dirá que a liberdade é o seu nome e a razão, o sobrenome. E em outro, "A Edição Matutina", nós o vemos assumir responsabilidades novas, ditadas pelas circunstâncias de vida e de tempo:
 
Queremos uma pauta
um roteiro qualquer
Não o que leve ao esclarecimento
de todas as culpas
Não buscamos desvendar o impossível
Queremos uma pauta
um caminho (por exemplo)
 
Que comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga com a listagem para as horas de lazer
Que enumere os chopes de todos os botequins
Que reproduza todas as gargalhadas (...)
 
O exercício de cidadania praticado en état de toute lucidité leva o poeta, apesar da sua solidão essencial, a considerar-se solidário, comungante, irmanado. Os versos adquirem gestos e atitudes de uma fina nobreza de sentimentos, de uma solidariedade franciscana. Esta será outra de suas fases ou faces — a do "sentimento do mundo" a que se referiu Drummond de Andrade, aquele Drummond de A Rosa do Povo.

Não sou mais de outro tempo. Junto sobras
De musgo e limo com que a pedra se assume.
Serena, a dignidade da renúncia.
 
Com que júbilo vejo o peito hoje órfão
Das ilusões que a vida alimentavam.
A alma deseja apenas suportar.
 
Quero lavrar com águas e flores este adro,
Nele podar o espinho dos dilemas
E escrever no muro: "resista, sempre".
 
(Escritura em Pedra)
 
Florisvaldo Mattos, poeta baiano e grapiúna, aquele mesmo que, menino, ouvia e identificava o apito dos maquinistas, alista-se na Brigada Internacional da Poesia em socorro de Espanha. Ele marcha com Rafael Alberti, com Pablo Neruda, com os poetas espanhóis e de outras nacionalidades que sofreram pela Espanha e prestaram suas "homages to Catalonia" (recorro ao título do livro de George Orwell sobre sua participação na Guerra Civil Espanhola). De modo que, se alguém perguntar, em tom de censura, "dónde están los poetas andaluces?" (também poderia perguntar onde estão os poetas de Granada, da Bahia, do Chile e México, e de França), o grapiúna e baiano Florisvaldo Mattos responderá: presente.

De um certo cabedal de sonho e fé
trago lumes que são meu patrimônio.
De Lorca, de sua luzente aurora,
molhado ainda do orvalho de Visnar,
galos que bicam a casca do dia.
Lavor cigano, gestas andaluzes,
objetos de metal, carabineiros.
Filígranas que o murmurante Dauro
tece à sombra do Alhambra de ouro e púrpura
na surda manhã lavada de passos e balas.
(...)
Preso ao solipsismo de minhas ânsias,
a fronte em febre, coração aos baques,
vou direto à raiz do sofrimento.
Arqueólogo da insônia, a sós, percorro
bibliotecas e arquivos burocráticos.
Lá folheio compêndios, sigo mapas.
Sobre o sal do silêncio, em viva tinta,
relatos que de angústia são lembretes.
(...)
Paro e vejo (são cinco da tarde em ponto)
debruado pela sombra, baralhado
ao verde que recorta o Manzanares,
um partido de gente que escreveu,
em latinoamargo abecedário
e com a caligrafia do soluço,
a história que é de sonho e luta vã,
além do medo, além da compreensão.
 
(A Caligrafia do Soluço)
 
Esse seu apego à Espanha é mais fundo do que a temática que parece tê-lo inspirado. Vem de mais longe. Vem da extrema musicalidade do verso de um António Machado, de um García Lorca, em que, além do sentimento nativista ("no puedo viver fuera de los limites geográficos de España", afirmou Federico García), há o toque sensual em relação à mulher, aos frutos, ao vinho e à natureza. Brota igualmente da temporada espanhola, para estudos, que Florisvaldo passou em Madrid, Málaga, Santiago de Compostela, Toledo, Málaga, estendendo-a ao Marrocos, em jornadas que lhe acentuaram o antigo sentimento de hispanidad.
De todos os poetas espanhóis, do Siglo de Oro aos contemporâneos da Guerra Civil, FM identifica-se mais com os versos puros, quase bíblicos na sua singeleza fundamental, revestidos daquele amor que significa comunhão, desejo de purgar pecados, elevação da alma e, no reverso, carnalidade, sensorialismo e sensualismo. Lorca, como os poetas espanhóis em sua maior parte, adotou, como herança do barroco, a caligrafia lírico-trágica do soluço, oscilando então entre o pecado e a sublimação/sublimidade que, aliás, marca a poesia da maturidade de um ancestral lusobaiano-hispano de Florisvaldo Mattos, o irreverente moleque safado e lírico Gregório de Mattos e Guerra. O sensualismo/sensorialismo peninsular, de nascente ibérica, forjado na fogosidade dos árabes, exalta os sentidos, prolonga na boca o sabor do vinho capitoso, ama até mesmo a ideia do amor.
Essa escola de hedonistas firmou uma devoção aos prazeres das “nourritures terrestres". São os epicuristas que, fazendo poesia, não conseguem sonegar certos encantos especiais da vida. O vinho é um deles — e ao vinho, justamente, um dos companheiros de geração de FM, embora lhe fosse imediatamente anterior em idade, o poeta Godofredo Filho, dedicou sonetos notáveis. E para Godofredo, FM lapidou um poema saudoso, desses que se leem com um soluço atravessado.
As artes do viver baiano desses calejados trabalhadores intelectuais, mas epicuristas de espírito, fazem das suas poéticas e obras em prosa, tributários do Poema-Rio da aventura humana que se está escrevendo desde a Hélade, e que ao longo dos tempos engrossa as águas, e por ele somos arrebatados e levados a buscar o estuário de efêmeras glórias/inevitáveis frustrações/ beneditina resignação.
Poetas ou não, nós nos comprazemos em viver sobre os louros fanados das ilusões perdidas. E quem melhor que um bom poeta para exprimir esses estados de ânimo e delíquios de alma? Como bem entoou Florisvaldo Mattos,

Sucede que um dia o peito abre-se
mais aurora e flor mais sentimento
e resume em ser o que era ter
tanto melhor morte traz a sorte
de correr liberado noutros cantos.
 
Sucede que um dia renuncio
ao querer resoluto que apodrece
em lavra final de tempo e sal.
Assim despojado de sombrias asas
me levem que chegarei em breve.
(...)
Sucede que um dia me conheço
afinal. Sou todo companheiros.
Labirinto de chagas mas por onde
corre um raio farto de vontade
faço do amor aos outros meu caminho.
 
A poética florisvaldeana abre-se e fecha-se qual um leque. Em qual das duas pontas estará aquela Água Preta das tardes de agosto, onde "aves adotam poses de cegonha / sobre muros pintados de cinzento"? Há sempre um rio a lamber os carcomidos alicerces da infância. O grapiúna Florisvaldo, trazendo no peito um sufocante sentimento do mundo, cheio de cantares de amigo, debruça-se na ponte do rio da sua aldeia: "Olho o rio que sangra minha infância;/ Me despeço de mim - lá, do que fui, / do que somente fui, não mais serei".
 


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