segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

SERRA DO JACUTINGA, ONDE O MUNDO DÁ UM NÓ

 


JACUTINGA, SONHO E MEMÓRIA NUM BORDEL DE NOVELA

 

Como nasci lá nos cafundós da região cacaueira, tenho visto capítulos desse remarque da novela intitulada Renascer, que nos anos 90 teve suas cenas gravadas numa fazenda perto de Castelo Novo, povoado situado bem próximo da cidade de Ilhéus, nos anos gloriosos chamada de Princesinha do Cacau. Vi essa primeira versão, com Antônio Fagundes, no papel principal.

Por isso, virei-me para essa espécie de reprise, mais ainda por ter seu conteúdo atual referente à praga da vassoura-de-bruxa, cuja tragédia devastou a economia da região, atingindo-a fundamente, em nível tamanho, desde o ano de 1990, quando irrompeu, sem que, até hoje, tenha sido dominada e varrida (veja isto, presidente Lula, assistindo a novela!), por total fracasso no seu combate.

Assistindo aos primeiros capítulos, movido pelos efeitos de seu trágico conteúdo, senti-me folcloricamente surpreso, ao ver a dona do bordel, uma cópia burlesca da famosa Maria Machadão, criada por Jorge Amado ('Gabriela, cravo e canela", romance, 1958), chamar-se Jacutinga, nome coincidente com o da serra situada no interior rural do município de Itacaré, cujo poético azul me enchia de encantos, ao mirá-la, alta, defronte, cotidianamente, na infância e na adolescência.

Jacutinga, que imensa coincidência! Pois, tanto esta Serra do Jacutinga me ficou na memória, que, décadas depois, escrevi um poema, levado pela magia visual que ainda permanecia em minha mente.

Será que o autor desta novela, Bruno Luperi, algum dia, numa distração, se deparou com essa minha sonora redação e ao menos dela encantou-se com o título?

Pois bem, é este poema que transcrevo, abaixo. Ilustração: imagem da Serra do Jacutinga, cujo cimo tem 740 metros, altura igual à do Corcovado, no Rio de Janeiro.

    Serra do Jacutinga (780 mt.), interior do município de Itacaré
     Foto de Vera Pessoa (2013)


SERRA DO JACUTINGA

Para o filho Mauro

 

Lá debaixo esta serra é tão longínqua,

Como lá de cima a água, seu espelho.

A alma infante me fala na descida,

Se de cima diviso o chão vermelho.

 

Quando lanterna do silvado trina

A lembrança – ah, que vento verdadeiro! -

Morde-me o nu do peito na corrida

Que é a alma que me abraça o sol inteiro.

 

No instante em que galopam precipícios

As nuvens sobre a terra (seu cavalo),

Uivam tardes de outrora que persigo

Presa de mim e dos anis vassalo.

 

Campo verde de malva e calumbi

Informa que da mata olhos selvagens

Nos espreitam. Logo saltam dali

Paca, teiú, quati, tatu – miragens...

 

E o mato esconde aos olhos do menino

No cenário de sonho da descida

Agudo fio do aço campesino

Que pela vida foi cortando a vida.

 

(Florisvaldo Mattos, "CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro". Ilhéus-BA: Mondrongo, 2022).


POETA DO DIA

 

Na Serra do Jacutinga,

onde o mundo dava o nó,

Macedônio me dizia:

“Deus que é grande ficou só”.

Era mais pelo que via

do que pelo que não via,

um filósofo do dia.

Quase sempre me dizia

que não via o que via

aquele poeta do dia.

 

(1977)

 

 

RASTRO DE BRISA

                        A mãe Gertrudes

 

Somente de horas alegres

São feitos os dias da infância.

(O que é duro e revés

Sai da coluna do Haver).

Há duas exceções, porém:

A fome, que é desespero,

E a morte, noturna hiena,

E também as mágoas vindas

Dos primeiros desencantos.

 

O resto fica escondido

Nas abas lá da jindiba

Entre os guardados da loba.

 

Sobram os grandes espaços,

Os horizontes abertos

Às primeiras cavalgadas.

 

Eram cavalos-de pau

Ou era a tropa de burros?

 

Facão no cinto e na mão,

A taca de mil estalos,

Nas dobras de alguma nuvem,

Ramiro tange escondido

Cuscuz e a Besta Melada.

E depois nos prega sustos

Saltando detrás das portas

Com a boca escancarada.

 

Do cume da Jacutinga

No trote da frialdade

Desce um rebanho de sonhos.

Ou são rebanhos de sombras?

Neblina fácil nas copas

Enreda-se com a folhagem.

Misturam-se aos bem-te-vis

Velhos cantares e aboios

Que os ventos levam e trazem.

 

“Que fazem meninos? Brinquem”,

Entoa a voz cautelosa

De quem quer filhos unidos.

Somente de alegres luzes

São feitos os dias da infância.

 

O TEMPO, O LUGAR

                        A Soane Nazaré de Andrade

 

As três portas da frente onde era a venda,

guarnecida de vastas prateleiras,

e outra mais e mais outra, toda a senda

que levava ao quintal de bananeiras;

a franja da floresta, onde eu a lenda

desfiava de Anice, a que as primeiras

quimeras fez passar por uma fenda

na alma e que se ocultava dos que às feiras

de cristalinos sábados rumavam;

os cavalos de pau e as de bambu

flautas, mais a valer quando imitavam

virentes sons; e os ninhos de jacu,

por onde começava nova história.

Tudo isso me abre sulcos na memória.


À SOMBRA DA TARDE

                              Para Soane, oitentão (2011)  

 

                                   Oh, minha serra, eis a hora

                                   Do adeus vou-me embora,

Trago a luz do teu luar

                                   No meu olhar,

                                   Adeus.

                                   (“Serra  da Boa Esperança”, Lamartine Babo)

 

Eu só, em tarde de forte vento e frio,

defronte de minha deusa etrusca, ela

estirada, lassa, em dorsal decúbito,

recoberta de lanhos (verdes matas,

campos e plantações), que é a minha Serra

do Jacutinga, grávida de nuvens.

 

Nem parece que há um céu a navegá-la,

eternidade que as estrelas fitam.

 

Mirante solar de sete cidades ,

ó serra transida de chuva e sol,

para guardar um verso musical,

para chamar-se de boa esperança,

consumas-te em pincel, paleta e tinta,

festa de verde e azul, varal de infâncias.

 

BARRO VERMELHO, UM LUGAR

                                   A Othon Jambeiro

 

Ai! sítio que me atiça

as emoções primeiras.

Coração nas ladeiras

rasga-me. A serra: do alto

a mata avisto, a casa.

O descampado onde água

arisca (o riacho) risca-me

fervente infância – ai! asa

despedaçada; mergulho

fundo no espelho – em brasa.

 

Ai! vento que me estuma

à mente, ao rosto, aos lábios

acesos calendários.

Entro com as ferramentas

do sonho na derruba.

Dilacera-me a fúria

da lâmina nas árvores,

e mais que isto, o que avisto,

no começo das chuvas,

os horizontes graves.

 

(1988)

    "A beleza da flor do cacau. Um bem da natureza a encantar o homem".

(Luiz Ferreira, 2022)


Nenhum comentário:

Postar um comentário