JACUTINGA, SONHO E
MEMÓRIA NUM BORDEL DE NOVELA
Como nasci lá nos cafundós da região cacaueira, tenho visto capítulos
desse remarque da novela intitulada Renascer, que nos anos 90 teve suas
cenas gravadas numa fazenda perto de Castelo Novo, povoado situado bem próximo
da cidade de Ilhéus, nos anos gloriosos chamada de Princesinha do Cacau. Vi
essa primeira versão, com Antônio Fagundes, no papel principal.
Por isso, virei-me para essa espécie de reprise, mais ainda por ter seu
conteúdo atual referente à praga da vassoura-de-bruxa, cuja tragédia devastou a
economia da região, atingindo-a fundamente, em nível tamanho, desde o ano de
1990, quando irrompeu, sem que, até hoje, tenha sido dominada e varrida (veja
isto, presidente Lula, assistindo a novela!), por total fracasso no seu
combate.
Assistindo aos primeiros capítulos, movido pelos efeitos de seu trágico
conteúdo, senti-me folcloricamente surpreso, ao ver a dona do bordel, uma cópia
burlesca da famosa Maria Machadão, criada por Jorge Amado ('Gabriela, cravo e
canela", romance, 1958), chamar-se Jacutinga, nome coincidente com o da
serra situada no interior rural do município de Itacaré, cujo poético azul me
enchia de encantos, ao mirá-la, alta, defronte, cotidianamente, na infância e na adolescência.
Jacutinga, que imensa coincidência! Pois, tanto esta Serra do Jacutinga
me ficou na memória, que, décadas depois, escrevi um poema, levado pela magia
visual que ainda permanecia em minha mente.
Será que o autor desta novela, Bruno Luperi, algum dia, numa distração,
se deparou com essa minha sonora redação e ao menos dela encantou-se com o
título?
Pois bem, é este poema que transcrevo, abaixo. Ilustração: imagem da Serra do Jacutinga, cujo cimo tem 740 metros, altura igual à do Corcovado, no Rio de Janeiro.
Foto de Vera Pessoa (2013)
SERRA DO JACUTINGA
Para o filho Mauro
Lá debaixo esta serra é tão longínqua,
Como lá de cima a água, seu espelho.
A alma infante me fala na descida,
Se de cima diviso o chão vermelho.
Quando lanterna do silvado trina
A lembrança – ah, que vento verdadeiro! -
Morde-me o nu do peito na corrida
Que é a alma que me abraça o sol inteiro.
No instante em que galopam precipícios
As nuvens sobre a terra (seu cavalo),
Uivam tardes de outrora que persigo
Presa de mim e dos anis vassalo.
Campo verde de malva e calumbi
Informa que da mata olhos selvagens
Nos espreitam. Logo saltam dali
Paca, teiú, quati, tatu – miragens...
E o mato esconde aos olhos do menino
No cenário de sonho da descida
Agudo fio do aço campesino
Que pela vida foi cortando a vida.
(Florisvaldo
Mattos, "CACAUEIROS. Poesia. Conto. Teatro". Ilhéus-BA: Mondrongo, 2022).
POETA DO DIA
Na Serra do Jacutinga,
onde o mundo dava o nó,
Macedônio me dizia:
“Deus que é grande ficou só”.
Era mais pelo que via
do que pelo que não via,
um filósofo do dia.
Quase sempre me dizia
que não via o que via
aquele poeta do dia.
(1977)
RASTRO DE BRISA
A
mãe Gertrudes
Somente de horas alegres
São feitos os dias da infância.
(O que é duro e revés
Sai da coluna do Haver).
Há duas exceções, porém:
A fome, que é desespero,
E a morte, noturna hiena,
E também as mágoas vindas
Dos primeiros desencantos.
O resto fica escondido
Nas abas lá da jindiba
Entre os guardados da loba.
Sobram os grandes espaços,
Os horizontes abertos
Às primeiras cavalgadas.
Eram cavalos-de pau
Ou era a tropa de burros?
Facão no cinto e na mão,
A taca de mil estalos,
Nas dobras de alguma nuvem,
Ramiro tange escondido
Cuscuz e a Besta Melada.
E depois nos prega sustos
Saltando detrás das portas
Com a boca escancarada.
Do cume da Jacutinga
No trote da frialdade
Desce um rebanho de sonhos.
Ou são rebanhos de sombras?
Neblina fácil nas copas
Enreda-se com a folhagem.
Misturam-se aos bem-te-vis
Velhos cantares e aboios
Que os ventos levam e trazem.
“Que fazem meninos? Brinquem”,
Entoa a voz cautelosa
De quem quer filhos unidos.
Somente de alegres luzes
São feitos os dias da infância.
O TEMPO, O LUGAR
A
Soane Nazaré de Andrade
As três portas da frente onde era a venda,
guarnecida de vastas prateleiras,
e outra mais e mais outra, toda a senda
que levava ao quintal de bananeiras;
a franja da floresta, onde eu a lenda
desfiava de Anice, a que as primeiras
quimeras fez passar por uma fenda
na alma e que se ocultava dos que às feiras
de cristalinos sábados rumavam;
os cavalos de pau e as de bambu
flautas, mais a valer quando imitavam
virentes sons; e os ninhos de jacu,
por onde começava nova história.
Tudo isso me abre sulcos na memória.
À SOMBRA DA TARDE
Para Soane, oitentão (2011)
Oh, minha serra, eis a hora
Do adeus
vou-me embora,
Trago a luz do teu luar
No meu olhar,
Adeus.
(“Serra da Boa Esperança”, Lamartine Babo)
Eu só, em tarde de forte vento e frio,
defronte de minha deusa etrusca, ela
estirada, lassa, em dorsal decúbito,
recoberta de lanhos (verdes matas,
campos e plantações), que é a minha Serra
do Jacutinga, grávida de nuvens.
Nem parece que há um céu a navegá-la,
eternidade que as estrelas fitam.
Mirante solar de sete cidades ,
ó serra transida de chuva e sol,
para guardar um verso musical,
para chamar-se de boa esperança,
consumas-te em pincel, paleta e tinta,
festa de verde e azul, varal de infâncias.
BARRO VERMELHO, UM LUGAR
A
Othon Jambeiro
Ai! sítio que me atiça
as emoções primeiras.
Coração nas ladeiras
rasga-me. A serra: do alto
a mata avisto, a casa.
O descampado onde água
arisca (o riacho) risca-me
fervente infância – ai! asa
despedaçada; mergulho
fundo no espelho – em brasa.
Ai! vento que me estuma
à mente, ao rosto, aos lábios
acesos calendários.
Entro com as ferramentas
do sonho na derruba.
Dilacera-me a fúria
da lâmina nas árvores,
e mais que isto, o que avisto,
no começo das chuvas,
os horizontes graves.
(1988)
"A beleza da flor do cacau. Um bem da natureza a encantar o homem".
(Luiz Ferreira, 2022)
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