segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O TREM GRAPIÚNA, conto de Ricardo Brugni Cruz

    Inauguração da Estação da Estrada de Ferro de Itabuna (1911)
 


O TREM GRAPIÚNA

(Para Florisvaldo Mattos)


 

Ricardo Brugni-Cruz

 

 

“Ainda vejo passar o maquinista,

o guarda-freios, lépido, o foguista,

a me acender a lenha da memória.

Elas contam um tanto desta história,

a que junta cacau com coronéis,

da passagem custando dois mil

Réis.”

 

                                                                     O Trem Grapiúna

Soneto de Florisvaldo Mattos

 

O poeta apontou para os trilhos carcomidos de salitre e ferrugem. Estavam há muito soterrados no solo ressecado, mal encobertos pela vegetação seca e rasteira. Adiante, ele disse: ruínas, foi o que sobrou da velha estação. Os trilhos jaziam como ossadas tortuosas, vestígios de outra época, ossadas antigas encravadas na memória do solo. Antigamente serviam à estação ferroviária de Ilhéus. Agora o que se vê são pedaços de ferro abandonados pelo descaso e incompetência — disse ele — vagas testemunhas de caminhos da velha maria fumaça, outrora levando em seu bojo viajantes e mercadores; apontam para o passado parecem gritar: aqui existiu a estação de trens de Ilhéus... O poeta continua: o trem grapiúna passava por Itabuna, Pirangy, Água Preta, Mutuns, Rio do Braço, Serra Verde, Santa Cruz, além de servir a outras cidades que desapareceram ou ganharam nomes novos, graças ao velho trem grapiúna... Margeava o Rio de Contas, na ida e de volta. Fazia parte da paisagem junto à mata densa, protetora dos cacauais. O povo fazia a festa, comemorava chegadas e partidas; velhas estações apodreceram, foram transformadas em catacumbas.

Lembrou-me ele dos vagões destinados a passageiros com seus bancos inteiros e desconfortáveis, dos vagões de carga destinados ao transporte de toneladas de sacas de cacau para serem despachadas do porto ilheense para o mundo, enriquecendo os coronéis fazendeiros, compradores e donos da armazenagem do cacau. Os despejados ou fugitivos da seca do nordeste, homens e mulheres de outras e distantes regiões. A eles era exigida a dura tarefa da colheita, a quebra dos frutos, retirada das sementes polpudas para secagem e finalmente o ensacamento dos grãos.   

            

Eu, Bruno, Dantas, Dori e Guga — além desses havia também uma garota, Irene, um pouco mais velha que Dori, dizia ter 16 anos enquanto nós outros estávamos na faixa dos 13, 14 e 15 anos. Sabíamos que a permanência do trem estacionado na estação, estava condenada a desaparecer. O trem partia daqui, da estação de Ilhéus, rumo às cidades vizinhas à Ilhéus e Itabuna, tendo como proteção densos trechos de Mata Atlântica, e de passagem era bafejado pelo ar salitroso vindo do Atlântico.

                 Cada vez menos, o trem ia e voltava para novamente repetir o ciclo de ir e vir, carregado com sacas de cacau empilhados nos vagões de carga. De algum tempo, seus vagões transitavam quase vazios; insistentes, passageiros carregavam suas bagagens: malas, caixotes, engradados nos quais agitavam-se galinhas, porcos, preás. Eventualmente alguma caça defumada viajava envolvida num saco: teiú, paca, veado, porco-do-mato... Durante a viagem era agradável ver-se a paisagem tranquila dos tamarineiros, cajueiros, cajazeiras, coroados por aves diversas a sombrear o cacaual. Saudavam a seu modo a passagem do trem, a soltar colunas de fumaça branca que do alto das copas das árvores talvez fosse possível, para os pássaros, enxergarem-na como se fossem nuvens sopradas por entre as engrenagens do trem, para logo dispersarem-se e se desfazerem no ar, como algodão-doce na boca de uma criança.    

              Foi Irene quem, certa manhã, nos contou que iam mesmo acabar com a estrada de ferro. Nenhuma novidade, já estávamos acostumados a assistir a estação ser desmontada. O trem teria o mesmo destino. Mais dia, menos dia, acabariam com ele também. Aquela garota era filha da cafetina e fazendeira conhecida como Dona Candu. A mãe possuía uma pensão que servia aos viajantes de passagem pela região, como a alguns moradores de Ilhéus. Acolhia viajantes das cidades próximas e também acolhia os que vinham de cidades mais distantes. Além desses, havia os gringos que perambulavam com seus baús de mercadorias. Viviam a bater de porta em porta na busca por compradores. Entre eles, alguns eram representantes de firmas de perfumaria, artigos para barbearias e salões de beleza, lojas e armazéns, além de diversos outros artigos considerados de luxo, para o uso diário de homens e mulheres. Mercavam ferragens de diversas utilidades para fazendas, e também muitos tipos armas de fogo de diversos calibres e munições, para atender a todo tipo de caçadores.  A pensão de Dona Candu, além do mais, servia de hospedagem para jovens prostitutas desembarcadas na região, que atendiam aos fazendeiros e comerciantes endinheirados, onde eles as supunham escondidas (bem como seus encontros), das fofocas das cidades. Não faltavam mulheres jovens para satisfazer os apetites sexuais daquela gente.

              De maneira que Irene, além de ser, para nós, importante mensageira do que se passava na pensão de Dona Candu, era ao mesmo tempo uma espécie de instrutora de atividades sexuais para nossa turminha, já conhecida como “a turminha da estação” ou, “moleques da estação”.  Não éramos nada bem vistos pelas famílias que moravam nas cercanias da velha estação. Tampouco pelas famílias ditas de bons costumes de Ilhéus. Não dávamos oportunidade a outros garotos das vizinhanças que tentavam, vez em quando, invadir aquele espaço que havíamos conquistado. Éramos bons de porrada para garantir a posse do “nosso território”, exceto quando nos interessava a entrada deles para uma partida de futebol, mas nem sempre, com permissão e tudo, as coisas não terminavam bem. Babas costumam gerar ressentimentos, não podia ser diferente devido a nossa permanente ocupação do território, discutíamos, brigávamos, então entrávamos em guerra contra nossos “inimigos.” Nas batalhas usávamos, fartamente, bolotas de mamona como munição facilmente colhidas nas moitas da planta mãe, encontradas por todos os lados, dentro e fora do terreno da estação. Aquelas bolotas esféricas e peludas eram disparadas por bodoques, nossas armas. Bodoques eram a única que usávamos, de ambos lados. Irene era a melhor atiradora, sua mira era perfeita, não perdia uma bala, “a arma” sempre apontada para a coxa do inimigo, ali doía mais dizia ela. Essa era a minha Irene.               

                      Nossa ou minha (minha Irene), ela nunca foi, mas, apesar da vigilância e dos ciúmes esboçados por Dori, ela mesma se excedia em atenções para comigo. Ele também manifestava seus ciúmes para com ela, mas esbarrava na altivez de uma mulher dona de si. Sabíamos por ela própria que o pai abusara dela vezes sem conta, desde pequena. Contou-me, a mim e a Dori, que tinha uma irmã, Dora. Garota ainda, sofrera dos mesmos abusos. Como se não bastasse Dora era oferecida aos hóspedes da pensão em troca de dinheiro. Um belo dia Dora fugiu de casa em companhia de um viajante vendedor de produtos odontológicos, sendo por ele abandonada em Jequié, onde a jovem se entregou à prostituição. Daí nunca mais souberam dela. O pai foi assassinado em uma feira de curtume por um cigano de quem era devedor de algum dinheiro. A mãe encarregou-se de Irene, mas fingindo-se cega para o que se passava, continuou estimulando a filha a vender favores sexuais para os hóspedes que considerasse ilustres. Houve algumas tentativas frouxas da mãe para que ela frequentasse a escola, mas as tentativas fracassaram por ser a garota quem todos sabiam quem era (e quem era sua mãe). Com pouca escolaridade e por esforço próprio, Irene aprendeu a ler e escrever com alguma dificuldade, como demonstrava. O assunto (escandaloso) da pensão era de domínio público, não havia como mãe e filha se livrarem da má fama, sobretudo cultivada por senhoras da sociedade local, em geral religiosas e puritanas, que se consideravam guardiãs “da moral, e bons costumes”, dos filhos das famílias grapiúnas.

               — Na pensão — disse-nos Irene —, os homens não cansam de falar que os políticos vão mesmo acabar com a estrada de ferro. Não vai demorar, só esperam o asfalto da estrada de Itabuna para Ilhéus ficar pronto; o cacau passará a ser transportado por caminhões, e ônibus vão servir ao povo. Quem for rico terá de viajar dirigindo o próprio carro.

              Essa conversa não era mais segredo para ninguém. Só não se entendia por que a necessidade de serem usados caminhões em vez de se continuar com a estrada de ferro... O trem é o transporte mais limpo e eficiente do mundo, além de ser o mais barato, como todo mundo estava cansado de saber. Pelo Recôncavo Baiano transitam até hoje sobre trilhos, na mesma pista usada por automóveis, ônibus e caminhões. Cruzam-se diariamente nas pontes, ruas e praças, e cada um segue seu destino e pronto. O trem grapiúna há anos faz parte da paisagem, indo para além da região cacaueira. Sua passagem sempre despertou desejos e fantasias, como se pretendesse lembrar a todos os que existiam e contemplavam sua passagem, que todos eram igualmente passageiros de uma mesma viagem.

               Ninguém falava, embora todos soubessem que os ricos odiavam a massa trabalhadora, pobres coitados que para os endinheirados nenhuma diferença faria se andassem de carroça, a pé, ou fossem extintos. Melhor que desaparecessem com a velha estrada de ferro e seus vagões inúteis (assim julgavam), pois nem para transportar cacau serviam mais. Aquela gente grapiúna se sentiria mais confortável se modernos meios de transportes de passageiros viessem para a região e fossem acessíveis para servir a todos. Navios, sim, por que não?... Os velhos e antigos navios da Costeira precisavam ser aposentados. O mar era para todos, um novo porto estava para ser inaugurado. Os ricos daquela época pensavam em carros importados, carrões americanos de preferência, luxuosos, reluzentes, a bordo deles poderiam desfilar pelas novas estradas asfaltadas, pelas ruas e praças das cidades do interior (mas não para Ilhéus, já com ares de Capital!). Então, tivemos que agir, não dava para esperar mais, aquele era o momento:

                   Manhãzinha após escondermos entre arbustos, moitas e folhagens da mata adjacente as nossas bicicletas, vimos que nossa amiga Irene já nos aguardava, ansiosa. Estava acompanhada por Guga, garoto que de vez em quando dava as caras e era muito metido. Não gostávamos dele por ser riquinho e espalhafatoso, metido a engraçado, sempre de olhos e ouvidos abertos para tudo que fazíamos e dizíamos. Irene andava irritada, nervosa: “Minha mãe me obriga ficar com o atual dela, um gringo espanhol gorducho e fedendo a alho, ele vive me bolinando, passando a mão nos meus peitos... na minha bunda, dá vontade de vomitar, de matá-lo... Hora dessas boto fogo naquela pensão... e desapareço, como fez minha irmã!”, ameaçava.

                 Dori e Irene buscavam o matagal em frente do que ainda era o terreno da estação. Escondiam-se de olhares intrusos. Agiam como um casal e não devíamos perturbá-los. Fazíamos silêncio, vários olhares pregados na mata, eram momentos angustiosos para mim que ficava a imaginá-los em cenas de sexo. Passava o resto da manhã irritado, brigava por qualquer motivo que me tirasse do sério. Ninguém poia falar alto, dar risadas ou o que fosse... Quando os dois afinal retornavam ao nosso convívio, tudo voltava ao normal, eu disfarçava o sentimento que me corroía por dentro. Da última vez minha irritação foi ainda maior porque o administrador da “estação” estudava cercar a área, o que significava acabar com nossos encontros, jogos e brincadeiras, interditar “nosso espaço”, em definitivo. Já circulava a notícia, inclusive nos jornais de Itabuna e no de Ilhéus que o trem Grapiúna estava com os dias contados, logo faria sua última viagem. Como ambos jornais, tanto o de Ilhéus como o de Itabuna, noticiavam. Foi a conta. Para nós era o bastante! Então brotou a ideia de vingança. Não demorou muito, sabíamos como e o que deveríamos fazer. No dia seguinte da partida do trem (seria aquela a última?), nós o faríamos descarrilar, a velha maria fumaça não passaria da ponte da Barra de Itaípe! Com nossas bicicletas carregamos mais que o necessário para a descarrilharmos: pedras, galhos de árvores, pedaços de ferro velho, palmeiras dos coqueiros endurecidas pelas marés, curtidas e endurecidas pelo sol, e o que mais encontrássemos com cara de ser capaz de descarrilhar um trem!

                  Uns dois dias depois da nossa decisão, só aguardamos o anoitecer após a partida do trem e todo material que recolhemos espalhamos estrategicamente sobre os trilhos, antes da ponte da Barra de Itaípe. Assim fizemos. Que se fodessem, trem e maquinista, foguista e passageiros e quem mais nele tivesse embarcado naquela última viagem. O trem voltaria à estação pelo meio da manhã do dia seguinte. Então saberíamos.

                 Tudo feito como de acordo, contritos, voltamos, cada um para sua casa; juramos por todos os santos e bradamos: piripicado, rebocado e amaldiçoado para sempre quem abrisse a boca e nos delatasse. Como poderia haver vítimas fatais, exigimos segredo entre nós. Aquele era um pacto sagrado, portanto: piripicado o filho (ou filha) da puta que vazasse o que passou a ser nosso segredo, estava vaticinado nas entrelinhas do nosso dito que algo de muito ruim aconteceria para quem quebrasse o juramento...  Aquele aviso era para ser levado a sério!

                No fundo não esperávamos, eu particularmente não esperava, nem desejava sequer a possibilidade de que um de nós fosse apontado como suspeito pela tragédia. Seria o mesmo que denunciar a todos nós. E se alguém resolvesse dar com a língua nos dentes? O medo, a culpa, tomaram conta de mim: e se alguém morresse? E se fossemos denunciados? Torcia para que não houvesse passageiros naquela viagem... E se houvesse? Pequenos ferimentos era possível acontecer: gente ferida... era possível, mas mortes?... morrer alguém, o maquinista?... Era demais...  E o desgosto que eu causaria aos meus pais? Haveria investigação e seríamos descobertos. Não consegui dormir, passei a noite de olhos abertos, o corpo tenso voltado para a parede... Acordado, tive pesadelos e pensamentos com desastres de trens... Somente comentei com Dori, antes de ir para casa, toda minha angústia. Acho que nem o impressionei. Ele estava muito seguro e consciente de que “todos agimos como homens valentes. Era o que deveria e ser feito e fizemos!” “E Irene?... E Guga? Acha que vão segurar a língua?...” Perguntei. Dori deu de ombros.

                  Manhãzinha, pulei da cama e parti com minha bicicleta. Passei a madrugada de olhos abertos e orelhas em . Dava para ouvir do meu quarto o apitar do trem. Ouvi   com nitidez a frenagem súbita, tinidos de metais se entrechocando... Gritos abafados de pedidos de socorro... Desesperei com o reverberar de sons angustiantes dentro do meu peito, sons que subiam para explodir dentro da minha cabeça... Segui à toda, pedalando, pedalando, o coração disparado, ofegava... Entorpecido, enfim, o vi intacto, estava lá, estacionado, todos os vagões inteiros. Cinco ou seis. Nuvens brancas de fumaça eram expiradas de sob suas rodas a intervalos, chiavam como suspiros de alívio que vieram se confundir com os meus. Vozerio indistinto partiam da cabine da locomotiva, tudo parecia controlado, homens conversavam, não pareciam angustiados. O maquinista pressentira o perigo, conseguiu frear a locomotiva diante do amontoado de galhos, ferros, pedras; destroçados, havia restos das palhas de coqueiro endurecidas...

                 — Só pode ser obra desses índios pataxó, só pode...

                   De onde estava ouvi um dos homens dizer e todos concordaram que sim. Era o que deveria ser feito, providências contra eles. Imaginei-os armados com carabinas e revólveres prontos para darem cabo da última nação pataxó.  Afastei-me da estação e percebi que daquela manhã em diante seria proibida nossa presença e encontros naquele espaço aberto da estação — foi como tudo aconteceu.

                 Na manhã seguinte toda a área passou a ser muito vigiada e logo foi cercada com estacas de concreto perpassadas por arame farpado. Talvez os últimos viajantes da nossa maria-fumaça tenham se prestado a ajudar na remoção do que havíamos espalhado por entre e sobre os trilhos. Por via das dúvidas, deixamos de comparecer para nossos encontros no espaçoso terreno da estação; logo todo o espaço foi tomado por novos ocupantes. Homens armados com cassetetes, passaram a ser vistos onde antes o espaço era nosso. A amizade com Dori continuou por muito tempo. Nunca mais eu soube de Irene. Nem perguntei a ele por ela.

                  Aquele espaço antes gramado, que primeiro foi cercado, depois murado, em seguida pavimentado com concreto, e sobre o concreto, enfim, foi instalado um memorial: uma locomotiva sucateada, que operários mantinham bem conservada, talvez a mesma que antes trafegara livre sobre os trilhos que pisávamos agora. Os mesmos sobre os quais a locomotiva conduzira seus vários vagões neles transportando passageiros, mercadorias, mercadores e toneladas de cacau, os mesmos agora soterrados, inertes e soterrados para sempre, enquanto a locomotiva reluz brilhante e estática como um mausoléu de aço. No trem grapiúna funcionara uma pequena lanchonete. No atual “mausoléu”, como eu soube, fora instalada uma lanchonete para a criançada que, acompanhada por familiares comparecia (e talvez até hoje ainda compareça) durante os fins de semana, para se divertir na estaçãozinha, como passou a ser chamada.  Trepadas nela por todos os lados, as crianças abraçam-na, balançam-se, escorregam por seus metais polidos, e uma ou outra, tomando posição como condutor da maria fumaça, dá ordens e exige que se comportem. Mas elas brincam, não lhe dão atenção enquanto suas companheiras fingem-se maquinistas, foguistas e passageiros.  

 

Bahia, setembro, 2024.

   Estação da Estrada de Ferro de Ilhéus, força da história do cacau


COMENTÁRIO E SUGESTÕES DE FM

(Em 17.10.2024)

 

Boa-tarde, caro Ricardo, romancista e contista.

Como lhe disse, li e muito me agradou a leitura de seu expressivo conto "O Trem Grapiúna", não apenas como um belo salto imaginativo, mas especialmente pele que revela e contém de criatividade literária e de redação ficcional, tendo como eixo temático a saudosa Estrada de Ferro de Ilhéus, que a mão maldita de um cascalhoso general então ministro dos Transportes, da ditadura, Juarez Távora, extinguiu com um árido decreto, em 1965, esquecendo tudo que ela forneceu em favor do desenvolvimento econômico e cultural, da região cacaueira, permitindo inclusive o surgimento de arraiais, vilas e cidades. 

Pois é, seu precioso conto tem sua fabulação justamente na remontagem evocativa de rica vivência juvenil nos arredores da então estação desta gloriosa ferrovia, na cidade de Ilhéus, que em tempos remotos era chamada de Princesinha do Cacau. No núcleo de seu conteúdo construtivo e editorial, seu conto oferece um panorama e um retrato do que foi este grandioso meio de locomoção, em linguagem precisa de contornos de prosa realista e comovedoras, emoldurando um triste quadro de um sonho marcha fatal para a infelicidade, tudo revelado pela pureza juvenil dos personagens.

Como não sou crítico literário, nem possuo conhecimentos teóricos para avaliação de algum peso sobre esta sua bela criação ficcional, dentro de um mapa criativo, pelo qual transitaram grandes nomes da literatura nacional (Jorge Amado, Adonias Filho, Hélio Pólvora e uns poucos mais), fico por aqui, para lhe fazer as anunciadas duas sugestões de momento, embevecido com o que a leitura desse conto de mim se apossou.  Em princípio, deixo a seu pessoal e competente critério a viabilidade do que proponho.

Em primeiro lugar, sugiro que se ofereça este precioso conteúdo à diretoria da Revista da Academia da Letras da Bahia, para integrar o elenco de publicações, constantes da separatriz intitulada FICÇÕES, do seu próximo número 63, já que o 62, de 2024 já se encontra em fins de sua programação. Como vê, é uma sugestão, ficando a decisão de importância e oportunidade totalmente com o seu autor.

A outra é mais uma afoiteza de rastro juvenil. Não sei se o amigo sabe, mas possuo um blog, no qual me aventuro a postar conteúdos, como a recordar os meus tempos de editor do caderno A Tarde Cultural, que também infelizmente já não mais existe, num estado em que a cultura é apenas um amontoado de ilusões levadas pelo vento. Pois bem, a proposta que ouso lhe fazer é ter a honra de incluir esta sua breve peça literária numa dessas minhas audácias, justamente a que resolvi produzir, a partir da novela RENASCER, nos seus inícios, em que demonstrava tomar o cacau e a tragédia que lhe causou a praga da vassoura-de-bruxa. Com todas as suas frustrações e pobre imaginação teatral, a novela foi-se para o beleléu, mas esta minha ousadia editorial e jornalística permanece acessível a quem interessado for.

O que afoitamente pretendo? Justamente, incluir este seu belo conteúdo literário, na parte cuja ilustração é uma antiga foto da estação da estrada de ferro de Ilhéus. Para lhe dar total liberdade de pensar e agir, envio-lhe abaixo o link desta aventura, praticamente em forma de construção editorial. Com isso, retorno aos de infância, adolescência e mocidade, quando muito transitei por esta saudosa ferrovia, desde Uruçuca, Itabuna e Ilhéus, ida e volta. Veja abaixo o citado link.

Muito obrigado.

Receba o meu fraternal abraço grapiúna, com votos de feliz e alegre fim de semana.

Florisvaldo

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                     Maria Fumaça, pintura do baiano Almiro Borges

terça-feira, 29 de outubro de 2024

A "ILÍADA" E A "ODISSEIA", DE HOMERO - RESUMO

    Cavalo de Troia, marco histórico, da Ilíada, de Homero 
 

(Análises das duas epopeias, em resumo informativo)


A "ILÍADA", DE HOMERO

Oliver Harden

A Ilíada, atribuída ao poeta grego Homero, é uma das obras fundadoras da literatura ocidental e uma das mais complexas expressões da condição humana em sua luta entre o heroísmo e a mortalidade. Escrita por volta do século VIII a.C., a epopeia narra um episódio da Guerra de Troia e concentra-se nos eventos que se desenrolam durante o conflito, explorando temas como a honra, a glória, a ira e a transitoriedade da vida. Ao longo de seus 24 cantos, Homero compõe um retrato épico, filosófico e profundamente humano dos valores e das contradições da cultura grega arcaica, cujas implicações continuam a ecoar na reflexão contemporânea.

A Ira de Aquiles: O Centro da Narrativa

A narrativa de A Ilíada começa in medias res, focalizando a “ira” (mênis) de Aquiles, o maior dos heróis gregos. A palavra “ira” é significativa, pois remete ao furor quase divino de Aquiles contra Agamenon, o comandante grego que o desonra ao tomar Briseida, sua concubina. A ira de Aquiles é um sentimento que transcende o orgulho pessoal e adentra a esfera do cósmico: sua cólera é vista como um aspecto de sua própria relação com o destino e com os deuses, que, por sua vez, manipulam os eventos de acordo com caprichos próprios. Homero apresenta, assim, a noção de honra como um valor central para o homem grego, mas também a fragilidade desse valor, que, por estar ligado à glória e à fama, é sempre vulnerável à transitoriedade e à intervenção divina.
A ira de Aquiles é, em última análise, o que move a trama e define o desfecho dos principais eventos. Sua recusa em lutar após a ofensa de Agamenon é o ponto de partida para uma sequência de desastres, tanto para os gregos quanto para os troianos, destacando a interdependência dos personagens em uma guerra de grandes proporções. A complexidade de Aquiles reside na dualidade de seu caráter: ele é simultaneamente o mais humano e o mais divino dos guerreiros. Através de sua figura, Homero explora a tensão entre a imortalidade desejada (a kleos, ou glória eterna) e a mortalidade inevitável, revelando a tragédia intrínseca da condição humana.

A Glória e a Mortalidade: Temas Centrais

Um dos temas mais marcantes de A Ilíada é a busca incessante pela glória (kleos) e a aceitação da mortalidade. Para os heróis gregos, a glória é uma forma de eternidade; ao morrer com honra, eles transcendem a morte e permanecem vivos na memória coletiva. No entanto, a glória é efêmera, pois depende do reconhecimento dos outros e da posteridade, e é essa efemeridade que torna a busca pelo kleos tão trágica e ao mesmo tempo tão nobre. Aquiles, por exemplo, sabe que, ao escolher retornar à guerra após a morte de Pátroclo, está sacrificando a própria vida, mas, ao mesmo tempo, conquistando sua imortalidade simbólica.
Além de Aquiles, o personagem de Heitor, o principal herói troiano, também incorpora essa tensão entre a glória e a mortalidade. Diferente de Aquiles, Heitor é movido por um senso de dever para com sua cidade e sua família, o que o torna um herói mais humano e próximo do leitor. A decisão de Heitor de enfrentar Aquiles, mesmo sabendo que sua morte é inevitável, exemplifica a coragem trágica e a aceitação da própria finitude. Homero, portanto, utiliza essas figuras contrastantes para explorar as várias dimensões da honra, do dever e da mortalidade.

A Intervenção dos Deuses e o Destino

Outro elemento essencial em A Ilíada é a participação ativa dos deuses nas vidas humanas, o que reflete a visão grega arcaica de um cosmos em que a vontade divina e o destino se entrelaçam de maneira inexorável. Os deuses, em A Ilíada, não são entidades moralmente superiores; ao contrário, eles se comportam de forma caprichosa e, muitas vezes, arbitrária. Zeus, Atena, Afrodite, Apolo e outros deuses intervêm no conflito, escolhendo lados, favorecendo heróis e influenciando batalhas. Esse aspecto torna a narrativa complexa e ambígua, pois mostra que os heróis, apesar de sua bravura, estão sempre sujeitos a forças maiores que transcendem a compreensão humana.
A relação entre destino e livre-arbítrio também é intricada. Aquiles, Heitor e outros heróis parecem ter consciência de seu destino, mas ainda assim agem como se fossem livres, e é justamente essa contradição que torna suas decisões trágicas e ao mesmo tempo grandiosas. A intervenção dos deuses sublinha a impotência dos homens diante das forças cósmicas, mas não diminui o valor de suas escolhas; pelo contrário, os torna ainda mais heróicos, pois, apesar de saberem que o destino lhes é implacável, continuam a agir com coragem e determinação.

A Poesia e o Estilo de Homero

Homero utiliza uma linguagem poética rica em imagens, epítetos e comparações que conferem a A Ilíada uma qualidade visual e sonora extraordinária. As cenas de batalha são descritas com detalhes vívidos, que transmitem tanto a brutalidade quanto a beleza terrível da guerra. Ao utilizar epítetos formulares, como “Aquiles, o de pés ligeiros” e “Heitor, o domador de cavalos”, Homero cria uma linguagem cerimonial que eleva os personagens a uma dimensão quase mítica. Além disso, o uso de símiles épicas, onde cenas de batalha são comparadas a fenômenos naturais, como tempestades ou animais em luta, dá ao poema uma qualidade épica que realça a universalidade dos temas abordados.

A Relevância Contemporânea de A Ilíada

A grandeza de A Ilíada reside na capacidade de Homero de capturar a experiência humana em suas diversas nuances e contradições. Embora o contexto da obra seja o mundo arcaico grego, suas questões — a busca pela glória, o confronto com a mortalidade, a influência do destino e das forças superiores — são universais e atemporais. A figura de Aquiles, em sua complexidade, continua a fascinar leitores e estudiosos, pois representa o conflito entre o desejo de imortalidade e a aceitação da finitude.
A Ilíada não é apenas uma celebração do heroísmo, mas também uma crítica à violência e à destrutividade da guerra. Ao mostrar a dor das mulheres troianas, como Andrômaca e Hécuba, e a tristeza de Príamo, o pai de Heitor, Homero humaniza os troianos e desafia a visão simplista de um inimigo desumanizado. Em um mundo onde a guerra continua a ser uma realidade constante, A Ilíada serve como um lembrete da complexidade e da ambiguidade da natureza humana, desafiando-nos a refletir sobre o custo da honra e o valor da vida.

Conclusão

A Ilíada é uma obra que, através de sua linguagem sublime e de sua profundidade psicológica, permanece relevante e poderosa. Através de personagens como Aquiles, Heitor e os próprios deuses, Homero nos convida a refletir sobre os dilemas eternos da condição humana: a busca pela glória, a luta contra a mortalidade e a complexa interação entre livre-arbítrio e destino. O poema épico nos lembra que, apesar de nossa finitude, é na escolha de enfrentar o desconhecido com coragem e na busca de significado que reside a verdadeira essência do heroísmo. A Ilíada não é apenas um espelho de um passado remoto, mas um reflexo das questões fundamentais que nos acompanham até hoje.


Dragões atacam barco de Ulisses, no regresso da guerra de Troia


A “ODISSEIA”, DE HOMERO

Oliver Harden

“A Odisseia”, atribuída ao poeta grego Homero, é uma das obras literárias mais antigas e fundamentais da cultura ocidental, formada por uma sequência de aventuras que narram a longa jornada de retorno de Odisseu, ou Ulisses, após a Guerra de Troia. Escrita aproximadamente no século VIII a.C., A Odisseia é uma epopeia que vai além da aventura e do heroísmo, explorando temas profundos como a astúcia humana, a perseverança, o destino, a hospitalidade e o valor da casa e da família. Estruturada em 24 cantos, a narrativa de Homero reflete a visão de mundo da Grécia Arcaica, mas também aborda questões atemporais sobre a condição humana, o que a torna uma obra perene e de grande relevância cultural.
Odisseu: O Herói da Astúcia e da Perseverança
Diferentemente dos heróis tradicionais que destacam-se pela força física ou pelo desejo de glória em batalha, Odisseu é caracterizado pela sua inteligência e astúcia. Ele é o protótipo do herói “polytropos” — de muitos artifícios, multifacetado, capaz de adaptar-se a diferentes situações e superar obstáculos pela perspicácia. Essa característica é visível desde o famoso episódio do Cavalo de Troia, invenção engenhosa que culmina na vitória grega na Guerra de Troia, até as várias estratégias que ele emprega para escapar de situações ameaçadoras ao longo de sua jornada, como seu encontro com Polifemo, o ciclope.
Homero nos apresenta, assim, uma visão inovadora de heroísmo. Para Odisseu, o êxito não depende apenas de coragem ou força, mas de uma mente aguçada e da capacidade de enganar o inimigo. Esse modelo de herói astuto e engenhoso ressoa com o ethos grego, que valorizava a “metis” (sabedoria prática e inteligência estratégica) como qualidade essencial, especialmente em tempos de incerteza e adversidade. Odisseu é o herói que encarna a adaptabilidade e a perseverança, virtudes que permitem o sucesso em uma realidade imprevisível e hostil.

A Jornada e o Retorno: Simbolismo e Significado

A estrutura de A Odisseia é, em si mesma, um modelo simbólico da busca e do retorno, representando a jornada arquetípica do herói. Enquanto A Ilíada gira em torno da violência da guerra, A Odisseia se concentra na jornada de volta ao lar e na luta para restabelecer a ordem familiar e social. O conceito de “nostos” (retorno) é essencial, pois trata-se não apenas de voltar fisicamente para Ítaca, mas também de restabelecer a identidade de Odisseu, perdido e desgastado após anos de afastamento.
A jornada de Odisseu é uma metáfora para o ciclo da vida humana, uma peregrinação cheia de provações, onde cada obstáculo reflete uma luta interna ou um aspecto da condição humana. A ilha dos Lotófagos, por exemplo, simboliza o esquecimento e o perigo da complacência, enquanto o episódio com Circe representa o perigo da tentação e a necessidade de autodisciplina. Cada etapa na jornada de Odisseu é carregada de simbolismo e sugere uma lição moral ou psicológica, fazendo de A Odisseia não apenas uma narrativa de aventuras, mas uma meditação sobre o caráter humano e o processo de amadurecimento.

Os Deuses e o Destino

A presença dos deuses em A Odisseia é menos intensa e determinante do que em A Ilíada, mas ainda desempenha um papel fundamental na trama. Atena, a deusa da sabedoria, é a protetora de Odisseu, enquanto Poseidon, deus dos mares, é seu inimigo declarado. Essa dualidade entre proteção e perseguição divina simboliza a relação ambígua entre os homens e os deuses na visão grega. Os deuses não são onipotentes ou moralmente superiores; em vez disso, agem segundo interesses próprios, influenciando, mas não controlando completamente o destino humano.
A interação entre Odisseu e os deuses ressalta um dos temas centrais de A Odisseia: a coexistência do destino e do livre-arbítrio. Embora as ações dos deuses influenciem a jornada de Odisseu, ele é responsável por suas escolhas e, em última análise, pela realização de seu próprio destino. A obra sugere que, embora o destino possa traçar um rumo, cabe ao indivíduo o desafio de superar adversidades com coragem e inteligência. Essa dualidade é característica da literatura homérica e reflete uma visão sofisticada da relação entre o divino e o humano.

O Tema da Hospitalidade (Xenia)

Um tema recorrente em A Odisseia é a “xenia” ou hospitalidade, um valor essencial na Grécia Antiga. Ao longo de sua jornada, Odisseu e outros personagens enfrentam situações em que a hospitalidade é observada ou violada, e essas interações servem como indicadores de civilidade e caráter. A hospitalidade de Alcínoo, rei dos feácios, é um exemplo de “xenia” ideal, onde o anfitrião trata o estrangeiro com respeito e generosidade. Em contraste, o comportamento de Polifemo, que devora os companheiros de Odisseu, representa uma violação absoluta dessa norma, e é punido por isso.
A Odisseia explora a hospitalidade como uma forma de estabelecer e reforçar laços sociais. O conceito de “xenia” era uma obrigação tanto moral quanto religiosa, pois os gregos acreditavam que os deuses, em particular Zeus, protegiam os viajantes e estrangeiros. Assim, a obra não só enfatiza a importância da hospitalidade, mas também usa esse tema como um mecanismo para distinguir civilidade e barbárie, ordem e caos.

A Estrutura e a Técnica Narrativa

A estrutura de A Odisseia é notável por sua complexidade e uso de técnicas narrativas sofisticadas, especialmente considerando o período em que foi composta. A narrativa é não-linear, alternando entre o presente de Odisseu em sua jornada e relatos retrospectivos de suas aventuras, os quais são contados por ele mesmo, por outros personagens ou através de intervenções divinas. Essa técnica permite a Homero criar suspense e explorar múltiplas perspectivas, além de permitir que o leitor experimente a narrativa de forma fragmentada, como se fosse um mosaico de memórias e aventuras.
Outro aspecto técnico interessante é o uso de epítetos e símiles épicas, que dão ao poema um ritmo e uma dimensão quase mítica. Epítetos como “Odisseu, o astuto” ou “Atena, a de olhos glaucos” reforçam características essenciais dos personagens, enquanto as símiles (comparações épicas) conectam eventos extraordinários a cenas familiares da natureza ou da vida cotidiana, criando uma ponte entre o mundo humano e o heroico. Essa linguagem formulaica contribui para a atmosfera ritualística da epopeia, enquanto simultaneamente facilita a memorização e recitação do texto, algo essencial em uma tradição oral.

Relevância Contemporânea de A Odisseia

Embora seja um produto de seu tempo, A Odisseia continua a ressoar com leitores modernos devido à sua exploração de temas universais e atemporais. A jornada de Odisseu não é apenas uma aventura heroica, mas uma busca pela identidade e pela restauração da ordem pessoal e familiar. Em um mundo moderno que frequentemente valoriza a mudança e a mobilidade, A Odisseia oferece uma reflexão sobre a importância do lar, da família e da comunidade. Odisseu anseia por Ítaca, não por causa de uma busca de glória ou riqueza, mas porque deseja retornar ao que o define e completa.
Além disso, A Odisseia questiona o que significa ser herói. A epopeia sugere que o heroísmo não reside apenas na força ou na coragem, mas na capacidade de aprender, de adaptar-se e de resistir às provações da vida. Odisseu, com seu engenho e sua humanidade falível, representa o homem moderno em sua complexidade. Ele é tanto um explorador quanto um marido e pai que anseia por estabilidade.

Conclusão

A Odisseia é uma obra que transcende o tempo, oferecendo uma visão rica e multifacetada da experiência humana. Homero constrói uma epopeia que é, ao mesmo tempo, uma celebração da astúcia e da resiliência humana e uma reflexão sobre as limitações e as aspirações do homem. Com personagens complexos, temas filosóficos profundos e uma técnica narrativa sofisticada, A Odisseia permanece como um dos pilares da literatura ocidental. Ela não é apenas uma história de aventuras, mas um convite à meditação sobre o que significa ser humano, sobre a busca pela identidade e sobre o eterno desejo de retorno — seja ele físico, espiritual ou emocional.




segunda-feira, 21 de outubro de 2024

POETAS EXPRESSIONISTAS ALEMÃES

    Melancolia, arte do expressionista norueguês Edvard Munck


EXPRESSIONISMO ALEMÃO: 
     A EXALTAÇÃO DA POESIA

                                                       Por José Aloise Bahia 



DIEGO MARTINS DE PAULA 

SCHOPENHAUER E A POESIA EXPRESSIONISTA ALEMÃ

Orientadora: Profª. Drª. Karin Volobuef 
ARARAQUARA - SP 2010



GOTTFRIED BENN

A poesia envolvida nas contradições da Segunda Grande Guerra

SÍNTESE

Noite silenciosa. Casa silenciosa.
Mas sou a mais calma estrela,
Eu também produzo luz própria
Além dos limites de minha noite.

Cerebralmente, voltei para casa
De infernos, céus, lixo e gado
E também o que se concede à mulher
É obscura e doce masturbação.

Revolvo o mundo. Agonizo a presa.
E depois dispo-me na alegria:
Não há morte, nem pó malcheiroso
Que me leve, eu-conceito, de volta ao mundo.
.

SYNTHESE

Schweigende Nacht. Schweigendes Haus.
Ich aber bin der stillsten Sterne;
Ich treibe auch mein eigenes Licht
Noch in die eigne Nacht hinaus.

Ich bin gehirnlich heimgekehrt
Aus Höhlen, Himmeln, Dreck und Vieh
Auch was sich noch der Frau gewährt,
Ist dunkle süße Onanie.

Ich wälze Welt. Ich röchle Raub.
Und nächtens nackte ich im Glück:
Es ringt kein Tod, es stinkt kein Staub
Mich, Ich-begriff, zur Welt zurück.
– Gottfried Benn, em “Poesia expressionista alemã: uma antologia”. [organização e tradução de Claudia Cavalcanti]. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

TREM RÁPIDO

Marrom de conhaque. Marrom de folhagem. Marrom avermelhado. Amarelo malaio.
Trem rápido Berlim-Trelleborg e estâncias no mar Báltico.

Carne que ia nua:
Até a boca queimada do mar.
Maduramente mergulhada. Para a felicidade grega.
Em saudade-crescente: quão longe está o verão!
Já é o penúltimo dia do nono mês!

Restolho e última amêndoa são nossos desejos.
Ostentações, o sangue, as fadigas.
A proximidade das dálias entorpece.

Marrom-de-homem atira-se em marrom-de-mulher:

Uma mulher é algo para a noite.
E se foi bom, ainda para a próxima!
Ah! e então de novo aquele estar-consigo-próprio!
Esses mutismos! Esse ser-levado!
Uma mulher é algo com cheiro.
Indizível! Agonize! Resedá.
Para lá é Sul, pastor e mar.
Em cada declive se encosta uma sorte.

Marrom-claro-de-mulher cambaleia em marrom-escuro-de-homem:

Pare-me! ei, estou caindo!
Sinto a nuca tão cansada.
Ah, este febril doce
último cheiro dos jardins.

D-ZUG

Braun wie Kognak. Braun wie Laub. Rotbraun. Malaiengelb.
D-Zug Berlin – Trelleborg und die Ostseebäder.

Fleisch, das nackt ging.
Bis in den Mund gebräunt vom Meer.
Reif gesenkt. Zu griechischem Glück.
In Sichel-Sehnsucht: wie weit der Sommer ist!
Vorletzter Tag des neunten Monats schon!

Stoppel und letzte Mandel lechzt in uns.
Enthaltungen, das Blut, die Müdigkeiten,
Die Georginennähe macht uns wirr.

Männerbraun stürzt sich auf Frauenbraun:

Eine Frau ist etwas für eine Nacht.
Und wenn es schön war, noch für die nächste!
Und dann wieder dies Bei-sich-selbst-sein!
Diese Stummheiten. Dies Getriebenwerden!
Eine Frau ist etwas mit Geruch.
Unsäglisches. Stirb hin. Resede.
Darin ist Süden, Hirt und Meer.
An jedem Abhang lehnt ein Glück.

Frauenhellbraun taumelt an Männerdunkelbraun:

Halte mich! Du, ich falle!Ich bin im Nacken so müde.
O dieser fiebernde süße
Letzte Geruch aus den Gärten.

(1912)
– Gottfried Benn, em “Poesia expressionista alemã: uma antologia”. [organização e tradução de Claudia Cavalcanti]. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

A BELA JUVENTUDE

A boca da moça que longo tempo jazera em meio aos juncos estava toda roída.
Quando lhe abriram o peito, o esôfago era só buracos.
Acabaram achando numa arcada abaixo do diafragma
um ninho de ratos novos.
Uma das ratinhas morrera.
Seus irmãos viviam do fígado e dos rins;
bebiam sangue frio e tinham
passado ali uma bela juventude.
E bela e pronta foi também a morte deles:
jogaram-nos todos na água.
Ah, como os focinhozinhos guinchavam!

SCHOENE JUGEND

Der Mund eines Mädchens, das lange im Schilf gelegen hatte,
sah so angeknabbert aus.
Als man die Brust aufbrach, was die Speisröhre so löcherig.
Schliebflich in einer Laube unter dem Zwerchfell
fand man ein Nest von jungen Ratten.
Ein kleines Schwesterchen lag tot.
Die andern lebten von Leber und Niere,
tranken das kalte Blut und hatten
hier eine schöne Jugend verblebt.
Und schön und schnell kam auch ihr Tod:
Man warf sie allesant ins Wasser.
Ach, wue die kleinen Schnauzen quietschten!
– Gottfried Benn [tradução José Paulo Paes], em “Gaveta de tradutor”, de José Paulo Paes. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.

Homem e mulher passam pelo pavilhão de cancerosos

O homem:
A fila aqui são ventres podres
e aquela, peitos podres. Cama fede junto
a cama. As enfermeiras trocam de hora em hora.

Vem, ergue devagar esta coberta.
Olha: esta massa gorda com humores podres  

já foi querida outrora por um homem,
era seu êxtase e seu lar.

Vêm, olha as chagas neste peito. Notas
o rosário de nós pequenos, moles?
Apalpa. A carne é mole e nada sente.

Esta outra sangra como que de trinta corpos.
Ninguém tem tanto sangue.
Tiveram que cortar,
daquele ventre canceroso uma criança.

Que durmam. Dia e noite. — Diz-se aos    novos:
o sono aqui faz bem. — Mas aos domingos
deixam-nos acordar, para as visitas.

Comem um pouco. Suas costas cobrem-se
de chagas. Olha as moscas. A enfermeira,
às vezes, lava-os. Como se lavasse um banco.

A cova aqui já ronda cada cama.
A carne desce à lama. A chama some.
A seiva se derrama. A terra chama.

Mann und Frau gehn durch die Krebsbaracke

Der Mann:
Hier diese Reihe sind zerfallene Schöße
und diese Reihe ist zerfallene Brust.
Bett stinkt bei Bett. Die Schwestern wechseln stündlich.

Komm, hebe ruhig diese Decke auf.
Sieh, dieser Klumpen Fett und faule Säfte,
das war einst irgendeinem Mann groß
und hieß auch Rausch und Heimat.

Komm, sieh auf diese Narbe an der Brust.
Fühlst du den Rosenkranz von weichen Knoten?
Fühl ruhig hin. Das Fleisch ist weich und schmerzt nicht.

Hier diese blutet wie aus dreißig Leibern.
Kein Mensch hat soviel Blut.
Hier dieser schnitt man
erst noch ein Kind aus dem verkrebsten Schoß.

Man läßt sie schlafen. Tag und Nacht. – Den Neuen
sagt man: hier schläft man sich gesund. – Nur sonntags
für den Besuch läßt man sie etwas wacher.

Nahrung wird wenig noch verzehrt. Die Rücken
sind wund. Du siehst die Fliegen. Manchmal
wäscht sie die Schwester. Wie man Bänke wäscht.

Hier schwillt der Acker schon um jedes Bett.
Fleisch ebnet sich zu Land. Glut gibt sich fort,
Saft schickt sich an zu rinnen. Erde ruft.
– Gottfried Benn, em “Poesia alheia, 124 poemas traduzidos”. [tradução e organização Nelson Ascher]. Rio de Janeiro Imago, 1998.

CAMPO DE INFELIZES  

O Grito, de Edvard Munch, 1893

Farto da minha busca de ilhas, 
rebanhos mudos, verde morto,
quero ser margem, ser baía,
de belos barcos ser um porto.

A minha praia quer sentir-se
pisada a vivo com pés quentes;
queixa-se a fonte a oferecer-se,
quer refrescar sedes ardentes.

E tudo quer a sangue estranho
subir, ir afogar-se a esmo,
até um outro ardor de vida,
nada ficar quer em si mesmo.

GEFILDE DER UNSELIGEN

Satt bin ich meiner Inselsucht,
des toten Grüns, der stummen Herden;
ich will ein Ufer, eine Bucht,
ein Hafen schöner Schiffen werden.

Mein Strand will sich von Lebendem
mit warmen Fuß begangen fühlen;
die Quelle murrt in gebendem
Gelüste und will Kehlen kühlen.

Und alles will in fremdes Blut
aufsteigen und ertrunken treiben
in eines andern Lebensglut,
und nichts will in sich selber bleiben.
– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

PALAVRA, FRASE

Palavra, frase – E as cifras falam
a vida vivida, súbito sentido,
o sol estaca, as esferas calam,
tudo se concentra a ela volvido.

Palavra – um brilho, um voo, um fogo,
um jacto de chamas, de estrelas um traço –
em redor do mundo e de mim há logo
o escuro medonho no vazio espaço.

EIN WORT

Ein Wort, ein Satz -: aus Chiffren steigen
erkanntes Leben, jäher Sinn,
die Sonne steht, die Sphären schweigen,
und alles ballt sich zu ihm hin.

Ein Wort – ein Glanz, ein Flug, ein Feuer,
ein Flammenwurf, ein Sternenstrich –
und wieder Dunkel, ungeheuer,
im leeren Raum um Welt und Ich.
– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

PEQUENA SÉCIA

Estenderam sobre a mesa o corpo de um
distribuidor de cerveja que se afogou.
alguém lhe havia encaixado entre os dentes 

Edvard Munch, Ansiedade, 1894

Imagens

uma sécia , de um lilás escuro- claro.

Quando, com um longo escalpelo,
num corte subcutâneo,
a partir do peito,
arranquei a língua e o palato,
devo ter-lhe tocado,
pois resvalou para cima do cérebro
que se encontrava ali mesmo ao lado.
Então, quando o cosia,
coloquei-a na cavidade torácica,
entre as maravalhas.
Bebe até te fartares no teu vaso!
Descansa em paz,
pequena sécia!

KLEINE ASTER

Ein ersoffener Bierfahrer wurde auf den Tisch gestemmt.
Irgendeiner hatte ihm eine dunkelhellila Aster
zwischen die Zähne geklemmt.
Als ich von der Brust aus
unter der Haut
mit einem langen Messer
Zunge und Gaumen herausschnitt,
muß ich sie angestoßen haben, denn sie glitt
in das nebenliegende Gehirn.
Ich packte sie ihm in die Brusthöhle
zwischen die Holzwolle,
als man zunähte.
Trinke dich satt in deiner Vase!
Ruhe sanft,
kleine Aster!
– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

RÉQUIEM

Em cada mesa dois. Mulheres e homens entre-
cruzados. Sem tormento. E próximos e nus.
O peito esquartejado. O crânio aberto. O ventre
pela última vez agora a dar à luz.

Do cérebro aos testículos, cada um três malgas rentes.
E o templo de Deus e o estábulo infernal
agora peito a peito no chão da cuba, os dentes
a arreganhar prò Gólgota e a queda original.

O resto nos caixões. Tantos recém-nascidos:
cabelos de mulher, um peito de miúdo,
pernas de homem. De dois amantes prostituídos,
qual vindo de um só ventre, vi que ali estava tudo.


                      Rua Dresden, de Ernst Ludwig Kirchner, 1919

REQUIEM

Auf jedem Tische zwei. Männer und Weiber
kreuzweis. Nah, nackt, und dennoch ohne Qual.
Den Schädel auf. Die Brust entzwei. Die Leiber
gebären nun ihr allerletztes Mal.

Jeder drei Näpfe voll: von Hirn bis Hoden.
Und Gottes Tempel und des Teufels Stall
nun Brust an Brust auf eines Kübels Boden
begrinsen Golgatha und Sündenfall.

Der Rest in Särge. Lauter Neugeburten:
Mannsbeine, Kinderbrust und Haar vom Weib.
Ich sah von zweien, die dereinst sich hurten,
lag es da, wie aus einem Mutterleib.
– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

UM HOMEM FALA

Um homem fala:
Aqui não há consolo. Vê, como a terra
acorda também de suas febres.
Mal brilham ainda algumas dálias. Está devastada
como depois de uma batalha a cavalo.
Oiço a abalada no meu sangue.
Tu – meus olhos bebem já
os azuis das colinas distantes.
Algo toca de leve as minhas fontes.

EINER SANG

Einer sang:
Ich liebe eine Hure, Sie heisst To.
Sie ist das Bräunlichste. Ja, wie aus Kähnen
Den Sommer lang. Ihr Gang sticht durch mein Blut.
Sie ist ein Abgrund wilder, dunkler Blumen.
Kein Engel ist so rein. Mit Mutteraugen.
Ich liebe eine Hure. Sie heist To.
– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

CHOPIN

Não muito fecundo na conversa,
as ideias não eram o seu forte,
as ideias vão de roda,
quando Delacxroix desenvolvia teorias
ele ficava inquieto, por seu lado
não podia dar razões para os Noturnos.

Fraco amante:
sombra em Nohant
onde os filhos de George Sand
nenhum conselho proveitoso
lhe aceitavam.

Doente dos pulmões,
com hemorragias e formação de cicatrizes
naquele modo que se arrasta;
morte tranquila
ao contrário de uma
com paroxismos de dor
ou com salvas de tiros:
encostaram o piano (Erard) à porta
e Delphine Potocka
na hora extrema
cantou-lhe um Veilchenlied.

Viajou para Inglaterra com três pianos:
Pleyel, Erard, Broodwood,
tocava a vinte guinéus por noite
um quarto de hora
nps Rothschilds, Wellingtons, em Strafford House
e perante inúmeras jarreteiras;
sombrio de fadiga e do acercar da morte
voltava para casa
no Square d’Orléans.

Depois queimou os seus esboços
e manuscritos,
sobretudo nenhuns restos, fragmentos, notas,
esses indícios traiçoeiros –
e disse no fim:
”As minhas tentativas consumaram-se à medida
do que me era possível alcançar”.

Cada dedo devia tocar
com a força correspondente à sua estrutura,
o quarto é o mais fraco
(só irmão siamês do dedo médio).
Quando começava, pousava-os
em mi, fá sustenido, sol sustenido, lá sustenido, dó.

Quem dele já ouviu
certos Prelúdios,
seja em casas de campo ou
em colinas
ou por portas abertas de terraços,   

por exemplo, de um sanatório,
dificilmente o esquecerá.

Nunca compôs uma ópera,
nenhuma sinfonia,
só estas progressões trágicas
de convicção artística
e com uma mão pequena.

CHOPIN

Nicht sehr ergiebig im Gespräch,          Ansichten waren nicht seine Stärke,
Ansichten reden drum herum,
wenn Delacroix Theorien entwickelte,
wurde er unruhig, er seinerseits konnte
die Notturnos nicht begründen.

Schwacher Liebhaber;
Schatten in Nohant,
wo George Sands Kinder
keine erzieherischen Ratschläge
von ihm annahmen.

Brustkrank in jener Form
mit Blutungen und Narbenbildung,
die sich lange hinzieht;
stiller Tod im Gegensatz zu einem
mit Schmerzparoxysmen
oder durch Gewehrsalven:
man rückte den Flügel (Erard) an die Tür
und Delphine Potocka
sang ihm in der letzten Stunde
ein Veilchenlied.

Nach England reiste er mit drei Flügeln:
Pleyel, Erard, Broadwood,
spielte für 20 Guineen abends
eine Viertelstunde
bei Rothschilds, Wellingtons, im Stafford House
und vor zahllosen Hosenbändern;
verdunkelt von Müdigkeit und Todesnähe
kehrte er heim
auf den Square d’Orléans.

Dann verbrennt er seine Skizzen
und Manuskripte,
nur keine Restbestände, Fragmente, Notizen,
diese verräterischen Einblicke –
sagte zum Schluß:
“meine Versuche sind nach Maßgabe dessen vollendet,
was mir zu erreichen möglich war.”

Spielen sollte jeder Finger
mit der seinem Bau entsprechenden Kraft,
der vierte ist der schwächste
(nur siamesisch zum Mittelfinger).
Wenn er begann, lagen sie
auf e, fis, gis, h, c.

Wer je bestimmte Präludien
von ihm hörte,
sei es in Landhäusern oder
in einem Höhengelände
oder aus offenen Terrassentüren
beispielsweise aus einem Sanatorium,
wird es schwer vergessen.

Nie eine Oper komponiert,
keine Symphonie,
nur diese tragischen Progressionen
aus artistischer Überzeugung
und mit einer kleinen Hand.
– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

MÃE

Trago-te em mim como uma ferida
que não se fecha em minha fronte.
Nem sempre dói, e não se apouca
ao coração por ela a vida.
Só fico às vezes cego de repente
e sinto sangue na boca.

MUTTER

Ich trage dich wie eine Wunde
auf meiner Stirn, die sich nicht schließt.
Sie schmerzt nicht immer. Und es fließt
das Herz sich nicht draus tot.
Nur manchmal plötzlich bin ich blind und spüre
Blut im Munde.

– Gottfried Benn, em “50 Poemas, de Gottfried Benn". [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

BREVE BIOGRAFIA DE GOTTFRIED BENN

Gottfried Benn (1886-1956)

Gottfried Benn nascido a 2 de Maio de 1886, em Mansfeld, no Bandenburgo, Gottfried Benn foi o mais velho dos filhos de uma larga família dada à  luz por um pastor protestante (Gustav Benn) e uma suíça de língua francesa (Caroline Benn). Cresceu a contar histórias aos irmãos mais novos e a odiar a austeridade paterna, que o obrigou a estudos de teologia, primeiro, filologia, depois, e de medicina, finalmente, apesar do seu interesse pelas letras. A perda da mãe, aos 26 anos, forneceu-lhe o motivo para o primeiro livro de poemas: Morgue und andere Gedichte (1912). À publicação do livro, seguiram-se contatos com Else Lasker-Schüler e editores e escritores expressionistas. Enquanto prestava serviços médicos durante a Primeira Grande Guerra, apaixonou-se pela atriz Edith Brosin. O casamento pouco durou. Benn perdeu a mulher em 1921. Especializado em doenças sexuais, atraído pelo nazismo e pela cantora de ópera Ellen Overgaard (a ordem de interesses é aleatória), acabou por ser ostracizado pelos parceiros mais liberais. Mas o regime do Führer também não lhe foi menos hostil. «O poeta passou a uma forma aristocrática de emigração; remetido ao silêncio desde 1936, data em que ainda saem os seus Poemas Escolhidos, silêncio em que vai ficar até 1948 (Poemas Estáticos), em Maio de 1938 fora excluído da Câmara dos Escritores, com radical proibição de escrever e publicar» (Vasco Graça Moura). A razão da hostilidade nazi ter-se-á ficado a dever, antes de mais, ao simples facto dos seus livros terem sido publicados por firmas presididas por judeus. Mas também foi acusado de publicar uma poesia degenerada e homossexual. Ainda assim, voltou a servir durante a Segunda Grande Guerra. Para trás tinham ficado, além dos poemários, uma novela e algumas peças teatrais. Voltou a casar uma segunda e uma terceira vezes. A sua segunda mulher, que era igualmente sua secretária, suicidou-se em Julho de 1945 e, em Dezembro de 1946, o poeta juntou-se a uma jovem dentista chamada Ilse Kaul. Terminada a Guerra, foi relegado ao silêncio pelos aliados. Só a publicação dos Poemas Estáticos reabilitou o autor, publicando a partir de então trabalhos em prosa e em verso. Em 1951, foi-lhe atribuído o Prémio Georg Büchner. Morreu no dia 7 de Julho de 1956, vítima de cancro nos ossos.

Fonte biográfica: "Antologia do Esquecimento".

Obra de Gottfried Benn em português

:: 50 Poemas, de Gottfried Benn. [selecção, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura]. Porto: O Oiro do Dia, 1982; Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

Antologia (participação)

:: Poesia alheia, 124 poemas traduzidos. [tradução e organização Nelson Ascher]. Rio de Janeiro Imago, 1998.
:: Poesia expressionista alemã: uma antologia. [organização e tradução de Claudia Cavalcanti]. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

                                              Gottfried Benn e Ilse Benn, sua mulher

Direitos reservados aos herdeiros

Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske, em colaboração com José Alexandre da Silva.

Georg Trakl, poeta expressionista austríaco


Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske; em colaboração com José Alexandre da Silva

Georg Trakl, poeta austríaco, um dos vultos do expressionismo, nasceu em Salzburgo, Áustria, no dia 3 de Fevereiro de 1887, onde passou a infância.
Seguiu a carreira de Farmácia, depois de ter feito um estágio de três anos em Viena. Mais tarde, ingressou nos serviços farmacêuticos do exército. Entre 1912 e 1914 viveu a maior parte do tempo em Innsbruck.
Após a batalha de Grodek, em 1914, na Galícia, foi entregue com outros feridos graves do exército num celeiro, ao cuidado de um tenente quase sem remédios, que pouco podia fazer. Do lado de fora, os desertores eram enforcados e dentro do celeiro, depois de um dos feridos se ter suicidado com um tiro, na sua presença, Georg Trakl tentou também suicidar-se. Foi internado no hospital de Cracóvia, onde veio a falecer em Novembro do mesmo ano, com 27 anos, alegadamente depois de ter ingerido uma fortíssima dose de cocaína.

Georg Trakl, 1910
Na verdade, a sua vida limitou-se apenas a duas coisas: à droga e à poesia. A sua poesia, de declínios e ocasos, de desintegração e ruínas, de decomposição e morte, era uma poesia dolorosamente imbuída da doença do mundo em seu redor, descrente de qualquer cura e nostálgica de um tempo inconcebivelmente remoto.
Trakl considerava-se apenas semi-nascido. Teve uma vida conturbada e profundamente amargurada. Os seus primeiros contactos poéticos foram com Rimbaud, Baudelaire (através da tradução de K.L. Ammer) e Dostoievski.

Georg Trakl era reconhecido por pessoas como os filósofos Wittgenstein, (que apesar de o admirar, dizia não o compreender), e Heidegger, que tentou decifrar a sua "ambígua ambiguidade".
Tornou-se, através dos poemas escritos, sobretudo nos seus dois últimos anos, num dos maiores expressionistas e num poeta de excepção que, estabelecendo o nexo entre a loucura de Hölderlin e o desespero de Paul Celan, tem sido um poeta de culto para um sem-número de leitores devotos.
Obras (Poesia): "Poemas",1913; "Sebastião no Sono", 1915.
:: Fonte: porosidade-eterea (acessado em 4.4.2016).
:: Dados biográficos complementares: 
BARRENTO, João. Georg Trakl - Uma Vida sem Ornamentos. in: A Phala, nº 28, p.4-6. Disponível no link e link. (acessdo em 4.4.2016)
BARRENTO, João (excertos biográficos). Georg TraklDisponível no link(acessado em 4.4.2016).
CARONE NETTO, Modesto. Trakl transforma grito em geometria. Folha de S.Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).


"(...) recebi o “Sebastião no Sonho”, do qual muito já li: comovido, estupefato, cheio de pressentimentos e perplexidade; pois logo se entende que as circunstâncias desse soar ascendente e ressoar descendente foram irremediavelmente únicas, justamente como as que nascem do sonho. Tenho a sensação de que, mesmo para alguém próximo a Trakl, essas perspectivas e visões só aparecem como se através de vidros, como se excluído delas: pois a experiência de Trakl é como uma sucessão de reflexos e preenche todo o seu espaço, inacessível qual o espaço do espelho."
- Rainer Maria Rilke, em 'carta a Ludwig von Ficker', publicado no livro "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.


Georg Trakl 

OBRA DE GEORG TRAKL NO BRASIL E PORTUGAL 


:: Georg Trakl – Poemas. [tradução Paulo Quintela]. Porto: Oiro do Dia, 1981.
:: Poemas - Georg Trakl. [tradução, introdução e notas Marco Lucchesi]. Colecao A face da utopia. Rio de Janeiro: Numen, 1990.
:: Outono transfigurado - Georg Trakl. [tradução e prefácio João Barrento]. Lisboa: Assírio e Alvim, 1992.
:: De profundis e outros poemas. Georg Trakl. [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994, 113p.
:: Poemas à noite - Georg Trakl e Rainer Maria Rilke. [tradução Marco Lucchesi]. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

Em antologia
:: Expressionismo alemão. antologia poética. [Seleção, tradução, introdução e notas João Barrento]. Lisboa: Ática, 1976.
:: A poesia alemã - breve antologia.  (Lavant, Kaschnitz, Enzensberger, Brecht, Benn, Trakl, Rilke, Heine, Hölderlin, Schiller, Goethe).. [seleção e tradução Roswita Kempf]. Edição bilíngue. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1981.
:: Poesia expressionista alemã: uma antologia{poetas: Johannes R. Becher, Gottfried Benn, Albert Ehrenstein, Iwan Goll, Walter Hasenclever, Georg Heym, Jakob van Hoddis, Wilhelm Klemm, Else Lasker-Schüler, Alfred Lichtenstein, Ludwig Rubiner, René Schickele, Ernst Stadler, August Stramm, Georg Trakl e Franz Werfel}.. [organização e tradução Cláudia Cavalcanti]. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
:: A alma e o caos. 100 poemas expressionistas. [Seleção e tradução João Barrento]. Lisboa: Relógio d'Água, 2001.


Georg Trakl, Self-Portrait, likely painted in the studio
of Max von Esterle, Innsbruck, November 1913
"1914. Após a batalha de Grodek, na Galícia, 90 feridos graves do exército austríaco são entregues, num celeiro, aos cuidados de um tenente. Mero farmacêutico, quase sem remédios, ele pouco pode fazer.
Do lado de fora, desertores são enforcados. Um dos feridos se mata, com um disparo, em sua presença. Ele também tenta o suicídio. Mas só obtém sucesso posteriormente, na segunda tentativa. Com uma overdose de cocaína. Idade: 27 anos. Nome: Georg Trakl.
Nativo de Salzburgo, ele nascera não na pequena Áustria de hoje, mas no grande império dos Habsburgos. Um império que não se imaginava à beira do colapso. Somente duas características distinguiram-lhe a vida: as drogas nas quais se viciara e a poesia.
Reconhecido por pessoas tão diferentes quanto os filósofos Wittgenstein, que apesar de admirá-lo, dizia não compreendê-lo, e Heidegger, que procurou decifrar sua “ambígua ambiguidade” (sic). Trakl tornou-se, através dos poemas escritos sobretudo nos seus dois últimos anos, o maior dos expressionistas e um poeta de exceção que, estabelecendo o nexo entre a loucura de Hölderlin e o desespero de Celan, tem sido cultuado quase secretamente por um sem-número de leitores devotos. [...] 
Pois, mais do que o vício, é sua poesia que prefigura o próprio e outros fins. Uma poesia de declínios e ocasos, desintegração e ruínas, decomposição e lindas mortes. Uma poesia orientada para um ocidente poente (Abendland) que é a terra do entardecer (Abend), onde os animais são azuis e dorme-se um sono branco. Uma poesia dolorosamente imbuída da doença do mundo ao seu redor, descrente de qualquer cura e nostálgica de um tempo inconcebivelmente remoto.
Foi Heine que, canceroso, agonizando em seu leito-esquife, escreveu: “Dormir é bom; morrer, melhor; o certo, porém, seria nunca ter nascido”. Trakl considerava-se apenas seminascido.
O suicídio servira menos para matá-lo do que para abortar seu completo nascimento. Tratava-se, portanto, da consumação natural da nostalgia de seus poemas sob a forma de um derradeiro mergulho amniótico no antes — não depois — da vida, do pecado e da queda."
- Nelson Ascher, em orelha do livro: "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.


Georg Trakl, poeta austríaco (1887-1914)

POEMAS SELECIONADOS DE GEORG TRAKL


RONDEL

Foi-se o dourado dos dias,
Cor marrom e azul da tarde:
Doces flautas vãs do pastor
Cor marrom e azul da tarde
Foi-se o dourado dos dias.

(1912)

*


RONDEL

Verflossen ist das Gold der Tage,

Des Abends braun und blaue Farben:

Des Hirten sanfte Flöten starben

Des Abends blau und braune Farben
Verflossen ist das Gold der Tage.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

MEU CORAÇÃO AO CREPÚSCULO
No crepúsculo ouve-se o grito dos morcegos.
Dois cavalos saltam no gramado. 
O ácer vermelho sussurra.
Ao andarilho surge no caminho a pequena taberna.
Maravilhoso o sabor de vinho novo e nozes.
Maravilhoso: cambalear bêbado na floresta crepuscular.
Pelos galhos negros ressoam sinos aflitos.
No rosto pinga orvalho.

(1912)

*

ZU ABEND MEIN HERZ
Am Abend hört man den Schrei der Fledermäuse.
Zwei Rappen springen auf der Wiese.
Der rote Ahorn rauscht.
Dem Wanderer erscheint die kleine Schenke am Weg.
Herrlich schmecken junger Wein und Nüsse.
Herrlich: betrunken zu taumeln in dämmernden Wald.
Durch schwarzes Geäst tönen schmerzliche Glocken.
Auf das Gesicht tropft Tau.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

Georg Trakl, 1913
OLHANDO UM VELHO ÁLBUM
Sempre voltas, melancolia,
Mansidão da alma solitária.
Por fim arde um dia dourado.

Com humildade curva-se à dor o paciente
Ressoando harmonia e suave loucura.
Olha! Já escurece.

Volta de novo a noite e um mortal lamenta-se
E com ele sofre um outro.

Arrepiada sob estrelas de outono,
A cabeça mais baixa a cada ano.

(1912)

*

IN EIN ALTES STAMMBUCH
Immer wieder kehrst du Melancholie,
O Sanftmut der einsamen Seele.
Zu Ende glüht ein goldener Tag.
Demutsvoll beugt sich dem Schmerz der Geduldige
Tönend von Wohllaut und weichem Wahnsinn.
Siehe! es dämmert schon.
Wieder kehrt die Nacht und klagt ein Sterbliches
Und es leidet ein anderes mit.
Schaudernd unter herbstlichen Sternen
Neigt sich jährlich tiefer das Haupt.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

HUMANIDADE
Humanidade posta ante abismos de chama,
Um rufo de tambores, frontes de guerreiros tenebrosos,
Passos pela névoa de sangue; negro ferro exclama;
Desespero, noite em cérebros pesarosos:
Aqui a sombra de Eva, caça e rubra dinheirama.
Nuvens que a luz atravessa, vespertina refeição.
Em pão e vinho deve um doce silêncio residir.
E aqueles lá reunidos, doze são.
À noite sob ramos de oliveira gritam ao dormir;
São Tomé mergulha na ferida a mão.

(1912)

*

MENSCHHEIT
Menschheit vor Feuerschlünden aufgestellt, 
Ein Trommelwirbel, dunkler Krieger Stirnen, 
Schritte durch Blutnebel; schwarzes Eisen schellt, 
Verzweiflung, Nacht in traurigen Gehirnen: 
Hier Evas Schatten, Jagd und rotes Geld. 
Gewölk, das Licht durchbricht, das Abendmahl. 
Es wohnt in Brot und Wein ein sanftes Schweigen, 
Und jene sind versammelt zwölf an Zahl. 
Nachts schrein im Schlaf sie unter Ölbaumzweigen; 
Sankt Thomas taucht die Hand ins Wundenmal.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

DE PROFUNDIS
Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom, ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

(1912)

                  O Cavaleiro Azul, de Wassily Kandinsky, 1903


DE PROFUNDIS
Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt. 
Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht. 
Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist. 
Wie traurig dieser Abend.

Am Weiler vorbei 
Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein. 
Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung, 
Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams.

Bei der Heimkehr 
Fanden die Hirten den süßen Leib 
Verwest im Dornenbusch.

Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern. 
Gottes Schweigen 
Trank ich aus dem Brunnen des Hains.

Auf meine Stirne tritt kaltes Metall 
Spinnen suchen mein Herz. 
Es ist ein Licht, das in meinem Mund erlöscht.

Nachts fand ich mich auf einer Heide, 
Starrend von Unrat und Staub der Sterne. 
Im Haselgebüsch 
Klangen wieder kristallne Engel.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

SALMO 
2ª versão

Dedicado a Karl Kraus

Há uma luz que o vento apagou.
Há uma taberna, de onde à tarde sai um bêbado.
Há um vinhedo, queimado e negro com buracos cheias de aranhas.
Há um aposento que caiaram com leite.
O louco morreu. Há uma ilha do mar do sul
Para receber o Deus Sol. Rufam os tambores.
Os homens executam danças guerreiras.
As mulheres balançam os quadris em trepadeiras e flores de fogo
Quando canta o mar. Oh, nosso paraíso perdido.

As ninfas abandonaram as florestas douradas.
Enterra-se o desconhecido. Então cai uma chuva cintilante.
O filho de Pã surge na figura de um trabalhador rural
Que dorme ao meio-dia no asfalto em brasa.
Há mocinhas num pátio com roupinhas pobres que dilaceram o coração!
Há quartos repletos de acordes e sonatas.
Há sombras que se abraçam diante de um espelho embaçado.
Nas janelas do hospital aquecem-se convalescentes.
Um vapor branco no canal traz sangrentas epidemias.

A irmã desconhecida ressurge nos sonhos ruins de alguém.
Descansando na avelãzeira, brinca com as estrelas dele.
O estudante, talvez um sósia, contempla-a longamente da janela.
Atrás dele está o seu irmão morto, ou desce a velha escada em espiral.
Na escuridão dos castanheiros empalidece a figura do jovem noviço.
O jardim cai a noite. No claustro esvoaçam os morcegos.
Os filhos do guardião param de brincar e procuram o ouro do céu.
Acordes finais de um quarteto. A pequena cega atravessa a aléia tremendo,
E mais tarde sua sombra tateia frios muros, envolta em contos de fadas e lendas sagradas.

Há um barco vazio, que à noite desce o negro canal.
Na sombriedade do velho asilo desmoronam-se ruínas humanas.
Os órfãos mortos jazem no muro do jardim.
De quartos cinzentos saem anjos com asas sujas de excrementos.
Vermes gotejam de suas pálpebras amareladas.
A praça da igreja está escura e silenciosa, como nos dias da infância.
Sobre solas prateadas deslizam vidas passadas,
E as sombras dos condenados descem às águas soluçantes.
No seu túmulo o mágico branco brinca com suas serpentes.

Silenciosos sobre o Calvário, abrem-se os olhos dourados de Deus.

(1912)

*

PSALM 
2. Fassung

Karl Kraus zugeeignet

Es ist ein Licht, das der Wind ausgelöscht hat.
Es ist ein Heidekrug, den am Nachmittag ein Betrunkener verläßt.
Es ist ein Weinberg, verbrannt und schwarz mit Löchern voll Spinnen.
Es ist ein Raum, den sie mit Milch getüncht haben.
Der Wahnsinnige ist gestorben. Es ist eine Insel der Südsee,
Den Sonnengott zu empfangen. Man rührt die Trommeln.
Die Männer führen kriegerische Tänze auf.
Die Frauen wiegen die Hüften in Schlinggewächsen und Feuerblumen,
Wenn das Meer singt. O unser verlorenes Paradies.

Die Nymphen haben die goldenen Wälder verlassen.
Man begräbt den Fremden. Dann hebt ein Flimmerregen an
Der Sohn des Pan erscheint in Gestalt eines Erdarbeiters,
Der den Mittag am glühenden Asphalt verschläft.
Es sind kleine Mädchen in einem Hof in Kleidchen voll herzzerreißender Armut!
Es sind Zimmer, erfüllt von Akkorden und Sonaten.
Es sind Schatten, die sich vor einem erblindeten Spiegel umarmen.
An den Fenstern des Spitals wärmen sich Genesende.
Ein weißer Dampfer am Kanal trägt blutige Seuchen herauf.

Die fremde Schwester erscheint wieder in jemands bösen Träumen.
Ruhend im Haselgebüsch spielt sie mit seinen Sternen.
Der Student, vielleicht ein Doppelgänger, schaut ihr lange vom Fenster nach.
Hinter ihm steht sein toter Bruder, oder er geht die alte Wendeltreppe herab.
Im Dunkel brauner Kastanien verblaßt die Gestalt des jungen Novizen.
Der Garten ist im Abend. Im Kreuzgang flattern die Fledermäuse umher.
Die Kinder des Hausmeisters hören zu spielen auf und suchen das Gold des Himmels.
Endakkorde eines Quartetts. Die kleine Blinde läuft zitternd durch die Allee,
Und später tastet ihr Schatten an kalten Mauern hin, umgeben von Märchen und heiligen Legenden.

Es ist ein leeres Boot, das am Abend den schwarzen Kanal heruntertreibt.
In der Düsternis des alten Asyls verfallen menschliche Ruinen.
Die toten Waisen liegen an der Gartenmauer.
Aus grauen Zimmern treten Engel mit kotbefleckten Flügeln.
Würmer tropfen von ihren vergilbten Lidern.
Der Platz vor der Kirche ist finster und schweigsam, wie in den Tagen der Kindheit.
Auf silbernen Sohlen gleiten frühere Leben vorbei,
Und die Schatten der Verdammten steigen zu den seufzenden Wassern nieder.
In seinem Grab spielt der weiße Magier mit seinen Schlangen.

Schweigsam über der Schädelstätte öffnen sich Gottes goldene Augen.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

CANÇÕES DO ROSÁRIO

Georg Trakl, lithographie de Hildegard Jone
À IRMÃ
Para onde vais será outono e tarde,
Veado azul que sob árvores soa,
Solitário lago na tarde.

Baixo o vôo dos pássaros soa,
Sobre teus olhos a melancolia dos arcos,
Teu leve sorriso soa.

Das tuas pálpebras Deus fez arcos.
Estrelas procuram à noite, filha de sexta-feira santa,
Na tua fronte, os arcos.


PROXIMIDADE DA MORTE
2ª versão

Oh, a tarde, que vai às sombrias aldeias da infância.
O lago sob os salgueiros
Enche-se de suspiros empestados de melancolia.

Oh, a floresta, que baixa discreta os olhos castanhos,
Quando das mãos magras do solitário
Cai a púrpura de seus dias extasiados.

Oh, a proximidade da morte. Oremos. 
Nesta noite em travesseiros momos
E amarelados de incenso soltam-se os membros frágeis dos amantes

AMÉM
Decomposição deslizando pelo quarto podre;
Sombras no papel de parede amarelo; em escuros espelhos se
Curva a tristeza ebúrnea de nossas mãos.
Pérolas marrons correm pelos dedos falecidos.
No silêncio 
Abrem-se azuis os olhos-papoula de um anjo.

Azul é também a tarde;
O momento de nossa morte, a sombra de Azrael,
Que escurece um jardinzinho marrom.

(1912/13)

*

ROSENKRANZLIEDER

AN DIE SCHWESTER
Wo du gehst wird Herbst und Abend,
Blaues Wild, das unter Bäumen tönt,
Einsamer Weiher am Abend.

Leise der Flug der Vögel tönt,
Die Schwermut über deinen Augenbogen.
Dein schmales Lächeln tönt.

Gott hat deine Lider verbogen.
Sterne suchen nachts, Karfreitagskind,
Deinen Stirnenbogen.


NÄHE DES TODES
2. Fassung

O der Abend, der in die finsteren Dörfer der Kindheit geht.
Der Weiher unter den Weiden
Füllt sich mit den verpesteten Seufzern der Schwermut.

O der Wald, der leise die braunen Augen senkt,
Da aus des Einsamen knöchernen Händen
Der Purpur seiner verzückten Tage hinsinkt.

O die Nähe des Todes. Laß uns beten.
In dieser Nacht lösen auf lauen Kissen
Vergilbt von Weihrauch sich der Liebenden schmächtige Glieder.

AMEN
Verwestes gleitend durch die morsche Stube;
Schatten an gelben Tapeten; in dunklen Spiegeln wölbt
Sich unserer Hände elfenbeinerne Traurigkeit.
Braune Perlen rinnen durch die erstorbenen Finger.
In der Stille
Tun sich eines Engels blaue Mohnaugen auf.

Blau ist auch der Abend;
Die Stunde unseres Absterbens, Azraels Schatten,
Der ein braunes Gärtchen verdunkelt.

(1912/13)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

HELIAN
Nos solitários momentos do espírito
É bom caminhar ao sol
Rente aos muros amarelos do verão.
Os passos soam discretos na grama; mas dorme ainda
O filho de Pã no mármore cinzento.

À noite na varanda nos embriagamos de vinho escuro.
O pêssego arde avermelhado na folhagem;
Doce sonata, riso alegre.

Boa é a calma da noite.
Na planície escura
Encontramos pastores e estrelas brancas.
Quando chega o outono,
A sóbria claridade se mostra na mata.
Aplacados, caminhamos ao longo de muros vermelhos
E os olhos redondos seguem o vôo dos pássaros.
À noite a água branca desce às urnas tumulares.

Nos galhos nus festeja o céu.
Nas mãos puras o lavrador tem pão e vinho.
Tranqüilos, os frutos amadurecem em câmara ensolarada.

Oh, é tão sério o rosto dos mortos mais queridos.
Mas a alma alegra-se de justa contemplação.


Imenso é o silêncio do jardim devastado,
Quando o jovem noviço coroa a fronte com folhagem marrom,
E seu hálito bebe ouro gelado.

As mãos tocam a idade das águas azuladas
Ou em fria noite os rostos brancos das irmãs.

É discreto e harmonioso o passeio por cômodos acolhedores,
Onde há solidão e o sussurro do ácer,
Onde talvez ainda cante o melro.

Belo é o Homem, e aparecendo no escuro,
Quando surpreso move braços e pernas,
E em órbitas purpúreas rolam os olhos calmos.

Às Vésperas o estranho perde-se em negra destruição de novembro
Sob galhos podres, por muros cheios de lepra,
Onde antes passou o santo irmão
Mergulhado nos doces acordes de seu delírio.

Oh, tão solitária termina a brisa da tarde.
Morrendo, a cabeça se curva na escuridão da oliveira.


Assustador é o declínio da raça.
Neste momento, os olhos do contemplador enchem-se
Com o ouro de suas estrelas.

No crepúsculo desce um carrilhão que já não soa,
Desmoronam-se os muros negros na praça,
O soldado morto chama à oração.

Anjo pálido
O filho entra na casa vazia de seus ancestrais.

As irmãs afastam-se junto aos anciãos brancos.
À noite o adormecido achou-as sob as colunas no vestíbulo
Ao voltar de tristes peregrinações.

Oh, tão cheios de imundice e vermes os seus cabelos,
Quando ele lá fica, com pés prateados,
E aqueles mortos saem de quartos desertos.

Oh, salmos em chuvas de fogo da meia-noite,
Quando os carrascos castigavam com urtigas os doces olhos,
Os jovens frutos do sabugueiro
Curvam-se surpresos sobre um túmulo vazio.

Luas amareladas rolam tranqüilas
Sobre os linhos febris do rapaz
Antes de vir o silêncio do inverno.

Um sublime destino desce o Cedron meditando
Onde o cedro, uma frágil criatura,
Cresce sob as sobrancelhas azuis do pai,
Por onde um pastor conduz à noite o seu rebanho.

Ou são gritos no sono,
Quando um anjo brônzeo aparece às pessoas no bosque
E a carne do santo derrete-se na grelha em brasa.

Pelos casebres de barro trepa uma vinha purpúrea,
Sonoros feixes de trigo amarelado,
O zumbir das abelhas, o vôo do grou.
À noitinha os ressuscitados encontram-se em atalhos rochosos.

Em águas negras espelham-se leprosos;
Ou abrem as roupas sujas
Chorando ao vento balsâmico que sopra da colina rosada.

Criadas esbeltas tateiam pelas ruelas da noite,
Como se procurassem o amante pastor.
Aos sábados soa nas cabanas doce canto.

Deixem a canção homenagear o menino,
A sua loucura e suas sobrancelhas brancas e sua partida,
Aquele que se decompôs e que abre os olhos azulados.
Oh, é tão triste esse reencontro.

Os degraus da loucura em quartos negros,
As sombras dos velhos sob a porta aberta,
Quando a alma de Helian contempla-se no espelho rosado
E neve e lepra descem de sua fronte.

Nas paredes as estrelas apagaram-se
E as brancas formas da luz.

Do tapete surgem ossadas dos túmulos,
O silêncio de cruzes desmoronadas na colina,
O cheiro doce do incenso no purpúreo vento noturno.

Oh, seus olhos espatifados em bocas pretas,
Quando o neto em doce loucura
Medita solitário o sombrio fim,
E o Deus silencioso baixa sobre ele as pálpebras azuis.

(1912)

*

HELIAN
In den einsamen Stunden des Geistes 
Ist es schön, in der Sonne zu gehn 
An den gelben Mauern des Sommers hin. 
Leise klingen die Schritte im Gras; doch immer schläft 
Der Sohn des Pan im grauen Marmor.

Abends auf der Terrasse betranken wir uns mit braunem Wein. 
Rötlich glüht der Pfirsich im Laub; 
Sanfte Sonate, frohes Lachen.

Schön ist die Stille der Nacht. 
Auf dunklem Plan 
Begegnen wir uns mit Hirten und weißen Sternen.

Wenn es Herbst geworden ist, 
Zeigt sich nüchterne Klarheit im Hain. 
Besänftigte wandeln wir an roten Mauern hin, 
Und die runden Augen folgen dem Flug der Vögel. 
Am Abend sinkt das weiße Wasser in Graburnen.

In kahlen Gezweigen feiert der Himmel. 
In reinen Händen trägt der Landmann Brot und Wein, 
Und friedlich reifen die Früchte in sonniger Kammer.

O wie ernst ist das Antlitz der teueren Toten. 
Doch die Seele erfreut gerechtes Anschaun.
Gewaltig ist das Schweigen des verwüsteten Gartens, 
Da der junge Novize die Stirne mit braunem Laub bekränzt, 
Sein Odem eisiges Gold trinkt.

Die Hände rühren das Alter bläulicher Wasser 
Oder in kalter Nacht die weißen Wangen der Schwestern.

Leise und harmonisch ist ein Gang an freundlichen Zimmern hin, 
Wo Einsamkeit ist und das Rauschen des Ahorns, 
Wo vielleicht noch die Drossel singt.

Schön ist der Mensch und erscheinend im Dunkel, 
Wenn er staunend Arme und Beine bewegt, 
Und in purpurnen Höhlen stille die Augen rollen.

Zur Vesper verliert sich der Fremdling in schwarzer Novemberzerstörung,
Unter morschem Geäst, an Mauern voll Aussatz hin, 
Wo vordem der heilige Bruder gegangen, 
Versunken in das sanfte Saitenspiel seines Wahnsinns,

O wie einsam endet der Abendwind. 
Ersterbend neigt sich das Haupt im Dunkel des Ölbaums.


Erschütternd ist der Untergang des Geschlechts. 
In dieser Stunde füllen sich die Augen des Schauenden 
Mit dem Gold seiner Sterne.

Am Abend versinkt ein Glockenspiel, das nicht mehr tönt, 
Verfallen die schwarzen Mauern am Platz, 
Ruft der tote Soldat zum Gebet.

Ein bleicher Engel 
Tritt der Sohn ins leere Haus seiner Väter.

Die Schwestern sind ferne zu weißen Greisen gegangen.
Nachts fand sie der Schläfer unter den Säulen im Hausflur, 
Zurückgekehrt von traurigen Pilgerschaften.

O wie starrt von Kot und Würmern ihr Haar, 
Da er darein mit silbernen Füßen steht, 
Und jene verstorben aus kahlen Zimmern treten.

O ihr Psalmen in feurigen Mitternachtsregen, 
Da die Knechte mit Nesseln die sanften Augen schlugen, 
Die kindlichen Früchte des Hollunders 
Sich staunend neigen über ein leeres Grab.

Leise rollen vergilbte Monde 
Über die Fieberlinnen des Jünglings, 
Eh dem Schweigen des Winters folgt.

Ein erhabenes Schicksal sinnt den Kidron hinab,
Wo die Zeder, ein weiches Geschöpf,
Sich unter den blauen Brauen des Vaters entfaltet,
Über die Weide nachts ein Schäfer seine Herde führt.

Oder es sind Schreie im Schlaf,
Wenn ein eherner Engel im Hain den Menschen antritt,
Das Fleisch des Heiligen auf glühendem Rost hinschmilzt.

Um die Lehmhütte rankt purpurner Wein,
Tönende Bündel vergilbten Korns,
Das Summen der Bienen, der Flug des Kranichs.
Am Abend begegnen sich Auferstandene auf Felsenpfaden.

In schwarzen Wassern spiegeln sich Aussätzige; 
Oder sie öffnen die kotbefleckten Gewänder 
Weinend dem balsamischen Wind, der vom rosigen Hügel weht.

Schlanke Mägde tasten durch die Gassen der Nacht, 
Ob sie den liebenden Hirten fänden. 
Sonnabends tönt in den Hütten sanfter Gesang.

Lasset das Lied auch des Knaben gedenken, 
Seines Wahnsinns, und weißer Brauen und seines Hingangs, 
Des Verwesten, der bläulich die Augen aufschlägt. 
O wie traurig ist dieses Wiedersehn.

Die Stufen des Wahnsinns in schwarzen Zimmern, 
Die Schatten der Alten unter der offenen Tür, 
Da Helians Seele sich im rosigen Spiegel beschaut 
Und Schnee und Aussatz von seiner Stirne sinken.

An den Wänden sind die Sterne erloschen 
Und die weißen Gestalten des Lichts.

Dem Teppich entsteigt Gebein der Gräber, 
Das Schweigen verfallener Kreuze am Hügel, 
Des Weihrauchs Süße im purpurnen Nachtwind.

O ihr zerbrochenen Augen in schwarzen Mündern, 
Da der Enkel in sanfter Umnachtung 
Einsam dem dunkleren Ende nachsinnt, 
Der stille Gott die blauen Lider über ihn senkt.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

CANÇÃO DAS HORAS
Com olhos escuros contemplam-se os amantes,
Louros, resplandecentes. Em imóvel treva
Entrelaçam-se lânguidos os ávidos braços.

A boca dos abençoados despedaçou-se. Os olhos redondos
Espelham o escuro ouro da tarde primaveril,
Fronteira e negror da floresta, temores vespertinos no verde;
Talvez indizível vôo de pássaro, o atalho
Do não-nascido ao longo de sombrios lugarejos, de solitários verões,
E do azul em ruínas surge às vezes um corpo sem vida.

No campo rumoreja discreto o trigo amarelo.
Dura é a vida; o camponês maneja o ferro da foice,
O carpinteiro encaixa grandes vigas.

A folhagem no outono colore-se purpúrea; o espírito monástico
Percorre dias serenos; maduras as uvas
E festivo o ar em vastos pátios.
Mais doce o odor de frutos amarelados; discreto o riso
Do satisfeito, música e dança em tabernas de sombras;
No jardim crepuscular, passo e silêncio do menino morto.

(1913)

*

STUNDENLIED
Mit dunklen Blicken sehen sich die Liebenden an,
Die Blonden, Strahlenden. In starrender Finsternis
Umschlingen schmächtig sich die sehnenden Arme.

Purpurn zerbrach der Gesegneten Mund. Die runden Augen
Spielgeln das dunkle Gold des Frühlingsnachmittags,
Saum und Schwärze des Walds, Abendängste im Grün;
Vielleicht unsäglichen Vogelflug, des Ungeborenen
Pfad an finsteren Dörfern, einsamen Sommern hin
Und aus verfallener Bläue tritt bosweilen ein Abgelebtes.

Leise rauscht im Acker das gelbe Korn.
Hart ist das Leben und stählern schwingt die Sense der Landmann,
Fügt gewaltige Balken der Zimmermann.

Purpurn färbt sich das Laub im Herbst; der mönchische Geist
Durchwandelt heitere Tage; reif ist die Traube
Und festlich die Luft in geräumigen Höfen.
Süßer duften vergilbte Früchte; leise ist das Lachen
Des Frohen, Musik und Tanz in schattigen Kellern;
Im dämmernden Garten Schritt und Stille des verstobenen Knaben.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

CANÇÃO DE KASPARHAUSER
Para Bessie Loos

Ele de fato amava o sol que descia a colina purpúreo,
Os caminhos da floresta, o canto do pássaro negro
E a alegria do verde. 

Sisuda era sua morada à sombra da árvore
E puro o seu rosto.
Deus disse ao seu coração uma doce chama:
Homem!

Tranqüilo, o seu passo encontrou a cidade à noite;
O lamento sombrio de sua boca:
Quero tomar-me cavaleiro.

Seguiram-no porém arbusto e animal,
Casa e jardim crepuscular de gente branca,
E procurava-o seu assassino.

Primavera, verão e belo o outono
Do justo, seu passo leve
Pelos quartos escuros de sonhadores.
À noite ficava sozinho com sua estrela;

Viu que nevava em galhos nus,
E a sombra do assassino no tenebroso vestíbulo da casa.

Prateada, tombou a cabeça do não-nascido.

(1913)

*

KASPAR HAUSER LIED 
Für Bessie Loos

Er wahrlich liebte die Sonne, die purpurnen den Hügel hinabstieg,
Die Wege des Walds, den singenden Schwarzvogel
Und die Freude des Grüns.

Ernsthaft war sein Wohnen im Schatten des Baums
Und rein sein Antlitz.
Gott sprach eine sanfte Flamme zu seinem Herzen:
O Mensch!

Stille fand sein Schritt die Stadt am Abend;
Die dunkle Klage seines Munds:
Ich will ein Reiter werden.

Ihm aber folgte Busch und Tier,
Haus und Dämmergarten weißer Menschen
Und sein Mörder suchte nach ihm.

Frühling und Sommer und schön der Herbst
Des Gerechten, sein leiser Schritt
An den dunklen Zimmern Träumender hin.
Nachts blieb er mit seinem Stern allein;

Sah, daß Schnee fiel in kahles Gezweig
Und im dämmernden Hausflur den Schatten des Mörders.

Silbern sank des Ungeborenen Haupt hin.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

SEBASTIÃO NO SONHO
Para Adolf Loos

A mãe teve a criança sob a lua branca,
À sombra da nogueira, do sabugueiro secular,
Embriagada pela seiva da papoula, do lamento do melro; 
E silencioso
Sobre elas inclinava-se piedoso um rosto barbado,

Discreto, na escuridão da janela; e velharias
Dos antepassados
Jaziam podres; amor e fantasia outonal.

Escuro o dia do ano, triste infância,
Quando o rapaz desceu às águas frias, peixes prateados,
Quietude e semblante;
Quando petrificado jogou-se aos corcéis em disparada,
E em noite cinzenta sua estrela vinha sobre ele;

Ou quando pela mão fria da mãe
À tardinha passava pelo outonal cemitério de São Pedro;
Um frágil cadàver jazia inerte no escuro da câmara
E erguia sobre este as pálpebras geladas.

Mas ele era um pequeno pássaro em galhos nus,
O sino ao longo do novembro da noite,
O silêncio do pai, dormindo ao descer a espiral crepuscular.

Paz da alma. Noite de inverno solitário,
As escuras sombras dos pastores no velho lago;
Criança na cabana de palha; quão discreta
Baixava o rosto em febre negra.

Noite sagrada.
Ou quando pela bruta mão do pai
Subi em silêncio o sinistro Monte Calvário
E em crepusculares nichos dos rochedos
A figura azul do Homem passava pela sua lenda,
E da ferida sob o coração corria o sangue purpúreo.
Oh, com que leveza erguia-se a cruz na alma sombria.

Amor; quando em recantos escuros derretia a neve,
Uma brisa azul aninhava-se alegre no velho sabugueiro,
Na abóbada de sombras da nogueira;
E à criança aparecia devagar um anjo rosado. 

Alegria; quando em quartos frios soava uma sonata noturna,
Nas vigas de madeira marrom
Uma borboleta azul saía da crisálida prateada.

Oh, a proximidade da morte! Em muro de pedra
Inclinava-se uma cabeça amarela, a criança muda,
Quando naquele mês de março caía a lua.

Róseo sino de Páscoa na abóbada tumular da noite
E as vozes prateadas das estrelas
Fizeram descer da fronte do adormecido uma sombria loucura em calafrios.

Oh, tão silencioso um passeio pelo rio azul abaixo
Lembrando o esquecido, quando nos galhos verdes 
O melro chamava ao ocaso um desconhecido.

Ou quando pela magra mão do ancião
Passava à noite ante o muro em ruínas da cidade
E aquele de casaco negro levava uma criança rosada,
E à sombra da nogueira aparecia o espírito do mal.

Tatear os verdes degraus do verão. Oh, tão silenciosa
Ruína do jardim no silêncio marrom do outono,
Odor e melancolia do velho sabugueiro,
Quando na sombra de Sebastião expirava a voz prateada do anjo.

(1913)

*

SEBASTIAN IM TRAUM 
Für Adolf Loos

Mutter trug das Kindlein im weißen Mond, 
Im Schatten des Nußbaums, uralten Hollunders, 
Trunken vom Safte des Mohns, der Klage der Drossel; 
Und stille 
Neigte in Mitleid sich über jene ein bärtiges Antlitz

Leise im Dunkel des Fensters; und altes Hausgerät
Der Väter 
Lag im Verfall; Liebe und herbstliche Träumerei.

Also dunkel der Tag des Jahrs, traurige Kindheit, 
Da der Knabe leise zu kühlen Wassern, silbernen Fischen hinabstieg, 
Ruh und Antlitz; 
Da er steinern sich vor rasende Rappen warf, 
In grauer Nacht sein Stern über ihn kam;

Oder wenn er an der frierenden Hand der Mutter 
Abends über Sankt Peters herbstlichen Friedhof ging, 
Ein zarter Leichnam stille im Dunkel der Kammer lag 
Und jener die kalten Lider über ihn aufhob.

Er aber war ein kleiner Vogel im kahlen Geäst, 
Die Glocke lang im Abendnovember, 
Des Vaters Stille, da er im Schlaf die dämmernde Wendeltreppe hinabstieg.


Frieden der Seele. Einsamer Winterabend, 
Die dunklen Gestalten der Hirten am alten Weiher; 
Kindlein in der Hütte von Stroh; o wie leise 
Sank in schwarzem Fieber das Antlitz hin. 

Heilige Nacht.
Oder wenn er an der harten Hand des Vaters 
Stille den finstern Kalvarienberg hinanstieg 
Und in dämmernden Felsennischen 
Die blaue Gestalt des Menschen durch seine Legende ging, 
Aus der Wunde unter dem Herzen purpurn das Blut rann. 
O wie leise stand in dunkler Seele das Kreuz auf.

Liebe; da in schwarzen Winkeln der Schnee schmolz, 
Ein blaues Lüftchen sich heiter im alten Hollunder fing. 
In dem Schattengewölbe des Nußbaums; 
Und dem Knaben leise sein rosiger Engel erschien.

Freude; da in kühlen Zimmern eine Abendsonate erklang, 
Im braunen Holzgebälk 
Ein blauer Falter aus der silbernen Puppe kroch.

O die Nähe des Todes. In steinerner Mauer 
Neigte sich ein gelbes Haupt, schweigend das Kind, 
Da in jenem März der Mond verfiel.


Rosige Osterglocke im Grabgewölbe der Nacht 
Und die Silberstimmen der Sterne, 
Daß in Schauern ein dunkler Wahnsinn von der Stirne des Schläfers sank.

O wie stille ein Gang den blauen Floß hinab 
Vergessenes sinnend, da im grünen Geäst 
Die Drossel ein Fremdes in den Untergang rief.

Oder wenn er an der knöchernen Hand des Greisen 
Abends vor die verfallene Mauer der Stadt ging 
Und jener in schwarzem Mantel ein rosiges Kindlein trug, 
Im Schatten des Nußbaums der Geist des Bösen erschien.

Tasten über die grünen Stufen des Sommers. O wie leise 
Verfiel der Garten in der braunen Stille des Herbstes, 
Duft und Schwermut des alten Hollunders, 
Da in Sebastians Schatten die Silberstimme des Engels erstarb.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

À NOITE
O azul de meus olhos apagou-se nesta noite, 
O ouro vermelho de meu coração. Ah, tão quieta ardia a luz! 
Teu manto azul envolveu o desfalecente; 
Tua boca vermelha confirmou a loucura do amigo.

(1913)

*

NACHTS
Die Bläue meiner Augen ist erloschen in dieser Nacht,
Das rote Gold meines Herzens. O! wie stille brannte das Licht.
Dein blauer Mantel umfing den Sinkenden;
Dein roter Mund besiegelte des Freundes Umnachtung.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

Georg Trakl
NO PARQUE
Caminhando outra vez no velho parque,
Oh, silêncio de flores amarelas e vermelhas!
Vocês também choram, bons deuses,
E o brilho outonal do olmeiro.
No lago azulado ergue-se imóvel
O junco, e à noite emudece o melro.
Oh! Então inclina tu também a fronte
Ante o mármore em ruína dos ancestrais.

(1912)

*

IM PARK
Wieder wandelnd im alten Park,
O! Stille gelb und roter Blumen.
Ihr auch trauert, ihr sanften Götter,
Und das herbstliche Gold der Ulme.
Reglos ragt am bläulichen Weiher
Das Rohr, verstummt am Abend die Drossel.
O! dann neige auch du die Stirne
Vor der Ahnen verfallenem Marmor.

(1912)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

CALMA E SILÊNCIO
Pastores enterraram o sol na floresta nua.
Um pescador puxou a lua
Do lago gelado em áspera rede.

No cristal azul
Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;
Ou curva a cabeça em sono purpúreo.

Mas sempre comove o vôo negro dos pássaros
Ao observador, santidade de flores azuis.
O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.

De novo a fronte anoitece em pedra lunar;
Um rapaz irradiante
Surge a irmã em outono e negra decomposição.

(1913)

*

RUH UND SCHWEIGEN
Hirten begruben die Sonne im kahlen Wald. 
Ein Fischer zog 
In härenem Netz den Mond aus frierendem Weiher.

In blauem Kristall 
Wohnt der bleiche Mensch, die Wang an seine Sterne gelehnt; 
Oder er neigt das Haupt in purpurnem Schlaf.

Doch immer rührt der schwarze Flug der Vögel 
Den Schauenden, das Heilige blauer Blumen, 
Denkt die nahe Stille Vergessenes, erloschene Engel.

Wieder nachtet die Stirne in mondenem Gestein; 
Ein strahlender Jüngling 
Erscheint die Schwester in Herbst und schwarzer Verwesung.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

NASCIMENTO
Montanhas: negror, neblina e neve.
Vermelha, a caça desce a floresta;
Oh, os olhares de musgo da presa.

Silêncio da mãe; sob pinheiros negros
Abrem-se as mãos dormentes
Quando, vencida, aparece a fria lua.

Oh, o nascimento do Homem. Noturna murmura
A água azul no fundo da rocha;
O anjo decaído olha em suspiros sua imagem,

E pálido corpo desperta em câmara úmida.
Duas luas
Iluminam os olhos da anciã pétrea.

Dor, grito que dá à luz. Com asa negra
A noite toca a têmpora do menino,
Neve que desce de nuvem purpúrea.

(1913)

*

GEBURT
Gebirge: Schwärze, Schweigen und Schnee. 
Rot vom Wald niedersteigt die Jagd; 
O, die moosigen Blicke des Wilds.

Stille der Mutter; unter schwarzen Tannen 
Öffnen sich die schlafenden Hände, 
Wenn verfallen der kalte Mond erscheint.

O, die Geburt des Menschen. Nächtlich rauscht 
Blaues Wasser im Felsengrund; 
Seufzend erblickt sein Bild der gefallene Engel,

Erwacht ein Bleiches im dumpfer Stube. 
Zwei Monde 
Erglänzen die Augen der steinernen Greisin.

Weh, der Gebärenden Schrei. Mit schwarzem Flügel 
Rührt die Knabenschläfe die Nacht, 
Schnee, der leise aus purpurner Wolke sinkt.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

OCASO
5ª versão

A Karl Borromäus Heinrich

Por sobre o lago branco
Partiram os pássaros selvagens.
No crepúsculo sopra de nossas estrelas um vento gelado.

Por sobre os nossos túmulos
Inclina-se a fronte despedaçada das trevas.
Sob carvalhos, balançamos numa barca prateada.

Sempre ressoam os muros brancos da cidade.
Sob arcos de espinhos
Oh, irmão, ponteiros cegos, escalamos rumo à meia-noite.

(1913)

*

UNTERGANG
5. Fassung

An Karl Borromäus Heinrich

Über den weißen Weiher
Sind die wilden Vögel fortgezogen.
Am Abend weht von unseren Sternen ein eisiger Wind.

Über unsere Gräber
Beugt sich die zerbrochene Stirne der Nacht.
Unter Eichen schaukeln wir auf einem silbernen Kahn.

Immer klingen die weißen Mauern der Stadt.
Unter Dornenbogen
O mein Bruder klimmen wir blinde Zeiger gen Mitternacht.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

VENTO QUENTE
Lamento cego no vento, dias lunares de inverno,
Infância, os passos se perdem discretos em negra sebe,
Longo toque noturno.
Discreta vem a noite branca,

Transforma em sonhos purpúreos tormento e dor 
Da vida pedregosa,
Para que nunca o espinho deixe o corpo em decomposição.

Profunda em sono suspira a alma angustiada,

Profundo o vento em árvores destruídas,
E a figura de lamento da mãe
Vagueia pela floresta solitária

Desse luto silente; noites
Repletas de lágrimas, de anjos de fogo.
Prateado, espatifa-se contra a parede nua um esqueleto de criança.

(1914)

*

FÖHN
Blinde Klage im Wind, mondene Wintertage, 
Kindheit, leise verhallen die Schritte an schwarzer Hecke, 
Langes Abendgeläut. 
Leise kommt die weiße Nacht gezogen,

Verwandelt in purpurne Träume Schmerz und Plage 
Des steinigen Lebens, 
Daß nimmer der dornige Stachel ablasse vom verwesenden Leib.

Tief im Schlummer aufseufzt die bange Seele,

Tief der Wind in zerbrochenen Bäumen, 
Und es schwankt die Klagegestalt 
Der Mutter durch den einsamen Wald

Dieser schweigenden Trauer; Nächte, 
Erfüllt von Tränen, feurigen Engeln. 
Silbern zerschellt an kahler Mauer ein kindlich Gerippe.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

EM VENEZA
Silêncio no quarto noturno.
A luz chameja prateada 
Ante o sopro que canta
Do solitário;
Fantástica nuvem de rosas.

Negro bando de moscas
Escurece o espaço de pedra
E o tormento do dia dourado 
Faz enrijecer a cabeça 
Do apátrida.

Noite de mar imóvel.
Estrela e negra viagem 
Desaparecem no Canal.
Criança, teu sorriso doentio
Seguiu-me discreto pelo sono.

(1913)

*

IN VENEDIG
Stille in nächtigem Zimmer. 
Silbern flackert der Leuchter 
Vor dem singenden Odem 
Des Einsamen; 
Zaubrisches Rosengewölk.

Schwärzlicher Fliegenschwarm 
Verdunkelt den steinernen Raum 
Und es starrt von der Qual 
Des goldenen Tags das Haupt 
Des Heimatlosen.

Reglos nachtet das Meer. 
Stern und schwärzliche Fahrt 
Entschwand am Kanal. 
Kind, dein kränkliches Lächeln 
Folgte mir leise im Schlaf.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

KARL KRAUS
Branco pontífice da verdade,
Voz cristalina, onde habita o hálito glacial de Deus,
Mago enfurecido,
Sob cujo manto chamejante tilinta a couraça azul do guerreiro.

(1913)

*

KARL KRAUS
Weißer Hohepriester der Wahrheit,
Kristallne Stimme, in der Gottes eisiger Odem wohnt,
Zürnender Magier,
Dem unter flammendem Mantel der blaue Panzer des Kriegers klirrt.

(1913)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

AOS EMUDECIDOS
Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.

(1914)

*

AN DIE VERSTUMMTEN
O, der Wahnsinn der großen Stadt, da am Abend 
An schwarzer Mauer verkrüppelte Bäume starren, 
Aus silberner Maske der Geist des Bösen schaut; 
Licht mit magnetischer Geißel die steinerne Nacht verdrängt. 
O, das versunkene Läuten der Abendglocken.

Hure, die in eisigen Schauern ein totes Kindlein gebärt. 
Rasend peitscht Gottes Zorn die Stirne des Besessenen, 
Purpurne Seuche, Hunger, der grüne Augen zerbricht. 
O, das gräßliche Lachen des Golds.

Aber stille blutet in dunkler Höhle stummere Menschheit, 
Fügt aus harten Metallen das erlösende Haupt.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

Georg Trakl, por Albert Bloch 1943
OCIDENTE
4ª versão

Em honra a Else Lasker-Schüler

1

Lua, como se um morto saísse
Da caverna azul,
E muitas flores caem
Sobre o atalho rochoso.
Prateado, chora um doente
No lago crepuscular,
Em barco negro
Amantes se foram.

Ou soam os passos
De Élis pelo bosque
De jacintos
Perdendo-se de novo entre carvalhos.
Oh, a figura do menino
Feita de lágrimas cristalinas,
Sombras noturnas.
Relâmpagos intrépidos iluminar a têmpora
Sempre fria,
Quando na colina verdejante
Ressoa primaveril a trovoada.

2

Tão silenciosas são as florestas verdes
De nosso lugar.
A vaga cristalina
Morrendo no muro em ruinas, 
E antes choramos dormindo;
Vagueiam em passos inseguros
Ao longo da sebe espinhosa
Cantores no verão vespertino,
Na santa paz
Do vinhedo refletindo longe;
Sombras agora no frio colo
Da noite, águias aflitas.
Tão calmo um raio lunar fecha
As marcas purpúreas da melancolia.

3

Oh, grandes cidades
De pedra, construídas
Na planície! 
Tão sem-fala
O sem-pátria segue 
Com fronte sombria o vento,
As árvores nuas na colina.
Oh, distantes e crepusculares rios!
Com violência amedrontam
Aterrador rubor vespertino
Em nuvens de tempestade.
Oh, povos agonizantes!
Pálida vaga
Esmagando-se na praia da noite,
Cadentes estrelas.

(1914)

*

ABENDLAND
4. Fassung

Else Lasker-Schüler in Verehrung

1

Mond, als träte ein Totes
Aus blauer Höhle,
Und es fallen der Bluten
Viele über den Felsenpfad.
Silbern weint ein Krankes
Am Abendweiher,
Auf schwarzem Kahn
Hinüberstarben Liebende.

Oder es läuten die Schritte
Elis' durch den Hain
Den hyazinthenen
Wieder verhallend unter Eichen.
O des Knaben Gestalt
Geformt aus kristallenen Tränen,
Nächtigen Schatten.
Zackige Blitze erhellen die Schläfe
Die immerkühle,
Wenn am grünenden Hügel
Frühlingsgewitter ertönt.

2

So leise sind die grünen Wälder
Unsrer Heimat,
Die kristallene Woge
Hinsterbend an verfallner Mauer
Und wir haben im Schlaf geweint;
Wandern mit zögernden Schritten
An der dornigen Hecke hin Singende
im Abendsommer, 
In heiliger Ruh
Des fern verstrahlenden Weinbergs;
Schatten nun im kühlen Schoß
Der Nacht, trauernde Adler.
So leise schließt ein mondener Strahl
Die purpurnen Male der Schwermut.

3

Ihr großen Städte
Steinern aufgebaut
In der Ebene! 
So sprachlos folgt
Der Heimatlose
Mit dunbler Stirne dem Wind,
Kahlen Bäumen am Hügel.
Ihr weithin dämmernden Ströme!
Gewaltig ängstet
Schaurige Abendröte
Im Sturmgewölk.
Ihr sterbenden Völker!
Bleiche Woge
Zerschellend am Strande der Nacht,
Fallende Sterne.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

CANTO DO DESTERRADO
A Karl Borromäus Heinrich

Pleno de harmonias é o vôo dos pássaros. As florestas verdes
Reuniram-se à noite em cabanas mais tranquilas;
Os pastos cristalinos da corça.
Escuridão suaviza o murmúrio do riacho, as sombras úmidas

E as flores do verão, que soam belas ao vento.
Já crepuscula na fronte do pensativo Homem.

E brilha uma luzinha, a da bondade, em seu coração,
E a paz da ceia; pois, santificado são pão e vinho
Pelas mãos de Deus, e com olhos noturnos o irmão
Contempla-te silencioso, repousando de espinhosa caminhada.
Ah, morar no azul vivo da noite.

Também amando o silêncio envolve no quarto as sombras dos ancestrais,
Os purpúreos martírios, lamento de toda uma estirpe,
Que agora se vai piedosa no neto solitário.

Cada vez mais radiante desperta sempre dos negros minutos de loucura
O paciente em soleira petrificada
E envolve-o violentamente o frescor azulado e o cintilante resto do outono,

A casa tranquila e as lendas da floresta,
Medida e lei, e os lunares atalhos dos desterrados.

(1914)

*

GESANG DES ABGESCHIEDENEN 
An Karl Borromaeus Heinrich

Voll Harmonien ist der Flug der Vögel. Es haben die grünen Wälder 
Am Abend sich zu stilleren Hütten versammelt; 
Die kristallenen Weiden des Rehs. 
Dunkles besänftigt das Plätschern des Bachs, die feuchten Schatten

Und die Blumen des Sommers, die schön im Winde läuten. 
Schon dämmert die Stirne dem sinnenden Menschen.

Und es leuchtet ein Lämpchen, das Gute, in seinem Herzen 
Und der Frieden des Mahls; denn geheiligt ist Brot und Wein 
Von Gottes Händen, und es schaut aus nächtigen Augen 
Stille dich der Bruder an, daß er ruhe von dorniger Wanderschaft. 
O das Wohnen in der beseelten Bläue der Nacht.

Liebend auch umfängt das Schweigen im Zimmer die Schatten der Alten, 
Die purpurnen Martern, Klage eines großen Geschlechts, 
Das fromm nun hingeht im einsamen Enkel.

Denn strahlender immer erwacht aus schwarzen Minuten des Wahnsinns 
Der Duldende an versteinerter Schwelle 
Und es umfangt ihn gewaltig die kühle Bläue und die leuchtende Neige des Herbstes,

Das stille Haus und die Sagen des Waldes, 
Maß und Gesetz und die mondenen Pfade der Abgeschiedenen.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

O SONO
2ª versão
Malditos sejam, venenos escuros,
Sono branco!
Esse jardim tão estranho
De árvores crepusculares
Repleto de serpentes, falenas,
Aranhas, morcegos.
Forasteiro! Tua sombra perdida
No rubor da tarde,
Um corsário trevoso
No mar salgado da aflição.
Batem asas pássaros brancos na orla noturna
Sobre desmoronantes cidades
De aço.

(1914)

*

DER SCHLAF
2. Fassung
Verflucht ihr dunklen Gifte,
Weißer Schlaf!
Dieser höchst seltsame Garten
Dämmernder Bäume
Erfüllt von Schlangen, Nachtfaltern,
Spinnen, Fledermäusen.
Fremdling! Dein verlorner Schatten
Im Abendrot,
Ein finsterer Korsar
Im salzigen Meer der Trübsal.
Aufflattern weiße Vögel am Nachtsaum
Über stürzenden Städten
Von Stahl.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

A MELANCOLIA
És poderosa, boca escura,
No íntimo, imagem formada
De nuvens de outono,
Silêncio dourado da tarde;
Grande corrente de brilho verde
Na região de sombras,
De pinheiros quebrados;
Um lugarejo
Que desfalece abnegado em imagens marrons.

Eis que saltam os cavalos negros
Em prado brumoso.
Soldados!
Da colina onde o sol rola morrendo
Jorra o sangue que ri –
Sob carvalhos
Atônitos! Oh, rancorosa melancolia
Do exército; um elmo cintilante
Caiu tilintando de fronte purpúrea.

Noite outonal vem tão fresca,
Brilha com estrelas
Sobre quebradas ossadas de homens
A silenciosa monja.

(1914)

*

DIE SCHWERMUT
Gewaltig bist du dunkler Mund
Im Innern, aus Herbstgewölk
Geformte Gestalt,
Goldner Abendstille;
Ein grünlich dämmernder Bergstrom
In zerbrochner Föhren
Schattenbezirk;
Ein Dorf,
Das fromm in braunen Bildern abstirbt.
Da springen die schwarzen Pferde
Auf nebliger Weide.
Ihr Soldaten!
Vom Hügel, wo sterbend die Sonne rollt
Stürzt das lachende Blut –
Unter Eichen
Sprachlos! O grollende Schwermut
Des Heers; ein strahlender Helm
Sank klirrend von purpurner Stirne.
Herbstesnacht so kühle kommt,
Erglänzt mit Sternen
Über zerbrochenem Männergebein
Die stille Mönchin.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§


LAMENTO
Sono e morte, as tenebrosas águias
Rodeiam a noite inteira essa cabeça:
A imagem dourada do Homem
Engolida pela onda fria
Da eternidade. Em medonhos recifes
Despedaça-se o corpo purpúreo.
E a voz escura lamenta
Sobre o mar.
Irmã de tempestuosa melancolia
Vê, um barco aflito afunda
Sob estrelas,
Sob o rosto calado da noite.

(1914)

*

KLAGE
Schlaf und Tod, die düstern Adler
Umrauschen nachtlang dieses Haupt:
Des Menschen goldnes Bildnis
Verschlänge die eisige Woge
Der Ewigkeit. An schaurigen Riffen
Zerschellt der purpurne Leib
Und es klagt die dunkle Stimme
Über dem Meer.
Schwester stürmischer Schwermut
Sieh ein ängstlicher Kahn versinkt
Unter Sternen,
Dem schweigenden Antlitz der Nacht.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

GRODEK
À tarde soam as florestas outonais
De armas mortíferas, as planícies douradas
E lagos azuis, por cima do sol
Mais sombrio rola; a noite envolve
Guerreiros em agonia, o lamento selvagem
De suas bocas dilaceradas.
Mas silenciosas reúnem-se no fundo dos prados
Nuvens vermelhas, onde habita um deus irado,
O sangue vertido, frieza lunar;
Todos os caminhos desembocam em negra putrefação.
Sob ramos dourados da noite e das estrelas
Oscila a sombra da irmã pelo mudo bosque.
Para saudar os espíritos dos heróis, as cabeças que sangram;
E baixinho soam nos juncos as flautas escuras do outono.
Oh, tão orgulhoso luto! Altares de bronze!
Hoje uma dor violenta alimenta a chama ardente do espirito:
Os netos que ainda não nasceram.

(1914)

*

GRODEK
Am Abend tönen die herbstlichen Wälder
Von tödlichen Waffen, die goldnen Ebenen
Und blauen Seen, darüber die Sonne
Düstrer hinrollt; umfängt die Nacht
Sterbende Krieger, die wilde Klage
Ihrer zerbrochenen Münder.
Doch stille sammelt im Weidengrund
Rotes Gewölk, darin ein zürnender Gott wohnt,
Das vergoßne Blut sich, mondne Kühle;
Alle Straßen münden in schwarze Verwesung.
Unter goldnem Gezweig der Nacht und Sternen
Es schwankt der Schwester Schatten durch den schweigenden Hain,
Zu grüßen die Geister der Helden, die blutenden Häupter;
Und leise tönen im Rohr die dunklen Flöten des Herbstes.
O stolzere Trauer! ihr ehernen Altäre,
Die heiße Flamme des Geistes nährt heute ein gewaltiger Schmerz,
Die ungebornen Enkel.

(1914)
- Georg Trakl, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

§

Georg Trakl, por (...)

TRAKL EM TRADUÇÃO DO POETA PORTUGUÊS JOÃO BARRENTO


GRODEK
Ao entardecer, as florestas outonais 
Ecoam de armas mortíferas, e as planícies douradas 
E os lagos azuis, por sobre os quais rola 
Um sol sombrio; a noite abraça 
Guerreiros moribundos, o lamento selvagem 
das suas bocas destroçadas. 
Mas, em silêncio, num fundo de salgueiros, 
juntam-se nuvens rubras, onde um Deus irado habita; 
E o sangue derramado; e frescura lunar; 
Todos os caminhos desembocam em negra podridão. 
Sob dourada ramagem da noite e sob estrelas 
A sombra da irmã vacila pelo bosque do silêncio, 
Para saudar o espírito dos heróis, as cabeças ensanguentadas; 
E levemente, nos canaviais, soam as flautas sombrias do outono. 
Oh, dor orgulhosa! Vós, brônzeos altares, 
Uma dor portentosa alimenta hoje a chama escaldante do espírito, 
Os filhos que ainda hão-de nascer.

(1914)

*

GRODEK
Am Abend tönen die herbstlichen Wälder
Von tödlichen Waffen, die goldnen Ebenen
Und blauen Seen, darüber die Sonne
Düstrer hinrollt; umfängt die Nacht
Sterbende Krieger, die wilde Klage
Ihrer zerbrochenen Münder.
Doch stille sammelt im Weidengrund
Rotes Gewölk, darin ein zürnender Gott wohnt,
Das vergoßne Blut sich, mondne Kühle;
Alle Straßen münden in schwarze Verwesung.
Unter goldnem Gezweig der Nacht und Sternen
Es schwankt der Schwester Schatten durch den schweigenden Hain,
Zu grüßen die Geister der Helden, die blutenden Häupter;
Und leise tönen im Rohr die dunklen Flöten des Herbstes.
O stolzere Trauer! ihr ehernen Altäre,
Die heiße Flamme des Geistes nährt heute ein gewaltiger Schmerz,
Die ungebornen Enkel.

(1914)
- Trakl, em "Outono transfigurado" - Georg Trakl. [tradução e prefácio João Barrento]. Lisboa: Assírio e Alvim, 1992.

§

CANTO DO DESTERRADO
A Karl Borromäus Heinrich

Pleno de harmonias é o voo das aves. As verdes florestas
Juntaram-se à noitinha em cabanas mais tranquilas;
E os pastos cristalinos da corça.
O escuro acalma o murmúrio do regato, as sombras húmidas

E as flores do verão, que soam belas ao vento.
Crepuscula já a fi.onte ao homem pensativo.

E uma luzinha, a da bondade, se acende no seu coração
E a paz da ceia; pois santificados estão o pão e o vinho
Pelas mãos de Deus, com olhos de noite o irmão
Contempla-te calmamente, para repousar da espinhosa
caminhada.
Oh, este viver no azul anímico da noite.

Com amor também, o silêncio envolve no quarto as sombras
dos velhos,
Os martírios purpúreos, lamento de uma grande geração,
Que aí vai agora, piedosa, no filho solitário.
Porque, mais radiante sempre, acorda dos negros minutos da
loucura
O sofredor em soleira petrificada
E poderosamente o envolve o frio azul e o declinar cintilante
do outono,

A casa tranqüila e as lendas da floresta,
Lei e medida, e os atalhos lunares dos desterrados.

(1914)

*

GESANG DES ABGESCHIEDENEN 
An Karl Borromaeus Heinrich

Voll Harmonien ist der Flug der Vögel. Es haben die grünen Wälder 
Am Abend sich zu stilleren Hütten versammelt; 
Die kristallenen Weiden des Rehs. 
Dunkles besänftigt das Plätschern des Bachs, die feuchten Schatten

Und die Blumen des Sommers, die schön im Winde läuten. 
Schon dämmert die Stirne dem sinnenden Menschen.

Und es leuchtet ein Lämpchen, das Gute, in seinem Herzen 
Und der Frieden des Mahls; denn geheiligt ist Brot und Wein 
Von Gottes Händen, und es schaut aus nächtigen Augen 
Stille dich der Bruder an, daß er ruhe von dorniger Wanderschaft. 
O das Wohnen in der beseelten Bläue der Nacht.

Liebend auch umfängt das Schweigen im Zimmer die Schatten der Alten, 
Die purpurnen Martern, Klage eines großen Geschlechts, 
Das fromm nun hingeht im einsamen Enkel.

Denn strahlender immer erwacht aus schwarzen Minuten des Wahnsinns 
Der Duldende an versteinerter Schwelle 
Und es umfangt ihn gewaltig die kühle Bläue und die leuchtende Neige des Herbstes,

Das stille Haus und die Sagen des Waldes, 
Maß und Gesetz und die mondenen Pfade der Abgeschiedenen.

(1914)
- Trakl, em "Outono transfigurado" - Georg Trakl. [tradução e prefácio João Barrento]. Lisboa: Assírio e Alvim, 1992.

§


RONDEL
Esgotou-se a fonte de oiro dos dias,
Os tons da tarde, azuis e outonais:
Morreram doces flautas pastorais
Os tons azuis da tarde, e outonais
Esgotou-se a fonte de oiro dos dias.

(1912)

*

RONDEL
Verflossen ist das Gold der Tage,
Des Abends braun und blaue Farben:
Des Hirten sanfte Flöten starben
Des Abends blau und braune Farben
Verflossen ist das Gold der Tage

(1912)
- Georg Trakl, em "A alma e o caos. 100 poemas expressionistas". [Seleção e tradução João Barrento]. Lisboa: Relógio d'Água, 2001.

§

OCIDENTE
(4.ª versão) 
Em honra de Else Lasker-Schüller

1.
Lua, como se saísse coisa morta
De azul caverna,
E das flores em botão muitas caem
Sobre o atalho rochoso.
Argêntea, chora coisa doente
Junto ao largo da tarde,
Em negro barco
Amantes se passaram.

Ou são os passos de Élis
Que soam pelo bosque,
O de jacintos,
Perdendo-se de novo sobre carvalhos.
Oh, a imagem do rapaz
Moldada por lágrimas de cristal,
Sombras nocturnas.
Relâmpagos rasgados iluminam-lhe as fontes,
As sempre frescas,
Quando na colina verdejante
Ressoa a trovoada primaveril.

2.
Que silêncio, o das verdes florestas
Da nossa terra,
Da vaga cristalina
Morrendo contra um muro em ruínas,
E nós chorámos durante o sono;
Deambulam com passos hesitantes
Ao longo de espinhosa sebe
Cantores no verão da tarde,
Na paz sagrada
Do reflexo distante de vinhedos;
Sombras agora no fresco seio
Da noite, águias carpindo.
Que silêncio o do raio lunar fechando
As marcas purpúreas da melancolia.

3.
Vós, grandes cidades
petreamente construídas
na planície!
Mudamente,
fronte ensombrada,
o sem-pátria segue o vento,
as árvores nuas na colina.
Vós, rios do longínquo entardecer!
Vermelho crepuscular aterrador
cria portentosos terrores
em nuvens de tempestade.
Vós, povos moribundos!
Pálida onda
desfazendo-se nas praias da noite,
estrelas cadentes.

(1914)

*

ABENDLAND

4. Fassung

Else Lasker-Schüler in Verehrung

1

Mond, als träte ein Totes
Aus blauer Höhle,
Und es fallen der Bluten
Viele über den Felsenpfad.
Silbern weint ein Krankes
Am Abendweiher,
Auf schwarzem Kahn
Hinüberstarben Liebende.

Oder es läuten die Schritte
Elis' durch den Hain
Den hyazinthenen
Wieder verhallend unter Eichen.
O des Knaben Gestalt
Geformt aus kristallenen Tränen,
Nächtigen Schatten.
Zackige Blitze erhellen die Schläfe
Die immerkühle,
Wenn am grünenden Hügel
Frühlingsgewitter ertönt.

2
So leise sind die grünen Wälder
Unsrer Heimat,
Die kristallene Woge
Hinsterbend an verfallner Mauer
Und wir haben im Schlaf geweint;
Wandern mit zögernden Schritten
An der dornigen Hecke hin Singende
im Abendsommer, 
In heiliger Ruh
Des fern verstrahlenden Weinbergs;
Schatten nun im kühlen Schoß
Der Nacht, trauernde Adler.
So leise schließt ein mondener Strahl
Die purpurnen Male der Schwermut.

3
Ihr großen Städte
Steinern aufgebaut
In der Ebene! 
So sprachlos folgt
Der Heimatlose
Mit dunbler Stirne dem Wind,
Kahlen Bäumen am Hügel.
Ihr weithin dämmernden Ströme!
Gewaltig ängstet
Schaurige Abendröte
Im Sturmgewölk.
Ihr sterbenden Völker!
Bleiche Woge
Zerschellend am Strande der Nacht,
Fallende Sterne.

(1914)
- Trakl, em "Outono transfigurado" - Georg Trakl. [tradução e prefácio João Barrento]. Lisboa: Assírio e Alvim, 1992.

§

"Trakl pertence à estirpe dos poetas videntes na que figuram Blake, Hölderlin, Rimbaud, Lautréamont e Artaud. Poetas que penetraram no obscuro do mundo e no obscuro do homem."
- Aldo Pellegrini, em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

George Trakl , por Konrad Bayer

FORTUNA CRÍTICA DE GEORG TRAKL


ABI-SÂMARA, Raquel. Trakl no Brasil: estudo de casos. Análise de traduções e concepções poéticas de dois tradutores para o português. (Dissertação Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, 1999.
ABI-SÂMARA, Raquel. Die Übersetzung von Trakls 'Verfalls' ins brasilianische und europäische Portugiesisch. In: Annette ENDRUSCHAT; Axel SCHÖNBERGER. (Org.). Übersetzung und Übersetzen aus dem und ins Portugiesische. Frankfurt am Main: Domus Editoria Europaea, 2004, v. 10, p. 129-139.
CAEIRO, Olívio. O expressionismo. in: Oito séculos de poesia alemã: Antologia comentada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
CALIOLO, Cristina. Azuis românticos na lírica de Georg Trakl. (Dissertação Mestrado em Letras). Universidade de São Paulo, USP, 2007. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
CANTARINO, Everardo Borges. As marcas do real em Georg Trakl e Modesto Carone. In: XIV Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC, 2015, Pará. Fluxos e correntes: trânsitos e traduções literárias, 2015. v. 1. p. 173-174.
CARONE NETTO, Modesto. Trakl transforma grito em geometria. in: Folha de S.Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
CARONE NETTO, Modesto. Metáfora e montagem. Um estudo sobre a poesia de Georg Trakl. São Paulo: Persopectiva, 1974.
CARPEAUX, Otto Maria. A literatura alemã. [posfacio Wille Bolle]. 2ª ed., São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. [tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback]. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
MEYER, Alan Victor. A língua na leitura de G. Trakl por M. Heidegger. in: Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
MOLL, Maria Inês Gonçalves. Uma morada: linguagem e poesia em Heidegger. (Dissertação Mestrado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, PUC Rio, 2008. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
MOOSBURGER, Laura de Borba. Inquietude e Sehnsucht na obra de Georg Trakl. (Tese Doutorado em Filosofia). Universidade de São Paulo, USP, 2019. Disponível no link. (acessado em 24.8.2021).
MOOSBURGER, Laura de Borba. Uma existência poética: Pureza, ternura e compaixão na lírica de Trakl. In: Aoristo, v. 3, n. 1, 2020. Disponível no link. (acessado em 24.8.2021).
PEREIRA, Gilberto G.. Georg Trakl: o poeta da noite. in: Leituras do Giba, 5.12.2008. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
RAMOS, Inês. Na estante de culto. Outono transfigurado - ciclos de poemas em prosa Georg Trakl. in: porosidade-eterea, fev. 2007. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016).
ROC, João. A poesia expressionista de Georg Trakl. in: Obvious. Disponível no link. (acessado em 4.4.2016). 
SALOMÃO, Priscila Casagrande. Expressionismo: A estética do feio em Murnau e Trakl. (Dissertação Mestrado em Letras). Universidade de São Paulo, USP, 2015.


Georg Trakl 1914
GEORG TRAKL*

Seus olhos paravam bem longe.
Quando garoto esteve no céu.

Por isso suas palavras vinham
De nuvens azuis e de brancas.

Discutíamos religião
Mas sempre como parceiros de jogo,

E levávamos Deus de boca em boca.
No princípio era o Verbo.

Coração de poeta, um firme castelo;
Seus poemas: teses cantantes.

Era mesmo Lutero.

Carregava na mão sua alma tríplice
Quando partiu para a guerra santa.

– Então soube que morrera –

Sua sombra permaneceu sem explicação
No entardecer do meu quarto.


GEORG TRAKL

Seine Augen standen ganz fern -
Er war als Knabe einmal schon im Himmel.

Darum kamen seine Worte hervor
Auf blauen und weißen Wolken.

Wir stritten über Religion,
Aber immer wie zwei Spielgefährten,

Und bereiteten Gott von Mund zu Mund.
Im Anfang war das Wort.

Des Dichters Herz, eine feste Burg,
Seine Gedichte: Singende Thesen.

Er war wohl Martin Luther.

Seine dreifaltige Seele trug er in der Hand,
Als er in den heiligen Krieg zog.

- Dann wußte ich, er war gestorben -

Sein Schatten weilte unbegreiflich
Auf dem Abend meines Zimmers.
- Else Lasker-Schüler (1915), em "De profundis e outros poemas. Georg Trakl". [organização, posfácio e tradução Cláudia Cavalcanti]. Edição blíngue. São Paulo: Iluminuras, 1994.

Em: Lasker-Schüler, Else. Ich suche allerlanden eine Stadt – Gedichte, Prosa, Briefe, Leipzig, 1988.

IV
Tu és o vinho que embriaga o mundo,
E eu esvaio-me em sangue em danças de amor,
Coroando de flores a minha dor!
É a tua vontade, oh noite sem fundo!
- Georg Trakl, em "Outono Transfigurado".Georg Trakl. [tradução e prefácio de João Barrento]. Lisoa: Assírio & Alvim, 1992., p. 27.

Georg Trakl (fotografie von C. P. Wagner in
Innsbruck, 1910)
OUTRAS FONTES E REFERÊNCIAS DE PESQUISA

:: Mallarmargens
:: Zunái - revista de poesia e debates


© Obra em domínio público

© Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração com José Alexand 


OUTRAS FONTES E REFERÊNCIAS DE PESQUISA

:Mallarmargens
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Caso, você tenha algum trabalho não citado e queira que ele seja incluído - exemplo: livro, tese, dissertação, ensaio, artigo - envie os dados para o nosso "e-mail de contato", para que possamos incluir as referências do seu trabalho nesta pagina. 

Pesquisa, seleção, edição e organização: Elfi Kürten Fenske; em colaboração com José Alexandre da Silva


COMO CITAR:

FENSKE, Elfi Kürten; SILVA, José Alexandre da. (pesquisa, seleção, edição e organização). Georg Trakl - poeta expressionista austríaco. Templo Cultural Delfos, abril/2016. Disponível no link. (acessado em .../.../...).

** Página atualizada em 24.8.2021.  
Georg Heym (1887-1912, afogado)

* Página original de ABRIL/2016.  

GEORG HEYM




                                               Georg Heym nasceu na Silésia em 1887, doutorou-se em Direito pela Universidade de Berlim, em 1911, quando já havia publicado a primeira coletânea de poemas, Der ewige tag ( O dia eterno). Morreu aos 25 anos, em 1912, enquanto patinava num lago de Berlim, ano em que vem à estampa o livro póstumo Umbra vitae.

Visões demoníacas mescladas com o horror da morte frequentam sua poesia forte. O suicídio de Ofélia, a execução (ou justiciamento) de Robespierre e Capet e o magistral poema Der krieg (A guerra) encenando expressionísticamente uma catástrofe bélica, numa premonição formidável da Primeira Guerra Mundial que desataria em 1914, porfia que não sofreu na própria carne (pressentiu na alma), mas expressou com força e precisão.

Diretamente influenciado por Rimbaud, a poesia de Heym cultiva a violência expressiva, renunciando à poesia de musicalidade trakliniana e à exultação de Stadler.

O fato de não ter aderido ao versolibrismo tem por efeito multiplicar a tensão interior dos poemas ao compactar neles a força reprimida da expressão levada ao ponto de explosão sempre.

Mantendo a ortodoxia sintática e estruturando conservadoramente o poema, alicerçado num estrofismo clássico, distanciado do verso livre de Stadler, Trakl, Benn e Stefan, Heym compensava esse “bom gosto”, abrindo as porteiras semânticas, optando pelo delírio do sentido, gestando imagens provocadoras, mesmo escandalosas. As metáforas exóticas, desde Rimbaud, passaram a apresentar índice de modernidade. Vê-se da poesia heymeana que o expressionismo não é menos audaz que o surrealismo no garimpo de formas semânticas heterodoxas ao limite.

Exemplo de poesia apocalíptica é o poema A guerra, em que Heym personifica o cortejo bélico “que se levanta do sono falso alçando-se de abôbadas profundas, grande, ignorado, ergue-se com o crepúsculo, animal noturno, e esmaga a lua com sua negra mão”.

E finaliza, premonitoriamente:

“O escombro toca o ombro do homem

rugido deletério invade a rua

para perguntas não há mais respostas

empalide o rosto sob rugidos de ferro

lá longe débil se ouve sinos de tiroteio

o pelo da alma treme, range o instinto

rubros estão os rios de sangue

mortos sem conta flutuam entre juncos negros

corvos se acantonam nos campos

onde batalhas supuram

a dor devora bosques

folhas de fogo saltam das árvores

ferve a raiva, pátrias se escalavram

sob os vértices das nuvens

vertigens de tormenta se erguem

e o mundo torna-se uma Gamorra”.

É patético – e antilírico – o primeiro verso do poema Ofélia, de Heym:”Ninhada de ratos d’água se alberga em seus cabelos”

Trakl e Heym são mestres na complexa operação de evocar passagens que encarnam estados psíquicos.

Trakl desenvolveu um modo peculiar de cenário desolador (pesadélico, mesmo) como um correlativo externo de suas agudas ansiedades e secretas.

Trakl detinha da realidade uma visão alienante (e negra, mesmo), mas esse tipo de subjetivismo é bom representante da concepção expressionista do mundo e das coisas da vida.

Heym e Trakl foram leitores precoces de Rimbaud, sendo nítida a influência que o vidente deixou na forma de escrita expressionista. Rastro que todos nós estamos seguindo.

Alguns críticos desavisados tentaram enquadrar G. Heym como pré-expressionista, condição logo repudiada, desde que Heym é, juntamente com Ernst Stadler e Georg Trakl, fundador do movimento, com seu livro Dia eterno, publicado em 1911.

Um certo conservadorismo formal e o recurso a formas poéticas em desuso como o soneto confundiram os críticos da época, mas de modo nenhum o distanciam do expressionismo, ao contrário, seus poemas, independentemente da forma, são cruamente expressionistas.  

In:
https://www.poesiabsoluta.com.br/index.php/artigos/511-heym

DOIS POEMAS DE HEYM

 Verfluchung der Städte (*)


Ihr seid verflucht. Doch eure Süße blüht
Wie eines herben Kusses dunkle Frucht,
Wenn Abend warm um eure Türme sprüht,
Und weit hinab der langen Gassen Flucht.

Dann zittern alle Glocken allzumal
In ihrem Dach, wie Sonnenblumen welk.
Und weit wie Kreuze wächst in goldner Qual
Der hohen Galgen düsteres Gebälk.

Und wie ein Meer von Flammen ragt die Stadt
Wo noch der West wie rotes Eisen glänzt,
In den die Sonne, wie ein Stierhaupt glatt,
Die Hörner streckt, (die dunkles) Blut bekränzt.
 

Sótão Assustador: as visões do inferno
(Zdzisław Beksiński: artista polonês)
 

Maldição das Cidades

Vós sois malditas. Não obstante, vossa ternura floresce
como o fruto escuro de um beijo amargo,
quando a tarde quente chameja sobre vossas torres,
abarcando compridos e sinuosos becos.

Quais girassóis murchos vibram, então, uníssonos
todos os sinos no campanário. E longe,
numa visão de cruzes, crescem em tormentos de ouro
as vigas sinistras de altas forcas.

E como um mar de chamas, ergue-se a cidade,
sobre a qual ainda brilha o ocaso como ferro em brasa,
sobre a qual, liso como a cabeça de um boi,
o sol distende os chifres coroados de sangue negro.

Nota:

(*) O poema – a rigor, a seção V de uma composição mais alongada −, ao que parece, contava, de início, com três estrofes, assim como as traduziu o autor brasileiro; contudo, observa-se nas publicações recentes da obra de Georg Heym – a exemplo da divulgada 
neste endereço – a presença de uma quarta estrofe, interposta entre as segunda e terceira quadras supratranscritas, com o seguinte teor: 

Die Toten schaukeln zu den Glockenklängen
Im Wind, der ihre schwarzen Leichen schwenkt,
Wie Fledermäuse, die im Baume hängen,
Die Toten, die der Abend übersengt.

(Os mortos oscilam ao tanger dos sinos
No vento que agita os seus negros despojos,
Como morcegos pendentes numa árvore,
Os mortos, abrasados pela luz do ocaso.)

Referência:

HEYM, Georg. Verfluchung der Städte / Maldição das cidades. Tradução de João Accioli. In: ACCIOLI, João (Seleção e Tradução). 
Poemas alemães. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, jul. 1954. Em alemão: p. 34; em português: p. 35.



Três poemas de Heym

BERLIM I

Barris alcatroados rolavam das saídas
de depósitos escuros para os altos batelões.
Os rebocadores puxavam. A bruma da fumaça
caía fuliginosa sobre as ondas oleosas.

Dois vapores, com banda de música, vinham.
Baixaram chaminés sob o arco da ponte.
Havia fumo, fuligem e fedor sobre as vagas
imundas dos curtumes das peles marrons.

Em todas as pontes, sob as quais nos conduzia
a barcaça, ressoavam os sinais,
como um retumbar crescendo no silêncio.

Deixamo-nos levar e entramos no canal
chegando lentamente aos jardins. No idílio
víamos os fanais noturnos de enormes chaminés.


BERLIM II


A margem alta da estrada, onde estávamos,
era branca de poeira. Vimos no estreito
inúmeras pessoas: fluxo de gente e multidão,
e ao longe a metrópole erguer-se na noite.

Cheias charabãs passavam pela massa
pendiam delas bandeiras de papel.
ônibus com capotas e carros.
Automóveis, fumaça e buzinas.

Rumo ao imenso mar de concreto. Mas a oeste
vimos, na longa estrada, árvore ao lado de árvore,
a filigrana das copas sem folhas.

O sol pendia grande no horizonte celestial.
E raios vermelhos abriam o caminho da noite.
E sobre todas as cabeças, um sonho de luz.


* Trad. Marco Aurélio Werle



O DEUS DA CIDADE


Escarrapachado sobre um quarteirão,
À sua volta acampam negros ventos.
Ele olha irado, ao longe, a solidão
De últimas casas em campos nevoentos.

Baal ao pôr do sol, pança luzindo,
À volta ajoelham as grandes cidades.
De um mar de negras torres vem subindo
O eco monstruoso das trindades.

Na rua, a multidão música entoa,
Em dança coribântica exaltada.
Das chaminés fabris o incenso escoa
E sobe até ele, em fragrância azulada.

No seu sobrolho crepitam temporais.
Narcortiza-se em noite o escuro dia.
Como os abutres, esvoaçam vendavais
Em cabeleira irada, que arrepia.

Estende no escuro a mão de carniceiro.
Um mar de fogo varre, num estremecer,
Toda uma rua, que acaba num braseiro,
Até que o dia tarde a amanhecer.

* Trad. João Barrento
https://www.poesiabsoluta.com.br/index.php/artigos/511-heym


DOIS POEMAS DE GEORG HEYM


Verfluchung der Städte (*)

Ihr seid verflucht. Doch eure Süße blüht
Wie eines herben Kusses dunkle Frucht,
Wenn Abend warm um eure Türme sprüht,
Und weit hinab der langen Gassen Flucht.

Dann zittern alle Glocken allzumal
In ihrem Dach, wie Sonnenblumen welk.
Und weit wie Kreuze wächst in goldner Qual
Der hohen Galgen düsteres Gebälk.

Und wie ein Meer von Flammen ragt die Stadt
Wo noch der West wie rotes Eisen glänzt,
In den die Sonne, wie ein Stierhaupt glatt,
Die Hörner streckt, (die dunkles) Blut bekränzt.
 

Sótão Assustador: as visões do inferno
(Zdzisław Beksiński: artista polonês)
 

Maldição das Cidades

Vós sois malditas. Não obstante, vossa ternura floresce
como o fruto escuro de um beijo amargo,
quando a tarde quente chameja sobre vossas torres,
abarcando compridos e sinuosos becos.

Quais girassóis murchos vibram, então, uníssonos
todos os sinos no campanário. E longe,
numa visão de cruzes, crescem em tormentos de ouro
as vigas sinistras de altas forcas.

E como um mar de chamas, ergue-se a cidade,
sobre a qual ainda brilha o ocaso como ferro em brasa,
sobre a qual, liso como a cabeça de um boi,
o sol distende os chifres coroados de sangue negro.

Nota:

(*) O poema – a rigor, a seção V de uma composição mais alongada −, ao que parece, contava, de início, com três estrofes, assim como as traduziu o autor brasileiro; contudo, observa-se nas publicações recentes da obra de Georg Heym – a exemplo da divulgada neste endereço – a presença de uma quarta estrofe, interposta entre as segunda e terceira quadras supratranscritas, com o seguinte teor: 

Die Toten schaukeln zu den Glockenklängen
Im Wind, der ihre schwarzen Leichen schwenkt,
Wie Fledermäuse, die im Baume hängen,
Die Toten, die der Abend übersengt.

(Os mortos oscilam ao tanger dos sinos
No vento que agita os seus negros despojos,
Como morcegos pendentes numa árvore,
Os mortos, abrasados pela luz do ocaso.)

Referência:

HEYM, Georg. Verfluchung der Städte / Maldição das cidades. Tradução de João Accioli. In: ACCIOLI, João (Seleção e Tradução). 
Poemas alemães. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, jul. 1954. Em alemão: p. 34; em português: p. 35.


ERNST STADLER

HOSPÍCIO

            Ernst Stadler (1883-1914, na guerra)

 

Aqui está a vida, que mais nada sabe sobre si –

Consciência de mil braças bem afundada no Universo.

Aqui soa por salas vazias o coral do nada.

Aqui há sossego, refúgio, regresso, quarto de criança.

Aqui nada humano ameaça. Os olhos fixos,

Pendurados no vazio, perturbados e assustados,

Tremem só de medo dos quais escaparam.

Mas para alguns o terrestre ainda cola em corpos imperfeitos.

Eles não querem deixar o dia, que desaparece.

Eles se jogam em espasmos, gritam estridentemente nos banhos

E acocoram-se gemendo e abatidos nos cantos.

Mas pra muitos o céu se abriu.

Eles ouvem as vozes mortas de todas as coisas que circulam

E a música suspensa do Universo.

Eles às vezes falam palavras estranhas que não se entende.

Eles sorriem quietos e amigáveis como fazem as crianças.

Nos olhos ocultos, que nada de corporal mantém,

encontra-se a felicidade.

 

(Tradução de Cláudia Cavalcanti, Poesia Expressionista Alemã – Uma antologia; SP: Estação Liberdade, 2000).

 

Form ist Wollust


Form und Riegel mußten erst zerspringen
Welt durch aufgeschlossene Röhren dringen;
Form ist Wollust, Friede, himmlisches Genügen,
Doch mich reißt es, Ackerschollen umzupflügen.
Form will mich verschnüren und verengen,
Doch ich will mein Sein in alle Weiten drängen –
Form ist klare Härte ohn’ Erbarmen,
Doch mich treibt es zu den Dumpfen, zu den Armen,
Und in grenzenlosem Michverschenken
Will mich Leben mit Erfüllung tränken.

(1914)

Zenethra
(Amytea: artista francesa)

Forma é Volúpia

Primeiro foi preciso forma e ferrolho arrebentarem
E por canos abertos no mundo entrarem:
Forma é volúpia, paz, divina contenção,
Mas me atrai cuidar de cada plantação.
A forma quer-me amarrar e limitar,
Mas quero meu ser pelos ares espalhar –
A forma é rigor claro e sem piedade,
Mas sou levado aos pobres, por fraternidade,
E em ilimitada eu-doação
A vida me afoga em compensação.

(1914)

Der Spruch
(ca. 1914)

In einem alten Buche stieß ich auf ein Wort,
Das traf mich wie ein Schlag und brennt durch meine Tage fort:
Und wenn ich mich an trübe Lust vergebe,
Schein, Lug und Spiel zu mir anstatt des Wesens hebe,
Wenn ich gefällig mich mit raschem Sinn belüge,
Als wäre Dunkles klar, als wenn nicht Leben tausend wild
verschloßne Tore trüge,
Und Worte wiederspreche, deren Weite nie ich ausgefühlt,
Und Dinge fasse, deren Sein mich niemals aufgewühlt,
Wenn mich willkommner Traum mit Sammethänden streicht,
Und Tag und Wirklichkeit von mir entweicht,
Der Welt entfremdet, fremd dem tiefsten Ich,
Dann steht das Wort mir auf: Mensch, werde wesentlich!


A Sentença
(ca. 1914)

Num velho livro topei com uma  
palavra
Que me veio como um golpe e ainda arde em brasa:
E quando me entrego a um turvo prazer
Preferindo brilho, mentira e jogo em vez do puro ser,
Quando acho melhor com supérfluos me enganar,
Como se fosse claro o escuro, como se a vida não tivesse milhares
de portas a fechar,
E repito palavras cuja amplidão nunca senti,
E toco em coisas cujo sentido jamais resolvi,
Quando um sonho bem-vindo me acaricia com mãos de veludo
Aliviando-me do cotidiano sobretudo,
Longe do mundo, alheio ao mais profundo eu,
Então se ergue em mim a palavra: Homem, procura o teu apogeu!




Claudia Cavalcanti. Edição bilíngue ilustrada. São Paulo, SP: Estação Liberdade, 2000. 

PROCESSO DE MODULAÇÃO NO POEMA E

NA PINTURA: Georg Trakl e Edward Munch

 

Aguinaldo José Gonçalves (PUC –GO)

 

RESUMO:

Este artigo se propõe a discutir o procedimento de modulação em arte como elemento determinante na fundamentação do objeto estético, tanto nos movimentos da literatura e sobretudo da poesia, quanto nas obras advindas de outros sistemas icônicos ou indiciais. O artigo elege alguns poetas do expressionismo alemão, como Georg Trakl, que produziram desrealizações sintáticas, lexicais, prosódicas e semânticas. O interessante é mostrar esses procedimentos nas artes plásticas, aqui figurativizados na pintura de Edward Munch. Como resultado, demonstramos que os movimentos tensivos, seja no signo verbal, seja no ícone, dependem do grau de articulação entre a instância sígnica da semiótica e de sua instância semisimbólica.

 

Palavras-chave:

Intersemioticidade; Modulação; Pintura; Poesia.




    Cinzas, 1884, expressionismo do norueguês Edvard Munch

O processo de construção da arte nas suas várias categorias expressivas realizado por meios distintos de linguagem respeita sempre três instâncias das quais não é possível fugir. Referimo-nos aos seguintes passos determinantes: composição, realização e modulação. Essas três instâncias independem do grau de profundidade da obra realizada. Desde que a função, poética ou estética, seja hierarquicamente posta em evidência haverá sempre a manifestação desses graus de construção artística. Entretanto, vale notar, que, num trabalho considerado de excelência, as instâncias construtivas adquirem um grau de aprofundamento e complexidade que vai determinar os pontos nevrálgicos de contenção e de contensão da obra. Evidentemente nos dois conceitos está presente o que a semiótica greimasiana passa a denominar de "aspectos tensivos". Gostaríamos de assinalar que tanto no processo de composição (primeiro grau de distribuição sígnica do espaço inventivo); de realização (operacionalização da linguagem na distribuição decisiva dos signos); e de modulação (instância fulcral da compleição da obra), existem graus diferenciados de articulação e de aprofundamento do trabalho artístico.

Chegamos aqui ao fundamento que conduz o presente artigo. Consiste em assinalarmos a instância da modulação como universo sem o qual inexiste o trabalho de arte. Modular significa elevar o processo construtivo ao seu grau maior dentro das limitações de cada autor ou de cada trabalho artístico. Modular significa integrar pelo processo de desrealização sígnica as dimensões do signo enquanto representação do referente ou do objeto, plasmando o estilhaçamento gerador das esferas semi-simbólicas da linguagem. Dessa esfera dependerá a resultante do objeto intencional criado. Quão maior for a profusão entre signo e semi-símbolo e quão maior for a harmonia dessa conjunção podemos afirmar que mais intensa, mais completa, será a obra. Faremos aqui uma espécie de introdução à questão; um anúncio talvez. O tema é complexo e de alta valia para os estudos intersemióticos. Assim, elegemos para abordarmos parte do assunto, alguns trabalhos do expressionismo alemão, mediante os profícuos momentos criativos daquele movimento e o modo como sistemas verbais e visuais se relacionaram.

Algumas “águias” do expressionismo alemão: a força da lírica

Ao perscrutar certos textos, principalmente os textos poéticos daqueles que se consideram como os líderes do movimento, a intensidade do que se denominará expressionismo recai na década anterior à explosão da primeira guerra mundial. No olhar mental de todos os melhores apresentadores e críticos do expressionismo, há sem dúvida, uma intensa influência do pensamento de Nietzsche (e Strindberg) nos autores desse período. Sobretudo, nessa fase primeira, a literatura esteve voltada para a crítica ao status quo da sociedade alemã, com valores profundamente arraigados na burguesia e mesmo no modo de se compor das autoridades militares sem olhos para a condição social real da população carente.

Os índices estéticos que se manifestam nas outras artes, principalmente na música de Shoenberg e na pintura expressionista alemã que atravessaram as fronteiras da Alemanha bem antes que a literatura, valem muito para que possamos compreender os aspectos mais decisivos da literatura. Para se compreender o espírito de um determinado movimento estético, é fundamental que se conjugue os aspectos manifestados nas suas variadas formas de expressão. Nesse sentido, pensando nas relações comparadas dos sistemas distintos, lembramos da feliz expressão de Ulrich Weissstein: “mútua iluminação das artes”. Cada arte, devido o meio que lhe propicia se manifestar, vale-se dos seus recursos próprios. E esse veio apreende o sentido que nem sempre a outra arte seja capaz de apreender com tanta intensidade.

O irracionalista específico entre os expressionistas é o grande poeta Gottfried Benn (1886-1956). Suas poesias têm forma tradicional: o metro, as rimas, vistas superficialmente, poderiam ser de um poeta romântico. Também são - e isto é uma das grandes qualidades da poesia de Benn - muito musicais. Poesias como “Anemona, Trunkene Flut” (Enchente Embriagada), “Leben” (Vida) e outros têm, apesar de toda a exaltação dionisíaca dos instintos, algo da beleza melancólica de Trakl e algo da meditação filosófica de Rilke. Mas o espírito que se informa é totalmente diferente; a filosofia é a de um desespero infinito e a melancolia é a de catástrofe inevitável. A catástrofe veio. Preparado para tanto pelo seu biologismo e pelo seu nietzscheanismo, Benn aderiu em 1933 ao nazismo, manifestando-se de maneira surpreendente e repelente. Desistindo das últimas veleidades de fazer poesia “dionisíaca”, voltou-se, nos Poemas Estáticos, para um objetivismo seco: a filosófica nietzschiana, anti-histórica, agora lhe serve para opor ao mundo das evoluções e decomposições e putrefações da História, o mundo estático e imperecível da arte. Mas atrás das expressões aparentemente calmas dessa poesia “estática” se descobre o mesmo desespero de sempre. Benn sempre foi niilista. Mas é grande poeta. Excetuando-se a figura singular de Trakl, é Benn o maior poeta do expressionismo alemão e, também, o mais “moderno”. Seus recursos de sintaxe e metafóricos não têm nada que ver com a poesia de grito inarticulado; são altamente artísticos e tem, conscientemente, relações com a poesia, a outro respeito muito diferente, de Rimbaud e Valéry, de Eliot e Maiakovski.

Era necessário que aparecesse um olhar poético fervoroso e competente que, segundo ele, pudesse extrair o R-X da cidade com tal clareza e intensidade que a vencesse. Esse olhar surgiu e conseguiu. Tratou-se do poeta Georg Heym. O que para muitos críticos mais impressionou neste poeta é que nascido na Hirschberg, Silésia, um provinciano que veio para Berlim, tornou-se um visionário, um surrealista superBerliner, como jamais alguém havia visto antes. Heym amava as explosões de cores nas pinturas de Van Gogh e desejava um dia transcriá-las em palavras. O poema dos poemas para ele era Le bâteau ivre, de Rimbaud. Viu em Berlim, até mesmo por não conhecer cidades como Paris, uma espécie de síntese de todas as grandes cidades e pela imaginação, Heym conseguiu realizar uma poesia metonímica e intensa onde, segundo ele, não haveria lugar para a dialética. A visão de Heym manifestada em suas obras pode, dentro do que podemos compreender por expressionismo, revelar a alma, o eixo desse movimento. O grau de ironia do poeta era como ferrugem espalhada sobre um alumínio luzidio. Berlim insistia em ser alumínio, em seus costumes, em sua música tradicional, em seus folguedos teatrais. E contra tudo isso se colocou a intensidade expressionista do poeta. Tudo que se opunha aos seus olhos, à sua percepção ferina e crítica, ele passava a odiar, mas odiar por meio de manifestações competentes, imagens flamejantes e toda uma dimensão estética que conseguia apreender tudo isso. Arriscaria dizer que a primeira geração expressionista caracterizou-se, historicamente, por certo princípio de captação ou profetização da eminência da Primeira Guerra Mundial. A intensidade de euforia determinou de maneira singular essa geração mais do que qualquer outro movimento estético. O número de participantes, bem como a rede do cotidiano que delineou a atmosfera do movimento é bem maior que as obras produzidas que permaneceram e às quais hoje temos acesso. Entretanto, como vimos realizando, alguns artistas tiveram relevância muito grande pelo que conseguiram produzir e pelo que ficou de suas obras. Dentro desse atormentado espírito que conduzia todos os participantes, cada um seguia por uma determinada vertente idealista, difícil de especificar pela sua versatilidade. É o caso, por exemplo, do poeta Ernst Stadler (1883- 1914). Um temperamento viril e tempestuoso, descrevendo em versos longos, whitmanianos, o êxtase erótico-sexual e sensações semelhantes inspiradas por uma corrida em trem de estrada de ferro, rapidíssimo, ou por um ataque de cavalaria, nas manobras do exército. Stadler acreditava que a guerra, desencadeando os instintos, pudesse ser a suprema realização dos anseios do homem moderno. Profetizou-a, desejando-a ardentemente. Quando em 1915 chegou a publicar-se seu volume Aufbruch (Partida), o poeta já estava sepultado em solo francês; morrera num ataque de cavalaria.

Outros poetas: Jakob Hoddis (1887-1942); Kurt Hiller (1885); envolvidos na Revista Aktion. É importante assinalar que a primeira geração do Expressionismo se encerra como o estourar a guerra de 1914.


Uma poesia para a posteridade: Georg Trakl


Pelos casebres de barro trepa uma vinha purpúrea,

Sonoros feixes de trigo amarelado,

O zumbir das abelhas, o vôo do grou.

À noitinha os ressuscitados encontram-se em atalhes rochosos.

Alguns tipos de relações intersemióticas repousam num gesto mental traduzido por um movimento abstrato ou ao menos não perceptível aos olhos e aos sentidos imediatos de nosso corpo ou de nossa percepção tangível. Trata-se de uma espécie de sentimento compreendido no modo junguiano ou por mais que possa parecer incongruente, na visão de Emmanuel kant na obra Crítica da Razão Pura ao analisar o que denomina de SENSIBILITÉ para mostrar os elementos da sensorialidade que vão além dos cinco sentidos. Vale aqui, indicarmos as considerações da fenomenologia de Merleau-Ponty ao desenvolver suas ilações sobre "o visível e o invisível" às questões concernentes "ao olho do espírito" para a analisar, neste último caso, a pintura de Paulo Cézanne. O movimento sintático e semântico da poesia de Trakl se constrói pelo desajuste dos contornos e dos desconfortos em busca de uma compreensão que se procura em vão das nuanças inusitadas da materialidade dos signos. Dentro da retórica plástica, poder-se-ia dizer que o mesmo ocorre com os elementos tensivos das composições do pintor Edward Munch.

Para a tradição literária, sempre há um ou dois artistas que resistem aos turbilhões de um movimento de ideias, de uma revolução que se insere num painel de convulsão em busca de uma metamorfose de valores engenhando uma obra, capaz de interferir decisivamente na evolução da forma. Tratando-se especificamente de poesia, raros são aqueles (mas eles sempre existem) que, além de bem representar seu momento junto aos demais companheiros de geração, deixam para o futuro o seu legado. Este legado muitas vezes se manifesta em forma de “estranha incompreensão” ou de enigma.

É o caso desse poeta expressionista Georg Trakl que recebeu esse grande elogio de um dos maiores pensadores do século, Luig Wittgeinstein: “Não entendo a poesia de Trakl, mas me deslumbra, e não há nada que me dê melhor idéia de gênio.” Sua poesia se realizou no apogeu do movimento expressionista, entre os anos de 1912 a 1914 e, mesmo denunciando os traços de referência do que vivenciava, fez-se poesia em que forma se impôs para suscitar os sentidos e determinar sua universalidade. O caminho encontrado por Trakl é aquele de todo grande poeta: conferir à imagem e ao ritmo a condução da poesia. Entretanto, a imagem e o ritmo de sua poesia, ou ambos conjugados num só tom desenham uma forma que se pode denominar estilo e é esse estilo que fica na mente sensorial do leitor depois de conviver com alguns de seus poemas. Aparentemente simples, a sua poesia faz juz ao que definiu Hölderlin sobre a poesia lírica: “Metáfora contínua de um sentimento único”. Para lembrar os princípios mallarmaicos (apesar da grande diferença dentre os dois poetas) a poesia de Trakl cumpre todos os passos que devem cumprir um grande artista, sobretudo da palavra que lida com um meio cujas duas faces se relacionam, em princípio, arbitrárias. Para Mallarmé, o trabalho construtivo da poesia deve passar, primeiramente, por um processo de composição, depois de realização e, finalmente, modulação. Leiamos o seguinte poema do poeta alemão:

Meu coração ao crepúsculo

No crepúsculo ouve-se o grito dos morcegos.

Dois cavalos saltam no gramado.

O ácer vermelho sussurra.

Ao andarilho surge no caminho a pequena taberna.

Maravilhoso o sabor de vinho novo e nozes.

Maravilhoso: cambalear bêbado na floresta crepuscular.

Pelos galhos negros ressoam sinos aflitos.

No rosto pinga orvalho. (1912)

 

Zu abend mein herz

Am Abend hört man den Schrei der Fledermaüse.

Zwei Rappen springen auf der Wiese.

Der rote Ahorn rauscht.

Dem Wanderer erscheint die kleine Schenke am Weg.

Herrlich schmecken junger Wein und Nüsse.

Herrlich: betrunken zu taumeln in dämmernden Wald.

Durch schwarzes Geäst tönen schmerzliche Glocken.

Auf das Gesicht tropft Tau.

(1912)

Escolher um bom exemplo da poesia de Trakl é praticamente impossível devido a homogeneidade com que se apresenta sua obra. Entretanto, temos em “Meu coração ao crepúsculo” uma escolha que bem servirá para que possamos adentrar um pouco nesta poesia e apresentar alguns de seus procedimentos que diríamos, expressionistas, para não dizer modernos. A metáfora-título “meu coração ao crepúsculo” nos remete de imediato ao temário romântico, ao subjetivismo exposto e linear da maioria da poesia romântica. Porém, ao dizermos metáfora-título, estamos nos reportando à contravenção do título em relação aos versos do poema. Enquanto nele, por meio de um procedimento sinedótico, o poeta se vale da imagem do coração precedida da primeira pessoa e seguida de uma metonímia romântica (crepúsculo) nos iludindo para uma expressão poética própria do romantismo, o corpo do poema nos conduz para um universo de imagens extremamente visuais, marcadas pelas justaposições metonímicas que apenas se interagem pelo movimento das próprias sensorialidades que vão penetrando no texto. Esse procedimento de justaposição também se estende ao procedimento sintático do poema. Os oito versos que compõem a única estrofe, correspondem a oito orações independentes o que determina o caráter totalmente paratático que vai cada vez mais encontrar ressonância na poesia moderna do século XX e nos experimentalismos da poesia dos anos 50 e 60 de vários países, inclusive na poesia brasileira. Mas de todos os poetas influenciados por Hölderlin, só um, o primeiro, foi grande. Georg Trakl (1887-1914). Foi um jovem boêmio muito triste, perdido na vida provinciana de Salzburgo, então cidadezinha adormecida, poeta conhecido só de alguns poucos amigos em Innsbruck e Viena. Morreu em 1914, em Cracóvia, atrás da frente de batalha, por superdose de soporífero, talvez suicida. Não é possível definir em poucas palavras a poesia de Trakl: confundem-se nela influências aparentemente incompatíveis, de Hölderlin e de Baudelaire, a paisagem barroca de Salzburgo e a paisagem primitiva, rústica, dos arredores, um crasso naturalismo de camponês e a música mozartiana, sensibilidade inédita às cores e a mais rara harmonia do verso, rica vida onírica e herética revolta religiosa. Considerado pela crítica, como autor de poemas incomparáveis em toda a literatura alemã. A classificação de Trakl como poeta da primeira geração expressionista tem bons motivos, além dos cronológicos: certas coincidências com o contemporâneo e conhecido Georg Heym (não se conheciam pessoalmente); a atitude de revolta contra a época; a morte prematura. Mas nenhum desses detalhes dá a medida da grandeza de Trakl. Seu hermetismo não esconde, mas revela a beleza de uma arte intemporal; sua melancolia não é romântica, mas existencial; sua forma é menos holderliniana que seu espírito. Críticos da maior responsabilidade colocam-no acima da poesia de Georg Heyn e de Hofmannsthal, mas até acima de Rilke. Em termos recentes, sua fama começa a romper a barreira linguística que condena ao meio-desconhecimento no mundo a poesia lírica alemã; Trakl já é admirado na França e na Inglaterra.

    Edvard Munch, A Dança da Vida, 1899-1900
 

Um exemplo especial de relação intersemiótica: Georg Trakl e Edvard Munch

 

Calma e silêncio

 

Pastores enterraram o sol na floresta nua.

Um pescador puxou a lua

Do lago gelado em áspera rede.

No cristal azul

Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;

Ou curva a cabeça em sono purpúreo.

Mas sempre comove o vôo negro dos pássaros

Ao observador, santidade de flores azuis.

O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.

De novo a fronte anoitece em pedra lunar;

Um rapaz irradiante

Surge a irmã em outono e negra decomposição.

 

(Tradução: Cláudia Cavalcante) - Georg Trakl

 

Neste artigo anunciaremos alguns traços sejam do poema de Trakl sejam da pintura E. Munch que indiciam os movimentos retóricos das duas obras e as correspondências entre analogias profundas que acaba por representar relações homológicas entre artes plásticas e literatura. Falando de maneira plural assinalamos aqui aspectos que se manifestam em camadas distintas das duas linguagens. Não podemos até os dias atuais falarmos de uma morfologia própria da linguagem plástica, mas podemos falar de uma Gramática que dê conta de leituras do código verbal. Entretanto, as referida Gramática fornece subsídios para que possamos penetrar no processo inventivo das obras plásticas. É assim que podemos abordar de maneira lógico-expressiva sobre a linguagem da pintura. A propósito, uma vez que, como no poema, a pintura engendra significação, é mister que ela possua os elementos constitutivos de um objeto promovedor de sentidos.

No poema, a alta gama de singularidade se manifesta numa espécie de desorganização os elementos pertencentes a cada uma das camadas linguísticas que compõem o texto. Existe uma disparidade entre os elementos da camada lexical em que o fio condutor se faz pela sequência ou melhor, pela contiguidade de elementos díspares dentro de uma forma que teóricos da poesia moderna T. S. Eliot e Ezra Pound denominaram de correlativo-objetivo. O poema de Trakl dentro daquelas invenções expressionistas se compõem por meio desses correlativos que acabam gerando uma atmosfera de elementos inusitados que ao mesmo tempo apresentam-se num processo de desrealização e profunda harmonia capaz de engendrar e materializar esferas do sentimento, abstratas, que não permitem uma possível enlevação eufórica, mantendo-se como se fosse na linha do horizonte, com olhos quedos, delineadores da disforia. Diríamos ainda, que, o poema indica para alguns pontos de luz que são imediatamente abafados pelo teor disfórico de certa revelação.

Esses aspectos serão aprofundados em ensaios posteriores. Da instância lexical passaríamos às instâncias imagéticas, que fervilham no poema como resultantes do que denominamos correlativo-objetivo. Dentre as imagens que melhor contribuem na composição em harmonia do poema, destacam-se epítetos e semi-sinestesias marcantes nos procedimentos de iconização do abstrato nesse poema de Trakl. Aquilo que seria quase impossível de ser analiticamente demonstrado no poema, isto é, suas nuanças sintáticas, passa a ser intensivamente contornado na plasmação bidimensional do quadro de Munch.

Seja em “O Baile” ou na “Morte no Quarto da Doente” os procedimentos utilizados por E. Munch apresentem aspectos ou traços de estilo bastante similares aos desencontros macro e micro estruturais da poesia de Trakl. Em ambos os quadros o artista consegue criar uma “sintaxe plástica” numa perfeita conjunção entre formas e cores que geram uma linha espessa na construção dos sentidos da pintura. Especificamente em “Morte no Quarto da Doente” o artista cria um amálgama entre os elementos da pintura e acaba gerando o que na poesia denominamos plano imagético gerador da metáfora visual. Ao olhar para o quadro nossos olhos não sabem por que caminho transitarem mediante a forma engendrada na composição da obra. Munch cria tons cromáticos difíceis de se definir e esses tons parecem dar o perfil determinante dos sentimento buscado pela obra.

O interessante é que a questão do vazio e a questão da ausência preenchem o espaço bidimensional por meio dos elementos presentes. A ausência é encontrada na presentificação, repetimos, de elementos ausentes. Perguntar-se-ia: de que modo é figurativizada a noção de morte no quarto? O observador não consegue visualizar um elemento figural que possa delinear m possível personagem doente, mas, com certeza, apreende o sentimento de morte sobretudo nos componentes semi-simbólicos articulados.

Neste breve comentário vale notar o modo como o artista à moda do poema de Trakl atenua, “abafa”, “os tons primários”, fazendo gerar outros que intensifica a relação tensiva entre euforia e disforia. As manchas cromáticas que prefiguraria “tempos de euforia”, acabam por gerar um movimento descendente do qual emergem figuras humanas que comporiam o espaço da doente. Esse espaço é invadido pelo “espaço da morte”, marcado por tons e entretons de laranja desmanchado, azul acinzentado e o esverdeamento insípido das paredes do quarto. Nesse ir e vir das cores nasce o que denominamos uma sintaxe plástica em cujos nichos compostos de personagens ou atores, faces da morte, são plasmados dentro de uma retórica e de um movimento difícil, mas que a pintura soube construir.

Assim, deve-se notar que, tanto a obra pré-expressionista de E. Munch quanto a poesia expressionista de Trakl, denunciam homologicamente os universos da ruína desrealizadora, que a arte moderna viria apresentar com mais ousadia durante todo século XX.

Referências

KANT. E. Critique de la raison pure. Trad. fr. Avec note par A. Tremesaygues et B KANT. E. Critique de la raison pure. Trad. fr. Avec note par A. Tremesaygues et B. Pacaud. Paris: PressesUniversitaires de France, 1971.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as vezes do silêncio e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac&Naify, 2004.

WEISSTEIN, U. Comparative Literature and Literary Theory: Survey and Introduction. Trad. W. Riggan. Indiana, Indiana University Press, 1974.